Mostrar mensagens com a etiqueta viagens. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta viagens. Mostrar todas as mensagens

sábado, 2 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23404: Os nossos seres, saberes e lazeres (510): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (57): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 2 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
Estas romagens de saudade têm os seus preceitos. Não há aspetos enfadonhos por retornar aos lugares conhecidos, vem-se em alforria, escolhe-se à carta, só há dias marcados para o Vale das Furnas, até lá tocam as campainhas. É a primeira manhã em Ponta Delgada, e logo assoma à memória a fase de adaptação à vida da cidade, de modo geral todos os outros tinham vida familiar organizada, eram muito poucos os que andavam a amanhar com recursos próprios. Tinha mapas das ruas, havia já os rigores outonais, quando ao fim da tarde descia da Rua de Lisboa em diferentes direções. Primeiro foi a descoberta do desenho da cidade, aquelas ruas quilométricas que pareciam vir lá do fundo da costa sul e se embrenhavam de São Pedro a São Roque; e no casco histórico de Ponta Delgada dei comigo a subir e a descer dentro daquele plano ortogonal que ainda hoje me surpreende. Mas por ali andei a mirar monumentos do meu culto, como o Convento de Santo André ou a Igreja do Colégio, de olhos postos no chão a contemplar os enleios geométricos da calçada portuguesa, a passar pelos jardins e a cogitar o que fazer durante a tarde, recordei João Bom, sabe-se lá porquê, talvez pela proximidade à Bretanha, não havia chuva à vista, passeou-se a manhã toda, amesendar-se era outro propósito e a seguir tomou-se a camioneta da carreira. Como nos velhos tempos, tinha que ser.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (57):
De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 2


Mário Beja Santos

Começo a manhã na vadiagem, há objetivos definidos, mas não quero furtar as surpresas, é para isso que serve a memória e meio século de afetos perduráveis, inquebrantáveis. Desço a Rua do Contador, aqui está à minha espera o Convento de Santo André, uma das maiores formosuras da arquitetura religiosa, data do século XVI e escusado é dizer que andou ao sabor das remodelações. Num dos primeiros fins de semana disponíveis, em outubro de 1967, vim visitar o Museu Carlos Machado, criado em 1930, entrava-se pelo lado oposto desta primeira imagem, subia-se uma escadaria, havia a graciosidade de um pequeno jardim, e assim se entrava no que fora um convento de religiosas clarissas, impressionara-me muito a igreja, de uma só nave, com a sua cobertura de pinturas e as impressionantes grades de ferro forjado, e fora um prazer aquela área de História Natural. Limito-me agora a mirar o convento por fora, toca-me esta harmonia, a moldura dos janelões, a austeridade das grelhas para quem está dentro ver e não ser visto, e depois, como é impressiva a imagem do rendilhado dos janelões. Não quero empanzinadelas de arte, sei que no Núcleo de Santa Bárbara, em edifício próximo, um espaço de recolhimento recuperado, estão as exposições dos dois artistas plásticos, Domingos Rebelo e Canto da Maia, hoje de manhã visito o primeiro, a ambos conheço bem, quero revê-los cuidadosamente para melhor os conservar.

A caminho do Núcleo de Santa Bárbara, quedo-me diante deste pormenor de calçada portuguesa que logo me assombrou quando aqui cheguei, a quantidade imensa de desenhos geométricos, veja-se a profundidade desta rua que muitas outras, também em profundidade atravessam, é certo que há momentos em que se caminha a medo, tal e tanto é o tráfego rodoviário, mas os passeios estreitam-se, é a contingência do desenvolvimento, guardo as saudades daquele tempo em que caminhava tão gostosamente a pé, para saborear a ortogénese, a perpendicularidade destas ruas estreitas, parece que vieram do campo para a cidade, guardando este casario baixo compactado, o que dá um encanto por aqui vaguear na dimensão da escala humana.
O que mais gosto em Domingos Rebelo é a sua narrativa em prol da açorianidade, mesmo sendo ele dotado de uma paleta suave, vem da escola realista, naquele turbilhão de Paris, caldeiro de movimentos estéticos, foi ali que firmou o seu pincel figurativo, com ressaibos naturalistas, e daí esta plasticidade onde cabe retrato, neste caso e elegia dos trabalhos agrícolas, onde não faltam nuvens tormentosas, e daqui se salta para um tema icónico, os imigrantes, ele regista o que é fundamental levar dos parcos bens, bem visível o registo do Senhor Santo Cristo dos Milagres, e há a dor da partida e também aquela figura enigmática da senhora da cidade, bem enchapelada, que tudo olha sem interferir, e o pano de fundo aquelas Portas da Cidade, hoje profundamente alteradas.
Vamos agora aos retratos, primeiro um artista dos tempos de Paris, atenda-se à pose, à meditação, ao sossego das mãos, não é artista em transe, poderá ser poeta ou músico. A obra seguinte toca-me muito, dentro da linhagem do Orpheu, ele foi o último, aí talvez por fevereiro de 1968, o grande etnógrafo e poeta quis conhecer-me e convidou-me para jantar na Rua do Frias, bem perto deste Núcleo de Santa Bárbara onde o estou a recordar, no retrato ele está no vigor da idade, recebeu-me no alto das escadas, com uma estranhíssima indumentária que parecia ter uns guizos, ainda pensei que era traje gaúcho, a um jovem sem obra que se limitara a cumprir um programa de conferências proposto por amigos, era deferência demasiada. Contemplo o retrato, recordo o jantar e os dois livros que me ofereceu, ganhei forças para ir ver mais tarde a exposição que está na Biblioteca Municipal.
Sob a forma de um tríptico, Domingos Rebelo faz desfilar gente piedosa que vem beijar o pezinho do Menino Jesus, todos os olhares se encaminham nessa direção, a exceção está no primeiro plano, aquela mãe ajoelhada fará certamente um comentário à menina de pé descalço, seguramente sob o olhar do sacristão, e curiosamente o menino que balança o ostensório é figura única que domina a cena, e o que podia ser um desequilíbrio na figuração acaba por organizar toda a sinceridade e ingenuidade da tensão religiosa.
É a oração de romeiro, e duas recordações me assaltam. A primeira, e a de carro, algures na costa norte, e avançava em marcha cadenciada um grupo de romeiros, conforme me alertaram. Saímos da viatura, como prova de respeito. Nada me fora dado ver tão intenso sinal de piedade, o coro da reza, o caminhar sem distrações, a austeridade da indumentária, os velhos e as crianças, provando que o amor a Deus não divide as idades. A segunda, foi uma brejeirice, convidado a fazer uma conferência no Dia Mundial dos Direitos do Consumidor, na autarquia de Ponta Delgada, fui recebido à porta pelo seu presidente, o Dr. Machado. Vendo-me a contemplar um quadro que logo identifiquei como saído da paleta de Domingos Rebelo, uma família orando com um pão em primeiro plano, logo comentou: “Este quadro estava no meu gabinete, confesso que a certa altura em já não podia ver aquele pão a toda a hora, mandei-o pôr aqui à entrada, e olhe que está muito bem, não lhe parece?”.
Domingos Rebelo não precisou de copiar ninguém, mas devo dizer que desconhecia esta obra que até me recordou o espanhol Joaquín Sorolla, pelas cores vivas, pela movimentação na orla da praia, pela ondulação e imponência da figura principal, aquele equilíbrio ao ombro de quem sabe como e o que transporta. Como fiquei a gostar desta embriaguez de luz!
Despeço-me de Domingos Rebelo revendo o seu autorretrato, ele em pose de desfastio, como se simulasse que estava a ser fotografado em momento de pausa, e temos a sua mulher, a sua musa, de olhar vagante, meticulosamente inserida num meio florido, ressaltando o acetinado do vestido daquele esverdeado neutro, que, sabe-se lá porquê, me lembrou Cézanne, passe a autenticidade deste mestre açoriano.
Outro local de memória, um daqueles jardinzinhos que pululam dentro da cidade, decidira fazer uma pausa, não havendo hoje o meu saudoso Café Gil, o nosso ponto de encontro noturno, estando fechada a livraria também, fui matar saudades à Tabacaria Açoriana, guarda formato antigo, tem hoje outra substância, mas os livros lá estão, a preços económicos, e as pessoas ali se reúnem em tertúlia, como nos velhos tempos. Parei e meditei. Quero ver se organizo o programa da cidade da tarde, há autocarros, está decidido, se tiver a sorte de comer uma boa sopa de peixe na Central, vou até João Bom. O que veio a acontecer.

(continua)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 25 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23383: Os nossos seres, saberes e lazeres (509): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (56): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 1 (Mário Beja Santos)

sábado, 25 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23383: Os nossos seres, saberes e lazeres (509): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (56): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 1 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
Era fatal como o destino, a primeira ancoragem depois do confinamento tinha de ser aqui, por razões do coração, pela aprendizagem recebida, há bem mais de meio séculos atrás. Em qualquer um destes lugares desta ilha, digo-o sem fanfarra, devo ter posto os pés. Logo à chegada à Lagoa, é assim que esvoaçam as lembranças, me recordei daquele Natal de 1967, que foi preparatório do milagre que se deu no Natal de Missirá, no ano seguinte, graças a mãos amigas, andei a saudar quem tinha feito a recruta comigo, andei pela Ribeira das Tainhas, Remédios, Lomba da Maia, Ribeirinha, e muitíssimo mais, as viagens multiplicaram-se, entranhou-se o gosto por este mundo ilhéu, o seu falar doce, com um picante um tanto francês, um certo espavento quando os familiares e os amigos se encontram, a gostosa comida e doçaria, tudo somado e multiplicado em trouxe a São Miguel, e já no rescaldo anda por aqui uma moinha a pedir para voltar.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (56):
De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 1


Mário Beja Santos

Aqui arribei no início da segunda semana de outubro de 1967, promovido a aspirante fui recambiado para dar recrutas no Batalhão Independente de Infantaria N.º 18, sito nos Arrifes, a cerca de 7km de Ponta Delgada, aqui tinha quarto, janta, alguns fins de semana por minha conta, o entardecer, o anoitecer, era a descoberta de me ter por conta e risco, e sem nenhuma ilusão de que em breve seria convocado para uma área de combate nas Áfricas. Ainda não contei tudo sobre este período de felicidade, as amizades feitas e duradouras, a descoberta desta ilha esplendente, o prazer de conversar e ouvir o acento tão melódico do ilhéu, uma linguagem ímpar. Fizera a jura ser aqui a primeira deslocação depois do período do confinamento, vim em romagem de saudade, mesmo de gratidão, pois foi aqui que pude sentir, naquela convivência das recrutas, que possuía algum dom para a liderança, muito jeito me deu para a vida que levei até agosto de 1970, depois mudei de agulha, até na vida profissional fugi do comando, adquiri outros interesses. Guardo ainda a imagem daquele meio da tarde em que o Carvalho Araújo sulcava em direção a Ponta Delgada, sempre em paralelo com aquelas reentrâncias, falésias a pique, rochedos de negrume, a bruteza das águas a espumar sobre as penedias, a alvura das casas, um belo contraste, as grotas a verter caudais de água, como toda aquela massa vulcânica expelisse em permanência todo aquele líquido, por desnecessário. Aqui cheguei, era o fim do inverno, mão amiga me acompanhou até à Lagoa, havia que amesendar, foi um luxo, não pelo queijo fresco com pimenta da terra ou as lapas com molho Afonso, o banquete foi um peixe porco bem grelhado, inhames, legumes saborosos, e vinho do Pico para apaladar. Pois a primeira imagem era para homenagear quem preparou o banquete, aqui se mostra uma área portuária da Lagoa, tudo me remeteu para aquela segunda semana de outubro de 1967, a era do meu descobrimento.
Depois da Lagoa, pedi ao meu anfitrião que me deixasse ver as praias, muito antes do Pópulo temos a praia das Milícias, que tanto aprecio, sempre me deslumbrou esta articulação entre a rocha verdejante, a areia e a ondulação. Melhor receção eu não podia ter. Arrumada a tralha na cidade, houve o gosto de ir até aos jardins, todos eles são assombrosos.
Ponta Delgada tem alguns dos jardins mais aprazíveis que eu conheço, o Jácome Correia, foi palácio de marqueses, hoje é residência oficial do presidente do Governo Regional; o de José do Canto, outra formosura, tal como o jardim botânico António Borges, também cheio de plantas exóticas, é delicioso estar sentado num banco de jardim a contemplar o monumento a Antero de Quental, bem perto da biblioteca municipal da Igreja do Colégio, hoje núcleo de arte sacra do museu Carlos Machado. Mas tive saudades do jardim da Universidade dos Açores, aqui me receberam para palestrar, aqui entrevistei para um programa de televisão o professor Vasco Garcia, aqui vim visitar um querido professor, Machado Pires, que foi reitor desta casa. É um jardim modesto, mas tem o quanto basta para me lavar a alma, os metrosideros, as araucárias, as estrelícias, a terbentina, as obrigatórias azálias, a fiteira, a sumaúma, o dragoeiro. Entro no jardim e demoro a ver estas raízes que lutam contra o asfalto, bem podemos molestar a natureza, no fim ela é sempre imperativa e possidente.
Está no ADN do ilhéu a convivência floral, os primitivos povoadores, os que desembarcaram no que hoje se chama a Povoação devem ter ficado estarrecidos com tanto matagal, houve que o desbastar para produzir comida e habitação, tudo sempre cheio de temores, segundo o grande cronista Gaspar Frutuoso, viviam aterrados com os roncos que vinham do Vale das Furnas, houve quem pensasse que para lá daquela imensidão verde havia um inferno. A jardinagem e o gosto pelas flores faz parte do direito costumeiro, mesmo aqui, que não é um ambiente luxuriante como no jardim António Borges, onde não há nem estufas nem pavimentos em bagacina vermelha, apetece contemplar estes troncos rugosos, talvez fibras para têxteis ou cordas de ancoragem, ou cestas, esta palmeiras que lembram coqueiros, o dragoeiro com a sua seiva vermelha, lá fora, isso sim, proliferam os plátanos, permanentes sentinelas nas estradas.
E não falta uma gruta, já vi arcos armados em rocha vulcânica, aqui é tudo singelo, tudo rocha vulcânica, não há chamamento ao mistério ou caminhos sinuosos, ela lá se impõe e nos chama à atenção no meio de intensa vegetação.
Anoiteceu e ando em busca do meu passado, ali mais ou menos em frente à torre da Câmara Municipal e não longe da estátua dedicada ao Arcanjo havia um café-restaurante onde eu era comensal. Estou no Largo da Matriz, em frente de uma porta lateral ao sabor manuelino, mais tarde aqui irei entrar, sempre deambulei por estas Portas da Cidade, e percorria a avenida Infante D. Henrique, e lá longe me era dado avistar, entre as brumas, todas aquelas penedias em direção ao Salto do Cavalo, se não era bem assim eu imaginava. Pois aqui me detive para recordar doces lembranças de há 55 anos atrás.

(continua)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 18 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23363: Os nossos seres, saberes e lazeres (508): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (55): Christine Garnier na Guiné e nos Açores (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 30 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23310: Notas de leitura (1450): “Viagens”, de Luís de Cadamosto, introdução e notas de Augusto Reis Machado, na Biblioteca das Grandes Viagens, Portugália Editora, sem data (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
Dispomos felizmente de uma riquíssima literatura de viagens em torno da chegada à Senegâmbia onde relevam nomes como Lemos Coelho, Duarte Pacheco Pereira, André Alvares d'Almada, André Donelha, Valentim Fernandes, entre outros, a que se podem adicionar leituras adicionais como a "Crónica da Guiné" de Zurara. Cadamosto não esconde ao que vem, quer fazer fortuna, procura ouro e comércio lucrativo. Põe-se ao serviço do Infante D. Henrique e aceita o mote de ir mais avante. Mas a sua narrativa é colorida, vivacíssima, revela um homem experiente e não só nas coisas do marear e comerciar. Sabe ver e comentar, é extremamente feliz nos retratos que nos deixa dos homens pardos e dos homens negros. Os historiadores apontam-lhe lacunas e incorreções, o que parece ser verdade, mas não desmerece do perfil das gentes, da sua economia, práticas religiosas. Sabe que está numa das fronteiras do império do Mali e que aqueles soberanos africanos são profundamente déspotas, tratam-se como semideuses. Todos temos a ganhar em conhecer as navegações deste veneziano que depois da morte do Infante ainda se coroou de êxitos entre Veneza, a Dalmácia e Alexandria.

Um abraço do
Mário


Viagens de Luís de Cadamosto e Pedro de Sintra:
Relatos incontornáveis e de alto nível da literatura de viagens (2)


Beja Santos

De Cadamosto e Pedro de Sintra já aqui se fez larga referência ao trabalho do professor Damião Peres na Academia das Ciências, em 1948. Procura-se agora cotejar alguns aspetos essenciais de uma obra de divulgação que estranhamente não se reeditou, intitulada “Viagens”, de Luís de Cadamosto, introdução e notas de Augusto Reis Machado, na Biblioteca das Grandes Viagens, Portugália Editora, sem data. Esta obra de divulgação foi extraída da Coleção de Notícias para a História e Geografia das Nações Ultramarinas que vivem nos Domínios Portugueses, tomo organizado pelo académico Sebastião Francisco de Mendo Trigoso (1773-1821). Figura nas anteriores edições com o título de “Navegações”.

Estamos ainda na primeira viagem, passou-se o Cabo Branco, foram referenciados os Azenegues e chegou-se ao Senegal, cujas caraterísticas de produção Cadamosto comenta do seguinte modo: “Neste reino do Senegal, e dele para diante, em terra nenhuma da negraria, nasce trigo, nem centeio, nem cevada, nem aveia, nem uvas, e isto porque o país é tão quente que não tem chuvas nove meses do ano; e por causa deste grande calor não se pode dar o trigo, tendo experimentado semeá-lo daquele que nós os cristãos lhe temos levado, porque o trigo quer terra temperada e muitas vezes chuva; e assim o seu pão é feito de milho de diversas castas, têm favas e feijões que nascem e se criam os mais belos e grandes do mundo; o feijão é grosso como uma avelã grande das nossas cultivadas. A fava é larga, chata e vermelha, de uma cor viva. Lavram as terras, semeiam e colhem no tempo de três meses. São péssimos lavradores e homens que se não querem cansar a semear, senão quando lhes basta para comer todo o ano escassamente”.

É largo nos elogios aos prodígios da natureza: “Têm frutos de diversas qualidades semelhantes aos nossos, e ainda que não sejam cultivados como aqueles, são bons; e eles os comem sendo de floresta, isto é: silvestres e não fechados em pomares; penso, porém que se os tratassem como nós fazemos e cultivassem, criariam frutos bons e perfeitos, porque a qualidade do ar e do terreno é boa, sendo todo o país de campina capaz para produzir. Há bons pastos com infinitas árvores grandes e belíssimas, mas por nós não conhecidas, e também muitos lagos de água doce, não muito grandes mas profundíssimos”. Cadamosto é um observador atentíssimo, sente-se atraído pela fauna e deixa-nos um relato admirável sobre os elefantes, mas não esquece as aves, veio para fazer negócio e tece comentários sobre o funcionamento dos mercados, nunca deixando de referir que o ouro é pouco, que tudo se permuta, dinheiro é coisa que não existe.

Um dos pontos altos desta literatura de viagens é vê-lo a descrever os seres humanos:
“As mulheres deste país são muito jucundas e alegres, cantam e bailam de bom grado, principalmente as moças, mas não bailam senão à noite à claridade da lua. De muitas das nossas coisas se maravilham estes negros, principalmente do modo de ferir das nossas bestas e ainda mais das bombardas, porque alguns negros vieram ao navio e fazendo-lhes eu disparar uma bombarda podia matar mais de cem homens de uma vez, com o que se maravilharam dizendo que era coisa do diabo. Também se maravilhavam do som de uma dessas gaitas de foles que eu fiz tocar ao marinheiro meu, e vendo-a vestida de cores e com franjas à roda pensavam que era algum animal vivo que assim cantava com diversas vozes (…). Também se admiravam de ver arder de noite uma vela sobre um castiçal, pois naquele país não sabem fazer outra luz senão a do fogo ordinário e vendo uma vela acesa lhes pareceu uma invenção bela, e porque aqui se acha mel, e por conseguinte cera, logo que têm o dito mel o chupam com a boca e deitam a cera fora. Pelo que tendo eu comprado a um deles uns poucos favos lhes ensinei como se extraía o mel da cera; e depois lhes perguntei se sabiam que coisa era aquela que restava do favo, ao que me responderam que era coisa que não valia nada. Então na sua presença lhes fiz algumas velas e lhas acendi, vendo o que ficaram muito admirados, dizendo que todo o saber das coisas estava em nós, os cristãos. Neste país não se usam instrumentos músicos senão de duas qualidades, uns são atabales mouriscos, os outros uma espécie de violetas, daquelas que nós tocamos com arco, mas não têm senão duas cordas e tocam-na com um dedo de um modo simples grosseiro e que nada vale”.

Cadamosto relata o seu encontro com António de Nola, genovês, pois despediu-se do Sr. Budomel, passou cabo Verde, queria descobrir países novos e provar a sua ventura, dirigiu-se ao reino da Gâmbia, constava-lhe que havia ali grande quantidade de ouro. É em pleno mar que se encontra com António de Nola e com outra embarcação com alguns escudeiros do infante D. Henrique. E dá-nos um pequeno relato deste cabo Verde:
“Chamava-se assim porque os primeiros que o descobriram, que foram portugueses, em 1445, o acharam todo verde pelas grandes árvores que ali se conservam viçosas; por todo o ano, e por esta causa, lhe foi posto o sobredito nome assim como o de cabo Branco àquele de que antes falámos, que foi achado todo arenoso e branco. Este cabo é muito belo e tem sobre a ponta duas lombadas, isto é, dois montículos, e mete-se bastante pelo mar dentro; sobre ele e à roda estão muitas habitações de negros e casas de palha todas juntas à marinha e à vista dos que passam; e estes negros são ainda do sobredito reino do Senegal”.

E não menos interessante é o que ele nos vai descrever sobre os negros Barbacinos e Serreres, negros mas não sujeitos ao rei do Senegal. Aqui a hierarquia social é outra, não querem ter rei e especula: “talvez para que não lhes sejam tiradas as mulheres e filhos e vendidos por escravos, como fazem os reis e senhores dos outros países negros”. E dá-nos um retrato detalhado: “São grandes idólatras, não têm religião alguma e são homens cruelíssimos. Usam de arco com frechas, mais do que nenhuma outra arma, e atiram com elas envenenadas de modo que, tocando a carne, logo que fazem sangue, morre o ferido imediatamente. São negríssimos e bem encorpados; o seu país é muito cheio de bosques e abundante de lagos e de água; por isso se têm por muito seguros porque nele se não pode entrar senão por paços estreitos, e assim não temem nenhum senhor circunvizinho”. E partem para a Gâmbia, veremos a seguir o que ele nos narra até regressar a Lisboa, teremos depois a segunda viagem.

(continua)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 27 de Maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23299: Notas de leitura (1449): “Viagens”, de Luís de Cadamosto, introdução e notas de Augusto Reis Machado, na Biblioteca das Grandes Viagens, Portugália Editora, sem data (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 27 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23299: Notas de leitura (1449): “Viagens”, de Luís de Cadamosto, introdução e notas de Augusto Reis Machado, na Biblioteca das Grandes Viagens, Portugália Editora, sem data (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
Luís de Cadamosto, veneziano, pôs-se ao serviço do Infante D. Henrique entre 1455 até 1457. Falecido o Infante, regressou a Veneza, terá altas incumbências, na Dalmácia, no comando de galeras armadas para o comércio de Alexandria. Este vívido relato, cheio de sol e pormenor, dá-nos a conhecer (ou a confirmar) o que era o projeto henriquino, o que se pretendia conhecer, Cadamosto vai chegar à costa da Senegâmbia e tudo quanto ele escreve supre lacunas sobre a crónica da Guiné de Zurara. Os historiadores puseram objeções ao rigor do que ele escreve, mas inquestionavelmente as viagens são uma obra histórica. É incompreensível como obras de divulgação como esta não chegam às mãos das novas gerações, com ortografia atualizada é inegável tratar-se de um documento vibrante e que nos faz entender o conhecimento da costa africana entre territórios povoados de árabes até se entrar na terra dos negros, será aí que se irá firmar a Senegâmbia e dentro dela a Senegâmbia Portuguesa.

Um abraço do
Mário



Viagens de Luís de Cadamosto e Pedro de Sintra:
Relatos incontornáveis e de alto nível da literatura de viagens (1)


Beja Santos

De Cadamosto e Pedro de Sintra já aqui se fez larga referência ao trabalho do professor Damião Peres na Academia das Ciências, em 1948. Procura-se agora cotejar alguns aspetos essenciais de uma obra de divulgação que estranhamente não se reeditou, intitulada “Viagens”, de Luís de Cadamosto, introdução e notas de Augusto Reis Machado, na Biblioteca das Grandes Viagens, Portugália Editora, sem data. Esta obra de divulgação foi extraída da Coleção de Notícias para a História e Geografia das Nações Ultramarinas que vivem nos Domínios Portugueses, tomo organizado pelo académico Sebastião Francisco de Mendo Trigoso (1773-1821). Figura nas anteriores edições com o título de “Navegações”. Estas viagens foram publicadas em Itália pela primeira vez em 1507. Tornaram-se numa peça fundamental da historiografia dos Descobrimentos para se falar do projeto henriquino com a propriedade de lhe conhecer os fundamentos e de revelar um viajante de primeira grandeza, capaz de registar fauna e flora, usos e costumes, o poder dos reinos africanos, o que se comerciava. Acresce a fluidez que timbra toda a narrativa de Cadamosto, do princípio ao fim. Saiu de Veneza, atravessou Gibraltar resolvido a navegar no mar Oceano, encontrou-se com o Infante D. Henrique, dá conta dos sonhos do príncipe, dos seus propósitos em avançar mais avante.

Encontrou-se com o Infante no Algarve, numa povoação chamada Raposeira, ali se acordou que ele iria viajar explorando a costa africana:
“Tendo eu ficado no Cabo de S. Vicente, o Senhor Infante mostrou com isso grande prazer e me fez muito agasalho e mandou armar uma caravela nova, de lote de 45 toneladas, da qual era Patrão um Vicente Dias, natural de Lagos, que é uma povoação a 16 milhas de distância do Cabo S. Vicente. E abastecido de todo o necessário, partimos do sobredito Cabo de S. Vicente aos 22 de março de 1445, o nosso rumo para a ilha da Madeira”. Fala das Canárias, de Porto Santo, da Madeira, e depois rumam do Cabo Branco da Etiópia (não esquecer que era conceito da época de que se estava a avançar para a Baixa Etiópia ou Etiópia Menor, e quando se chegou ao rio Senegal pensava-se, por falta de informação geográfica rigorosa, que se estava nas proximidades dos rios Níger e Nilo). Enquanto se percorre à distância terras dos mouros, a quem ele chama a costa da Barbaria, e todo o Sara Ocidental, chega-se aos negros da Etiópia, passa-se pelo Golfo de Arguim e informa-se que o Infante tinha feito na ilha de Arguim um contrato com o qual ninguém pudesse entrar naquele golfo para traficar com os árabes, salvo aqueles que entrassem no contrato e teriam então direito de comerciar na feitoria, economia de troca, quem chegava recebia negros como escravos e recebia panos, tecidos, prata e trigo. Tem algo de fantástico o que os Azenegues (berberes) julgaram ser os Portugueses: “Posso certificar que quando viram as primeiras velas creram que fossem pássaros grandes com asas brancas que voassem, alguns deles pensaram que fossem peixes, outros diziam que eram fantasmas que andavam de noite. E diziam isto, porque, às vezes, no princípio da noite eram assaltados em um lugar e naquela mesma noite pela madrugada acontecia o mesmo cem milhas adiante pela costa, outras vezes mais atrás, segundo ordenavam os das caravelas; e diziam entre si: se fossem criaturas humanas como poderiam fazer tanto caminho em uma noite quanto nós não poderíamos andar em três dias?”.

Iniciam-se as atividades comerciais e fala-se no império dos negros, menciona-se Tombuctu. Antes de chegar à terra dos negros, e sempre falando da Barbaria ou terra de alarves, diz que naquela terra não se bate moeda alguma, todo o tráfico é trocar coisa por coisa ou duas coisas por uma, são pardos. Passado o Cabo Branco, navegou-se à vista até ao rio do Senegal, passado o deserto chegou-se ao país dos negros, a primeira descrição daquela região lacustre é como se tivessem chegado a um paraíso terrestre e então Luís de Cadamosto refere o reino do Senegal e os seus limites:
“O primeiro reino de negros da Baixa Etiópia é este que fica sobre o rio do Senegal. Os povos que habitam as suas margens chamam-se Jalofos, e toda esta costa e país acima declarados é terra baixa até Cabo Verde (entenda-se, ponto continental, não tem nada a ver com o arquipélago) que é a terra mais alta de toda aquela costa. Segundo eu pude perceber, este reino do Senegal confina pela terra da parte do Sul com o reino da Gâmbia, do poente com o mar Oceano e do nascente com o reino acima dito, que extrema os amulatados destes primeiros negros”.

É interessantíssima a sua narrativa sobre a eleição dos reis do Senegal, costumes, família, crenças, os seus trajes, as guerras que faziam e as armas que utilizavam. E assim se chegou ao país de Budomel, “povoação distante do rio Senegal coisa de oitocentas milhas pela costa, a qual nesta extensão é toda baixa e sem montes. Este nome Budomel é título do senhor e não nome próprio do lugar”. A região já fora visitada por outros navegadores, Cadamosto tinha consigo alguns cavalos de Espanha, “que eram boa mercadoria no país dos negros, não obstante de ter muitas outras coisas, como panos de lã e peças de seda mourisca, e outras mercadorias, determinei provar com ele (Budomel) a minha fortuna”. Budomel veio ao seu encontro, recebeu-o com grande festa, Cadamosto deu-lhe os cavalos e foi convidado a ir a casa de Budomel. Outra narrativa espantosa, a estadia em terras do senhor Budomel e do seu neto chamado Bisboror.

Ficamos a conhecer um cerimonial do tipo de Rei Sol, Budomel é praticamente um Rei Deus: “Homem algum teria atrevimento de vir falar-lhe sem que primeiro se tivesse despido todo, salvo as bragas de cor, que conservavam, estando daquela maneira um bom espaço de tempo, deitando areia para cima de si; depois não se tornavam a levantar, mas, arrastando-se com os joelhos e pernas pelo chão, se iam avizinhando ao senhor, e, quando estavam a coisa de dois passos de distância paravam para falar e dizer o seu negócio, não cessando entretanto de deitar areia para trás, com a cabeça baixa em sinal de grandessíssimo acatamento”. E depois deste espetáculo descreve o modo terrífico como comem: “Comem no chão bestialmente, sem nenhum preparo: e com eles não come ninguém, salvo aqueles mouros que lhe ensinam a lei e um ou dois negros dos principais. Toda a gente miúda come a dez ou doze juntos, põem um grande cesto de carnes no meio, e todos metem a mão dentro; comem muito pouco de cada vez, porém muitas vezes, isto é: quatro ou cinco cada dia”.

Carta náutica de Lázaro Luís, 1563, Academia das Ciências, Lisboa.

(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 23 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23285: Notas de leitura (1448): “Guerra Colonial – Uma História por Contar”, trabalho dos alunos do Externato Infante D. Henrique (Ruílhe-Braga) (Mário Beja Santos)

sábado, 14 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23262: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXXIII: Parque Nacional da Mesa Verde, Colorado, EUA, 2005





EUA, Colorado, Parque Nacional da Mesa Verde



Parque Nacional da Mesa Verde, Colorado, EUA, 2005

 por António Graça de Abreu (*)


[ (i) Docente universitário reformado, escritor, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); (ii) natural do Porto, vive em Cascais; (iii) autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); (iv) ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74; (v) é membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem 308 referências no blogue; (vi) texto e fotos enviados em 5/4/2022 ]



Estou no Colorado, e o gosto que isto me dá. Desde pequenino a olhar para esta América, dos filmes, do Bufalo Bill, do Daniel Boone, dos índios sioux e do Sitting Bull, do Mark Twain e dos Tom Sawyer e Huckleberry Finn, lá nas margens do rio Mississipi. E da Becky, a namoradinha do Tom, de quem eu tanto gostava. Depois, na faculdade, na cadeira de Literatura Norte-Americana, a ler, de empreitada, romance após romance os grandes escritores norte-americanos, Poe, Melville, Steinbeck, Faulkner, Hemingway. Era bom aluno, tinha boas notas.

Agora, 2005, o Colorado, as Montanhas Rochosas, a carícia no ouro do sol poente, pássaros escrevem poemas nas nuvens brancas, flores saúdam os peixes nas águas dos rios, um buda passeia descalço ao luar.

Em Mesa Verde, imensa a terra, os barrancos rasgando a penedia, a brisa dos quatro horizontes. Não há muitos anos aconteceu por aqui um pavoroso incêndio, ainda troncos calcinados espalhados nas encostas do vazio, casas de pedra abrigadas nas reentrâncias da falésia. Depois do dilúvio das línguas de fogo, por todo o lado a floresta renasce. Imperturbáveis, entre os arbustos ou nos ramos das árvores, esquilos dançam.
____________

Nota do editor:

terça-feira, 5 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23143: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXXI: Itália, Florença, 2015





Florença (Firenze, em italiano) e os seus tesouros artísticos mundialmente :conhecidos  a Ponte Vecchio; o Nascimento de Vénus, de Boticcelli; a Vénus de Urbino, de Ticiano; o David, de Michelangelo



Florença, Itália, 2015

por António Graça de Abreu (*)


[Docente universitário reformado,  escritor, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangu
e e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74; é membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem 307 referências no blogue; texto e fotos enviados em 2/4/2022; as imagens presumimos que sejam retiradas da Net, e sejam do domínio público, ou se trate de postais com reproduções artísticas, compradas pelo autor em Florença]


Até morrer, todos os anos hei-de ir a Itália.

António Mega Ferreira


Três vezes em Florença, a última em 2015, com Dante Alighieri e Nicolau Maquiavel por perto, neste burgo toscano onde “nostro intelleto si profunda tanto” [1] que é infinita a inteligência e o espanto.

Circunvoluções no interior de palácios da cidade sombreada a flores. O exuberante pulsar das antigas ruas, as torres, as duas margens do rio Arno unidas pelo cintilar de correntes de prata, tudo vecchio, como a ponte dos ourives, respirando restos da cinza depurada pelos séculos.

Nos Ufizzi, escritórios de outrora, a Vénus de Urbino, de Ticiano, escandalosa e púdica, mais maravilhas de Leonardo da Vinci. E Boticelli, Caravaggio, Michelangelo, Rafael, e tantos mais.

Do pincel de Boticelli, a deusa Vénus, mulher recatada e triste, abre-se numa concha, diante das mil maldades do mundo. O feminino perfeito, a mão púdica acariciando o seio pequeno, a outra mão no sexo enovelando o esplendor de cabelos de oiro.

Num túmulo rendilhado em São Miniato, um cardeal português, um tal D. Jaime, filho do infante D. Pedro, tão jovem e tão precocemente falecido. Cá fora, a reverência dos ciprestes e das flores do azevinho. Ao longe, a cúpula de Santa Maria del Fiore suspensa no céu azul.

O David gigante, de Miguel Ângelo, em cópia na Piazza della Signoria, o original na Academia, um corpo poderoso e claro, cinco metros de perfeição em mármore de Carrara. Em frente de mim, duas monjas clarissas ajoelham diante do esbelto David, nu, branco, imaculado, os músculos, as veias, o sexo, o suave e violento retesar da energia, a arte do sagrado e da humana poesia. A luz e a harmonia.

Florença, a Toscânia pujante, o ondular dos campos, searas e olivais. Uma taça de chianti, vino nobile ao cair o dia, enobrece a estadia. 

[1] Dante Alighieri, La Divina Commedia, Il Paradiso, I, verso 8.

__________

terça-feira, 29 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23123: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXX: Berlengas, Peniche, Portugal, junho de 2019,


Foto nº 1 > Berlengas, Peniche: forte de São João Baptista


Foto nº 2 > Berlengas, Peniche: bairro dos pescadores


Foto nº 3 > Guiné, região do Cacheu , Canchungo, CAOP 1 > O alf mil António Graça de Abreu (1)


Foto nº 4 > Guiné, região do Cacheu , Canchungo, CAOP 1 > c. 1972 > O alf mil António Graça de Abreu (2)

Fotos (e legenda): © António Graça de Abreu (2021) Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Berlengas, Peniche, Portugal, junho de 2019

por António Graça de Abreu


[Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); é membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de três centenas de referências no blogue; texto e fotos  enviados em 12/7/2021]

Nos anos que perduram nas circunflexões da memória, recordo, em 1972, o alferes Marques, adjunto do major Pimentel da Fonseca -- o homem de Operações, no CAOP 1 ( Comando de Agrupamento Operacional nº 1) --, meu camarada de armas e companheiro de quarto em Teixeira Pinto, Canchungo, Guiné-Bissau.

O Marques, então quase com dois anos de guerra dura, acordava com inusitada frequência, a meio da noite e, estremunhado, tonto de sono, encharcado em suor, do seu canto, do outro lado do quarto, lançava umas tantas barbaridades. Numa dessas noites, disse mais ou menos o seguinte: “A integridade da Pátria, lutar até à morte pelas Berlengas. Essas, sim, serão sempre portuguesas.” E, exausto, com sonhos raiados a vermelho, pairando por sangrentas bolanhas, o tarrafo e atlânticas proezas, o alferes Marques adormecia outra vez.

Só aos setenta e dois anos de idade, cinco décadas depois da Guiné, em Junho de 2019, atravessei o pedaço de mar entre Peniche e as Berlengas. Águas alterosas, uma lancha grande de pescadores, agora transporte turístico, e aí vamos rompendo as ondas.

Bonita a ilha, o forte de São João Baptista envolto em maresia, a tresandar de humidade. O trilho, subindo para o farol, a pedra da ilha rasgada a meio pela natureza. Gaivotas, cagarras, lagartixas por todo o lado. 

Desço pelo caminho cimentado até aos socalcos do parque de campismo. Os olhos caem no Carreiro do Mosteiro, uma tira de areia aberta para o mar. Barquinhos, gentes no banho, a água muito fria. Cansado, abanco no restaurante. Sardinhas assadas. Chegam sete peixes a saltitar na travessa, mais um vinho verde fresquinho, o “tal da Lixa”, para olear a goela e embebedar os lombos das sardinhas, no estômago. 

Agora, um velho combatente, ancorado em cima do mar, num enorme rochedo mirando Peniche, lembrei-me do alferes Marques, da Guiné-Bissau, da “ditosa pátria minha amada”. Sardinhas, mar azul e Portugal.
_________

Nota do editor:

Último poste da série > 13 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23075: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXIX: Ìndia, Cochim, novembro de 2016