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terça-feira, 22 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23804: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte X: Op Mar Verde, há 52 anos, em 22/11/1970: para Conacri, rapidamente e em força.

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Op Mar Verde > 22 de novembro de 1970 > Na lancha de regresso a Bissau. Os soldados Aliu Djaló, Abdulai Djaló Cula, Meta Baldé, furriel Félix Diuf, furriel Vagomestre (não lembro o nome) e soldados Papa e Idrissa Dabo, da esquerda para a direita. (Foto publicada no livro, pág. 182, sem indicação de fonte).



Tira da banda desenhada “Operação Mar Verde”, da autoria de A. Vassalo [ex-fur mil comando Vassalo Miranda, nosso camarada da Guiné], uma edição da Caminhos Romanos, 2012.



Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Ilha de Soga > Novembro de 1970 > A 1ª Companhia de Comandos na LDG Montante, nos preparativos para a saída. (Foto publicada no livro, a preto e branco, em pequeno formato,  pág. 174, sem indicação de fonte)



Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Novembro de 1970 > O general Spínola na LDG, momentos depois de se ter dirigido aos Comandos, fardados e equipados como se fossem gerrilheiros do PAIGC. (Foto publicada no livro, a preto e branco, em pequeno formato,  pág. 175, sem indicação de fonte)




Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Carta de Bubaque (1057) > Escala 1/50 mil > Posição relativa das ilhas de Soga, Bubaque, Rubane e Formosa.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2021)




Guiné > Brá > Em 1965, os então 1º cabo Abdulai Jamanca e o soldado Justo Nascimento.  (Foto publicada no livro,  pág. 171, sem indicação de fonte)

Foto (e legenda): © Virgínio Briote (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Presumivelmente em Brá ou Fá Mandinga > s/d >  Soldado Caetano Gomes, morto na ilha de Sogo,   em acidente no mar, já depois do regresso d Op Mar Verde. (Foto publicada no livro,  pág. 181, sem indicação de fonte)

1. Continuamos a reproduzir excertos das memórias do Amadu Djaló (1940-2015), infelizmente já falecido, em Lisboa, no Hospital Militar, aos  74 anos.

A fonte continua a ser o ser livro "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), de que o Virgínio Briote nos disponibilizou o manuscrito em formato digital. A edição, que teve o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está há muito esgotada. E muito pouco provável que haja, em breve, uma segunda edição, revista e melhorada. Entretantio, muitos dos novos leitores do nosso blogue nunca tiveram a oportunidade de ler o livro, nem muito menos o privilégio de conhecer o autor, em vida.



Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria >
IV Encontro Nacional do nosso blogue >
20 de Junho de 2009... O VB e o Amadu.
Foto: LG (2010)
O nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965, e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966) fez, duarnte largos meses, com enorme paciência, generosidade, rigor e saber, as funções de "copydesk" (editor literário) do livro do Amadu Djaló, ajudando a reescrever o livro, a partir dos seus rascunhos.

Recorde-se, aqui o último poste 
desta séreie (*):  o então sold cond auto,  Amadú Djaló,   foi um dos poucos guineenses a frequentar o 1º Curso de Comandos da Guiné, que decorreu entre 24 de agosto e 17 de uutubro de 1964. Desse curso fizeram parte 8 guineenses: além do Amadu Djaló, o Marcelino da Mata, o Tomás Camará e outros. 

Deste curso sairam ainda os três primeiros grupos de Comandos, que desenvolveram a actividade na Guiné até julho de 1965: Camaleões, Fantasmas e Panteras. E começou logo, o Amadi, a entrar em combate. no Grupo Comandos Fantasmas, do alf mil 'comando' Maurício Saraiva. 

Hoje vamos dar um salto de 6 anos, e vamos com ele até Fá Mandinga (Sector L1, Bambadinca), à  ilha de Sogo e depois a Conacri... Foi seleccionado  em meados de 1969 para a 1ª Companhia de Comandos Afrocanos (em formação), comandada pelo cap graduado 'comando' João Bacar Jaló, seu amigo de Catió, e com a supervisão do major Leal de Almedida.  

Um ano e tal depois, em 22 de novembro de 1970, vêmo-lo a caminho de Conacri, no âmbito da Op Mar Verde. Faz hoje 52 anos. Vamos aqui recordar as memórias que ele nos deixou dessa temerária operação. 

Há mais de oitenta referências no nosso blogue sobre a Op Mar Verde. Mas o depoimento do Amadu Djaló é único: ele esteve lá, também sentiu dúvidas sobre a "legitimidade" da operação (fora do território nacional,e numa terra donde eram provenienetes os seus progenitores!), também experimentou sentimentos contraditórios (incluindo medo) mas não desertou como alegadamente terá desertado  o tenente 'comando' graduado João  Januário Lopes. Regressou, vivo, e continuou nos comandos e depois na CCAÇ 21 até ao 25 de Abril de 1974. É o único militar, guineense, que escreveu sobre a Op Mar Verde.




Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.




Operação Mar Verde, 22/11/1970: Para Conacri
rapidamente e em força
(pp. 168/183)

por Amadu Djaló (*)



(i) Acaminho da "misteriosa" ilha de Soga

Quando chegámos a Fá Mandinga a primeira coisa que fizemos foi ajudar o pessoal da formação a preparar mais de trezentos pregos para uma viagem que íamos fazer e ainda não sabíamos para onde.

O capitão João Bacar Jaló e o major Leal de Almeida, mal desembarcaram do heli, deram ordens para distribuir os pregos pelo pessoal e logo a seguir tomámos os nossos lugares nas viaturas. Sabíamos que íamos directos ao Xime [1], e depois o destino era desconhecido.

No Xime embarcámos numa LDG que, logo que o pessoal entrou todo, começou a manobrar para sair do porto e a seguir rumou para ocidente.

Na minha e nas nossas cabeças, as dúvidas eram cada vez maiores, ninguém nos dizia para onde íamos e o que íamos fazer. Como Bissau ficava para ocidente, o capitão João Bacar disse que se desembarcássemos em Bissau mandava matar o carneiro capado que tinha em casa.

Bissau ficou à nossa vista e pensei na grande noite de festa que iríamos ter. A lancha encostou na margem contrária e quando vimos a cidade a passar à frente dos nossos olhos perdemos as esperanças. Estava cansado, fui dormir, e não sei o que se passou durante o resto da noite. Quando acordei, já depois das 7h00 de terça-feira, o barco estava fundeado em frente de uma ilha, no meio do mar.

Disseram-me que estávamos entre Bubaque e a Ilha de Soga, no arquipélago dos Bijagós. Que estamos a fazer neste sítio? Era uma pergunta que todos faziam, resposta ninguém tinha. O que vimos foi um grande movimento na ilha que me disseram chamar-se Soga.

Nesta altura veio-me à lembrança que, em Fá Mandinga tínhamos recebido instrução de combate dentro de cidades [ministrada pelo cap art Morais da Silva, hoje cor ref, membro da nossa Tabanca Grande... LG]. E também recordei o que tinha ouvido do adivinho de Paunca [Mamadu Candé, pág. 166 ]. Que íamos para uma grande cidade e que íamos sofrer muitas baixas. Eu nunca falei nesta conversa a ninguém, a não ser ao João Bacar. Fiquei com estes pensamentos na cabeça.

Na noite de terça-feira, os militares fizeram um espectáculo na lancha, que durou até às 02h00 da madrugada de quarta-feira. Quando me levantei na manhã seguinte, a minha cabeça não parava com perguntas. Ia ser uma quarta-feira comprida [2].

Por que estamos nas Ilhas dos Bijagós se aqui não há guerra nenhuma? Por que estão aqui uns gajos, que alguns dizem que falam francês? Em nenhuma parte de Portugal se fala francês! Por que viemos até aqui e não fomos combater? De que é que estamos à espera, neste local?

Já estávamos saturados de mar, mas pelo menos saltávamos para a água. Estávamos a tomar banho quando vimos um heli a passar ao lado do nosso barco e a pousar na ilha de Soga. A seguir vimos um bote, só com um marinheiro, a aproximar-se da nossa lancha. Ficámos ali a observar e, pensei para mim, que as nossas interrogações iam brevemente ter resposta.

Quando o bote encostou, o motorista chamou o major Leal de Almeida e o capitão João Bacar, que desceram para o bote e rumaram directos à ilha. Em ânsias ficámos a aguardar, cerca de duas horas, até que vimos o bote voltar na nossa direcção.

As pessoas que vinham eram nossas conhecidas, era o major e o capitão e não os largámos de vista, a ver se descobríamos alguma coisa nos olhos deles. Quando subiram, a olhar para o chão ou para o lado, chamaram os quadros da nossa companhia.

A reunião começou com o major Leal de Almeida a distribuir objectivos: o grupo do alferes Djamanca [3] ia ocupar a emissora. O furriel Demba Chamo Seca ia com a sua equipa [4] e com um grupo da Frente de Libertação da Guiné-Conacri [5], chefiado pelo comandante Tcham, cortar a luz à central eléctrica. O grupo do alferes Tomás Camará [6] ia atacar a Guarda Nacional.

A minha equipa reforçava a equipa do furriel Talabio e devia seguir com um grupo do FLNG para o Palácio. Eu ia com o major Leal de Almeida, levava dez soldados africanos da 15ª CCmds e mais onze milícias, comandadas pelo régulo Sambel Coió [7] e mais quarenta homens do FLNG, num total de sessenta e nove homens, com dois morteiros de 60, dois de 82, um canhão sem recuo e uma MP e onze carregadores, naturais da República da Guiné-Conacri. O nosso primeiro objectivo era cortar as ligações ferroviárias entre Conacri 1 e Conacri 2, rebentar com os caminhos-de-ferro. Depois ficávamos ali em reserva para um eventual pedido de apoio dos outros grupos.

A seguir entregou-nos mapas das zonas e papeis com os objectivos de cada agrupamento e, no final de tudo, disse-nos que o objectivo era Conacri.

Quando ouvimos falar de Conacri ficámos abananados e as reacções foram imediatas.

 Nós estamos de acordo em actuar em qualquer parte do território nacional. Não estamos em guerra com Conacri!    reagiu assim o tenente Januário, que era o 2º comandante da CCmds. 

E quase todos os quadros estavam de acordo com esta reacção. Os únicos que não se manifestaram foi o comandante da companhia, o capitão João Bacar, e o alferes Sisseco. Entretanto, contrariando as ordens recebidas, o alferes Justo desabafava para os soldados:

– Vocês sabem para onde nos queriam mandar? Para Conacri!

Nessa altura os soldados também se manifestaram abertamente contra a ideia. Perante esta situação, o major Leal de Almeida escreveu uma mensagem a dizer que a 1ª Companhia de Comandos recusava a missão.

Este foi um momento muito, muito difícil. Para os dois comandantes e para nós também. Para mim, a missão de tirar os companheiros da prisão era uma operação própria para os Comandos. E, se a decisão fosse essa, era uma missão completamente legítima e para ser executada por nós. Esta era a minha ideia, aquilo que o meu íntimo me dizia.

Então, o major disse-nos que ia mandar a mensagem e que, a partir deste momento, a vida militar dele estava nas nossas mãos. Se, posteriormente, a companhia decidisse participar na acção, podiam pensar que tinha sido ele, que era o único branco da CCmds, que nos tinha influenciado.

 –
  Meu major, nós não tomaremos nenhuma decisão sobre esta ou outra missão enquanto o meu major não regressar. 

Uma opinião quase geral. Algumas horas passadas voltámos a ver o heli na direcção de Soga e o bote a vir outra vez a caminho da lancha. Quando acostou, quem é que vinha nele? Era o comandante Alpoim Calvão, que nos tinham dito que era o comandante da operação.

Quando acabou de subir para a LDG, nós levantámo-nos e cumprimentámo-lo. Mandou-nos sentar e ouvimo-lo chamar pelo major e pelo João Bacar. Estiveram cerca de uma hora reunidos.

Depois da reunião, o nosso major foi o primeiro a aparecer. Quando passou ao meu lado, que estava sentado junto do médico da companhia, ouvi-o dizer:

– Eu não vos disse? Mandaram-me buscar!

Entraram para o bote os dois, o major e o comandante Calvão, e rumaram noutra direcção. A preocupação entre nós era cada vez maior. No nosso barco reinava um silêncio total, cada um a pensar para si. Um soldado, o Galé Bari, era o único que, de vez em quando, nos entretinha com histórias que nos faziam rir. Mas a noite foi tão comprida e tão cansativa como tinha sido o dia. Os pensamentos surgiam uns atrás dos outros. Não era só o facto de ter medo. Era também a vergonha de recusar entrar numa acção para a libertação dos nossos companheiros presos e haver outras unidades envolvidas.

Seriamos os únicos a tomar esta decisão? Nós não sabíamos, não podíamos entrar em contacto nem com os fuzileiros nem com as milícias do Sambel Coió.

Quinta-feira [8] de manhã, ainda antes das 9 horas, voltámos a ouvir o barulho do heli e vimo-lo na direcção de Soga. E vimos o bote, outra vez a dirigir-se para a nossa lancha. Quando encostou, reconhecemos o nosso major, que, soubemos depois, tinha passado a noite em Bissau.

Quando subiu, vimo-lo com outra cara. Cumprimentou-nos alegremente e nós ficámos mais animados. A seguir mandou os quadros reunirem-se com ele.

Disse-nos que os objectivos se mantinham e falou sobre a forma como íamos agir. Primeiro, não levávamos as nossas fardas, nem as nossas armas. Levávamos Kalashs e íamos vestidos com roupa do PAIGC, equipamentos, chapéus, tudo de cor castanha. Segundo, que havia um capitão do Exército da Guiné-Conakry que comandava uma companhia que ia connosco. E terceiro que todos nós levávamos um braçal, de cor verde, no ombro esquerdo e que serviria de sinal da operação “Mar Verde”. E que qualquer pessoa que, em Conacri, nos mostrasse um pano, grande ou pequeno, desde que fosse de cor verde, era dos nossos.


(ii) A caminho de Comacri, e que Alá nos proteja!


Terminou a reunião, dizendo que a operação estava bem planeada. E que tínhamos, em Conacri, gente à nossa espera, mesmo militares, que apoiavam a nossa acção!

 
– E as fardas e as armas, onde estão?  – perguntou  um e depois outros.

  Aí atrás, em baixo, onde vocês estão. Alguns de vocês estão sentados nelas!

Eram umas caixas que estavam ali, meio desprezadas. Estavam ali desde que tínhamos embarcado na LDG. Ninguém deu por elas, ninguém tinha achado que valesse a pena olhar para elas.

Abrimo-las e logo começámos a fardar-nos. Uma hora depois ninguém parecia pertencer ao Exército Português.

Por volta das 10h00, avistámos um barco muito velho a navegar na nossa direcção. Trazia o general Spínola, corremos para a formatura. Quando chegou, o capitão João Bacar Djaló mandou apresentar armas, o general correspondeu à continência e depois iniciou um pequeno discurso.

Que se não fosse governador ia connosco. Mas que nós iríamos participar com o espírito dele e que havíamos todos de regressar, se Deus quisesse. Gritámos o nosso grito “Comandos ao ataque”, três vezes. Depois deste grito, já não podíamos voltar atrás, era o nosso juramento.

A partir deste momento, acabaram-se as reclamações. Mesmo assim, um pequeno grupo não estava satisfeito com a missão.

Acabada a reunião, o nosso general [9] regressou no barco e nós saltámos para a ilha de Soga. Aqui esperava-nos o trabalho de formar os grupos e enquadrar a gente da Frente de Libertação da Guiné-Conakry.

Faço aqui, agora em 2009, uma nota que nunca revelei. A última ordem que recebi do major Leal de Almeida foi que se tivéssemos êxito na acção, era que devia manter-me em Conari até o Movimento de Libertação da República da Guiné controlar totalmente a situação. Só depois, o meu grupo seria recolhido de avião, de barco ou até em viaturas. Esta ordem foi-me transmitida na sexta-feira [10], dia destinado aos preparativos, um dia em que nem tempo tivemos para almoçar. Só mais tarde jantei no barco.

Pensando hoje, lembro-me que houve sobreviventes do desembarque na Normandia, na IIª Guerra Mundial e talvez eu não estivesse assim tão perto do fim dos meus dias. Só que as guerras têm diferenças.

A nós, o PAIGC não nos poupava. Que me lembre, não me recordo de ver algum dos nossos matar os feridos. Nem deixávamos nenhum ferido do PAIGC na terra de ninguém. Se estivesse ferido, pedíamos a evacuação para o Hospital Militar. Certamente, alguns entre nós, brancos ou negros, não se comportavam assim, tão dignamente, mas não eram a maioria. E se nós fossemos apanhados pela tropa de Sékou Turé, de certeza que não haveria nenhum sobrevivente.

A partida deu-se às 17h35 dessa mesma quinta-feira, 20 de Novembro, comigo a falar para dentro e a mirar os tarrafos [11] até ao pôr-do-sol. Talvez eu estivesse a olhar pela última vez aquelas paisagens da minha Guiné.

A frota era constituída por seis navios: duas LDG e quatro patrulhas. A nossa lancha foi a terceira a partir. No mar víamos, às vezes, dois barcos que seguiam na dianteira. Continuámos a navegar até sábado 
[21 de novembro] , quando nos foram feitas importantes recomendações. Ninguém podia acender luz nem fumar fora do porão. O jantar ia ser servido às 17h00. E a ordem de desembarcar ia ser dada até às 23h00.

Ao pôr-do-sol começámos a ver as luzes de Conacri. Lembro-me de olhar para o relógio, eram 19h00, quando disse para um colega, o 1º cabo Galé Bari, para me deixar dormir um pouco.

 És parvo? Nós vamos dormir nas ruas, um sono de que nunca mais vamos acordar!

 Podem sobrar alguns     respondi.

 
– Não, vamos morrer todos, ninguém vai sobrar!

Estava a gozar, ele a dizer para o lado e nós a rirmo-nos.

Quando chegámos ao local onde íamos fazer o transbordo para os botes, a lancha parou e o pessoal começou a sair.

Se não me engano, éramos quatros grupos sob o comando do capitão João Bacar Jaló. O alferes Djamanca, eu, Amadu Bailo Djaló, o furriel Talabio Djaló e o pessoal da Frente de Libertação da Guiné-Conakry. Os primeiros a desembarcar foram os grupos do Jamanca [12] e do Talabio Djaló.

Outros grupos já estavam em acção em Conacri [13], ouvíamos tiroteio cerrado e rebentamentos. O meu grupo, em que ia o major Leal de Almeida, foi o último a desembarcar. No momento em que estávamos a passar da lancha para os botes, ouvi, no meu rádio, o comandante Calvão a dizer ao nosso major que o tenente Januário tinha desertado.

 O quê ?  – perguntou  o major.

 
  O Januário desertou!

 
   O quê?

 
– O Januário fugiu  rematou o comandante.

   Mas fugiu com o grupo, ou sozinho?    insistiu o major.

 
– Stop       fechou assim a conversa o comandante.

Para mim e talvez para outros, não estava a ser novidade esta deserção. Ainda em Soga vi o tenente Januário vestido com roupa civil, uma calça de terylene verde e uma camisola branca, de manga curta.

 Djaló, eu não entro no ataque. Vou-me entregar, portanto não levo farda. Vou com esta roupa, as botas de fecho ao lado e quando lá chegar, tiro o dólmen e o quico e fico à civil.

Fiquei surpreendido mas não acreditei. Eu sabia que o tenente Januário tinha um irmão que combatia pelo PAIGC, tal como alguns de nós tínhamos familiares que também combatiam por eles.

Quando pusemos os pés em terra, Conakry estava às escuras e os tiros e rebentamentos eram mais esporádicos. Meia hora depois do desembarque talvez, ouvi pelo rádio o comandante Calvão dar ordem de retirada, com a indicação de abandonarmos as posições em terra.

A missão do meu grupo tinha sido abortada. O grupo do capitão João Bacar tinha acabado de chegar ao porto e ficámos ali, a aguardar a chegada dos restantes grupos. Momentos depois, chegou o grupo do Jamanca, que vinha completo e que não tinha conseguido localizar a emissora. Agora, restava-nos esperar o Talabio Djaló e os seus homens. Este grupo trazia-nos preocupações porque, desde que desembarcou, não deu qualquer sinal, nem chamou nem respondeu aos nossos contactos rádio. Não sabíamos o que era feito dele e do grupo. Até ao momento, era o único grupo com o qual não tínhamos tido qualquer notícia.

João Bacar disse que o meu grupo e o dele tinham que manter aquela posição até que todo o pessoal estivesse embarcado.

As duas últimas equipas, nove homens comigo, foram as últimas a embarcar para o bote que nos transportou para a lancha. Quando já estávamos encostados à lancha, preparados para entrar, ouvi o João Bacar dar ordem ao furriel Djalibá Gomes para ir buscar o Talabio, que acabava de informar que estava a chegar ao porto.

O bote, em grande velocidade, regressou ao cais e, passados uns minutos, vimo-lo a regressar, mas só trazia o Djalibá e o motorista do bote.

 Onde está o Talabio?

–  O Talabio não estava no cais. Quem lá estava era o IN    respondeu o Djalibá!

O Talabio nunca mais chamou, a hora marcada para a partida já tinha passado e foi decidido iniciar o regresso à nossa Guiné.

Mais tarde, soube pelo Francisco Gomes Nanque, um soldado da minha equipa que tinha ido na missão do furriel Talabio, o que tinha acontecido.

Depois de desembarcar, o grupo do Talabio dirigiu-se para o Palácio, onde se confrontou com a guarda. Da troca de tiros resultou um ferido no grupo, um engenheiro natural da Guiné-Conakry, chamado Bari, que ficou incapacitado de andar. O Talabio deve ter-se preocupado mais com o transporte do ferido do que com o rádio. E, quando chegaram ao porto, no regresso da missão, o Talabio pediu pelo rádio ao João Bacar que os fossem recolher.

Todas as nossas tropas já estavam nas lanchas. Restavam apenas aqueles nove homens. Os gendarmes atacaram com rajadas o bote que se aproximou do cais para os recolher e foi então que deram com os homens do Talabio. Do grupo só escaparam dois, o Francisco Nanque e o soldado Mário Dias, que conseguiram sair do local a nado.

O Francisco foi recolhido por um navio holandês mas como ninguém o percebia levaram-no para a próxima escala, na Libéria. Como ninguém se percebia, chamaram um cubano para servir de intérprete. Francisco disse que era soldado português e que tinha feito parte das tropas que tinham atacado algumas instalações em Conacri.

A Libéria não tinha relações com o nosso país, mas também não via Portugal como um grande inimigo. Enquanto mantinham o Francisco detido, num regime pouco rigoroso, fizeram seguir para Lisboa, a informação de que tinham em seu poder um soldado português, chamado Francisco Gomes Nanque, que afirmava ter participado no ataque a Conacri. Segundo o Nanque, não demorou muitos dias a resposta de Portugal, que lhe foi dada a conhecer pelas autoridades liberianas: que o Nanque tinha sido soldado, de facto, mas já tinha passado à disponibilidade e que se dizia que tinha participado na agressão a Conakry o devia ter feito por razões materiais e que o Estado português não tinha nada com isso.

 
   Eu sou militar português!  insistia o Francisco Nanque.

Dias depois, perguntaram-lhe se tinha coragem para ser entregue na Embaixada de Portugal, na África do Sul. Com roupas novas que lhe deram, embarcou acompanhado de dois polícias liberianos. Entretanto, Sékou Touré já tinha reclamado várias vezes ao Presidente da Libéria que o soldado lhe devia ser entregue.

Chegado ao aeroporto de uma cidade sul-africana, que o Nanque não recorda o nome, foi levado pela polícia ao encontro de um cônsul português que se encontrava, por acaso, no aeroporto. Muito surpreendido, o cônsul afirmou que o embaixador português na África do Sul se encontrava em Lisboa. Depois de várias peripécias, os polícias liberianos que o acompanhavam não viram outra saída senão voltarem para a Libéria. Apanharam um avião que fazia escala em Londres. No controle dos passageiros, autoridades da fronteira inglesa, inteiradas do assunto, sugeriram que se contactasse a embaixada portuguesa em Londres.

Ao corrente da história, o embaixador prontificou-se a falar com o Francisco. Sempre acompanhado pelos dois polícias da Libéria foi transportado às instalações da embaixada de Portugal, onde foi recebido pelo embaixador. Depois das identificações, o embaixador acedeu em ficar com o Francisco Nanque e, na frente da polícia, deu ordens para o encerrarem numa sala, fechada à chave. Mal os polícias saíram, o Francisco ouviu o rodar das chaves e recebeu um abraço sorridente do responsável pela embaixada.

No mesmo dia, o embaixador enviou uma mensagem para Lisboa e, no dia seguinte, o Francisco desembarcou no aeroporto da Portela, onde estava uma viatura militar que o transportou para o QG. Um dia de interrogatórios depois, levaram-no para o Depósito Geral de Adidos, com a ordem de não lhe permitirem qualquer saída. O comandante Calvão foi informado do caso e encontrou o Francisco no DGA. Que não podia estar preso quem tinha entrado numa operação para libertar os nossos prisioneiros de Conacri. Albergou-o em casa, durante cerca de quinze dias, e levou-o a conhecer Lisboa e os arredores. Depois, reencontrei o Francisco Gomes Nanque, em Brá, que me contou esta história.

Soube-se também que o Mário Dias foi a nadar até uma pequena ilha onde foi recolhido por pescadores. Pouco se soube da odisseia dele, apenas que, cerca de três dias depois de ter sido encontrado, foi entregue às autoridades de Conakry.

Voltando ao regresso de Conakry. Era um domingo, por volta das 07h00, havia nevoeiro, e continuámos a navegar durante aquele dia e a noite seguinte, até que chegámos à Ilha de Soga.

Os fuzileiros e o pessoal da Frente de Libertação da República da Guiné-Conari regressaram aos seus locais e, a nós, mandaram-nos desembarcar na Ilha de Soga [14].

 Agora estamos em Soga, a fazer o quê? Sem transporte, porquê? O que é que estamos a fazer aqui, neste local?

Alguns de nós ouviram as declarações do tenente Januário à rádio Conacri. Que pertencia aos Comandos Africanos. E quando lhe perguntaram onde estavam sediados, o tenente disse que o quartel era em Fá Mandinga.

   Fá Mandinga, onde é?

   Perto de Bambadinca     respondeu.

 Pensámos que, talvez, as razões da nossa prolongada estadia em Soga se pudessem prender com as declarações do Januário.

A paisagem não mudava. E neste intervalo de tempo, num dia [15], tivemos uma fatalidade. Alguns companheiros nossos estavam a tentar arranjar peixe. Um deles lançou uma granada ofensiva para a água, na altura em que, sem saber, o soldado Caetano Gomes estava mergulhado. Morreu.

Nós íamos passando o tempo da forma como podíamos, falando uns com os outros, trocando impressões sobre as missões.

O grupo do Jamanca não conseguiu chegar à emissora de Conacri, que era uma acção muito importante. Segundo o Jamanca, tinha ocorrido um erro fatal para a missão. O indivíduo, natural da Guiné-Conacri, que ia levar o grupo à vivenda da emissora, já não ia a Conacri há alguns anos. Ele sabia onde era a vivenda da emissora, mas quando lá chegou com o grupo a vivenda não estava lá. No lugar da vivenda estava um edifício com vários pisos e ficaram sem saber onde ficava a emissora.


(iii) É o meu filho, Amadu!

As preocupações tinham passado para nós, os que estávamos em Soga. Escrevemos cartas para as famílias, metemos as cartas numa caixa de correio e, três dias depois, veio um heli que as levou todas. Estávamos contentes, nada nos tinha acontecido e as nossas famílias em breve iam receber notícias nossas. Aproximava-se a Festa do Ramadão, que estávamos habituados a respeitar e a passá-la fora do quartel. Passámo-lo em Soga, com o régulo Sambel Coio a dirigir as orações.

Mais ou menos 15 dias depois chegou uma lancha para nos levar para Fá Mandinga. A viagem iniciou-se à meia-noite e qualquer coisa e quando chegámos ao Xime era quase meio-dia, sempre a navegar. Uma grande coluna de viaturas estava à nossa espera.

No cais do Xime, a companhia de europeus [16], que estava lá aquartelada, estava à nossa espera no cais, com máquinas a tirarem-nos fotos. Depois prosseguimos o nosso trajecto, em coluna até Fá Mandinga. Pessoas das tabancas, mulheres, crianças, homens de todas as idades, vieram para as bermas da estrada saudar o nosso regresso. Fomos passando de tabanca em tabanca até Fá Mandinga. Quando finalmente chegámos, o capitão João Bacar Jaló disse-me:

 – Amadau, vai para Bafatá e diz às nossas famílias que preparem um bom jantar.

Logo que pude, apanhei lugar num carro civil que acompanhou a coluna e fui, feliz, em direcção à minha cidade. O carro parou à porta da minha casa, eram mais ou menos 15h00 daquela tarde, um sobrinho meu estava na varanda da frente, a brincar. Ouvi-o chamar pela minha mãe, a dizer que o tio já estava ali. A minha mãe não acreditava, que não podia ser, que aquele carro era civil, que eu nunca vinha em carro civil.

Quando saltei da viatura, perguntei ao meu sobrinho pela minha mãe. Ela ouviu, gritou alto, é o meu filho Amadu! Veio a correr, encontrámo-nos no meio do corredor, com um grande abraço e eu voltei a sentir o coração dela a bater com força.

Ela estava muito fraca, agarrei-lhe na mão e levei-a para o quintal. Depois, a minha irmã contou que ela estava muito fraca porque não comia quase nada desde a minha despedida. Dizia que o seu filho comprou o peixe, escolheu o prato e não comeu.

Naquele momento, não pude deixar de pensar no erro que tinha cometido naquela 2ª feira, quando comprei uma cabeça de bicuda e lhe pedi para fazer a caldeirada. Infelizmente, antes da comida ficar pronta, vieram procurar-me, estava eu no mercado. Um soldado tinha-me pedido para vir cá fora falar, num sítio mais sossegado. Foi nessa altura que soube da ordem que tinha vindo de Bissau, a mandar recolher toda a tropa de Comandos para uma reunião. Quando cheguei a casa, mudei de roupa, preparei a minha bagagem e despedi-me da família. A minha mãe ainda me disse para esperar pelo almoço e eu, infelizmente, respondi que não tinha tempo.

Esta resposta feriu a minha mãe profundamente, no fundo do coração. E a minha irmã estava ali a dizer-me que, a partir daquela tarde a minha mãe quase não comia, porque não tinha vontade.

Uma surpresa tive eu e os meus companheiros, que tínhamos estado em Soga, e que tínhamos escrito cartas para os nossos familiares. Quando regressámos ao nosso quartel, dias depois, essas cartas que nós tínhamos escrito foram-nos entregues abertas. Soube depois, que as cartas tinham sido remetidas para o Comando-Chefe, abertas e lidas e só depois, reenviadas para Fá.

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Notas do autor Amadu Djaló e/ou od editor Virgínio Briote

[1] Nota do editor: sede da CArt 2715.

[2] Nota do editor: 11 Novembro 1970.

[3] Nota do editor: Grupo “Hotel”.

[4] Nota do editor: “Índia”.

[5] Nota do editor: do “Front de Libération National Guinéen”, constituído em março d e  1969 por refugiados guinéus na Costa do Marfim, Senegal e Gâmbia.

[6] Nota do editor: “Óscar”.

[7] Nota do editor: Sambel Coio Baldé, ex-régulo de Sancorlá, tinha sido libertado do Tarrafal.

[8] Nota do editor: 12 de novembro de 1970.

[9] Nota do editor: ao princípio da tarde de 20 de novembro de 1970, o general Spínola, após ter visitado Mansambo e a tabanca de Gandamã, deslocou-se para o ilhéu de Soga.

[10] Nota do editor: 20 de novembro de 1970.

[11] Vegetação rasteira que bordeja a costa.

[12] Nota do editor: da LDG Bombarda.

[13] Nota do editor: os prisioneiros portugueses, 26, foram libertados por volta das 04h00 da manhã por um grupo de 30 fuzileiros, comandado pelo 1º tenente Cunha e Silva e transportados para a LFG Dragão.

[14] Nota do editor: às 16h25,  de 2ª feira, 23 novembro 1970, os navios fundearam ao largo do ilhéu de Soga, após o que todos os militares portugueses desembarcaram.

[15] Nota do editor: 25 de novembro  de 1970.

[16] Nota do editor: CArt 2715

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Parênteses retos com notas / Subtítulos: LG]
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Nota do editor:

Último poste da série > 19 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23796: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte IX: "Amadu, que vamos fazer ao puto ?"... "Meu alferes, vou levá-lo para Bafatá, a minha irmã cuidará dele!"... A história do puto, "turra", Malan Nanque, que o Amadu salvou e adotou como sobrinho...

sábado, 19 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23796: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte IX: "Amadu, que vamos fazer ao puto ?"... "Meu alferes, vou levá-lo para Bafatá, a minha irmã cuidará dele!"... A história do puto, "turra", Malan Nanque, que o Amadu salvou e adotou como sobrinho...

 


Angola > CIC - Centro de Instrução de Comandos > 1963  > O alferes mil Maurício Saraiva em Angola, em 1963, aquando da frequência do curso de Cmds; . N CTIG  será depois promoviodo, por mérito, a tenente e a capitão.. (*)





Guiné > Brá > Comandos do CTIG > Junho de 1965 > Cap Mil 'Comando' Maurício Saraiva > Idolatrado por uns, odiado por outros, foi um mal amado, diz o Virgínio Briote... O Amadu Djaló, por sua vez,  foi um dos oito "negros" (sic) - a par do Marcelino da Mata, do Tomás Camará e outros - a participar "no 1º curso de quadros para os Comandos do CTIG", que teve início em 3 de Agosto de 1964  (Amadu Bailo Djaló - Guineense, Comando, Português. Lisboa: Associação de Comandos, 2010, p. 82). O seu primeiro comandante, no Grupo Fantasmas, foi o Alferes Saraiva (entretanto promovido a tenente e depois capitão).



Guiné > Brá > Comandos do CTIG > c- 1964 > Emblema de braço do Grupo Fantasmas, que pertenceu ao alferes  'mil comando ' Saraiva.  


Fotos (e legendas): © Virgínio Briote (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Bafatá > SEctor L1 ( Bambadinc) > Xime > Porto fluvial

Foto cedida por Torcato Mendonça


1. Continuamos a reproduzir excertos das memórias do Amadu Djaló, que a morte infelizmente já nos levou, há 7 anos,  em 2015, ainda antes de completar os 75 de idade.  Os seus filhos, por sua vez, vivem (ou viviam até há uns anos) no Reino Unido.

A fonte continua a ser o ser livro "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), de que o Virgínio Briote nos disponibilizou o manuscrito em formato digital. A edição, que teve o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está há muito esgotada. E muitos dos novos leitores do nosso blogue nunca tiveram a oportunidade de ler o livro, nem muito menos o privilégio de conhecer o autor, em vida.


O nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965, e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966) fez generosa e demoradamente as funções de "copydesk" (editor literário) do livro do Amadu Djaló, ajudando a reescrever o livro, a partir dos seus rascunhos.

Temos vindo a introduzir pequenas correcções,  toponímicas e outras, ao texto  impresso, a ter em conta numa eventual (se bem que pouco provável) 2ª  edição.  Mantemos a ortografia original.

Recorde-se, aqui o último poste: o sold cond auto Amadú Djaló (1940-2015) alistou-se nos comandos do CTIG, a convite pelo alferes mil 'comando' Maurício Saraiva, angolano. Frequentou o 1º Curso de Comandos da Guiné, que decorreu entre 24 de Agosto e 17 de Outubro de 1964. 

 Deste curso fizeram parte 8 guineenses: além do Amadu Djaló, o Marcelino da Mata, o Tomás Camará e outros. Deste curso sairam ainda  os três primeiros grupos de Comandos, que desenvolveram a actividade na Guiné até julho de 1965: Camaleões, Fantasmas e Panteras

O Amadu passou a pertencer ao Grupo Fantasmas, comandado pelo alf mil 'comando' Maurício Saraiva. Logo no fim do curso, os três grupos participaram na primeira operação, a Op Confiança, realizada entre 25 de Outubro e 4 de Novembro de 1964 no Oio,   na área atribuída ao BCav 705, tendo por objectivo a reabertura do itinerário entre Mansabá e Farim.

  


Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense,  Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.


A história do puto "turra" do Buruntoni, Xime, de nome Malan Nanque

(pp. 90-94)

por Amadu Bailo Djaló



Dias depois, nova saída, para Buruntoni, no Xime. Saímos de Bissau, de barco, para o Xime.

Logo que chegámos, instalámo-nos no quartel, até ao fim do jantar. Forneceram-nos um guia e marchámos directos a Burontoni.

Nesta operação [1], eu ia integrado na 3ª equipa, a meio do grupo. Toda a noite a andar, a corta-mato. Perdermo-nos já era uma sina, andámos, sempre com o guia à frente, sem darmos com o caminho que nos levava para o acampamento. Quando chegámos à zona, o sol ia alto, eram para aí 7h00 [2].

Encontrámos um rapazito de 8 ou 9 anos. Interrogado disse que ia para o campo de lavra dos pais. Sobre o acampamento da guerrilha que procurávamos[3], disse que ficava na outra margem do rio Burontoni. Seguimos até à margem. O alferes ia falando com ele, fazendo-lhe perguntas. Se o acampamento tinha pessoal, respondeu que nessa manhã, o Suleimane Djaló tinha avisado a população para abandonar o acampamento, porque tinha andado uma avioneta a sobrevoar e isso não era bom sinal, que podia acontecer qualquer coisa a todo o momento. 

Sobre o local, onde costumava ficar a sentinela, o rapazito disse que ficava atrás de nós. Então, o alferes deu instruções para voltarmos atrás, para ver se conseguíamos apanhar a sentinela.

O alferes Saraiva passou para a frente e fomo-nos aproximando do local, onde julgámos que ela estava. Estava numa árvore. O alferes abriu fogo e ele caiu imediatamente. Corremos para ele, e quando lá chegámos já estava moribundo. 

Com a arma do sentinela nas nossas mãos, continuámos a marcha para o Xime, até que demos com uma tabanca abandonada, que se chamava Gundagué Beafada

Perto deste local encontrámos a tropa de Bambadinca que estava com a missão de nos recolher. Encontrei alguns companheiros da minha incorporação e, quando estava a abraçá-los vi o alferes, de arma ao ombro, e o menino com a mão na nuca, de olhar fixo no alferes. Cheguei-me para junto do alferes e ele disse-me:

– Amadu, que vamos fazer ao puto?

– Levá-lo, meu alferes?

– Ele é turra, Amadu!

– O meu alferes tem mais formação e conhecimento que eu, mas parece-me que com esta idade, o menino não é inimigo nem amigo.

– Então, por que vivia no mato, Amadu?

– Porque os pais vivem no mato, meu alferes!

– E tu, o que queres fazer com ele, Amadu?

– Deixamo-lo no quartel de Bambadinca.

O capitão da companhia de recolha estava junto de nós. O alferes perguntou se eles queriam ficar com o miúdo. Negativo, respondeu o capitão. O alferes ficou a olhar para mim e eu disse:

– Levamo-lo connosco para o quartel. Se o meu alferes não quiser que ele fique no quartel, eu fico com ele na minha casa.

– Não tens mulher, como é que vais tomar conta dele?

– A minha irmã toma conta!

– Tens a certeza, Amadu? Fica à tua responsabilidade!

– Inteiramente, meu alferes.

Agarrei no menino e começámos a andar até ao Xime e depois para Bambadinca.

Em Bambadinca, eram para aí 18h00, estava um barco no cais, a preparar-se para partir para Bissau. Aproveitámos o transporte no barco que ia carregado com laranjas, limões, ananás, bananas, muita fruta. Mas não era o que nós precisávamos, o que nos fazia falta era uma refeição quente.

O barco levava também batata-doce e abóboras. O furriel Artur tinha só 5 escudos e o alferes, que tinha uma nota de 500 escudos, pediu para lhe venderem batata-doce e abóboras, ao preço que se vendiam em Bissau. A batata-doce era vendida ao quilo, a abóbora era conforme o tamanho. Começámos a pesar as batatas e ninguém no barco tinha troco. Então, nós dissemos que, logo que chegássemos a Bissau, no dia seguinte um de nós ia ao mercado pagar. Mas não aceitaram.

Então pedimos uma panela grande, descemos ao porão e pusemo-nos a cozinhar a abóbora que tínhamos comprado. Mas uma abóbora não dava para o grupo todo. Enquanto o cabo Cruz, sentado em cima de um saco, cantava fados, íamos roubando batatas, uma a uma. Quando o Cruz assobiava parávamos de tirar batatas e assim fomos enchendo a panela. Quando o cozido ficou pronto, chamámos o grupo todo para comer.

Eram para aí 21h00 quando acabámos. Quando chegámos a Brá, já depois da meia-noite, ainda comemos uma refeição quente, de peixe cozido e depois retirei-me para a minha casa.

Eu estava muito satisfeito comigo próprio e com o alferes. Assim que ele aceitou o meu pedido de ficar com o miúdo, que se chamava Malan Nanque [4], um companheiro europeu do meu grupo, o Mendes, que tinha apanhado uma maleta com quatro cortes de fazenda, ofereceu-ma para fazer roupa para o rapazito. 

Quando chegámos a Bissau, levei-o ao alfaiate, e os cortes de tecido deram para fazer 3 calções e 2 camisas. Ainda lhe comprei um par de sapatos e uns chinelos.

Agora, que estou a escrever e a recordar este episódio, tenho os olhos húmidos. Estou a ver o miúdo à frente da arma com a mão na nuca, a tremer todo, a olhar para o matador. Ele, o menino, tinha acabado de ver o alferes matar a sentinela e devia pensar que agora era a vez dele. (**)

(Continua)

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Notas do autor Amadu Djaló e/ou do "copydesk" Virgínio Briote:


[1] Nota do editor: “Vai à Toca”

[2] Nota do editor: 11 de Novembro de 1964

[3] Em Darsalame Baio

[4] O rapazito, Malan Nanque, biafada, mudou de apelido, para poder frequentar a escola. Passou a ser meu sobrinho e viveu com a minha família em Bafatá. Durante muitos anos ninguém da nossa família soube que o Malan Djaló era o miúdo que tinha sido capturado pelos Fantasmas, numa manhã de Novembro de 1964.

Anos depois, em 1973, levei-o a ver a mãe, em Bissau. Mas Malan continuou a viver na nossa casa. Uns anos mais tarde, já com a Guiné independente, deu aulas de português em quartéis do PAIGC. Casou, teve um filho, adoeceu e morreu pouco tempo depois no hospital de Bafatá. O único filho que teve, uma menina, também sobreviveu pouco tempo. Morreu, ainda não tinha dois anos.

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Notas do editor:

(*) Sobre o Mauricio Saraiva (1939-2003) e o seu Grupo Fantasmas, Vd.

24 de abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11457: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (66): Cap Cmd Maurício Saraiva, aqui evocado pela sua sobrinha Luciana Saraiva Guerra (Florianópolis, Santa Catarina, Brasil) e pelo nosso coeditor Virgínio Briote

27 de abril de  2010 > Guiné 63/74 - P6257: O segredo de... (12): O meu sobrinho Malan Djaló, aliás, Malan Nanque, o rapazito de 8 ou 9 anos anos, apanhado pelo Grupo Fantasmas, do Alf Mil Comando Saraiva, em 11 de Novembro de 1964, em Gundagué Beafada, Xime... (Amadú Djaló

Ver o que escreveu, sobre o Maurício Saraiva,  o Luis Rainha,  em poste de 31 de marco de 2010, no blogue Comandos Guine 1964 a 1966 (que deixou de estar dospinível na Net, não está sequer no Arquivo.pt, o que é pena:  http://comandos-guine-1964a1966.blogspot.pt/ ):


(…) Não querendo menosprezar ninguém, até porque sou Comando Centurião, quero aqui afirmar que o Grupo  Fantasmas foi de todos os Grupos formados e existentes na Guiné que mais louvores e condecorações teve. Teve um Chefe excepcional, que foi um belissimo condutor de  homens, um guerrilheiro fantástico e um exímio estratega.

Foi ele, Capitão Maurício Leonel Sousa Saraiva, dos militares Portugueses mais condecorados de todos os tempos e quiçá dos tempos vindouros. Este Homem, de H grande, grande Português e grande Patriota, ainda estava para sofrer os horrores da guerra não convencional. (…) [Era] um homem tremendamente marcado pela guerra em Angola, onde assistiu à morte de Familiares seus. (…)

Sobre o seu comandante, com quem esteve nove meses (até Maio de 1965), e por quem nutria respeito, admiração e afecto, o Amadú Djaló é parco em pormenores, nomeadamente sobre aspectos, eventualmente mais controversos, do seu comportamento como homem e militar. 

Aliás, ele é, quase sempre, de uma grande discrição e até deferência em relação aos seus "companheiros europeus" (sic). Só é crítico quando vê "europeu" a tratar, com menos respeito, bajuda e mulher grande... 

Perante umn capitão manifestamente racista, que ele conheceu no CICA/BAC, em Bissau, em 1962 ("Preto é como tartaruga, só quando lhe chegamos fogo ao cu, é que tira cabeça!", p. 41), Amadú é condescendente, compreensivo e caridoso: "Pela minha parte, ele era um diabo, não era um ser humano. Um homem com tanta cultura, oficial do Exército Português, não deveria trata deste modo os subordinados", p. 41).

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23615: Bedanda, região de Tombali, no início da guerra - Parte I: Testemunho de Amadu Djaló (1940-2015), relativo ao período de dezembro de 1962 a junho de 1963

 

Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada. 

Em rigor, o livro (escrito na primeira pessoa, portanto autobiográfico) deveria ter como segundo autor, o nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf  mil,  CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965, e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966),  que fez generosa e demoradamente as funções de "copydesk"... Referindo-se a esse trabalho, o nosso crítico literário, Mário Beja Santos, escreveu aqui (*): 

(...) "Este livro é um sortilégio, sente-se permanentemente o pulsar de uma cumplicidade de alguém que não renega a identidade ou ilude os diferentes níveis da memória e de um outro que escuta, reelabora, clarifica, adensa a trama. O produto final é brilhante, deixa perceber a intimidade do Eu e a disponibilidade do Outro. Fica-se com orgulho pela obra feita pelo Virgínio Briote, o Outro que garante um relato estuante transformado na árvore da vida.
“Guineense, Comando Português” é uma soberba colectânea de memórias, assegura a visão prismática de um fula que se orgulha das suas origens e que se releva apaziguado, propondo a todos os seus leitores guineenses que façam um esforço de reconciliação.

"(...) A dupla Amadú Djaló – Virgínio Briote é um monumento de camaradagem inesquecível, um testemunho que os historiadores não poderão evitar." 



1. Quando o livro foi publicado, Amadu Djaló então com 69 anos, era, como escreveu o seu editor, camarada e "cúmplice", Virgínio Briote, um dos raros sobreviventes que podia falar de todos os anos que durou o conflito, de 1962 até ao fim.


"Incorporado em 1962, percorreu todo o território onde se combatia na então província portuguesa. Futa-Fula, natural de Bafatá, oriundo de famílias da antiga Guiné Francesa, Amadu escolheu um dos lados, combateu no Exército Português, ao lado de milhares de guineenses. (...) Em 1964, ingressou nos Comandos do CTIG e fez parte de um dos primeiros grupos então formados em Brá, perto de Bissau". (...)

É justamente dos primeiros tempos da sua vida militar que queremos falar hoje. Em homenagem à sua memória, e com a devida vénia aos seus herdeiros, à Associação de Coamndos (que oportunamente, ainda em vida do autor, editou livro, entretanto há muito esgotado), e com um especial agradecimento ao Virgínio Briote que nos facultou o "manuscrito" (em formato pdf),  vamos reproduzir aqui alguns excertos, sem as resepctivas fotos,   excertos esses que correspondem ao tempo em que o Amaduy Djaló, sendo soldado condutor auto, esteve na 4ª CCAÇ, em Bedanda, de dezembro de 1962 a junho de 1963 
(pp. 27-35). (Fez a recruta em Bolama, e a instrução de especialidade no CICA/BAC 1, em Bissau; depois de Bedanda, conseguiu a transferência para a 1ª CCAÇ, instalada em Farim a partir de 1 julho de 1963.)

Este é um valioso (e raro) testemunho, escrito na primeira pessoa do singular, sobre os  primeiros tempos da 4ª CCAÇ, em Bedanda, e o início da guerra no sul do território... Repare-se que no final de 1962 ainda se ia do Enxudé,  na região de Quínara até Bedanda, passando por Tite, Buba e Aldeia Formosa, e daqui até Catió e Cacine, em viatura, de viatura, praticamente sem escolta... 

A guerra (oficialmente iniciada em Tite, em 23 de janeiro de 1963) veio alterar complemente o mapa do sul da Guiné, com destaque para os sectores de Bedanda, Catió e Cacine. A administração portuguesa vai perder rapidamente o controlo de uma série de povoações. E o PAIGC começa a pôr os seus primeiros "pioneses" no seu mapa das "áreas libertadas"...


Sem saudades de Bedanda (dez 61/ jun 63)

por Amadu Bailo Djaló


Na 4ª CCaç, em Bedanda

No dia seguinte, 28 de Dezembro de 1962, embarcámos no porto de Bissau, com destino ao Enchudé, para depois seguirmos para Bedanda, para a 4.ª Companhia de Caçadores Indígenas.

Ninguém gostou da colocação. Foi uma viagem silenciosa, sem entusiasmo. No Enxudé, aguardava-nos um jipão com uma pequena guarnição de soldados europeus, chefiados por um 1º cabo.

–   Pessoal, são vocês os condutores que vão para Bedanda? Toca a subir.

Feita a arrumação, prosseguimos para Tite, outra localidade de passagem. Entrámos no quartel e aguardámos pelo almoço, anunciado pelo tocar da corneta. Ninguém tocou na comida, era carne de porco. Em substituição, deram-nos rações de combate. Depois de comermos, seguimos para Bedanda, com passagem pelo porto de Cobumba.

Quando chegámos a Cobumba, no rio Cumbijã, avistámos na outra margem, colegas gesticulando e gritando, em grande alvoroço, muito satisfeitos com a nossa chegada. Éramos nós que os íamos substituir.

As canoas chegaram e despedimo-nos do cabo e do soldado condutor. Responderam que só se iam embora, quando tivéssemos atravessado o rio. Na outra margem fomos recebidos pelos companheiros que vínhamos render, com grande entusiasmo, abraços, galhofeira e conversa animada. E do outro lado do rio vimos os companheiros que nos escoltaram, a acenarem, num adeus de despedida.

Na viagem até ao porto de Cobumba tínhamos sido escoltados por soldados brancos, e nesta, que nos levou a Bedanda, fomos escoltados por soldados negros.

Assim que chegámos ao quartel de Bedanda, fomos à arrecadação para levantar armas, munições, camas, lençóis e cobertores. Íamos começar nova vida e exercer a nossa especialidade de condutores.

No dia seguinte, procedeu-se à distribuição das viaturas. Um condutor foi destacado para o Chugué, outro para Caboxanque e ficámos oito condutores em Bedanda. Sete tiveram carros, jipes e Unimogs, e o outro mais moderno, que era eu, ficou com uma Ford Canada, uma viatura muito velha, que largava um fumo muito negro, com mudanças à esquerda e quente como o inferno. Aguentei-a até à chegada do alferes Mendes.

O alferes tinha sido meu instrutor na recruta, em Bolama, e dedicava-me amizade. Quando, de manhã, íamos para a instrução, trazia sempre dois pregos, um para ele e outro para mim.

Ficou muito surpreendido quando me viu entre os colegas ali presentes.

– Amadu, tu aqui, em Bedanda?

Contou que, no regresso das férias em Portugal, tinha passado na 4.ª repartição do QG e, quando procurou saber do meu paradeiro, informaram-no que eu tinha sido colocado no Gabu.

Não lhe dei a conhecer o que tinha acontecido sobre a minha colocação em Bedanda, disse-lhe só que tinha sido eu quem tinha pedido para ser colocado aqui. Uma mentira minha, para evitar complicações.

Mas, regressando às viaturas. O alferes Mendes perguntou:

– Já tens carro?

 – Tenho, sim, meu alferes. É aquele, ali em frente   
  apontei.

 – Aquele ? Vai chamar o nosso sargento-mecânico.

Na presença deste, disse-lhe o alferes:

 
   Arranje outra viatura para o Amadu. É um soldado da minha confiança e nas colunas passa a sair comigo.

E em vez da velha Ford Canada passei a conduzir um Unimog 411.

A minha primeira saída ocorreu nos primeiros dias de Janeiro de 1963, não me lembro agora exactamente da data. Pelas 20h00, uma força constituída por um pelotão de militares africanos, com furriéis europeus, comandado pelo alferes Mendes e outro de milícias, partiu de Bedanda em direcção a Cabedú, em cinco viaturas, quatro Unimogues e um jipe, conduzido por mim.

Chegados ao cruzamento de Cafal, pelas 23h00, os pelotões seguiram a pé, embrenhando-se na mata e nós, os condutores, trouxemos as viaturas para Cabedú, um percurso que não demorou meia- hora.

Quando chegámos arrumámos as viaturas, dispostos a dormir, o que foi impossível com tantos mosquitos. Tivemos que acender uma fogueira, e estivemos acordados até quase às 05h00 da manhã, altura em que fomos ao encontro da patrulha.

Saímos da estrada no local onde os tínhamos deixado e seguimos a picada que tinham tomado. Antes de atingirmos Cafal Nalu, Bacar Sambu, o condutor mais antigo em Bedanda, e que, por isso, caminhava à frente, viu na estrada um objecto estranho. Evitou tocá-lo e a seguir parou. A minha viatura seguia atrás da dele e o Bacar fez-me sinal para parar. O tal objecto ficou debaixo do pára-choques do meu jipe.

– Apanha aquela coisa    disse-me o Bacar.

Ao abaixar-me para ver o que era, senti o meu coração bater mais depressa. Levantei-me rapidamente e perguntei-lhe o que era aquilo?

 
  Não sei  respondeu Bacar. – Tens medo?

Claro que tinha. Bacar saiu do Unimog, aproximou-se e, quando ia apanhar o objecto, pedi-lhe para me deixar primeiro tirar o jipe.

Podia ser uma granada ou qualquer armadilha. Bacar começou a recuar. Tomámos a decisão de não mexer em nada e prosseguir a caminhada para recolher os militares que se encontravam em patrulha, passando por Cafal Nalu e Cafal Balanta.


Quando chegámos à ponte avistámos os militares que vinham de Cafine. Entraram para as viaturas e, com o jipe à frente, iniciámos a viagem de regresso para Bedanda, com o alferes Mendes ao meu lado. Depois de passarmos por Cafal Balanta e Cafal Nalu, relatei ao alferes que tínhamos visto na estrada um objecto que nos pareceu suspeito. Que parecia uma garrafa de plástico, pequena, de cor preta, com uma tampa verde, que estava aberta, com uma fita vermelha pendente.

Quando chegámos ao local, o alferes parou a uma certa distância e foi, a pé, examinar o objecto. Vi-o tirar a pistola e depois de três ou quatro tiros, ouviu-se uma explosão.

 
  É a granada espanhola que perdi na caminhada  disse um furriel.


Mutma, prisioneiro em Cacine

Cacine era uma povoação agradável, a população era quase toda de etnia nalu e, na altura, tinha um pelotão independente [1], comandado por um alferes chamado Brandão, reforçado com duas secções, uma da nossa 4ª  Companhia de Caçadores. Por isso íamos a Cacine quase todas as semanas.

Na primeira vez que lá fui, chegámos a Cacine cobertos de pó. Perguntámos onde podíamos tomar banho e indicaram-nos uma fonte junto ao arame farpado.

A ajudar a acarretar água para o quartel estava um rapaz da nossa idade, com o corpo coberto de feridas, com marcas de chicotadas, um ar cansado. Julguei que fosse algum militar que tivesse sido castigado. O que terá feito para sofrer castigo tão forte, perguntei para mim. E, curioso, perguntei-lhe o que tinha acontecido.

– Bateram-me   respondeu.

 – Quem te bateu?

– Pessoal da tropa.

 – E porquê?

 
– Sou prisioneiro.

Em Janeiro de 1963, quando estava em Bedanda, secções de tropas europeias e africanas encontravam-se destacadas em algumas tabancas, para a segurança das populações. Havia no Chugué, Boche Cul, Caboxanque, Gadamael Porto e Cacine.

Num dia que me não lembro ao certo[2], uma viatura com um furriel ou 2º sargento e alguns soldados vieram passar o dia ao quartel de Bedanda. À tardinha regressaram a Boche Cul e nessa mesma noite foram atacados a tiro. Um soldado, que estava de sentinela, matou o guerrilheiro que o estava a atacar com uma catana e acabou também por ser morto com uma rajada de tiros disparada por outro guerrilheiro. Quando o comandante da secção ouviu os tiros foi em defesa do soldado, e foi também ele abatido pelo PAIGC. Eram onze ao todo com o furriel. Tiveram dois mortos[3] e a maioria foi ferida.

Nós, em Bedanda, ouvimos os tiros. Organizou-se uma coluna comandada por um alferes e chegámos lá noite escura. Só quando, ao longe, viram as luzes das viaturas, os feridos e sobreviventes saíram do celeiro e aproximaram-se de nós. Passámos lá a noite e no dia seguinte arrancámos para Bedanda, com os dois corpos, os feridos já tinham sido transportados durante a noite para Bedanda. Os corpos ficaram no Unimog a aguardarem que viesse algum heli recolhê-los. Não apareceu, tivemos que os enterrar fora do aquartelamento, junto ao arame farpado de Bedanda.

Houve logo ordem para recolher todas as secções e, três dias depois, já não havia nenhuma destacada nas tabancas. Fui, nessa altura, numa coluna, a conduzir o Unimog que me estava distribuído, levar a secção que estava em Gadamael Porto para Cacine. E fiquei lá com a viatura a arrastar troncos de árvores para fazer os abrigos. O meu serviço passou a ser ir buscar troncos de árvores para a construção de abrigos, que em Cacine, naquele tempo, nem um tinha.

Em Bedanda a situação andava muito tensa, ocorriam, por vezes, denúncias, acusações e espancamentos. Quando soube que em Cacine precisavam de um Unimog, fui ter com o Aaferes Mendes e pedi-lhe para me deixar ir para lá.

Parti no dia seguinte. Cheguei a Cacine para cumprir um período de serviço, que sabia ir ser por pouco tempo. Depois de arranjar alojamento, fui-me lavar à fonte. Quando me dirigia para lá passei junto à prisão e vi o tal moço com o corpo coberto de feridas.

O Mutma, assim se chamava o moço, passou a ir comigo no carro trazer os troncos das árvores. Um dia, o alferes disse que queria um porco, se eu podia arranjar um junto de alguma tabanca.

Em Cacine a população era muçulmana, ninguém criava porcos. Disse ao alferes que eu podia falar com o Mutma, que era balanta, talvez ele soubesse onde se podia arranjar. Fomos em dois carros à tabanca do Mutma e escolhemos um bom porco, que em Bissau podia custar à volta de dois mil escudos e trouxemo-lo por quinhentos. Depois, o Mutma passou a ser minha companhia assídua. Um dia disse-me:

 –   Amadu, lembras-te da vez em que me encontraste na fonte, quando me perguntaste o que é que eu tinha no corpo?

 
   Sim, lembro-me.

– Quando ouvi o ruído das viaturas a regressarem a Bedanda, fiquei satisfeito por te ver ir embora. Tinha medo de ti. Agora voltaste, tiraste-me da prisão, vou contigo a todo o lado, jogo futebol convosco e só volto à prisão quando vou dormir. Antes comia os restos, agora como no refeitório.

– Mutma, as pessoas enganam-se, às vezes.

Mutma acabou por ser libertado e regressou à tabanca dele. Mais tarde, como aquelas tabancas deixaram de ter a protecção da tropa, foram recolhidas pelo PAIGC e vim a saber, já depois do 25 de Abril, que Mutma tinha morrido na guerra.


Condutor, nunca mais

Uma secção pertencente à guarnição de Buba[4], que estava destacada em Gadamael, foi mandada recolher a Cacine, para reforçar o pelotão independente[5], e pediu ao alferes duas viaturas, um jipe e um Unimog, para se deslocarem a Buba, a fim de receberem os salários e trazerem alguns materiais em falta.

Na véspera à noite, por volta das 22h00, fomos encarregados de recolher em Cacoca ou em Sanconha uma secção nossa que se encontrava em patrulha na zona, junto à linha da fronteira.

Chegados a Cacoca, à hora e local combinado, como a patrulha não apareceu até à 01h00 da madrugada, dirigimo-nos para Sanconha, onde ficámos até às 04h00.

Voltámos para trás, a Cacoca, e também não a encontrámos. Como não sabíamos o que se estava a passar com a secção, regressámos ao aquartelamento de Cacine e fui-me deitar.

O furriel atestou a viatura e, mal tinha acabado de adormecer, acordaram-me. Eram mais ou menos 6h30, peguei na viatura e rumámos a Buba. Quando chegámos a Sanconha, fomos alertados pelo guarda alfandegário que os militares da secção que devíamos ter recolhido na noite anterior, tinham regressado por volta das 05h00 e estavam a dormir numa casa ali perto.

O furriel disse-me para os ir acordar e, juntamente com um soldado, levá-los rapidamente a Cacine e que devia regressar logo para retomarmos o nosso caminho para Buba. Assim fiz, peguei na patrulha, levei-a a Cacine e regressei a Sanconha.

Quando chegámos a Gadamael, parámos para entrar o régulo de Froia, Baro Baldé, uma das esposas, três filhas e quatro homens com cinco balaios grandes, cada um com 40 a 50 quilos de noz de cola. Foi nessa altura que eu descobri por que é que eu trazia um atrelado na minha viatura.

Retomámos a marcha. Estávamos na descida para a ponte, no rio Balanazinho, com o sol da manhã a bater-me na cara e adormeci. O carro entrou numa valeta bem funda, inclinou-se e acordei dentro da vala, com um pé no travão e o Unimog inclinado. Parecia-me que estava a sonhar, ninguém se mexia até que ouvi uma voz de mulher a gritar, na língua fula, “Ai, minha mãe, o carro virou”.

Conseguimos pôr a viatura na posição normal e, com a ajuda de todos, tirámos o carro da vala, sem nenhum ferido nem danos e prosseguimos a nossa marcha para Quebo[6], onde se apeou o régulo, a família, os acompanhantes e a carga.

Logo depois da chegada a Buba fui ter com o furriel e disse-lhe que não queria conduzir mais na minha vida, mas como ele não me quis ouvir fui procurar o comandante[7].

– 
Meu comandante, eu nunca mais quero conduzir! – e pousei as chaves da viatura na mesa dele.

– De onde vieste, qual é a tua unidade?

Mandou chamar o furriel e perguntou-lhe o que tinha sucedido. Que tinha havido um pequeno acidente, sem consequências, respondeu.

– Não entregas aqui a chave, entrega-la na tua unidade, em Bedanda, e vou arranjar um condutor para levar a viatura para Cacine    disse o comandante, voltado para mim.

E avisou o furriel que não voltasse a vir a Buba com apenas duas viaturas, que agora era muito perigoso. Que, quando regressássemos iríamos integrados numa coluna.

No dia seguinte, depois do café, partimos numa coluna de seis viaturas, escoltados até Cacine. A minha viatura foi conduzida pelo Madalena, um soldado muito conhecido em toda aquela zona, comigo ao lado dele.

Quando chegámos a Cacine, quando o alferes Brandão me viu sentado ao lado do condutor quis saber o que se tinha passado. Depois, falou comigo, aconselhou-me e voltei a pegar no volante.


Patrulhas em Bedanda

Estive destacado em Cacine cerca de três meses, de Janeiro a Março de 1963, altura em que me mandaram voltar a Bedanda.

Dias depois de regressar fui integrado num grupo de combate da 4ª Companhia de Caçadores, comandado pelo 1º cabo Martins.

O nosso objectivo era patrulhar as tabancas até Incala. Depois de atravessarmos o rio, entrámos em Contubum, uma pequena tabanca balanta, com algumas casas. À porta de uma, estava um homem grande, descalço, barba branca, com um grande pano vermelho que lhe cruzava o tronco, e um barrete vermelho a cobrir-lhe a cabeça, também toda branca. O 1º cabo Queba Sanha disse ao 1º cabo Martins:

– Eu conheço aquele homem, vi-o em Caboxanque. Não sei o que é que ele está aqui a fazer.

Queba e o cabo Martins foram ter com ele e entraram na casa. Martins fazia perguntas, Queba era o intérprete. O que está aqui a fazer, desde quando está aqui na tabanca, se tem visto pessoal do PAIGC, se conhece alguém da guerrilha, se eles vêm cá à tabanca.

Eu encontrava-me à porta, a ouvir a conversa e, a certa altura, o que ouvi foi o barulho de uma estalada. Na varanda da casa, estava um velho, sentado, a mulher, velha também, a cozer uma cabaça e uma menina, filha deles, de 14 ou 15 anos, também sentada, a torcer pontas de um pano novo, daqueles panos com que se vestem.

Com o barulho da estalada, calaram-se todos. Aproximei-me e, quando cheguei junto da menina, vi lágrimas a correrem-lhe pela cara abaixo.

– 
O que é que se passou?    perguntei.

Que tinha sido um rapaz que lhe tinha dado uma bofetada. Porquê, quis eu saber.

Ela tinha as pernas unidas, um soldado quis abri-las, ela fazia força para ele não conseguir e ele deu-lhe um estalo.

Saí e perguntei quem tinha sido o soldado que tinha acabado de sair da casa. Um apontou para outro. Na frente de todos, perguntei-lhe se ele ficava contente se fizessem o mesmo a uma irmã dele. Não respondeu, olhou para o chão.

Entrei na casa e contei o que tinha acontecido ao cabo, que saiu logo, zangado, e disse ao soldado que se voltasse a fazer uma coisa dessas, voltaria sozinho a Bedanda.

Mas as coisas não ficaram por aqui. Quando chegámos à outra tabanca, Rossum Óle, o Queba avisou as pessoas que cada casa lhe tinha que dar cinco galinhas, que as levava quando regressasse. O cabo Martins não contrariou, nem disse nada.

Prosseguimos para Incalá, chegámos entre o meio-dia e a uma hora. Algumas pessoas da tabanca estavam a comer. Quase todos os soldados entraram nas casas, tiraram as malas para fora e abriram-nas, algumas com tiros das Mausers. Tiraram panos novos, dinheiro, ouro, o que puderam. No fim de pilharem as casas deitaram-lhes fogo. No regresso, recolheram as galinhas da outra tabanca. Os únicos que saíram dali sem nada foi o cabo Martins e eu.

Casos destes passaram a ser frequentes e, a partir de certa altura, deixei de me sentir bem em Bedanda.


Noutra saída com o alferes Gonçalves, chegámos de surpresa a uma tabanca de que não lembro o nome. Ninguém ouviu as viaturas. Quando estávamos a chegar junto das casas, ouvimos ruídos de gente a fugir, muita gente, talvez mais de cinquenta pessoas e ainda os vimos a correr para a mata.

O alferes chamava pelo Ansumane, “ó Ansumane, não corram, pá, somos nós, porque estão a fugir?” E gritou alto para nós, “não façam fogo, não façam fogo”. Ninguém disparou.

O alferes sentou-se numa cadeira de bambu, feita por eles, com as mãos na cabeça, quase a chorar. O Ansumane ganhou coragem, regressou com os companheiros à tabanca. Então, o alferes perguntou-lhe:

– Por que é que estavam a fugir? Nós não vos fazemos mal!

Que tinham tido medo, quando nos viram chegar sem eles terem ouvido o barulho dos carros.

– 
E que estão aqui a fazer tantos homens? Morreu alguém?    perguntou o alferes.

– 
Não, nós só estávamos todos reunidos para dar o nome a um bebé, recém-nascido.

Nós sabíamos que era mentira. Não havia farinha e se fosse verdade o que ele estava a dizer, deveria haver muitas bolinhas de farinha de arroz com açúcar e noz de cola e no local não vimos nada disso.

Era uma grande reunião do PAIGC.


Férias em Bafatá

Em bril  [de 1963]
, quando me estava a deslocar para Bafatá para gozar férias, junto da minha família, encontrei em Bambadinca alguns soldados do pelotão independente[8] de Cacine, com quem tinha estado há cerca de um mês. Foram eles próprios que me reconheceram e me chamaram.

 – O que é que vocês estão a fazer aqui?    perguntei, admirado.

Que tinham sido colocados em Bambadinca, responderam, muito contentes.

Uma semana depois, em Bafatá, ouvi contar que algumas viaturas civis de transporte de fruta tinham sido aprisionadas no sul e que um dos ajudantes de motorista[9] tinha sido aprisionado e levado para o PAIGC.
A partir desta altura as viaturas civis deixaram de circular sozinhas.

Depois, quando as férias começaram a aproximar-se do fim,  o meu pensamento estava no regresso a Bedanda.
A terra era bonita, a gente era boa, da minha etnia. Mas estavam a viver-se os primeiros tempos da guerra, andava muita coisa no ar, denunciavam-se pessoas por tudo e por nada.

Despedi-me dos meus pais com as lágrimas a escorrerem-lhes pelas faces e entrei para a camioneta de transportes, que me ia levar para Bissau.

No meu último dia de férias apresentei-me no QG e lembrei-me de procurar o capitão Simões, na 4.ª repartição, para lhe pedir que me tirasse de Bedanda.

Quando entrei no gabinete do capitão apercebi-me que já não era capitão, tinha sido promovido. Fixou-me demoradamente, talvez tentando lembrar-se de onde me conhecia.

– Então, tu ainda estás cá?

– 
Meu major, nós já fomos todos colocados.

– E, agora, o que queres?

– 
Vim cumprimentar o meu major e solicitar mais um favor, que me transferisse de Bedanda.

O major Simões, que tinha um capitão junto dele, virou-se para ele e disse:

– 
Estás a ver o que vais ter de enfrentar nesta repartição? Este soldado apareceu aqui, há três ou quatro meses, a pedir que o tirasse do CICA. E agora, aqui está ele outra vez, a pedir outra transferência. E eu a pensar que ele me vinha agora agradecer.

E, fixando-me:

–  Olha, isto não é assim. Tens que requerer a transferência, indicando para onde pretendes ir.

– 
Meu major, eu já requeri duas vezes. E por duas vezes foi indeferido o meu pedido!

– 
E porquê? Talvez, por falta de substituto ou por ninguém querer ir para lá, não?!

– 
Mas a mim, meu major, ninguém perguntou se eu queria ir para Bedanda! E mandaram-me para lá!

– 
E para onde queres ser transferido?

– 
Para a 1ª CCaç[10], se fosse possível, meu major.

– 
Bem, vou ver, não prometo nada. Vou saber junto do comandante da 1ª CCaç quais as possibilidades. Passa por cá amanhã, pode ser que já haja novidades.

Saí dali, para casa, cheio de esperança. No dia seguinte, ainda não eram 10h00, lá estava eu no QG, à porta da 4.ª Rep.

– 
Meu major, dá licença?

– 
Estás transferido para a 1.ª CCaç    E continuou:

– 
Olha, não sejas ingrato. Se amanhã a 1ª CCaç for transferida para a zona da fronteira com o Senegal, Ingoré, Bigene ou Farim[11], tu vais, ouviste?

Pareceu-me um sonho, uma notícia tão rápida.

– 
Meu major, eu ainda tenho de ir a Bedanda, entregar os materiais que estão à minha responsabilidade. Desculpe o incómodo, meu major, mas eu gostava de levar uma carta para o nosso capitão de Bedanda, indicando os motivos da minha transferência.

– Não vale a pena. Já foste transferido e a informação já foi para Bedanda.

– 
Desculpe a insistência, meu major. Peço encarecidamente que escreva ao nosso capitão de Bedanda, informando sobre a minha transferência.

Pegou num papel, começou a escrever e no fim entregou-mo, com a recomendação de entregar a carta pessoalmente ao capitão de Bedanda[12].

Fui-me apresentando todos os dias no QG, procurando saber da data do barco para Bedanda. Durou cerca de duas semanas esta espera e fiquei a saber que também se encontravam em Bissau dezasseis militares a aguardarem transporte.

Chegado o momento do embarque, com a guia de marcha na mão, compareci, bem cedo, no cais de Bissau. Abraços e lenços de despedida a acenar e o barco afastou-se, lentamente, para sul, rumo a Catió.

Sem saudades de Bedanda

Antes de chegarmos a Catió,  desembarcámos em Bolama. Talvez devido à euforia que sentia, lembrei-me de mostrar aos meus companheiros de viagem a carta do major Simões para o capitão de Bedanda.

– 
Quem te deu essa carta? – perguntou  um colega.

– Foi o nosso major que me conseguiu a transferência para Bissau, para a 1.ª CCaç.

– 
Por que é que não nos disseste nada? Devias falar-nos, para também pedirmos!

– 
Não falei, porque éramos muitos. Se pedisse para todos,  estragava a minha sorte!

Na manhã do dia seguinte desembarcámos em Catió. Agora tínhamos que procurar que no quartel nos arranjassem transporte para Bedanda.

– 
Não disponho de viaturas nem desloco os meus soldados sem ordem expressa de Bissau  informou-nos o capitão.

Não contávamos com esta resposta, mas não podíamos fazer outra coisa se não procurar um local para ficar. Dirigimo-nos para o bairro Príame, onde cada um encontrou hospedagem em casas de amigos ou conhecidos.

Eu fui para casa do João Bacar Jaló[13], que comandava, na altura, os caçadores nativos. Quando lhe falei das nossas dificuldades em arranjar transporte para Bedanda, o João Bacar prontificou-se a escoltar-nos, mas que, primeiro, eu tinha que ir pedir transporte ao administrador.

Na manhã seguinte dirigimo-nos à administração do concelho, onde fomos recebidos pelo administrador.

– Se vocês tiverem escolta, dou-vos a camioneta. Mas, sem escolta, o transporte não se faz!

Escolta já tínhamos, o João Bacar dava-nos. O administrador chamou o seu condutor, o Aliu, e disse-lhe que aprontasse a viatura.

Seguimos para o bairro Príame, onde o João Bacar nos aguardava com os seus homens. João Bacar distribuiu os seus homens, uns à frente e outros atrás, ficando nós, os escoltados sem armas, no meio. Tudo arrumado, seguimos em direcção ao porto de Cobumba, onde chegámos sem qualquer novidade.

Quando chegámos a Cobumba telefonei para o quartel, a dar conhecimento da nossa chegada e pedi que nos mandassem uma viatura. Minutos depois, uma nuvem de pó levantava-se na estrada e anunciava a chegada do nosso transporte.

Entretanto João Bacar avisou-nos que só retiraria quando tivéssemos atravessado o rio para a outra margem. Assim fizemos. Terminada a travessia e montados na viatura, João Bacar e os seus homens acenaram-nos e retiraram-se.

Quando chegámos a Bedanda fomos apresentar-nos. Chegada a minha vez, o 1º sargento disse que tinham recebido uma mensagem com a informação da minha transferência para a 1ª CCaç.

– É verdade, meu sargento, vim entregar o material que estava à minha responsabilidade.

– 
Mas vais fazer serviço até à chegada de barco.

Passados alguns dias chegou um barco carregado com géneros. Tinha sofrido um ataque de que resultou um ferido grave que acabou por morrer e ser enterrado em Bedanda.

Preparei as malas para o regresso que, no meu pensamento, estava para breve. Recebi das mãos do 1.º sargento os pagamentos que me eram devidos e disse-me que partiria no dia a seguir. Não foi assim.

A protecção dos aviões ao barco, por um motivo imprevisto, não se pôde fazer e a viagem teve que ser adiada para dois dias depois. Aproveitando essa disponibilidade, o 1º sargento informou-me que eu iria voltar a entrar de serviço nesse mesmo dia. E eu, disse-lhe que não achava bem.

– Se não te apresentares ao serviço, levas uma porrada!

– Está bem, meu sargento! Posso levar a porrada, mas não faço o serviço!

Mandou-me acompanhá-lo ao gabinete do alferes Gonçalves.

– Este gajo, meu alferes, está hoje de serviço e recusa-se a fazer.

– Não queres fazer o serviço porquê?    perguntou-me o alferes.

– 
Meu alferes, o nosso 1º sargento, pelos serviços prestados até ontem, pagou-me. Mas, pelo serviço de hoje, não me vai pagar, porque embarco amanhã!

O alferes virou-se para o 1º sargento:

– Se lhe pagar, ele, de certo, faz o serviço!

Saímos juntos, cada um para seu lado, eu com ar de vencedor e ele, um tanto comprometido.

Embarquei no dia seguinte, na companhia de três militares, ainda não eram 10h00 da manhã e cheguei a Bissau às 15h00 do outro dia.  (...)

[Seleção / revisão / fixação de texto / negritos, para efeitos de edição deste poste: LG. Corrigimos a grafia de alguns topónimos, de acordo com a cartografia portuguesa, e sem desprimor para o trabalho paciente e incansável do Virgíno Briote: Cobumba (e não Cubumba), Enxudé (e não Inchudé), Sanconhá (e não Sancoia)... Por outro lado o nome do prisioneiro balanta deve ser Mutna (e não Mutma), de acordo com o entendimento do Cherno Baldé, nosso assessor para as questões etno-linguísticas. ] 

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Notas do autor (Amadu Bailo Djaló) e do editor literário ou "copydesk"  (Virgínio Briote):

[1] Pelotão de Caçadores 859

[2] Nota do editor: 27 janeiro de 1963, domingo.

[3] Nota do editor: esta secção talvez tenha pertencido à companhia destacada em Cabedú. À data, em Cabedú estava, desde dez62, o Pel Caç 871, encontrando-se o Pel Caç 870 em Bedanda.

[4] CCaç 152

[5] Pel Caç 859

[6] Conhecida na altura por Aldeia Formosa, na qual estava destacado um pelotão da CCaç 152.

[7] Muito provavelmente o Capitão de Infantaria Alberto Blasco Gonçalves

[8] Pel Caç 870.

[9] Chamava-se Caba e a mãe, pouco dias depois, dirigiu-se a Sansalé, Guiné-Conacri e conseguiu convencer os chefes da guerrilha a devolverem-lhe o filho.

[10] Em maio e junho de 1963 ainda instalada em Bissau.

[11] Nota do editor: para onde foi transferida em 01 de julho de 1963.

[12] Nota do editor: nesta ocasião, já devia ser o Capitão de Infantaria Nelson João dos Santos.

[13] Anos mais tarde, comandante da 1.ª CCmds da Guiné.

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Nota do editor LG;

(*) Vd. poste de 8 de julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6694: Notas de leitura (126): "Guineense Comando Português", de Amadú Bailo Djaló (Mário Beja Santos)