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sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24752: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (8): "Se tens galinha pedrês, não a mates nem a dês" (Luís Graça)

Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz >  2011 > O velho carro de bois, centenário, típico da região de Entre Douro e Minho. Não existe mais, hoje, a não ser as rodas...Símbolo de um mundo que desapareceu... E com ele,  uma certa ruralidade e rusticidade do homem português, características socioantropológicas sem as quais muito possivelmente não teria sido possível manter a nossa longa guerra colonial / guerra do ultramar (1961/74)... E a resistência, ativa e passiva, contra a violência de Estado e dos senhores da nobreza e do clero... E a guerrilha contra os invadores da Pátria, os Junot, os Soult, os Massena... E a cumplicidade com os Zé do Telhado, os Brandão, os Remexido... 

 Foto (e imagem): © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Se tens galinha pedrês, não a  mates nem a dês

por Luís Graça

Como era simples a vida da camponesa que ia ao monte buscar lenha, a moinha, as pinhas, as giestas. No carro de bois, que chiava pelo estradão, com a ca(n)ga(nça) toda de uma junta de bois nados e criados em Entre Douro e Minho. 

Ou que, de saco à cabeça, ia levar o grão de centeio ou de milho à azenha, lá longe, no Porto Antigo onde abicavam os barcos rabelos, depois de vencidos os temidos cachões do rio Douro, até então indomável.

Seguia, a pé, pela linha férrea do Douro, feita senhora, a Leonora, mas não segura... Com o comboio a apitar ao longe, e a avisar que já tinha chegad0 ao Juncal. E que a barragem do Carrapatelo haveria de trazer um dia a luz, a civilização, o emprego, a paz, a ordem e o progresso.

E que abria as pernas, depois, ao seu homem e senhor, seu amo, no meio do campo de milho.

Que quadro, que pintura, que pitoreco, que beleza, tardo-naturalística,  desta humilde cena portuguesa, desta gente sem rosto, sem nome, sem registo, sem trilho, sem a mística nem a estética do Movimento Nacional Feminino. Sem dom nem dó. Mas com fé, esperança e caridade. 

"Porra e lenha, é quanto a venha", diz o meu home, que anda num virote, enquanto a água de Covas é benção do céu para o milho e a vinha que cresce, apertada, na bordadura, nos solcalcos de granito...

Como era simples e bruta a vida da mulher do campo, no tempo em que ainda havia a distinção socioantropológica entre a cidade e o campo, ou a diferenciação teológica entre o céu, o purgatório e o inferno. E cada coisa estava no seu lugar.  E a freima também matava a gente. A freima da lavoura, mais a salgadeira.  E "na casa deste home, quem na trabalha na come"- 

E havia o carro de bois, e o penso para o tourinho, e a lavagem para os cevados, e a maçã, biológica, do paraíso perdido, e o império colonial,  e as expedições do Serpa Pinto, vizinho ali de Cinfáes, à distância de um tiro de canhão, e as campanhas de pacificação do Teixeira Pinto (a quem os guinéus chamavam o "capitão-diabo")... 

E mais a costeleta de Adão e as criadas de lavoura que eram violadas em cima da meda da palha de centeio. Enquanto os bois gemiam e babavam-se, sob a canga,  e estrumavam a terra,  as rodas do carro chiavam, e o varapau voltejava no adro da romaria, sob o efeito  estonteante do vinho e dos foguetes,  e o senhor abade praguejava: "freiras e frieiras é coçá-las e deixá-las". 

Como eram imutáveis as leis que regiam as relações entre a terra e o sol, o solstício do verão e do inverno, entre presas e predadores, entre machos e fêmeas, entre fidalgos e rendeiros, entre donzelas e donzéis, entre soldados e capitães, entre operários e patrões, entre ricos e pobres. entre cabaneiros e os sem eira nem beira. E a sexta-feira era o dia de praticar a caridade, dar aos pobres,  que o mesmo era emprestar a Deus. E o filho do "manjor"  e da criada brincava com o "morgadinho" que nunca poderia ser seu irmão  à luz das leis de Deus e dos homens. Porque fora feito no pecado, em cima da palha do milho  na eira e  não em lençóis alvos e castos e bentos de linho. 

"Se queres conhecer o vilão mete-lhe o mando na mão". E cada um tomava o seu lugar no desconcerto da nação e no palco do teatro da vida e da morte.

E ela levava, com a sua licença, a vaca, ao boi do povo para a emprenhar, E, com a sua licença, o porco à feira para, com sorte, no regresso trazer uns vestidinhos de chita, por meia dúzia de reis, para o dia da comunhão da filha da puta da canalha.

Como era estupidamente alegre e feliz e livre a infância, breve, dos rapazes e raparigas, no tempo em que a sardinha era para três. E sobrevivia o mais forte e o pai era pai e patrão e a mãe era mãe, pai e patroa,  quando o home partia para os brasis ou outros eldorados que ficavam para além do mar, ou simplesmente para lá ou para cá das serras do Marão,das Meadas,  de Montemuro, da Aboboreira, de Montedeiras. E muitas vezes já não voltava, muito menos rico, muito menos vivo ou inteiro.

E o galo cantava para a galinha pedrês, e a vida fiava-se e tecia-se linha a linha, em branco fio de linho, no tear da dor e da solidão.

Como era curta a vida, a esperança de vida, e certas, tão certas, a velhice e a morte. Mais a morte que a velhice, que "esta vida não chega a netos nem a filhos com barba", garantia o coveiro e certificava o facultativo.

"Muita saúde, pouca vida, porque Deus não dava tudo", lembrava o sino da igreja da aldeia, quando morria algum cristão, velho, que os novos já tinham seguido nas naus da Índia, fugidos da santa inquisição.

E "quem não poupa lenha não poupa nada que tenha", acrescentava, misógino, o rifão. Ou noutra variante, quiçá feminista "avant la letre": "Se tens galinha pedrês, não a mates nem a dês".

Quinta de Candoz,
setembro de 2008, 
versão revista em 5/10/2023
______________

Nota do editor:

Último poste da série > 9 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24737: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (7): O Pão que Deus Amassou (Joaquim Costa, Vila Nova de Famalicão)

quinta-feira, 4 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24281: Manuscrito(s) (Luís Graça) (223): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte III C: Contestação da Iatrogénese, da Medicina Defensiva e do Encarniçamento Terapêutico


O barbeiro-sangrador,   c. 1805 > Ilustração de James Gillray (1757-1815)  (London, Victoria and Albert Museum). 
Imagem do domínio público. 
Cortesia de Wikimedia Commons.


1. Começámos a publicar, desde de meados de março passado, uma série de textos, da autoria do nosso editor Luís Graça, sobre as lições que se podem tirar dos provérbios populares portugueses, nomeadamente sobre a saúde, a doença, os hospitais, os prestadores de cuidados de saúde (médicos, cirurgiões, farmacêuticos, enfermeiros, terapeutas, etc.), mas também sobre a proteção e a promoção da saúde, incluindo a vida, o trabalho, o envelhecimento ativo e a "arte de bem morrer" (*)...

Às vezes quando a doença e a morte nos batem à porta, à minha, à da minha família, à dos meus amigos e camaradas mais próximos, é que eu me lembro que dediquei uma boa parta da minha vida (quase quatro décadas) ao ensino e à investigação da arte e da ciência da proteção da doença e da promoção da saúde, o mesmo é dizer às "coisas" da saúde pública... E dão-me saudades esses tempos quando, sendo mais novo, escrevia sobre esses temas...

Depois de sobrevivermos à dura prova que foi para todos (nós/vós) a pandemia de Covid-19, eis-nos agora a fazer o luto pela perda recentes de pessoas que nos eram muito queridas. Daí a oportunidade  da publicação  deste textos que fomos (re)buscar ao nosso "baú", mas que não têm a ver, pelo menos diretamente, com a Guiné e a guerra que lá travámos, entre 1961 e 1974.

São textos, com vinte e tal anos, que constavam da nossa antiga página na Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade NOVA de Lisboa (ENSP/NOVA). A págima foi recuperada pelo Arquivo.pt: Saúde e Trabalho - Luís Graça (página pessoal e profissional cuja criação remonta a 1999).

Contando com a complacência ou até a cumplicidade dos nossos leitores, esperamos, ao menos, que a  leitura desses textos, agora revistos, possa ter algum proveito e dar algum prazer. Para o nosso editor, é também uma forma de continuar a lidar com o seu sofrimento psíquico e o sofrimento psíquico das pessoas que lhe estão próximas.  

Por outro lado, o nosso blogue já atingiu, na Internet, a "terceira idade": fez 19 anos em 23 de abril p.p.  E tem que ser "alimentado" todos os dias, com pelo menos três postes... Estes textos também funcionam como uma espécie de "tapa-buracos"... LG


5. Contestação da Iatrogénese, da Medicina Defensiva 
e do Encarniçamento Terapêutico


(Continuação)

No pós-25 de Abril, numa leitura algo imediatista e datada, recusava-se a ideia de que a grande maioria destes provérbios fosse de origem popular, dada a sua "função de ocultação ideológica" (Gomes, 1974). Na melhor tradição jacobina e anticlerical, via-se aí a língua viperina da "padralhada", dos frades, dos jesuítas, etc. já que o povo não podia ser intrinsecamente... "reaccionário".

Populares ou nem tanto, os provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa não deixam de refletir uma experiência amarga da população, vítima não só de um ciclo infernal de epidemias que durou mais de 400 anos ("Da peste, da fome, da guerra - e do bispo da nossa terra, Libera nos, Domine!") como do uso e abuso, por parte dos praticantes de artes médicas até à alvorada do Séc. XX, de técnicas terapêuticas agressivas, invasivas e de duvidosa eficácia como era o caso da purga e da sangria.

Nesta perspectiva, alguns provérbios podem ser vistos como formas de contestação avant la lettre do encarniçamento terapêutico de que é hoje acusada a medicina defensiva: "Se não morre do mal, morre da cura" (Quadro XIV, em anexo).

Em meados do Séc. XVII, o uso da sangria (ou flebotomia), praticada por cirurgiões e barbeiros-sangradores (uma profissão só extinta entre nós em 1875) tal como a purga ou o clister (ministrada pelos cristaleiros e cristaleiros), generalizara-se de tal modo que dera motivo ao adágio popular: "Em Lisboa não há sangria má nem purga boa"

De facto, havia médicos que num mesmo episódio de doença mandavam sangrar "trinta e quarenta vezes" (Lemos, 1991, vol. II. 37). Sangravam-se 0s ricos e os pobres, os reis e os súbditos, os doentes e os sãos...

Outros provérbios terão uma origem semelhante (Quadro XIV):
  • "Arrenego da tijelinha de ouro em que hei-de cuspir sangue";
  • "Como é o braço assim é a sangria";
  • "Dia de purga, dia de amargura";
  • "O que faz mal ao corpo é o sangue";
  • "Sangrai-o e purgai-o e, se morrer, enterrai-o";
  • "Sangrar de saúde".

Além da prática da sangria, o barbeiro também era chamado para tratar dos dentes: "A quem dói o dente vai à casa do barbeiro". E em quase todas as vilas e aldeias deste país, até aos anos 60, ele era para todos os efeitos um verdadeiro praticante da arte médica a quem se recorria para tratar de um abcesso, dar uma injecção, fazer um penso ou receber um conselho. De resto, "é na cara dos pobres que os barbeiros aprendem"...

No regulamento do Hospital Real de Todos os Santos, inaugurado em 1504, estava prevista a figura do barbeiro-sangrador. Competia ao enfermeiro-mor (chefe de uma enfermaria) estar presente "quando algum Enfermo se ouver de sangrar"- tarefa essa que era executada pelo barbeiro-sangrador, externo (Capº XVI) -, devendo para o efeito requisitar ao hospitaleiro as necessárias "ataduras e panos" (p. 75).

A profissão de barbeiro-sangrador só será extinta, oficialmente, por decreto de 13 de Junho de 1870, o que testemunha a longa persistência de séculos da prática da flebotomia entre nós (Pina, 1937.21-22). 

No entanto, a sangria ainda se praticava em Lisboa nos finais da Monarquia!

(Continua) (**)

(Bibliografia a apresentar no final da série)

_____________________

Quadro XIV— Provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa sobre o barbeiro, a purga e a sangria

Objecto

Provérbio

Barbeiro Barbeiro- Sangrador Dentista

 

  • " A quem dói o dente vai à casa do barbeiro"

  • "A quem dói o dente vai a dentuça" (Séc. XVI)

  • "Da vida alheia é mestre o barbeiro"

  • "Dente fora cangalhão na cova"

  • "É na cara dos pobres que os barbeiros aprendem"

  • "Guarde-nos Deus de oficial novo e de barbeiro velho"

  • "Quando Deus tira os dentes, alargar a goela"

  • "Quando Deus tira os dentes, endurece as gengivas"

  • "Quando dói o dente é que se vai ao dentista"

Purga       Sangria

  • "Como é o braço assim é a sangria"

  • "Dia de purga, dia de amargura"

  • "Dia de tosquia, dia de sangria"

  • "Em Lisboa não há sangria má, nem purga boa"

  • "Mais vale suar que enfermar"

  • "Não é sangria desatada"

  • "Quando se está esmagado não se chora, sangra-se"

  • "Sangrai-o e purgai-o, e, se morrer, enterraio-o"

  • "Sangrar de saúde"

  • "Sangria que no princípio da manhã é salutífera, por ventura sucede ser mortal na declinação do dia"

  • "Um ar purgado, morte ao cabo"

Sangue

  • "Arrenego da tijelinha de ouro em que hei-de cuspir sangue"

  • "Bebe vinho branco de manhã e à tarde tinto para teres sangue"

  • "Dar o sangue das veias" (Séc. XVII)

  • "Ficar sem pinga de sangue"

  • "Mais vale onça de sangue que libra de amizade"

  • "Não quero escudela de ouro em que cuspa sangue"

  • "O bom vinho faz o bom sangue"

  • "O que faz mal ao corpo é o sangue"

  • "O sangue se herda e o vício se pega"

  • "Sangue pela boca nem das gengivas"

  • "Sangue quer sangue, sangue quer vida"

  • "Todo o sangue é vermelho"

____________ 

Nota do editor:

(*) Vd. postes de:




20 de março de 2023 Guiné 61/74 - P24155: Manuscrito(s) (Luís Graça) (217): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIA: 'Deus Cura os Doentes e o Médico Recebe o Dinheiro"

17 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24148: Manuscrito(s) (Luís Graça) (216): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte I: "Muita saúde, pouca vida, porque Deus não dá tudo"

(**)  Último poste da série > 10 de abril de  2023 > Guiné 61/74 - P24214: Manuscrito(s) (Luís Graça) (222): Circadiana, a vida

quarta-feira, 26 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24252: Palavras fora da boca... (2): "Prós insultos não há contemplações nem indultos"... e também: "Quem não tem poilão, acolhe-se à sombra do chaparro"... Proverbiário da Tabanca Grande, 5ª edição revista e aumentada:




Tabanca de Candoz > 9 de abril de 2023 > Um dos nossos sobreiros: temos uma meia dúzia nas extremas da quinta, não dão cortiça de qualidade, mas dão bolotas e sombra, abrigam a passarada, e crescem desalmadamente... É a nossa árvore sagrada, como o poilão o é na Guiné-Bissau... E a propósito diz o nosso proverbiário,  agora em 5ª edição (revista e aumentada): "Quem não tem poilão, acolhe-se à sombra do chaparro"...

Foto (e legenda): © Luís Graça (2023). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. O meu pai, meu velho, meu camarada, Luís Henriques (1920-2012), gostava muito de falar em verso, de fazer rimas, quadras, versos de pé quebrado, citar provérbios populares, contar histórias e anedotas, evocar os seus tempos de expedicionário em Cabo Verde durante a II Guerra Mundial ou relembrar os tempos de jogador de futebol, e de treinador de camadas juvenis... Muitas vezes fazia-nos rir, sorrir, pensar... Tenho pena que muita da sua "sabedoria popular" ou "filosofia espontânea"  tenha ido para a cova com ele... Algumas coisas fomos, eu e os seus netos,  registando, filmando, tomando boa nota... E também o "obriguei" a escrever os seus cadernos diários (deixou-nos três, com  centenas de páginas), quando teve, nos últimos anos, de ir para um lar com a minha mãe...

Mas ele era um repentista, um espontâneo, um improvisador, incapaz de repetir, com a mesma precisão e graça, o que acabava de lhe sair da boca... Tudo dependia do contexto, das situações, dos interlocutores, e da disposição e da inspiração de momento... E, claro, fiava-se na sua memória de elefante... Tinha um r
eportório para dar e vender... Nunca o vi escrever um dito, uma história, um verso... Era um homem de palavra e de palavras, que nunca usou como arma de arremesso contra ninguém. Talvez por essa razão não tinha inimigos conhecidos:

Tudo isto vem a propósito de uma quadra que ele gostava muito de citar apropriada para prevenir situações de conflito:

Palavras fora da boca,
São pedras fora da mão,
Tu mede bem as palavras,
Tira-as do teu coração.

Era uma variante da conhecida quadra popular:

Palavras fora da boca,
São pedra fora da mão,
Tu tens me dito palavras
De cortar-me o coração.

2. Também no blogue, em postes e comentários, mandamos às vezes umas "bocas", ora mais felizes ou bem humoradas, ora mais provocatórias e inapropriadas (neste caso, "bocarras"), entre amigos e camaradas. No blogue e sobretudo no facebook... A (in)cultura geral das redes sociais criou, em dada altura, um clima de intolerância e de impunidade propício à violência verbal, ao insulto... Ora, cá entre nós, gostamos de lembrar: "P'rós insultos, não há contemplações nem indultos". 

Palavras fora da boca, falar da boca para fora quer dizer "falar sem pensar", "falar sem certeza do que se diz", "dizer uma coisa sem seriedade"!... "Palavras da boca para fora" são, de acordo com o Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, "locuções e frases inteiras que dizemos 'da boca para fora', sem esforço mental aparente (mas com sentido, ainda que inconsciente), [e que] recheiam o nosso discurso, consti[tuindo] uma classe lexical, a das expressões idiomáticas, fraseologias ou sintagmas fixos." In: Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/aberturas/falar-da-boca-para-fora/1979 [consultado em 25-04-2023.]
 
Temos vindo a reunir algumas dessas "frases feitas" para proveito e governo da Tabanca Grande, o mesmo é dizer, dos nossos editores, colaboradores permanentes, autores, leitores, comentadores... Está na altura de fazer uma 5ª edição, revista e aumentada, com algumas dessas expressões idiomáticas ou sintagmas fixos que usamos, uma vez por outra, umas, ou mais frequentemente, outras... Os "insultos", naturalmente, ficam de fora da coleção, embora pedagógico recolhê-los....

Chamámos-lhe, em tempos, "o nosso proverbiário", fazendo já parte do nosso "livro de estilo" (**). Quarenta e nove anos depois do 25 de Abril de 1974, dezanove depois da criação do nosso blogue, queremos continuar a ser a Tabanca Grande, "a mãe de todas as tabancas", mas também um espaço de partilha de memórias (e de afetos) tolerância, verdade, liberdade e responsabilidade,  um espaço, na Net, "onde todos cabemos com tudo o que nos une e até com aquilo que nos separa". Referimo-nos, naturalmente, aos "amigos e camaradas da Guiné", e nomeadamente aos "antigos combatentes do CTIG"...


O NOSSO PROVERBIÁRIO

A blogar é a que a gente... se entende.

A 'roupa suja' lava-se na caserna, não na parada.

Água de Lisboa, "manga di sabi".

Alfero Cabral cá mori!

Ainda pior do que o inferno da guerra, 
é o inverno do esquecimento dos combatentes.

Amigo do seu amigo, camarada do seu camarada.

Amigo traz amigo e amigo fica.

Ao luar, entre nevões, até as renas parecem pavões! (Zé Belo dixit)

Aponta, Bruno!

Aqui o povo é quem mais... "ordenha".

A(r)didos e... mal pagos!

As nossas queridas enfermeiras paraquedistas: 
os anjos que desciam do céu.

As vacas roubadas que andam de mão em mão, acabam sempre comidas em boa ocasião (Salgueiro Maia dixit)

Até aos cem, ainda se aguenta, depois dos cem, só com água benta.

Até aos cem é sempre em frente!... E depois dos cem, 
é só para quem for resiliente...

Até aos entas, bem eu passo, dos entas em diante, 
ai a minha perna, ai o meu braço!...

Até à... próstata!

Bazuca: o que fazia mal ao fígado, fazia bem à alma.

Beber a água do Geba.

Boa continuação da viagem pela picada da vida!... 
Cuidado com as minas e armadilhas!

Bons tempos, Cabral, consigo ia ficando maluco! (Barbosa Henriques, capitão "comando" dixit)... E eu ia ficando comando!... (Alfero Cabral retorquiu)


Brincando por fora, sangrando por dentro.

Cabral só há um, o de Missirá e mais nenhum.

Cabrito pé de rocha, "manga di sabi".

Camarada e amigo... é camarigo!

Camarada não tem que ser amigo: é o que dorme contigo, 
no mesmo buraco, na mesma cama, no mesmo abrigo.

Camarada, mais do que um dever, é uma honra que te é devida, 
ir a Monte Real pelo menos uma vez na vida.

Camarada, que a terra da tua Pátria te seja leve!

Camarada, salvo seja!

Com a sua licença, meu general, a merda... que a gente come!

Combatente um vez, combatente para sempre!

Como camaradas que fomos (e continuamos a ser), tratamo-nos por tu!


Dão-se lições de artilharia para infantes.

Desaparecidos: aqueles que nem no caixão regressaram.

Desarmados, jubilados, reformados, aposentados mas não... arrumados.

Dezanove anos a blogar... são dez comissões na Guiné!

E quem não bebeu a água do Geba, nunca poderá entender 
a vida, o conteúdo e o continente das nossas estórias.

E também lá vamos facebook...ando e andando.

E viva a Pátria! E viva o nosso General!... Puuum!!! (Gasparinho dixit)

É proibido fazer juízos de valor sobre o comportamento de um camarada (do ponto de vista operacional, disciplinar, ético, moral, social).

Encontro Nacional da Tabanca Grande: orar, comer.. 
e amar em Monte Real!

Entra e senta-te à sombra do nosso poilão.

Estás porreiro ou vais p'ró carreiro!?...

Estorninhos e pardais, aqui somos todos iguais.

Exorcizar os nossos fantasmas.

F... e mal pagos.

For the Portuguese Armed Forces from Scotland with love... 
[Da Escócia com amor, para as Forças Armadas Portuguesas.]

Guerra do Ultramar, guerra de África, guerra colonial
(como se queira, ao gosto do freguês).

Guerra ganha, guerra perdida? 
Camarada, não percas tempo com a discussão do sexo dos anjos...

Guiné, da floresta verde e do chão vermelho.

Guiné, terra verde-rubra.

Guiné? ... Não era pior nem melhor, era diferente.

Guiné?... Não, nunca ouvi falar!


Há comentadores e comentadores: alguns são como o peixe e o hóspede, 
ao fim de três dias fedem...

Havia os desertores, os refratários, os faltosos... e nós.

Humor com humor se (a)paga.


In Memoriam: para que não fiques, pobre camarada, 
na vala comum do esquecimento.

Já estás com o bioxene, já estás com os copos, já estás! (Valdemar dixit)

Já estou mal da cachimónia, / E eu aqui no treco-lareco, / A ouvir o próprio eco, / Na Tabanca da Lapónia.

Lá vamos blogando, recordando, (sor)rindo, 
e às vezes cantando, gemendo e chorando!

Lá vamos contando (e cantando) os quilómetros pela picada da vida fora!

Lembras-te, combatente, que és pó e em que em pó hás de tornar-te.

Lembra-te, ó português, a tua bandeira é a das cinco quinas, 
a dos cinco pagodes é na loja... do chinês!

Lugares ao sol, não temos... Só à sombra, do nosso poilão!

Luso-lapão só há um, o Zé Belo, e mais nenhum.


Mais morto de alma do que vivo de corpo.

Mais vale andar neste mundo em muletas do que no outro em carretas.

Mais vale um camarada vivo do que um herói... morto!

Melhor que as bajudas, era a 'água de Lisboa' que nos fazia esquecer as bajudas.

Meu pai, meu velho, meu camarada.

Miguel & Giselda, o casal mais 'strelado' do mundo.

Muita saúde e longa vida, porque tu, camarada, mereces tudo.


Não deixes que o teu espólio de memórias vá parar à Feira da Ladra ou ao OLX.

Não deixes que sejam os outros a contar a tua história por ti.

Não é o Panteão Nacional, é melhor, é... a Tabanca Grande.

Não fazemos a História com H grande, mas a História não se fará 
sem a nossa... pequena história.

Não há tabanca sem poilão.

Nem mais um soldado para as colónias! 

Nem medalhas ao peito nem cicatrizes nas costas.

Ninguém leva a mal: em cima o camarada, em baixo o general.

No céu... não há disto: comes & bebes!


O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande!

O nosso maior inimigo: o Alzheimer (de que Deus nos livre!)...

Ó Pimbas, não tenhas medo!

O seu a seu dono: respeita os direitos de autor.

Ó Sitafá, deixa lá, cabeças e rabos de sardinha não são bem a mesma coisa (Alfero Cabral dixit).

O último a morrer, que feche a tampa... do caixão.

Olhe que não, sr. general, olhe que não!

Os bravos não se medem aos palmos.

Os bu...rakos em que vivemos.

Os camaradas tratam-se por tu.

Os camaradas da Guiné dão a cara, não se escondem por detrás do bagabaga.

Os filhos dos nossos camaradas, nossos filhos são.

Os netos dos nossos camaradas, nossos netos são.

Os nossos queridos 'nharros'...


P
ara que os teus filhos e netos não digam, desprezando o teu sacrifício: "Guiné? Guerra do Ultramar? Guerra Colonial? Não, nunca ouvi falar!"...

Partilhamos memórias e afetos.

Patrício Ribeiro, o "pai dos tugas" em Bissau.

Periquito, salta pró blogue, que a velhice já cá está!

Periquitos até aos 6 meses, maçaricos até a um ano... 
e depois vecês (velhinhos comó c...)

Porra, porra, lá iam lixando o Comandante-Chefe (Spinola dixit, quando o seu heli aterrou, por engano, numa "área libertada")

P'rós insultos, não há contemplações nem indultos.

Quando o último eucalipto deste país arder, despeçam o último bombeiro, por extinção do posto de trabalho.

Que Deus, Alá e os bons irãs te protejam!

Quem não faz 69, não chega... aos 100!

Quem não sabe beber, beba merda!

Quem não tem poilão, acolhe-se à sombra do chaparro.

Quem não tem "turpeça", senta-se no chão... e quem "turpeça" também cai.

R
apa o fundo ao teu baú da memória.

Recorda os sítios por onde passaste, viveste, combateste, amaste,
sofreste, viste morrer e matar, mataste,
e perdeste, eventualmente, um parte do teu corpo e da tua alma...


Saber resolver os nossos diferendos, os nossos conflitos... sem puxar da G3!

Santo António de Bissau, / Bravo, meu bem, / De todos o mais casmurro,/ Quer do preto fazer branco, / Bravo, meu bem, / E do branco fazer burro.

Sempre presentes, aqueles que da lei da morte já se foram libertando.

Siga a Marinha!

Só há três coisas de que aqui não falamos: futebol, política e religião.

Somos uma espécie em vias de extinção.

Soubemos fazer a guerra e a paz.

Spinolândia, sim, Guiné, não.


Tabanca Grande: a mãe de todas as tabancas.

Tabanca Grande: onde todos cabemos com tudo o que nos une 
e até com aquilo que nos separa.

Tabanca Grande: onde não há portas nem janelas 
nem arame farpado   nem cavalos de frisa

Tuga, que Deus te livre da doença do... Alemão.

T/T Niassa, Uíge, Ana Rita, Angra do Heroísmo... Os cruzeiros das nossas vidas.


Um blogue de veteranos, nostálgicos da sua juventude (René Pélissier dixit).

Um povo que sabe rir-se de si próprio, não precisa de ir ao psiquiatra.

Uma geração que soube fazer a guerra e a paz.

Uma guerra... a petróleo! (Tó Zé dixit)

Uma noite nos braços de Vénus, três semanas por conta de Mercúrio.  

Vamos à guerra, que a morte é certa.

Volta, Zé Belo, estás perdoado! (disseram  os "sámi" ao régulo que queria "desertar" da Tabanca da Lapónia.


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Notas do editor:


segunda-feira, 3 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24189: Manuscrito(s) (Luís Graça) (220): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte IIIB: Quando o pobre come frango, um dos dois está doente

Hieronymus Bosch 053 detail

Detail from "The Extraction of the Stone of Madness", a painting by Hieronymus Bosch depicting trepanation (c.1488–1516) / Uma representação da trepanação: pormenor de "A Extração da Pedra da Loucura", quadro de Jerónimo Boch (c. 1488-1516), com a representação da trepanação. Coleção do Museu do Prado. Public domain / domínio público, Wikimedia Commons


1. Estamos a publicar uma série de textos, da autoria do nosso editor Luís Graça, sobre as lições que se podem tirar dos provérbios populares portugueses, nomeadamente sobre a saúde, a doença, os hospitais, os prestadores de cuidados de saúde (médicos, cirurgiões, farmacêuticos, enfermeiros, terapeutas, etc.), mas também sobre a proteção e a promoção da saúde, incluindo a vida, o trabalho, o envelhecimento ativo e a "arte de bem morrer" (*)...

São textos que ele foi buscar ao seu "baú", à sua antiga página na Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade NOVA de Lisboa (ENSP/NOVA). A págima foi recuperada pelo Arquivo.pt: Saúde e Trabalho - Luís Graça (página pessoal e profissional cuja criação remonta a 1999).

O nosso editor, que está no Norte até à Páscoa por razões familiares, manda dizer que " espera, ao menos, que a leitura destes textos se revele de algum interesse e proveito. Comentários e sugestões serão bem vindos".





4. Hospital, Pobreza e Caridade 



4.4. "Quando o pobre come frango, um dos dois está doente"

O hospital cristão medieval começou por ser simultaneamente um locus religiosus do ponto de vista eclesiástico e uma pia causa do ponto de vista canónico, gozando por isso de um certo número de direitos e privilégios: isenção de taxas, direito a fazer os enterros (jus funerandi), direito de asilo, etc. (Rosen, 1963; Steudler, 1974; Graça, 1996).

Também na estrutura do financiamento do hospital medieval era patente a sua origem como pia causa e a natureza caritativa da sua missão:

  • De facto, as suas receitas provinham exclusivamente da caridade dos ricos e poderosos;
  • O seu património original resultava, muitas vezes, do remanescente de uma herança, doada em vida ou à hora da morte, por um cristão, leigo ou religioso, que se sentia em dívida para com Deus;
  • O essencial das receitas do hospital, quer em espécie quer em géneros, provinha do seu património fundiário (alugueres de prédios urbanos, foros e rendas de prédios rústicos, exploração agrícola directa, etc.);
  • Quanto aos custos de hospitalização, eram sobretudo representados pelas despesas com a alimentação (mais de 50%);
  • Os encargos com o pessoal não ultrapassavam os 15%, enquanto as despesas com os produtos farmacêuticos não iam além dos 3% (Steudler, 1974; Rochaix, 1996; Graça, 1996).

Alguns dados estatísticos sobre a assistência hospitalar de há 150 anos são altamente reveladores da permanência, durante séculos, de certas características estruturais do hospital cristão medieval. De acordo com o Relatório Wateville (1851, cit. por Rochaix, 1966), havia em França, em 1847, no final da Restauração:

  • 1270 estabelecimentos, dos quais 337 eram classificados como hospitais, 199 como hospícios e 734 como hospitais-hospícios;
  • O número de camas elevava-se a mais de 118 mil, sendo 14% reservadas aos militares e pouco mais de 4% aos doentes que tinham possibilidades de pagar os custos de hospitalização; a grande maioria das camas destinavam-se, pois, a doentes indigentes (34,3%) ou idosos (47,4%);
  • O número de entradas nos estabelecimentos hospitalares foi de 486 mil, numa população estimada em 36 milhões (em 1850, segundo Duby, 1995. 651), o que daria então 13.5 internamentos por cada mil habitantes;
  • Em contrapartida, a duração média de internamento hospitalar era alta, embora variando conforme o género e a idade: 48 dias para os homens; 64 para as mulheres; e 70 no caso das crianças.

Não obstante o furacão revolucionário que varreu a França entre 1789 e 1799, a estrutura orçamental do hospital não tinha mudado muito em 1847, quando comparada com a do final do Ancién Régime.

Do lado das despesas (Quadro XII, em anexo), a alimentação continuava a constituir a principal rubrica e o grosso da fatia dos custos de internamento (56%). O pão (43%), a carne (25%), o vinho e outras bebidas (25%) praticamente esgotavam esta rubrica.

Em segundo lugar, mas apenas com 14% do total, surgiam os encargos com o pessoal. Por categorias destacava-se o pessoal administrativo, seguramente mais bem pago que as religiosas que constituíam, só por si, quase metade dos efectivos. A fraca proporção dos ordenados dos médicos e cirurgiões (menos de 1.9% do total geral dos custos de hospitalização) sugere que o seu número e a sua importância, no contexto hospitalar de há 150 anos atrás, eram ainda muito reduzidos.

Ainda em relação aos custos de pessoal, há que ter em conta a persistência da tradição do pagamento em géneros, particularmente sob a forma de fornecimento gratuito de alimentação e alojamento ao pessoal. Por não terem uma expressão monetária, estes encargos não eram contabilizados, aparecendo diluídos noutras rubricas. 

O risco de viés estatístico é, pois, óbvio, pelo que em rigor teríamos que ter em conta uma percentagem mais elevada de custos salariais (directos e indirectos), talvez da ordem dos 20% a 25%, como sugere Rochaix, para o período correspondente ao final do Ancien Régime (1996. 43).

Em suma, os custos de hospitalização por doente não chegavam a 82 francos franceses, dos quais 46 respeitavam à alimentação (Quadro XIII ). Só em pão gastava-se, em média, 20 francos por doente. Com a aquisição e a lavagem de roupa, mais 6 francos, enquanto o aquecimento ficava em 5 francos e meio e a iluminação em 1 franco. Estes valores dão-nos uma pálida ideia do que seria o terrível desconforto dos doentes naquela época.

Compare-se, por fim, o custo médio, por doente, do serviço religioso (0,7 francos) com a medicação (3,1 francos) e os honorários do pessoal médico (1,7 francos). 

No essencial, e independentemente de eventuais variações no custo por doente conforme o tipo de estabelecimento, estatuto do doente e região, o hospital no final da primeira metade do Séc. XIX em muito pouco se distinguia ainda do hospital da Idade Média, continuando a privilegiar a sua função de acolhimento de doentes pobres (que representavam mais de 4/5 da sua clientela).

Quadro XIII - Custo da hospitalização em França, por doente e por rubrica de despesa (1847)  

Unidade: Franco Francês  
 

Fonte: Adapt. de Rochaix (1996)


A associação do hospital com a prisão e, portanto, a sua natureza de instituição concentraccionária e totalitária, tem as suas raízes na dolorosa experiência da população europeia mais miserável e socialmente excluída (Quadro X, em anexo):

  • "Mal por mal, antes na cadeia do que no hospital";
  • "Na cadeia, no jogo e na doença se conhecem os amigos".
  • "Na prisão e no hospital vês quem te quer bem e quem te quer mal"
  • "Quem quiser comer arroz sem sal vá para o hospital";
  • "Quem vive em palácios sem poder no hospital vai morrer".

Durante muito tempo, aquilo a que eufemisticamente se vai chamar no Séc. XIX a assistência pública, tem duas funções distintas:

  • Uma função médica e hospitalar (prestação de cuidados aos doentes pobres);
  • E uma função de controlo social de todas as formas de déviance e da exclusão (pestilência, loucura, pecado, deficiência, pobreza, marginalidade, criminalidade, vagabundagem, prostituição, orfandade, velhice, desemprego, mendicidade).
É o início da intervenção do Estado, conferindo ao hospital, a coberto da caridade, uma função claramente policial de controlo de grupos da população potencialmente perigosos. 

Nomeadamente em França, é criado, em 1656, por Luís XIV o  Hôpital Géneral,Hospital Geral, com o objectivo explícito de impedir, nas principais cidades, "a mendicidade e a vagabundagem como fontes de todas desordens" (Foucault, 1972. 75). Trata-se do grand renfermement, um "estranho poder que o rei estabelece entre a polícia e a justiça, nos limites da lei: a 3ª ordem da repressão" (61).

Á semelhança do Hôpital Géneral, os ingleses tinham criado as workhouses, no âmbito da famigerada Lei dos Pobres (promulgada em 19 de Dezembro de 1601, pela Rainha Isabel I). 

 O seu estatuto tinha sido definido por Carlos II em 1670 e no Séc. XIX eram conhecidas como as Bastilhas de Chadwick (!), numa alusão à conhecida fortaleza-prisão de Paris, por um lado, e ao papel (controverso) do arquitecto do moderno sanitarismo, E. Chadwick (1800-1890): A primeira de todas remontava ao ano de 1697 (Bristol).

Segundo o historiador polaco B. Geremek (no seu livro sugestivamente intitulado "A piedade e a forca: História da miséria e da caridade na Europa", 1995), "aquilo que se propunha o Hospital Geral, com a sua política de enclausuramento e de trabalho obrigatório, era pois a afirmação do ethos do trabalho: assegurar a todo o custo - pelo terror, pela ameaça e pela violência - o respeito geral de tal princípio. O espectáculo da repressão que a assistência social dos Tempos Modernos integra nos seus métodos de intervenção desempenha uma função ideológica precisa" (Geremek, 1995. 261).

A clientela hospitalar seria, pois, constituída por toda a espécie de excluídos sociais, nomeadamente no Ancien Régime, vivendo amontoados, em total promiscuidade, em estabelecimentos que primavam pela mais completa e absoluta ausência de condições de higiene e de segurança. 

Além disso, os incêndios, as inundações ou outras catástrofes eram frequentes: por ex., o nosso Hospital de Todos os Santos sofreu nada menos do que três grandes incêndios, entre 1504 e 1755 (Graça, 1994).


4.5. "Ao doido e ao toiro dá-lhe o curro"


Além de um locus religiosus e de uma pia causa, o hospital até ao fim ao Ancien Régime continuara a ser um locus infectus, um lugar de infecção e de propagação de doenças. O universo hospitalar era concentracionário e a mortalidade elevada, tanto entre a população internada como entre o pessoal.

Não havia, por outro lado, nenhuma distinção entre o doente mental e o criminoso, sendo o louco tratado como um animal durante toda a Idade Média até praticamente ao Séc. XIX.: 

"Ao doido e ao toiro dá-lhe o curro", diz o provérbio, já que "quem de doidice adoece tarde ou nunca guaresce" (Quadro X) (*).

A fundação da psiquiatria data de 1798 com a distinção que o francês Ph. Pinel (1745-1826) fará entre loucos e criminosos, na sequência do ideário da Revolução Francesa. O mesmo Pinel iria também dirigir a primeira escola psiquiátrica em França (Sournia, 1995. 228).

É na primeira metade do Séc. XIX que surge o manicómio, o precursor do moderno hospital psiquiátrico (entre nós, a criação do manicómio de Rilhafolhes data de 1848). 

Discípulo de Pinel, J. Esquirol (1772-1840) será o inspirador, em 1838, da lei francesa, considerada exemplar para a época, "que institui a protecção jurídica dos alienados, até aí submetidos com demasiada frequência a internamentos excessivos e a tratamentos desumanos" (Sournia, 1995. 277).

Também entre nós, com o triunfo das ideias liberais, surgem as primeiras denúncias da condição infra-humana em que viviam os doentes mentais ("doidos, lunáticos, alienados", como eram então rotulados).

De entre os médicos que se debruçam e se preocupam com esse problema, destaca-se o nome de Clemente Bizarro (1805-1860) que, em 1836, em sessão da Sociedade das Ciências Médicas, chama a atenção para "os insalubres, os pavorosos, e os acanhados recintos onde confusamente estão misturados e em contacto mais de duzentos alienados de manias tão opostas e que por isso exigem cuidados tão diversos" (cit. por Mira, 1947. 420).

Bizarro referia-se mais concretamente à Enfermaria de S. João de Deus do Hospital de S. José onde se amontavam sobretudo doentes do sexo feminino:

 "Doidas nuas e desgrenhadas, entregues a todos os seus desvarios, gritando e gesticulando, encerradas às vezes num cubículo escuro e infecto onde mal podem obter um feixe de palha em que possam revolver-se; um local de todo apertadíssimo, com escassa luz, imprópria ventilação, e nele jazendo perto de 150 infelizes alienados com o diminuto número de três empregadas, que tantas são as destinadas ao seus serviço" (citado por Costa, 1986).

Em 1837, Bizarro pedia a criação de um hospício orientado especificamente para o acolhimento e tratamento de doentes mentais, o que veio a acontecer, dez anos mais tarde: de facto, graças ao legado de um benemérito, é criada em 14 de Novembro de 1848, o primeiro estabelecimento para alienados.


Alguns anos depois, o manicómio de Rilhafolhes alberga já mais de meio milhar de doentes; mais tarde, será seu director o médico Miguel Bombarda (1851-1910), o qual além de ampliar e modernizar o estebelecimento, lutou vigorosamente contra os métodos repressivos então ainda em uso (o "babeiro de cola", a "coleira", o "berço-prisão", o "colete de forças", etc.);

Em 1948, passou a chamar-se Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda.

Em 1883, entra em funcionamento o Hospital de Conde de Ferreira, pertencente à Misericórdia do Porto, e que foi construído com o remanescente da herança de J.F. Ferreira (1782-1866). Este último, depois de enriquecer no Brasil e em África, iria tornar-se um dos grandes filantropos do reinado de D. Maria II.

O Hosputal Conde de Ferreira, para o qual transitaram os doentes mentais, até então encerrados como animais nos porões do Hospital de Santo António, igualmente sob administração da Misericórdia do Porto, irá tornar-se a escola dos grandes "alienistas" do nosso Séc. XIX: A. M. Sena, Urbano Peixoto, Magalhães de Lemos e Júlio de Matos, entre outros (Mira, 1947).

É a época do desenvolvimento da neurologia e psiquiatria (ou melhor, da neuropsiquiatria), o qual decorre, em grande parte, dos progressos realizados em disciplinas fundamentais como a anatomia, a fisiologia e a patologia. As funções do cérebro e do sistema nervoso e o seu papel na saúde/doença começam a ser largamente objecto de investigação por homens como os franceses G. Duchenne (1806-1875), J. M. Charcot (1825-1893), J. Déjerine (1849-1917) e sua mulher, P. Marie (1853-1940) (uma das primeiras mulheres médicas), J. Babinsky (1857-1922), e o inglês J. H.Jackson (1835-1911) (Rosen, 1990; Sournia, 1995).

A fundação da neuropsiquiatria é atribuída ao francês J. M. Charcot, com a publicação em 1873 do seu Curso sobre as doenças do sistema nervoso. Posteriormente, o alemão E. Kraeppelin (1856-1926) vai classificar as doenças mentais.

Voltando à França e ao fim do Ancien Régime, não admira a grande desconfiança (se não mesmo a suspeição e o repúdio) com que a instituição hospitalar será tratada no período revolucionário, já que ela é sinónimo da caridade mais abjecta. Como dirá Barère, no relatório feito em nome do Comité de Salut Publique:

"Quanto mais esmolas, mais hospitais. Tal é o objectivo para o qual a Convenção deve caminhar sem cessar, porque estas duas palavras devem ser riscadas do vocabulário republicano " (cit. por Rochaix, 1995. 59).

Em contrapartida, em Portugal será o Estado Novo, em pleno Séc. XX, a recuperar a ideologia do acto misericordioso e a sobrepor a caridade individual à solidariedade social (Caixa 1, em anexo).






Caixa 1 - A Caridade

Perto da minha casa, mora, sòzinho um velho doente, que todo o dia treme e pouco fala.

Como não tem família, são os vizinhos   que o trazem ao colo e o sentam à porta  nos dias de sol.

Chora sem lhe fazerem mal e sem dizer porquê.

Gosto muito deste pobrezinho. Quando lhe levo alguma coisa que o consola, vou tão depressa que nem sinto os pés a tocar o chão.

Ando sempre contente nos dias em que posso visitá-lo e dar-lhe esmola. Não há alegria como a de fazer bem.

Nosso Senhor ensinou que a maior de todas as virtudes é a caridade.

Fonte: O Livro de Leitura da 3ª Classe. ((Lisboa)): Ministério da Educação Nacional, s/d, p. 62


(Bibliografia a apresentar no final da série)

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terça-feira, 28 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24173: Manuscrito(s) (Luís Graça) (220): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIIA: Hospital, o triunfo da hospitalidade e da caridade... mas "o peixe e o hóspede ao fim de três dias fedem"


Lisboa, vista em perspectiva. Gravura em cobre, meados do Séc. XVI (Pormenor) (in G. Braun - Civitates Orbis Terrarum.., vol. V, 1593) (Fonte: Museu da Cidade).

Em meados do Séc. XVI, a cidade de Lisboa não sofrera grandes alterações desde o reinado de D. Manuel. Destaque, ao centro, para a representação do Terreiro do Paço e, mais a norte, a Praça do Rossio, com os edifícios do Paço dos Estaus (tribunal da  Santa Inquisição ), ao fundo, e do Hospital Real de Todos os Santos, do lado direito. O hospital ocupava grande parte do que é hoje a Praça da Figueira


1. Estamos a publicar uma série de textos, da autoria do nosso editor Luís Graça, sobre as lições que se podem tirar dos provérbios populares portugueses, nomeadamente sobre a saúde, a doença, os hospitais, os prestadores de cuidados de saúde (médicos, cirurgiões, farmacêuticos, enfermeiros, terapeutas, etc.),  mas também sobre a proteção e a promoção da saúde, incluindo a vida, o trabalho, o envelhecimento ativo e a "arte de bem morrer" (*)...

São textos que ele foi buscar ao seu "baú", à sua antiga página na ENSP/NOVA onde ensinou e investigou, durante quase quatro décadas, ajudando a formar médicos de saúde pública, médicos do trabalho, médicos de clinica geral e familiar, administradores hospitalares, gestores de serviços de saúde, enfermeiros, técnicos de diagnóstico e terapêutica, técnicos de higiene e segurança no trabalho, educadores e promotores de saúde, engenheiros, mestres, doutores, etc.... 

A págima foi recuperada pelo Arquivo.pt: Saúde e Trabalho - Luís Graça (página pessoal e profissional cuja criação remonta a 1999).

O nosso editor, que está no Norte até à Páscoa por motivos de força maior, manda dizer que " espera, ao menos, que a leitura destes textos desperte algum interesse, tenha algum proveito para os nossos leitores e suscite alguns comentários (críticos)"...




Parte IIIA: Hospital, o triunfo da hospitalidade e da caridade... mas "o peixe e o hóspede ao fim de très dias fedem"

4. Hospital, pobreza e caridade

4.1. "Mal por mal antes cadeia que hospital"


Hospital e prisão estão sempre associados a lugares tenebrosos onde mais tarde ou mais cedo se vai parar e onde, aparentemente, se apagam as diferenças sociais:

  • "Na cadeia e no hospital todos tempos um lugar";
  • "Quem de puta faz cabedal vai acabar na cadeia ou no hospital";
  • "Quem vive em palácios sem poder no hospital vai morrer".

Mas mesmo assim, "mal por mal, antes cadeia que hospital" (Quadro X). Mas o que é o hospital ?

Historicamente, é uma criação da cristandade da Alta Idade Média;

Etimologicamente, é um termo que vem do baixo latim hospitale (lugar onde se recebem pessoas que necessitam de cuidados, alojamento, hospedaria), do latim hospitalis (relativo a hospites ou hospes, hóspedes ou convidados) (Graça, 1996).

Na Europa medieval, que irá ser profundamente marcada pela:

 (i) terrível fragilidade da condição humana,;

 (ii) pobreza absoluta e  

(iii) escatologia cristã, 

esses hóspedes eram originariamente não só os doentes pobres mas qualquer pessoa necessitada de qualquer outro tipo de cuidados (alojamento, alimentação, abrigo, protecção, ajuda, conforto, assistência, etc.): não só os enfermos, os incapacitados, os deficientes, os velhos, os pobres, os vagabundos como também os peregrinos e os viajantes.

Na Alta Idade Média, o hospital confundia-se com a albergaria ou o hospício (do latim hospitiu, alojamento, hospitalidade, também derivado de hospes). Em geral, ficava junto às catedrais ou aos mosteiros, em conformidade com as instruções dos concílios ecuménicos de Niceia (325) e de Cartago (398).

Com;

(i)  a progressiva cristianização do império romano (édito de Milão, em 313, que concede liberdade de culto aos cristãos);

(iii)  transformação do cristianismo em religião de Estado (em 380);

(iii) e  sobretudo a divisão do império (em 395), as invasões dos bárbaros e o fim do império romano do Ocidente (em 476),

 irão surgir, em Constantinopla, diferentes tipos de estabelecimentos com funções assistenciais, que depois se generalizam a toda a cristandade do Ocidente, na Alta Idade Média, com o desenvolvimento do monaquismo, o movimento das Cruzadas e as peregrinações, com particular destaque para a peregrinação a Santiago de Compostela (Rosen, 1960; Graça, 1996):

  • Xenodochia (albergarias para os estrangeiros, os peregrinos, os viajantes e todos aqueles que, em trânsito ou viagem, necessitassem de alojamento ou assistência);
  • Nosocomia (hospitais ou enfermarias que prestavam cuidados aos doentes ou enfermos pobres);
  • Gerontochia (estabelecimentos geriátricos, ou , pelo menos, destinados ao acolhimento de idosos);
  • Ptochia (hospícios ou albergues para os pobres que não fossem doentes);
  • Lobotrophia (locais destinados aos leprosos ou doentes vítimas de epidemias);
  • Orphanotrophia (orfanatos);
  • Brephotrophia (locais destinados a receber e a criar as crianças abandonadas ou sem família).
De um modo geral, as instituições de assistência criadas pelo império romano do Oriente, sob o impulso do cristianismo, tinham regulamentos próprios, além de um corpo de pessoal com funções de administração e de direcção técnica. O código justiniano, publicado em 534, contem já uma série de cláusulas sobre a administração hospitalar:

  • em termos jurídicos, os estabelecimentos hospitalares são vistos como uma parte distinta do património geral da Igreja, estando sob a tutela administrativa e religiosa do bispo;
  • a responsabilidade pela manutenção e conservação do seu património é, entretanto, atribuída à figura de um provedor, em geral nomeado pelo bispo, pelo fundador do estabelecimento ou pelos seus herdeiros (Imbert, 1958).

Além disso, o hospital bizantino estava já organizado por serviços, em função do sexo e da patologia e, seguramente, melhor equipado em termos de pessoal (médico e de apoio) que o seu sucedâneo do Ocidente cristão medieval (Rosen, 1963).


4.2 A doença como 'punição e expiação' e o hospital como 'instituição totalitária'


Curiosamente, há um ditado (provavelmente velho... e "os ditados velhos são evangelhos"!) que nos vem lembrar que, apesar do dever de caridade e de hospitalidade, "o hóspede e o peixe aos três dias fedem", isto é, cheiram mal, estão a mais, tornam-se um fardo.

Não haverá porventura nada de mais cruel, na literatura da administração hospitalar, do que esta insinuação de que, sendo o doente um "hóspede", ele é sempre um encargo e, em última análise, é indesejável. E também não há discurso sobre a humanização do hospital que possa resistir ao efeito corrosivo e perverso desta ideia da doença como punição e expiação.

Médicos e enfermeiros falam muito da atitude regressiva do doente, em geral, e do doente hospitalizado, em particular. A infantilização seria um dos traços característicos da chamada psicologia do doente. Ora, a regressão foi, desde sempre, um mito criado e alimentado pelo próprio sistema hospitalar. Sabemos que nem todos os doentes são infantilizantes, nem todos os doentes se deixam infantilizar. Há doentes "difíceis", "reivindicativos", que exigem ser informados, no dia-a-dia, sobre o seu estado de saúde e o tratamento que lhe está a ser administrado, etc. Trata-se de um atitude que tem muito a ver com o status (social, económico e cultural) do doente.

A relação material de dependência, provocada pela doença, não deve ser confundido com regressão. Esta, sim, seria um produto do sistema hospitalar: 

"A desapossessão do doente em relação à sua identidade, a expropriação do seu corpo entregue à ciência e aos médicos, o mito do saber ao serviço do doente, o mito da solidariedade social fazem do doente um ser submisso, infantil e em estado de regressão" (Grasset, 1975: 217).

Tais noções (regressão e infantilização) serviriam, sobretudo, para ocultar a imposição de um modelo de comportamento, o da submissão do doente ao pessoal e à instituição hospitalares, o que põe o problema da permanência, mesmo no hospital dos nossos dias, de traços da total institution (Goffman, 1967; Walton, 1988).

Segundo Goffman (1975), as instituições totalitárias vêm quebrar as fronteiras que separam habitualmente os três campos de actividade fundamentais do indivíduo, a casa, o trabalho e o lazer:

  • em primeiro lugar, as pessoas estão colocadas sob uma única e mesma autoridade (por ex., o director do hospital psiquiátrico, o capitão do navio da marinha mercante, o comandante do aquartelamento militar, a madre superiora do convento, o reitor do seminário, o director do estabelecimento prisional);
  • em segundo lugar, cada fase da actividade quotidiana desenrola-se, para cada indivíduo, numa relação de grande promiscuidade com um elevado número de outros indivíduos, submetidos às mesmas regras, procedimentos, deveres e obrigações (caso do recluso no estabelecimento prisional, do recruta na unidade militar, do idoso no lar de terceira idade, ou do doente crónico, moribundo ou terminal, acamado no hospital de retaguarda ou na ´clínica da morte’);
  • em terceiro lugar, todos os períodos de actividade são regulados segundo um programa estrito, isto é, todas as tarefas estão "encadeadas", obedecem a um plano imposto "de cima" por um sistema explícito de regulamentos cuja aplicação é assegurada por pessoal técnico ou administrativo (guardas prisionais, prefeitos, vigilantes, médicos, enfermeiros, sargentos e oficiais, etc.);
  • finalmente, as diferentes actividades assim impostas são por fim reagrupadas segundo um plano único e racional, concebido expressamente para responder ao fim ou missão oficial da instituição (custódia dos doentes mentais inimputáveis, tratamento psiquiátrico do doente esquisofrénico, reinserção social do jovem delinquente, recuperação do doente acamado, formação militar do recruta).

O traço essencial destas "instituições totalitárias" seria a aplicação ao indivíduo dum tratamento colectivo (e, nalguns casos, coercivo) de acordo com um sistema burocrático que cuida de todas as suas necessidades

Para a generalidade dos doentes, a hospitalização é sentida com um misto de culpa e de obrigação:
  • culpa, por um lado, de estar doente, representando um encargo para os outros (a família, a empresa, a sociedade, o Estado, os médicos e os outros profissionais de saúde, etc.);
  • obrigação, por outro, de se curar o mais rapidamente possível, de ser um doente colaborante, complacente, bem comportado, etc.

Estes dois sentimentos variam também em função da classe social e do sistema de saúde: quando o doente se sente, se reconhece e se assume como um utente, consumidor ou cliente, naturalmente que ele está em melhores condições para negociar, numa base mais equitativa. 

 De qualquer modo, o poder dos profissionais assenta, históica e culturalmente, sobretudo neste duplo sentimento de obrigação e de dependência (Graça, 1996).


Quadro X— Provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa sobre o hospital, a loucura, a misericórdia e a caridade

 

Objecto

Provérbio

Albergaria Hospital

  • "A mandar nunca ninguém foi ao hospital"

  • "Demandar e urinar levam o homem ao hospital"

  • "Doente que inspirra, fora do hospital"

  • "Mal por mal, antes na cadeia do que no hospital"

  • "Mal por mal antes cadeia que hospital e antes justiça que misericórdia"

  • "Na cadeia e no hospital só os amigos verás"

  • "Na cadeia e no hospital todos temos um lugar"

  • "Na cadeia, no jogo e na doença se conhecem os amigos"

  • "Na prisão e no hospital vês quem te quer bem e quem te quer mal"

  • "O homem que vive na taberna acaba por morrer no hospital"

  • "O hóspede e o peixe aos três dias fedem"

  • "Obra meninal põe o patrão na cadeia e o mestre no hospital"

  • "Os hóspedes  duas alegrias dão: quando chegam e quando se vão"

  • "Peregrinos, muitas pousadas, poucos amigos"

  • "Quando pobre come frango, um dos dois está doente"

  • "Quem de puta faz cabedal vai acabar na cadeia ou no hospital"

  • "Quem quiser comer arroz sem sal vá para o hospital"

  • "Quem vive em palácios sem poder no hospital vai morrer"

Caridade Misericórdia

  • "A caridade bem entendida começa por nós"

  • "A caridade dos outros connosco é gostosa; a nossa para os outros é custosa"

  • "A misericórdia dada é duas vezes abençoada"

  • "Caridade de rico é mania de dinheiro"

  • "Dar esmola não empobrece"

  • "Deus manda ser bom, mas não manda ser parvo"

  • "É preciso cuidar dos pobres, antes que eles cuidem de nós"

  • "Esmola a Mateus, esmola aos teus"

  • "Foi-se embora a caridade e ficou a carestia"

  • "Irmandade de Nossa Senhora Não-te-rales"

  • "Ir com alguém às obras de misericórdia"

  • "Junta-se o Hospital com a Misericórdia"

  • "Mais vale ser invejado do que misericordiado"

  • "Mãos generosas, mãos poderosas"

  • "Misericórdia não deve negar-se a quem pede" (Séc. XVI)

  • "Não dá quem tem dá quem quer bem"

  • "O que cair da mão dá-o a teu irmão"

  • "Os pobres têm tempo"

  • "Ouvir missa não gasta tempo, dar esmola não empobrece"

  • "Quem dá aos pobres, empresta a Deus"

  • "Quem  e reparte e não fica com a maior parte ou é burro ou no partir não tem arte"

  • "Quem  e torna a tirar ao Inferno vai parar"

  • "Quem deu dará, quem pediu pedirá"

Louco Loucura

  • "Ao doido doideiras digo"

  • "Ao doido e ao toiro dá-lhe o curro"

  • "Com o Diabo no corpo"

  • "Com mulher louca, andem as mãos e cale-se a boca"

  • "Cristo curou cegos e aleijados mas não malucos"

  • "De doido,  pedrada ou palavrada"

  • "De poeta e de  louco, todos têm um pouco"

  • "É preciso ser doido para trabalhar aqui"

  • "Quem de doidice adoece tarde ou nunca guaresce"

  • "Mal que não tem cura chama-se loucura"

  • "Não há louco sem acerto, nem sábio sem loucura"

  • Nem todos os doidos estão nas palhas"

  • "O tempo tudo cura, menos velhice e loucura"

  • "Para maluco maluco e meio"

  • "Três coisas se querem atadas: loucos, negócios e papéis"

    

4.3. "Dar aos pobres é emprestar a Deus"


Não havia, no entanto, uma clara distinção entre o cuidar dos corpos e o cuidar das almas. Segundo a mentalidade cristã da época, a doença, o sofrimento, a pobreza e a morte estavam submetidas à vontade divina (como já vimos anteriormente, na
Parte I):

A assistência aos enfermos e aos demais "pobres de Cristo" era, por sua vez, considerada como uma virtude cristã e como uma manifestação da misericórdia de Deus. Em termos metafóricos, diríamos que a caridade era vista então como uma espécie de certificado de alforro: "Dar aos pobres é emprestar a Deus" (Quadro X), ou seja, quantas mais boas obras amealhasse na terra, mais garantias tinha um cristão de alcançar o céu e, com ele, a salvação eterna.

A caridade (sob a forma da esmola) representava um investimento seguro que não punha em causa a "ordem natural das coisas":


Por fim, é bom não esquecer que - mesmo se às vezes "caridade de rico é mania de dinheiro" - Deus nosso senhor "manda ser bom, mas não manda ser parvo". Ou por outras palavras: "Quem dá e reparte e não fica com a maior parte ou é burro ou no partir não tem arte".

É com base neste ethos cristão, que se vão fundar milhares de hospitais e outros estabelecimentos similares, ao longo de séculos, de Constantinopla a Lisboa. Não admira, por isso, que o hospital cristão medieval vá ser estruturado, até na sua própria arquitectura e na sua organização espacio-emporal, como a casa de Deus, um lugar onde, mais do que curar a doença, se cuida sobretudo da salvação da alma. Daí os primitivos hospitais em França adoptarem a designação de Hôtel-Dieu, como o de Paris, fundado no Séc. VII (Imbert, 1958).

Nos finais do Séc.XV, surgem entretanto as primeiras misericórdias portuguesas Esta designação advém do facto de serem instituições, com o estatuto de confrarias e irmandades, que se propunham realizar as obras de misericórdia. De acordo com a tradição cristã e a interpretação do Evangelho segundo São Mateus, essas obras eram em número de catorze: sete espirituais e sete corporais, incluindo o curar dos enfermos (Graça, 1997)(Quadro XI).




Quadro XI - As catorze obras de misericórdia

(i) Sete espirituais

  • A primeira he ensinar os simprezes
  • A segunda he dar bom conselho a quem o ped
  • A terceira he castigar cô caridade os que erram
  • A quarta he cõsolar os tristes descõsolados
  • A quinta he perdoar a quem nos errou
  • A sexta he sofrer as jnjurias cõ paciençia
  • A setima he Rogar a ds pellos viuos e pellos mortos

(ii) Sete corporais
  • A primeira he remir captiuos e visitar os presos
  • A segunda he curar os enfermos
  • A terceira he cubrir os nus
  • A quarta he daar de comer aos famintos
  • A quinta he daar de beber aos que ham sede
  • A sexta he daar pousada aos peregrinos e pobres
  • A setima he enterrar os finados
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Fonte: 
Compromisso da Misericórdia de Évora (1516), cit. por Graça (1997)


A partir do início do Século XVI, assiste-se em Portugal a um movimento de concentração dos hospitais e demais estabelecimento assistenciais até então existentes, tendo o poder real um papel absolutamente decisivo nesse movimento.

É sobretudo a partir de D. João II (1455-1495) e, portanto, já em plena época dos Descobrimentos, que surgem as grandes instituições de assistência, sob a forma de hospitais gerais: Lisboa (1492-1504), Coimbra (1508), Évora (1515), Braga (1520), Goa (1520-1542), etc. em resultado da própria concentração do poder político e económico na figura do rei.

O Hospital Real de Todos os Santos, em Lisboa, é o exemplo mais paradigmático dos grandes hospitais que se constroem na época.

Contrariamente ao seu congénere medieval, o hospital dos Séculos XVI e seguintes é monumental e sobretudo urbano, reflectindo as novas necessidades e problemas de saúde de uma população que tende a concentrar-se nas cidades com o declínio do feudalismo, o desenvolvimento do modo de produção artesanal, a expansão do comércio marítimo e a complexificação do tecido social (em particular, das camadas populares).

A arquitectura do hospital renascentista, por outro lado, reflecte a ideia de magnificência do príncipe e de ostentação da caridade.

Às misericórdias caberá, posteriormente, a responsabilidade pela administração hospitalar, durante um período de mais de quatrocentos anos (desde meados do Séc. XVI até ao período de 1974/76). Daí talvez o sentido de provérbios como estes:

(Continua)

Referèncias bibliográficas a publicar no fim da série

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Nota do editor:

(*) Vd. postes de:



Último poste da série Manuscrito(s) (Luís Graça):

26de março de  2023 > Guiné 61/74 - P24170 : Manuscrito(s) (Luís Graça) (219): Na despedida da Terra da Alegria: à minha querida 'mana' Nitas, Ana Ferreira Carneiro Pinto Soares (Candoz, 1947 - Porto, 2023)