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quinta-feira, 24 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22313: FAP (124): Memórias de lugares da guerra... A Base Aérea 12 de Bissalanca (Mário Santos, ex-1.º Cabo Especialista MMA)



1. Em mensagem de 22 de Junho de 2021, o nosso camarada Mário Santos (ex-1.º Cabo Especialista MMA da BA 12, Bissalanca, 1967/69) fala-nos das suas memórias na BA 12 de Bissalanca


MEMÓRIAS DE LUGARES DA GUERRA...
A BASE AÉREA 12 - BISSALANCA


Embora tenha noção de que tudo isto é parte de um passado longínquo, ele será sempre parte intrínseca de todos nós e da nossa história, que perdurará não só enquanto vivermos, mas também para além da vida, consubstanciado nos nossos contos e narrativas. Esse passado sofrido e glorioso, que são pedaços das nossas vidas....

Foi assim, historiando um pouco... que decidi narrar-vos o início atribulado da minha viagem para a Guiné; recordo-me que na escala pela Ilha do Sal, o C-54 H - Skymaster parecia uma lata velha, com o pessoal assustado com a turbulência, a pista transformada em lago e depois o dilúvio, numa terra onde há muitos meses não chovia uma gota.

Ainda recordo o banho de chuveiro no "Hotel abarracado" ... de água salgada... e depois, o arrastar de camas a tentar fugir das goteiras que caíam dos tectos esburacados. Acabei na rua em cuecas a tirar do corpo a água salgada com água da chuva... e a fugir dos percevejos que se passeavam pelos lençóis... e que tinha visto pela primeira vez na vida.

Depois, já no dia seguinte na BA12, quando abriram a porta do avião, aquela sensação de ar rarefeito, desagradávell quente e húmido, bafiento, pegajoso... e o pensamento de que tínhamos chegado a um local amaldiçoado... e tudo isto, aos 18 anos, ainda com a personalidade e experiências de vida apenas na fase de formação.

Alguns dias depois, já na linha da frente da Esquadra de Fiat G-91 onde fui colocado, a famosa 121... tive o bizarro conhecimento de que vários camaradas de outras Esquadras que tinham sido companheiros de Liceu, Escolas Comerciais e Industriais, alguns até colegas de turma nos mesmos estabelecimentos de ensino, eram, pasme-se: Furriéis, Sargentos e Alferes Milicianos.
Alguns de nós com habilitações académicas para Sargentos ou Oficiais, éramos simples 1.°s Cabos... Especialistas...

O clima, quente e húmido, a má qualidade da água, comida e sofriveis instalações, completaram o quadro de tudo com que não sonhávamos ou desejávamos...

As grandes amizades, companheirismo, convivência, solidariedade, cumplicidade, começaram a tomar conta de todos nós... Começámos a perceber que nos 2 anos seguintes, estes eram os valores a que nos teríamos de agarrar para conseguirmos passar pela missão o melhor possível...

A responsabilidade e o espírito de missão foi-se enraizando e pouco tempo passado, já faziam parte do grupo. Aos poucos, fomo-nos familiarizando também com os nossos chefes, que nos introduziram nos procedimentos técnicos de manutenção e apoio de voo. Inspecções, segurança, procedimentos pré e pós voo...

A vida na Guiné não era para ninguém uma pera-doce... contudo a nossa irreverência era uma arma poderosa.

As linhas da frente da BA12, em placa de cimento, chegavam fácilmente por volta do meio-dia, bem acima dos 40° graus centígrados... Não havia sombras, água... e o protector solar ainda não era uma opção.

Eu, e os meus camaradas da Linha dos G-91, tínhamos todos terminado o Liceu ou Escola Técnica e este era o nossa primeira actividade... como especialistas FAP. Todos entre os 18 e 20 anos de idade, com excepção do Chefe de Linha, o 1.° Cabo Especialista R/D Fernando Vilela, que tinha sido nomeado a partir da Linha da Frente dos T-33 na BA2, e era o único já com alguma experiência na manutenção e apoio de voo. Todos os Sargentos, tal como outros 1.°s Cabos mais antigos, permaneciam no "conforto" do hangar onde se efectuavam as inspecções programadas, ou se resolviam reparações mais complexas.

A expectativa dos primeiros voos era enorme, tal como a curiosidade em conhecermos os nossos Aviadores a quem nos dois anos seguintes iríamos dar a nossa imprescindível colaboração...
Não houve qualquer apresentação formal, chegavam de Jeep, vindos das Esquadras, cumprimentavam, fazíamos a inspecção prévia juntos, retirando as cavilhas de segurança do Trem de aterragem, subíamos a escada, eram amarrados à Martin Baker e depois de retiradas as seguranças, estavam prontos para partir...

Foi assim que as minhas rotinas diárias, no G-91, com o Ten Cor Costa Gomes, Capitão Vasquez, Capitão Costa Pereira, Tenentes Vasconcelos, Nico, Balacó e Neves se iniciaram no último trimestre de 1967. Mais tarde, com o decorrer da Comissão, os mais antigos, como o Capitão Costa Pereira e Tenente Vasconcelos, foram respectivamente rendidos pelo Capitão Amílcar Barbosa e Tenente Roxo da Cruz, tal como o Coronel Manuel Diogo Neto, futuro Comandante da Zona Aérea Cabo Verde/Guiné, (CZACVG).

Como tudo na vida, todos nós desenvolvemos personalidades, maneiras de ser e actuar diferentes. Foi assim também relativamente aos nossos Pilotos da Esquadra de Tigres. Havia a classe mais extrovertida e faladora, assim como os economizadoras da palavra, que só diziam o que era absolutamente indispensável...

Os G-91 eram entregues, diáriamente,  ao mesmo Mecânico, até por uma questão de responsabilização... Já com os Pilotos creio ser sido diferente, uma vez que chegavam do GO (Grupo Operacional) com missões já atribuídas...

Em boa verdade, começaram a haver preferências de quem dava saída a quem... Nenhum de nós gostava de apanhar o nosso Ten Cor, era antipático, pouco comunicativo e com uma postura de quem pertencia a um outro mundo...

Depois, havia também preconceito com alguns dos Tenentes... Porque eram empertigados, oriundos da AM, um porque se dizia que era de sangue azul e nem sequer olhava a direito para nenhum de nós... outro porque tratava todos os subordinados com afastamento e até algum desprezo... Parecia terem esquecido que estávamos todos envolvidos numa guerra terrível e de que necessitávamos da solidariedade e cooperação de todos. Eram, todavia todos bons Pilotos, apesar da inexistência da experiência de combate.

Eu, cá por mim, tinha preferência por um par de jovens Tenentes, que tinham chegado à Base no mesmo dia que eu, e a quem podia pedir para fazer umas piruetas, ou uma rapada, caso ainda chegássem com algum JP4 no Fuel Collect Tank... (reserva).


Verificação do Pylon

Bissalanca 1968

Bissalanca 1968

No final, direi que foi com grande orgulho e espírito de missão que contribuí para que a actuação da Esquadra de Intervenção Tigres de Bissalanca tivesse sido um sucesso e tivesse contribuído para a protecção dos nossos camaradas do Exército e Marinha. No final, numa guerra assimétrica, estávamos todos dependentes uns dos outros. Quem nos dera ter o poder de fazer rewind ao relógio da vida, e voltarmos todos aos bons tempos da nossa meninice e juventude...

Um lamento sincero por todos os que não foram bafejados pela sorte, e não conseguiram regressar... ou voltaram fisicamente diminuídos.

Grande abraço
Mário Santos

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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE MARÇO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22015: FAP (123): Em louvor do ex-fur mil pil av António Galinha Dias e da tenente enfermeira paraquedista Maria Zulmira André Pereira (1931-2010) que fizeram a evacuação Ypsilon do cap cubano Pedro Rodriguez Peralta, em 18 de novembro de 1969, na sequência da Op Jove (Jorge Narciso / Maria Arminda)

segunda-feira, 15 de março de 2021

Guiné 61/74 - P22008: Notas de leitura (1346): Paparratos e João Pekoff: as criaturas e o criador, J. Pardete Ferreira - Parte III: Rui Angel, aliás, Pedro Rodriguez Peralta, capitão do exército cubano, o mais famoso prisioneiro da guerra colonial... Aqui tratado com humor desconcertante (e humanidade) (Luís Graça)


Citação:
(1974), "Diário de Lisboa", nº 18563, Ano 54, Segunda, 16 de Setembro de 1974, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_4810 (2021-3-15)


Capa do livro

FERREIRA, José Pardete - O paparratos : novas crónicas da Guiné : 1969-1971. Lisboa : Prefácio, D.L. 2004. 169 p., [12] p. il. : il. ; 24 cm. (História militar. Memórias de guerra). ISBN 972-8816-27-8.

1. No romance (ou melhor, livro de memórias, ficcionado) "O Paparratos", J. Pardete Ferreira (*),  há  um capítulo, o XXI (pp. 141-146) dedicado a "O Cubano", o capitão Pedro Rodriguez Peralta, a quem o autor chama Rui Angel:

(...) Era pequeno de estatura, não ultrapassando o metro e sessenta e cinco, magro e seco, com a pele muiti branca e polvilhada de microscópicas sardas, ruivo de barba completa, rala e ausente nalguns locais" (p. 141)-

Não sabemos se a descrição fisionómica está inteiramente correta, mas é feita por um dos cirurgiões que o operou no HM 241, o autor (*), sendo o cirurgião principal o dr. Carlos Ferreira Ribeiro, já falecido (, no livro, o dr. Celso Rosa, ortopedista,  p. 143)

Recorde-se o que acontecera antes:   capitão do Exército Cubano, Pedro Rodriguez Peralta, de 32 anos (, nascido por volta de 1937), instrutor militar ao serviço do PAIGC, é gravemente ferido a 18 de Novembro de 1969, no corredor de Guileje, junto à fronteira com a Guiné-Conacri, no decurso da Op Jove, conduzida por forças pára-quedistas do BCP 12 e destinada a capturar o próprio 'Nino' Vieira.


2. Demos aqui a palavra ao(s) autor(es) da página do Facebook, Paraquedistas não são arremachos, 18 de novembro de 2018:

(...) A "Operação Jove" tinha sido cuidadosamente planeada. Dias antes da partida para a operação, um avião da FAP levando a bordo o cmdt do BCP , Tenente Coronel Fausto Marques e o cmdt da Companhia [, CCP 122,] João de Bessa, observam a zona e o melhor local para a emboscada à coluna militar do PAIGC.

De forma a cumprir as ordens do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, às primeiras horas de 16 de Novembro de 1969, 40 militares da Companhia 122 , reforçados com 9 voluntários da 121, embarcam em 10 Alouette para o Corredor de Guileje, com a informação que a coluna inimiga traria 'Nino' Vieira, ao tempo, o mítico Comandante da Frente-Sul.

Os 50 paraquedistas levam rações de combate para três dias. Caminham a pé um dia e uma noite, evitando os trilhos para não serem detectados, e progridem debaixo de chuva por entre mata densa. Cerca das 10 horas da manhã de 18 de Novembro, os praquedistas chegam ao ponto da emboscada.

Ainda não completamente posicionados, apercebem-se de vozes ao longe. Um pequeno grupo composto pelo Capitão Bessa, Sargentos Neves Pereira, Mota e Valentim Gomes, 1ºs Cabos Ragageles, Carvalho e Rodrigues e Soldado Doce, aproximam-se da picada.

De repente foram ouvidas vozes de dois individuos, um negro e um branco que seguiam em direção à fronteira. O capitão Bessa dá sinal de fogo ao apontador da MG-42, 1º Cabo Ragageles. A primeira rajada abateu o guerrilheiro negro e feriu o branco. Iniciada a perseguição, com meia dúzia de páraquedistas, e tendo por base o rasto de sangue, é consumada a captura.

Encontram-no caído numa poça de sangue. Tem um braço quase arrancado, perdeu muito sangue, está entre a vida e a morte; o Sargento Vítor Francisco rápidamente trata-lhe dos ferimentos. Veio a saber-se que se chamava Pedro Rodriguez Peralta, Capitão do exército cubano. (...)

Enviado para o HM 241 (Bissau) e depois para Lisboa, foi devidamente tratado pelas autoridades portuguesas. Foi julgado em Tribunal Militar e condenado em 2 anos e 2 meses de prisão. 

Depois do 25 de Abril de 1974, o capitão Peralta foi libertado. Aliás, houve manifestações (do MRPP e outras organizações da chamada extrema revolucionária) a favor da sua libertação incondicional. Os americanos queriam trocá-lo por um alegado espião preso em Cuba...

Peralta, que fez amigos em Portugal, pode ser visto aqui numa reportagem da RTP, no aeroporto de Lisboa, em 15 de setembro de 1974, sempre sorridente e amável na presença entre outros do seu advogado, Manuel João da Palma Carlos (1915-2001), momentos antes de embarcar para Havana onde foi recebido como herói... 

Antes do 25 de Abril, era considerado um "preso político", o governo de então recusava-se a tratá-lo ocmo "prisioneiro de guerra", negando haver uma guerra na Guiné. Depois do 25 de Abril, mudou o seu estatuto: passaria a ser "prisioneiro de guerra", não ficando abrangido pela amnistia aos presos políticos... E só foi libertado, em 15 de setembro de 1974,  após a entrega, pelo PAIGC, dos "prisioneiros de guerra" portugueses, entre os quais o nosso saudoso António Batista, o "morto-vivo".

Sabe-se que, em 2008, com o posto de coronel reformado, pertencia ao Comité Central do Partido Comunista Cubano. Era seguramente o mais célebre dos 437 combatentes que, segundo o regime de Havana, terão combatido, no TO da Guiné, nas fileiras do PAIGC, entre 1966 e 1974 (Dos quais terão morrido 9 ou 17, conforme  as duas fontes cubanas oficiosas, já aqui citadas no nosso blogue).

3. Na recriação desta cena da captura do cap Peralta, o autor de "O Paparratos" diz que o "Rui Angel" [leia-se Pedro Peralta] estava com uma crise de paludismo (p. 142)  quando os homens da Companhia de Caçadores Paraquedistas nº 1221 [CCP 121 e 122], comandada  pelo cap pára "Braga"[leia-se: Bessa].

Não foi uma rajada de G3, mas de M42, "quase à queima-roupa, ia desfazendo o cotovelo direitodo branco, provocando-lhe também uma ferida no dorso, junto à omoplata"...Terá sido o cap Braga [Bessa] que lhe salvou o braço, em risco de ser amputado, gritando: "Se for para cortar, os médicos lá em Bissau que o façam. Liguem mas é para a Base e peçam uma Y", isto é uma helievacuação Ypsilon (p. 142). 

Assim aconteceu, a enfermeira parquedista que o assistiu até Bissau não foi a Margarida (, nome fictício) mas Zulmira André. Quando chegou ao hospital, a sua situação clínica era grave: "sangrara muito, a tensão arterial não conseguia ultrapassar os cinco milímetros de mercúrio, timha uma ferida no tórax e o antebraço direito estava quase amputado", segundo o relato do alf mil médico adjunto de cirurgião Domingos Lebre[, leia-se, Diamantino Lopes] (p. 143).

Entrado de imediato no Bloco operatório, o alferes mil médico João Pekoff "explorou a ferida torácica, constatando que, felizmente era superficial e apenas interessava as partes moles"... Uma vez que não havia necessidade de intervenção na cavidade, a atenção da equipa voltou-se para o membro esfacelado, "tendo o dr. Celso Rosa [Carlos Ribeiro] tomado o comando das operações, na sua condição de ortopedista" (p. 143)

O Carlos Ribeiro era um cirurgião experiente, em feridas com armas de fogo, tendo feito uma anterior comissão de serviço em Angola: "ortopedista conceituado, depressa equacionou o problema [do Peralat]. Entre a amputação, que se afigurava como natural, e a artrodese do cotovelo, originando para sempre  um ângulo de cerca de noventa graus, a decisão parecia não ser evidente. Sempre valia mais um braço aleijado mas efectivo funcionalmente, do que um coto que, muitas vezes, só serviria para atrapalhar. Os nervos, assim como a artéria e as veias principais sido tinham milagrosamente poupados.O capitão cubano ficaria com uma deficiência, era verdade,  mas manteria o uso do membro... com a condição de a ferida não infectar, possibilidade sempre imprevisível" (p. 144).

E tudo correu bem,com um tirada humorística final do ortopedista:

"Vamos lá ver se este gajo , ao menos, vai fciar com o cotovelo...quanto mais não seja  paar poder fazer um manguito para o cirurgião que o operou". (p. 144).

A crer no testemunho do nosso J. Pardete Ferreira (1941-2021), "ao recobrar da anestesia, o Rui Angel virou de imediato o olhar para o seu lado direito e, naquele misto de medo e de reconhecimento que certamente sentiu,  uma pequena lágrima fugiu lentamente pelo canto dum dos olhos, aliviando-lhe a ansiedade e o receio" (p. 144). Para quem, como ele, que tinha optado pela carreira militar, e que estava na força da vida, era reconfortante saber que lhe tinham salvo o braço...

4. Ainda mais dois ou três apontamentos deliciosos do nosso escritor (**), sobre a estadia do cap Peralta no HM 241:

(i) Por razões de segurança, o enfermo (e prisioneiro) mudou de cama e de enfermaria, mas quem não gostou nada da troca foi um pobre de um alferes miliciano,  com uma perna amputada por um mina A/P, que ficou no lugar do cubano... Lamentava-se ele, e com razão: "Se os gajos [PAIGC] cá vierem, quem lerpa sou eu"... (p. 145)

(ii) O hospital, por causa do prisioneiro famoso, passou a ser assediado pelo pessoal da "inteligência" militar, e simples curiosos que queriam espreitar a "avis rara"... Cabia ao dr. João Pekoff correr com os instrusos e mirones, fazendo cumprir ordens superiores... "Um dia, na conversa usual durante o penso, o João Pekoff pergunou ao Rui Angel como era o Che [Guevara. de resto morto na Bolívia em 1967, tendo sido ambos combatentes na Sierra Maestra]. A resposta não se fez esperar:  "Che, non era médico, era un hombre" (p. 145).

(iii) Entretanto, são recebidas ordens de Lisboa para transferir o Peralta para o HMP... Assim, pela manhã, num daqueles dois dias em que havia avião da TAP, "uma ambulância militar.  com um envergonhado Wolkswagen preto abrindo caminho, saiu do Hospital. O Carocha transportava o Director do Hospital Militar [, que era o dr. Moreira de Figueiro,  no livro, o tenente milciano Mário Falcão], com o alferes do Conselho Administrativo a  a desempenhar as funções de condutor!...

Na ambulância, além do condutor e de dois maqueiros, o Peralta levava como "ama seca"  um primeiro sargento enfermeiro [no livro, João Augusto]. Chegados ao aeroporto, "este pequeno comboio militar foi esconder-se no descampado que constituía o extremo poemte do aeroporto de Bissalanca".

Esta cena é hilariante: 

"Após a aterragem do avião, chegados os passageiros VIP ao hall da aerograre, de imediato disseram aos amigos e familiares aí presentes que, na Ilha do Sal,  timham recebido a indicação de que deveriam integrar a classe turística":... Justificação dada : "Em Bissau todos os lugares de primeira classe iriam ser ocupados por um  Capitão Cubanio, ferido e feito prisioneiro na Guiné"...

E, subitamente, ouve-se, através dos altifalanres,  uma voz feminina, a chamar pelo passageiro VIP: "Atenção, atenção, Pede-se ao passgeiro Rui Angel que se dirija aos Serviços de Saúde"... 

O diretor do HM 241, alarmado, apercebe-se do caricato da situação: toda a gente passava a saber que o avião viajava para Lisboa com um famoso e perigoso capitão cubano... 

À chegada à Lisboa, com a sua "ama seca", foi levado discreta e prontamente para o Hospital Militar da Estrela, sem que ninguém se tenha lembrado de "meter um batedor com girofaro e sirene, a abrir caminho, pelas avenidas e ruas de Lisnoa, da Portela até à Estrela" (p. 145.)

Na realidade, foi escoltado por um pelotão da Polícia Mlitar, comandada pelo alf mil cav Armando  Cerqueira, até à Trafaria (e mais tarde, para o hospital-prisão de Caxias).

Voltaria a Portugal,  creio que em 2009, tendo-se encontrado com os seus antigos "captores", em Lisboa,  em Belém, no Monumento aos Combatentes do Ultramar:  o sargento paraquedista Ragageles (ao tempo 1º Cabo), e o tenente coronel SG / PQ João de Bessa (ao tempo capitão). E ainda se juntaram, na Guiné-Bissau, o João Bessa, o 'Nino' Vieira e o Peralta para reconstituir, "in loco", a emboscada em que o cubano foi ferido e capturado pela tropa portuguesa.


(Continua) (***)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 28 de junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8481: Os nossos médicos (27): Com o Dr. Carlos Ferreira Ribeiro,fui um dos que operou o Cap Cubano Peralta; e com o Dr. João Carlos Azevedo Franco, fui um dos últimos a ver o corpo do malogrado Major Passos Ramos (J. Pardete Ferreira)

(...) Fui para Teixeira Pinto [, para o CAOP] , de DO 27, numa manhã dos primeiros dias de Fevereiro de 1969!

Fui requisitado para Bissau no final de Junho do mesmo ano... (...) O meu cartão [, emitido pelo QG Bissau, com data de 24 de Junho de 1969, ] está assinado pelo Director do HM241, Major Médico Felino de Almeida (falecido em Janeiro do corrente ano).

Com o Dr. Carlos Ferreira Ribeiro, Ortopedista, fui efectivamente eu que operou a ferida da parede torácica do Cap Peralta. (...)

(**) Vd. notas de leitura anteriores:


terça-feira, 14 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21168: Historiografia da presença portuguesa em África (219): Tratados, convenções e autos firmados entre as autoridades portuguesas e os representantes dos povos da Guiné (1828-1918) - Parte II (1856 -1881) (Armando Tavares da Silva)




Guiné > Bolama > c. 1912 > Palácio do Governador [Fonte:  Carlos Pereira,” La Guinée Portugaise”, Lisboa, 1914]


Imagem: cortesia de Armando Tavares



1. Mensagem do nosso grã-tabanqueiro de Armando Tavares da Silva: 

[ foto   à esquerda:  (i) engenheiro, historiador, prof catedrático aposentado da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra; 

(iii) "Prémio Fundação Calouste Gulbenkian, História da Presença de Portugal no Mundo" (, atribuído pelo seu livro “A Presença Portuguesa na Guiné — História Política e Militar — 1878-1926”); 

(iv) presidente da Secção Luís de Camões da Sociedade de Geografia de Lisboa]

Date: domingo, 12/07/2020 à(s) 23:42

Subject: Guiné - Tratados



Caro Luís,
Capa do livro
"A Presença Portuguesa na Guiné:
História Política e Militar: 1878-1926”

 Já várias vezes que tenho visto no blogue a afirmação que pouco se conhecia (e conhece) sobre a Guiné. 

Esta falta de conhecimento poderá levar-nos a interpretações ou juízos errados ou precipitados, os quais podem surgir dentro dos mais variados contextos, e que levem a concluir "que precisamos de mais e melhor investigação historiográfica sobre pontos de contacto comuns entre nós, Portugal e a Guiné".

Ora, os Tratados e Convenções que no decorrer dos tempos foram firmados entre as autoridades portuguesas e os representantes dos povos da Guiné inserem-se precisamente naqueles "pontos de contacto". 

 E é para melhor conhecimento daqueles contactos e melhor conhecimento da evolução histórica da relação estabelecida, que elaborei uma lista (que considero exaustiva) daqueles "Tratados e Convenções". 

São 76 no total e tiveram lugar durante quase um Século (entre 1828 e 1918). 

Segue em baixo a respectiva relação [Parte II, de 1856 a 1881]. Os seus textos estão disponíveis em referências conhecidas, e que poderão ser consultadas por quem se interessar por aprofundar aquele conhecimento.

Com um abraço

Armando Tavares da Silva
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Tratados, convenções e autos firmados entre as autoridades portuguesas e os representantes dos povos da Guiné (1828-1918):
lista organizada por Armando Tavares da Silva

Parte II (1856-1881)

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1856, 15 Janeiro Canhabac                               
Tratado entre o governador da Guiné portuguesa Honório Pereira Barreto e os régulos de Canhabac, Tissac, régulo de In-oré, Manuel, régulo de Meneque, António, régulo de Ancataque, entre outros 
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1856, 13 Junho  Bolola                     
Convenção realizada por Honório Pereira Barreto, governador da Guiné com os régulos de Bolola e de Buba no Rio de Bolola, Selemane Jabi e Bissamora Combati Sambu
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1856, 16 Junho                               
Aldeia de Umbaná (povoação de Guinala)                        
Convenção celebrada entre Honório Pereira Barreto, governador da Guiné,  e o régulo e chefes Biafadas de Guinala no Rio Grande, Binti Jassi, Sene Jassi e outros
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1856, 16 Junho            
Ponta Boa Esperança - Rio de Bolola                                       

Convenção celebrada entre Honório Pereira Barreto, governador da Guiné, e o régulo Biafada de Cabuia, Nhamulo Jassi 
_____________________________________
1856, 18 Junho       
Ponta de Londro (Bissasseme)                              
Auto de cedência de terreno a Portugal, na presença de Honório Pereira Barreto, governador da Guiné, por Macadata, um dos régulos de Canhabaque
___________________________
1856, 19 Junho
Território de Sabadá,
Rio de Bolola                                
Convenção celebrada entre Honório Pereira Barreto, governador da Guiné, e o régulo Biafada de Cain, Nhamulo Jassi 
______________________________________
1856, 27 Setembro Cacheu                      
Tratado de paz entre a Praça de Cacheu e os gentios Papéis de Cacanda, sendo presentes de uma parte o governador da Guiné, Honório Pereira Barreto,  e de outra parte Daxurené, régulo de Cacanda e Cancaram, régulo de Pucau 
________________________________________
1856, 9 Outubro Cacheu                        
Tratado de paz e comércio entre a praça de Cacheu, representada pelo governador Honório Pereira Barreto e os gentios de Nagas, representados por Nhaga, pai do régulo de Naga, Danhar Humpa e Incombe, régulo de Cabi 
_________________________________________
1856, 9 Outubro Cacheu               
Contrato feito por Gregório José Domingues, em nome e como procurador de Honório Pereira Barreto, com os gentios de Bissori
__________________________________________
1857, 6 Março  
Varela                         

Convenção entre o governo português, representado pelo director da alfândega de Cacheu, Francisco Manuel da Cunha, e os felupes de Varela, representados pelo régulo Uleone 


__________________________________________
1857, 23 Novembro  Zeguichor                         
Ajuste de paz entre o delegado administrativo de Zeguichor, Francisco Carvalho Alvarenga,  e os gentios balantas de Jatacunda e aldeias vizinhas por autorização de S. Ex.ª o governador da Guiné
______________________________
1861, 19 Abril Varela                         Termo da ratificação e reconhecimento e cessão feita pelos felupes de Varela, representados por Attoquem, perante o governador António Cândido Zagallo
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1861, 7 Dezembro Orango                              Termo de reconhecimento da soberania de Portugal sobre a ilha de Orango, estando presentes Pedro Augusto Macedo de Azevedo, secretário do governo da Guiné portuguesa e, entre outros, os juizes dos grumetes de Bissau e Bandim,  André Gomes, Francisco Fernandes e Gregório Rodrigues, e Orantó, rei da ilha  de Orango 

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1864, 2 Janeiro  Cacheu                         
Contrato feito entre o governador de Cacheu, Joaquim Alberto Marques [, 1864-65] o régulo dos gentios Baiotes do chão de Illia Oguini (Collecção da Legislação Novíssima do Ultramar, Vol.V, 1864 e 1865, Lisboa 1895, p. 1)
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1869,13 Agosto    Jefunco                  Tratado de cessão feito pelos felupes de Jefunco a favor da nação portuguesa perante o governador de Cacheu,   João Carlos Cordeiro [1868-1871],  representados, entre outros, por Ampacabú e e Abajé
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1870, 24 Novembro
Ponta de São Jorge, território de Nalu                        
Auto de cessão que fazem os régulos de Nalu e de todo o seu território ao governo de Sua Magestade Fidelíssima o Rei de Portugal,   legitimamente representado por Alvaro Telles Bandeira, governador da Guiné Portuguesa 

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1872, 27 Junho 
Bissau                       

Convenção da paz feita com os gentios balantas d'Inhacre [, Nhacra], representados por Inhan'ha, régulo de Intê, e Hiameti, Inchalemá e Ialá, na presença do governador Antonio José Cabral Vieira

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1873, 24 Fevereiro Geba                                    Termo de juramento de vassalagem e obediência que presta o régulo Donhá, Senhor das terras de Ganadú, à coroa de Portugal representada pelo chefe do presídio de Geba, capitão Alfredo Carlos Barboza 
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1873, 10 Março Geba                      
Termo de juramento de vassalagem e obediência que presta o régulo Ioró-Fim, Senhor das terras de Mancrosse, à coroa de Portugal representada pelo chefe do presídio de Geba, capitão Alfredo Carlos Barboza
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1873, 10 Março  Geba                            
Termo de juramento de vassalagem e obediência que presta à coroa de Portugal o régulo de Gofia, Donhá, perante o chefe do presídio de Geba, capitão Alfredo Carlos Barboza
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1879, 3 Junho 
Bordo do Guiné                      
Tratado feito pelo governador Agostinho Coelho com o régulo de Canhabakc [, Canhabaque,] Tichac
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1880, 15 Fevereiro  Bolama                    Tratado de amizade entre o governo português representado pelo governador Agostinho Coelho e o régulo da ilha de Pissich, Ambrósio, e seu filho Joaquim
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1880, 1 Junho   Buba                            Tratado de paz entre os régulos Beafares e Sambel Tombom, régulo principal do Forreá, na presença do comandante militar de Buba, Thomás Pereira da Terra
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1880, 20 Setembro Bolama                             Auto de vassalagem de Sambel Tombom perante o governador Agostinho Coelho
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1880, 27 Setembro  Bolama                                            Tratados de paz entre Sambel Tombom, régulo do Forreá, e Sambá Mané, fula do território de Buba 
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1880, 21 Dezembro Geba                      
Tratado de paz e amizade  com o régulo principal dos fulas Moló e o régulo de Ganadú, Ambucu, na presença do comandante militar de Bissau, Pedro Moreira da Fonseca
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1880, 21 Dezembro Geba                                             Termo de juramento e obediência que presta à bandeira nacional o régulo de Ganadú Ambucú
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1881, 22 Janeiro Bolama                       
Termo de ampliação e ratificação do tratado feito em 16 de Junho de 1856, na aldeia de Umbaná, entre o governo do distrito da Guiné e o régulo e chefes Biafares de Guinalá e Buduck - na margem direita do "Rio Grande"
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1881, 3 Julho Bolama                       
Tratado de Paz entre o governo português e os régulos fulas-forros e futa-fulas do Forreá e do Futa-Djalon


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(Continua)

[Atualizámos a grafia de alguns topónimos comhecidos, como pro exemplo Ziguinchor, Canhabaque, Xime, Cossé, Cacine; vêm indicados entre parênteses retos. O editor LG]
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Nota do editor:

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20891: (D)o outro lado do combate (59): A morte dos três majores no chão manjaco, em 20/4/1970, e a intervenção de Amíclar Cabral, três semanas depois, na reunião do Conselho de Guerra (Jorge Araújo)


 PAIGC > Conselho de Guerra > Reunãio de 11/5/1970 a 13/5/1970. Acta das reuniões. Detalha da Capa. 

[Amílcar Cabral: (...) Este acto foi um acto de grande consciência política e um acto de independência. Foi um acto de grande acção e de capacidade dos nossos camaradas do Norte. É a primeira vez que numa luta de libertação nacional se mata assim três majores, três oficiais superiores que, nas condições da nossa luta, equivale à morte de generais. (...)]




Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974);  professor de eduxção física, docente do ensino superiro; nosso coeditor, autor da série "(D)o outro kado do combate"; régulo da Tabanca dos Emiratos,


GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE:
A MORTE DOS TRÊS MAJORES NO CHÃO MANJACO
EM 20 DE ABRIL DE 1970 E A INTERVENÇÃO DE AMÍLCAR CABRAL NA REUNIÃO DO CONSELHO DE GUERRA TRÊS SEMANAS DEPOIS
1.   - INTRODUÇÃO
Saúdo a oportuna e sentida homenagem pública aos "sete militares chacinados pelo PAIGC no Chão Manjaco", feita ontem pelo camarada Manuel Luís Lomba - P20879.

A narrativa lembra a todos os que nele estiveram envolvidos ou dele foram tendo conhecimento ao longo dos últimos cinquenta anos (1970.04.20-2020.04.20), alguns antecedentes históricos e respectivas consequências.

Como fazemos parte do último grupo, os que foram coleccionando informações avulsas, umas vezes da autoria dos que viveram muito de perto este horripilante acontecimento, enquanto informantes e/ou observadores privilegiados, outras, corolário de diferentes análises documentais que, por serem feitas em síntese, ficam amputadas de detalhes que podem influenciar a compreensão da sua totalidade.

Partindo dos diferentes comentários dos camaradas: Luís Lomba, Manuel Carvalho e, particularmente, do Valdemar Queirós, quando coloca no seu texto "também não me lembro da informação do PAIGC sobre o assunto" (e eu também não!), levou-me a indagar junto do Arquivo  Amílcar Cabral, existentes na CasaComum, Fundação Mário Soares, algo relacionado com o tema.

Encontrei a "Acta informal das reuniões do Conselho de Guerra", realizada em Conacri, de 11 a 13 de Maio de 1970, três semanas após a consumação do Massacre, sendo este o primeiro (e único) documento «(D)o Outro Lado do Combate» que, no meu entender, faz fé quantos às motivações dos seus "actores" e "autores".

Sugiro, também, a leitura da entrevista dada ao "cmjornal", por Francisco Rodrigues, publicada em 30Mar2008, um dos militares que esteve na recuperação dos corpos dos sete mártires. [in: https://www.cmjornal.pt/mais-cm/domingo/detalhe/vi-os-corpos-mutilados-dos-tres-majores, com devida vénia.



 PAIGC > Conselho de Guerra > Reunião de 11/5/1970 a 13/5/1970. Acta das reuniões. Capa


[Página 1]




2.   - A ACTA DA REUNIÃO DO CONSELHO DE GUERRA (ALARGADO)

Transcrição da intervenção de Amílcar Cabral (1924-1973), manuscrita por Vasco Cabral (1926-2005), secretário da reunião do Conselho de Guerra realizada em Conacri de 11 a 13 de Maio de 1970

► S.G. [Secretário-geral, Amílcar Cabral] – Saúdo os camaradas. É com o máximo prazer que fiz esta reunião que, desta vez, é em Conacri, para variar.

Desde a última reunião do B.P. [Bureau Político] até esta, a luta já mudou bastante. A Leste é uma mudança constante. Por ex.: fomos capazes de atacar Mansoa e Bissorã, com novas armas. Nesta altura, a posição do inimigo é diferente. O inimigo deve estar a pensar o que deve fazer para evitar os nossos ataques aos centros urbanos. Conseguimos fazer causar ao inimigo, em todas as frentes, um choque psicológico bastante grande. Conseguimos anular a tentativa do inimigo de desorientar as nossas populações.

A situação mudou também por causa da acção levada a cabo no Norte contra alguns oficiais superiores, em consequência da acção combinada das nossas forçadas armadas, da segurança e da Direcção do Partido.

A liquidação dos 3 majores, 1 alferes e alguns outros elementos (segundo alguns camaradas, um capitão e um chefe da Pide), mostrou que era falsa a propaganda dos tugas de que estavam à vontade na nossa terra. Por outro lado, os tugas estavam convencidos de que conseguiam comprar as nossas gentes.

Toda a política do Spínola [1910-1996], em consequência destas nossas acções está posta em causa para toda a gente, tanto dentro como fora da nossa terra, o nosso prestígio aumentou bastante e até mesmo para o nosso inimigo. Sobretudo esta liquidação dos oficiais superiores contribuiu para isso. O tuga pensava antes que nós todos éramos cachorros. O tuga agora já se convenceu do contrário. Isso aumentou a nossa dignidade, a nossa importância aos olhos do próprio inimigo.

A situação hoje é diferente da altura em que fizemos a reunião em Boké. Os nossos camaradas deram provas de capacidade. Nesta luta, como costumamos dizer, tudo é possível. Conseguimos levar armas pesadas do Sul para o Norte, quase sem perdas: perdemos dois camaradas e três armas. Os nossos camaradas foram capazes de enganar, discutir com eles, convencê-los, apesar da sua imensa experiência e capacidade e liquidá-los.

No intervalo da reunião de Boké para este, um ponto importante do nosso tema que é, o Kebo foi atraído diversas vezes. Isto é também importante. Sobre a passagem de armas do Sul para o Norte.


 [Página 2]

Através de certos camaradas que estão em Canchungo [mais conhecido por chão de manjacos], os tugas tentaram combinações com eles com vistas a desmoralizar a nossa gente. Tentaram, servindo-se de elementos da FLING [Frente de Libertação para a Independência da Guiné], portanto a um nível mais baixo, desmobilizar a nossa gente, sem resultados. Por consequência foram à prisão de quatro dirigentes da FLING. Tentaram contactar Albino, Braima Dakar e outros. E na região do Quinara. E também com gente na periferia da nossa luta: Luís Pinto e João Cabral.

Tentaram a ligação com André Gomes e com Quintino [Gomes; 1946-1972]. Eles avisaram a Direcção do Partido, para o interrogar. André Gomes deu mais uma prova de confiança no Partido. Ele mesmo supunha que os tugas queriam desertar. Só depois é que se viu o que queriam era desmobilizar a nossa gente.

O Secretário-geral deu o seu acordo à proposta mas pediu que agíssemos depressa. Luís Correia pôs-se, por sua própria iniciativa, em contacto com os camaradas da Zona, Lúcio Touchô também foi envolvido na combinação. Ele pôs-se em contacto com os tugas, mas quem devia falar era Braima Dakar que jogou um papel de defesa do Partido.

Os tugas escreveram cartas amáveis e respeitosas aos camaradas, um grande namoro. Deram-lhes muitos presentes. Propunham que os guineenses deviam substituir os cabo-verdianos, de quem já tinham feito uma lista negra de trinta e que deviam ceder os seus lugares a guineenses. Deram presentes vários: conhaque, whisky, vários panos para as mulheres, relógios, cigarros bons, etc..

Encontraram-se cinco vezes. Na quarta vez, esteve presente o governador [Spínola] que apertou a mão, tirando a luva, do nosso camarada André Gomes (Amílcar lê uma das cartas de um major, Pereira da Silva, a André Gomes).  No dia do encontro, deviam vir os nossos camaradas chefes e estava prevista a vinda do próprio governador [Spínola].

Os camaradas vieram de facto acompanhados das suas armas. Apareceu mesmo o Luís Correia e eles já sabiam da sua presença. Para não desconfiarem disseram-lhe que o Luís Correia estava presente e que era um alto responsável do Partido.

Durante as conversações com os tugas, foi decidido pararem os bombardeamentos aéreos e os combates. Isso aconteceu de facto: os nossos camaradas pararam também certas acções (Amílcar lê uma outra carta do Major [Alferes] Mosca). Braima Dakar aproveitou para fazer certas exigências. Pediu a libertação do seu país, a libertação de dois camaradas (Claude e José Sanhá) e foram mesmo soltos (já cá estão).

Durante a trégua, os camaradas levantaram minas na estrada de Bula-Binar.

Mesmo assim houve uma emboscada, aos tugas, na qual, segundo uma carta apanhada de um dos majores, afirmam que morreram quatro tugas.

[Será que se referem a: António da Silva Capela e Henrique Ferreira da Anunciação Costa, da CCAV 2487, em 18OUT69; e Joaquim José Ramalho Rei e Manuel Domingos Martins, da CCAV 2525, em 07Dez69]?

Também dão notícia dos ferimentos graves que sofreu um capitão que estivera com eles nessa reunião, ao tentar detectar minas: perdeu um braço e uma das vistas.
[Segundo José Paulo [Abreu Nogueira] Pestana (então capitão da CCAÇ 2466/BCAÇ 2861), "foi ele que mais tarde foi substituir o capitão [José Júlio da Silva de] Santana Pereira [CCAÇ 2367/BCAÇ 2845], ferido com uma mina antipessoal na zona de Có-Pelundo, onde se construía uma estrada entre Bula e Teixeira Pinto. Nunca podíamos descurar as minas colocadas nos trilhos, que já haviam vitimado um alferes (José Manuel Brandão, da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892, em 02Mar70) e ferido o capitão". - in https://www.cmjornal.pt/mais-cm/domingo/detalhe/conheci-os-tres-majores-assassinados (04Jan2009)], com a devida vénia.


[Página  3]

► Nino – Salienta a importância dos nossos camaradas terem levado à certa grandes homens dos tugas. Isso foi porque os tugas nos consideram como cachorros. Os tugas sentem hoje qual é a nossa força tanto moral como política.

► Amílcar – Este acto foi um acto de grande consciência política e um acto de independência. Foi um acto de grande acção e de capacidade dos nossos camaradas do Norte. É a primeira vez que numa luta de libertação nacional se mata assim três majores, três oficiais superiores que, nas condições da nossa luta, equivale à morte de generais.

Refere o artigo de [Cor Hélio] Felgas [1920-2008] na Revista Militar [n.º 4 – Abril de 1970] que, no fundo, é um grande elogio ao PAIGC. Diz algumas das suas observações a nosso respeito. Talvez que os tugas vão desenvolver uma acção de grande envergadura e de repressão.

Depois do acontecimento [dos majores], publicaram um pacto, ao qual propunham mais contactos com os nossos militares, mas não onde se realizaram [os anteriores] mais um em Canchungo e um em Pelundo.

Dizem que os nossos militares não cumpriram os preceitos de honra militar. Mas que eles cumprirão no futuro os deveres de honra militar. Eles afirmam que querem o fim da guerra. Também as populações de certas zonas (Mansoa, por exemplo) estão bastante influenciadas pela realidade, pela utilização de novas armas. Dizem por exemplo: "agora, mama acabou" (querendo significar que já não há protecção junto dos tugas nas cidades). Apelo aos camaradas para terem iniciativas, pensarem profundamente nos problemas, criarem, conhecerem bem cada um dos seus homens.
Anuncio os problemas que vão a seguir ser discutidos (ordem de trabalhos).
[…]
Fonte:

Citação:
(1970-1970), "Acta informal das reuniões do Conselho de Guerra em Conakry". CasaComum.org, Disponível http:htrp://hdl.handle.net/11002/fms_dc_34125.

Instituição:
Fundação Mário Soares
Pasta: 07073.129.004
Título: Acta informal das reuniões do Conselho de Guerra em Conakry
Assunto: Acta informal das reuniões do Conselho de Guerra, em 11 e 13 de Maio de 1970, manuscrita por Vasco Cabral.
Membros Presentes: Amílcar Cabral, Aristides Pereira, Luís Cabral, João Bernardo Vieira (Nino), Osvaldo Vieira, Francisco Mendes, Pedro Pires, Paulo Correia, Mamadu N'Djai [Indjai], Osvaldo Silva, Suleimane N'Djai.
Secretário: Vasco Cabral.
Data: Segunda, 11 de Maio de 1970 – Quarta, 13 de Maio de 1970.
Observações: Doc incluído no dossier intitulado Relatórios: 1960-1970.
Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral.
Tipo Documental: ACTAS


Obrigado pela atenção.
Um forte abraço de amizade (virtual)… e votos de muita saúde em tempo de "clausura"
Jorge Araújo.
21ABR2020.
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