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sexta-feira, 19 de abril de 2024

Guiné 61/75 - P25412: 20.º aniversário do nosso blogue: (5): Vinte anos a construir memórias (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf.º da CCAÇ 2381 - Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70)



VINTE ANOS A CONSTRUIR MEMÓRIAS

por Zé Teixeira


Q
uando libertos da pressão da guerra que tínhamos sido forçados a praticar e sentir na pele, na Guiné… que nos mantinha em silêncio. Doentio silêncio que nos abafava o espírito e que a pouco e pouco se foi curando…

Quando libertos da pressão que a liberdade trazida pelo 25 de abril, nos empurrava para um outro tipo de silêncio, porque segundo os mais extremistas, (alguns deles vindos do exterior, onde se refugiaram para evitarem a mobilização), nós, os combatentes, tínhamos sido lacaios do Estado Novo, do fascismo, e até de assassinos fomos apelidados…

Pois! Quando estas pressões se foram dissipando, começou a bailar dentro da nossa cabeça um vazio. E agora?!...

Eu sentia uma nova pressão. Precisava de falar dos acontecimentos, que o Estado Velho me tinha forçado a viver: das dores, das lágrimas, do sangue que vi derramar, dos camaradas que ficaram estropiados do físico e do espírito, dos camaradas que vi partir ingloriamente, na flor da juventude, sem lhes poder valer, dos “caguefes” que senti tantas vezes, os quais desapareciam, como por encanto, quando as balas começavam a assobiar por cima das nossas cabeças, ou quando os estilhaços das granadas se espetavam na terra à nossa frente, ou “cantavam” ao traçar a ramagem das árvores, atrás das quais nos protegíamos, em que o pensamento dava uma volta sobre si mesmo e nos punha a pensar – como sair daqui? Desapareciam os “caguefes” e começava a luta pela sobrevivência.

Precisava de fazer uma limpeza à caixa dos pirolitos, de fazer a catarse, como está cientificamente comprovado e é moda dizer-se.

Por onde começar? Com quem falar? Ninguém me queria ouvir. Apenas os meus filhos queriam que lhes contasse, à laia de aventura, o que tinha feito na guerra, como agora, os meus netos – conta Avô a história daquela menina que andava sempre ao teu colinho, ao debruçarem-se sobre as fotografias a preto e branco queimadas pelo tempo, perdidas num álbum carregado com o pó da história.

Pois?! E agora?

O Luís Graça, em boa hora, e já lá vão vinte anos, resolveu tirar o “tapa chamas” do computador e começou a disparar em todas as direções que a Internet lhe permitia, não com balas assassinas, mas com o seu blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné, mais propriamente o pomposo Blogueforanadaevaotres, falando de si, das suas vivências na guerra que não quis fazer, mas foi obrigado. Sim. Naquele tempo, ou se ia para a guerra, ou se escapulia a salto para França, confundindo-se ainda hoje o medo, com a dignidade da objeção de consciência, que poucos sabiam o que era e como se podia obter.
O nosso editor Luís Graça, sempre por detrás de uma máquina fotográfica, a sua imagem de marca

Então fugia-se, e, se fosse apanhado pela PIDE ou pela Guardia espanhola era devolvido à procedência e ganhava o direito de embarcar para a guerra, logo de seguida, antes que desse novamente corda às sapatilhas. Assim aconteceu com o meu amigo Fernando que foi “convidado” para ir passar umas férias a Gadamael em 1973 e andou desenfiado na bolanha, aquando do cerco ao quartel. Salvou-o o comandante da Corveta que andava por perto e à revelia das ordens emanadas de Bissau, recolheu umas centenas de jovens militares e civis que, para fugirem da morte que espreitava por todos os cantos de Gadamael, se refugiaram na perigosa bolanha, que rodeava o aquartelamento, ganhando um stress pós-traumático de guerra, que lhe destruiu o futuro.

Para espanto do Luís Graça, não tenho dúvidas, começaram a surgir de todos os cantos, companheiros da jornada que se prolongou por cerca de treze anos, sem armas, sem medos, mas com vontade de conversar, de partilhar as suas “guerras”, de contar as suas dores e suas angústias, as suas alegrias e tainas, o seu estado de alma, talvez o seu desespero. À data éramos um mundo de gente. Hoje, muitos já partiram, contrariados, para o aquartelamento eterno. Nós, os resistentes vamos aguentando a parada no BlogueForandaevãotrês, mais conhecido pelo blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné, que surgiu na sequência do primeiro Blogue, que se esgotou no espaço.

Tudo começou em 23 de abril de 2004, quando o inspirado Luís Graça se lançou à aventura.


V. N. Gaia > Madalena > 26 de Dezembro de 2005 >  Na casa da irmã e do cunhado da Alice Carneiro, a Nita (1947-2023) e o Gusto > Uma minitertúlia de camaradas e amigos da Guiné... > Da esquerda para direita: o nosso editor LG (cunhado dos donos da casa),  o A. Marques Lopes, o Zé  Teixeira, o Albano Costa e o seu filho Hugo Costa, e ainda o saudoso Francisco Allen (mais conhecido pelo Xico de Empada, ou Xico Allen, 1950-2022).

Quem diria que estava aqui um dos embriões da  Tabanca Pequena de Matosinhos (pequena só de nome), que iria surgir três anos depois, em 19 de Novembro de 2008. O A. Marques Lopes e o José Teixeira são dois dos régulos iniciais: os outros  se seguiram,   o Álvaro Basto e o Jorge Teixeira (Portojo) (1945-2017), o João Rebola (1945-2018), e agora o Eduardo Moutinho  Santos, entre outros (corre-se sempre o risco de cometer a injustiça da omissão)

Foto (e legenda): © Hugo Costa / Albano Costa  (2005).Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Logo sentiu uma “chuveirada”, não de estilhaços, mas de postes com testemunhos vivos, concretos, “disparados” por camaradas que à data não conhecia, como eu, por exemplo, que quando o descobri (fins de 2005) logo comecei a mandar bojardas e ainda vou dando uns “tiritos” de vez em quando, como este, que apenas pretende dar-lhe os parabéns pela iniciativa e agradecer-lhe, a ele, e a tantos camaradas a quem hoje me sinto ligado e preso por uma amizade solidificada neste “estar e sentir” de uma guerra em que participamos sem querer.

Obrigado, Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné, por ser o meu intermediário na relação com tantos camaradas, muitos dos quais nunca tive a oportunidade de dar o meu abraço, mas a quem me sinto ligado por laços de profunda afetividade. Para todos vós, um abraço do tamanho do Geba.

Obrigado, mais uma vez, Luís Graça e Alice pela profunda amizade, meu mano querido, que nos une e que nasceu naquela véspera de Natal, na Madalena em 2005.

O meu profundo agradecimento, também, ao Carlos Vinhal, em especial, por me ter aturado tantas vezes, e a todos os co-editores que têm dado forma a este nosso grito de paz.

Agora, somos cada vez menos e estamos mais velhos. Muitos de nós já “esgotaram” as munições, ou perderam a vontade e a força de continuarem a escrever, mas continuam, pela calada, a visitar todos os dias o “nosso” Blogue, e de vez em quando, lá sai mais um comentário, ou num rebuscar de memória, mais um acontecimento que estava escondido num escaninho da massa cinzenta. Não desistam, por favor, porque se não formos nós a contruir a nossa história, outro virão, e a nossa verdade histórica corre o risco de ser deturpada.

Aos que deixaram a vida na Guiné e aos que já partiram ao encontro do Além, o meu profundo sentimento de que estejam, onde estiverem, se sintam em paz. Na certeza de que todos nós nos encontraremos por lá um dia.

Aos camaradas que, como eu, continuam a luta pela vida, que se sintam com a saúde possível e não desistam de viver.

Um Grande abraço do
Zé Teixeira

____________

Nota do editor

Último post da série de 6 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/75 - P25348: 20.º aniversário do nosso blogue (4): Alguns dos nossos melhores postes de sempre (IV): Um roteiro poético-sentimental para um regresso àquela terra verde-rubra (Joaquim Mexia Alves / Luís Graça)

sábado, 13 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25382: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-Chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte XVI: o golpe militar de Bissau


Lisboa > Base Naval do Alfeite > 30 de abril de 1974 > Da esquerda para a direita: Coronel António Vaz Antunes, Brigadeiro Leitão Marques, General Bettencourt (ou Bethencourt) Rodrigues e Coronel Hugo Rodrigues, todos oficiais afastados no Golpe Militar de 26 de Abril em Bissau. 

Fotografia obtida já no Alfeite, em Lisboa no dia 30 de Abril de 1974. Fonte: arquivo do filho do cor inf António Vaz Antunes, o engº Fernando Vaz Antunes (que vive em Mafra), e a quem agradecemos a gentileza .

Foto (e legenda): © Fernando Vaz Antunes (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Antiga página de rosto do  Arquivo de História Social > Instituto de Ciências Socias da Universidade de Lisboa (o link original foi descontinuado: ver aqui em Arquivo.pt)


"O Arquivo de História Social  (#) publica nesta página uma série de entrevistas sobre a descolonização portuguesa de 1974/1975, fruto de um projecto do Instituto de Ciências Sociais apoiado pela Fundação Oriente. Maria de Fátima Patriarca, Carlos Gaspar, Luís Salgado de Matos e Manuel de Lucena que coordenou, entrevistaram grandes protagonistas desse processo: por um lado, governantes, chefes militares, dirigentes do MFA e outros que então actuaram na Guiné-Bissau, em Cabo Verde, Angola e Moçambique; por outro lado, responsáveis metropolitanos ou íntimos colaboradores seus.

"Não procurando promover qualquer interpretação, chegar a juízos gerais ou encerrar os eventos abordados numa dada problemática, o grupo entrevistador foi seguindo os relatos e aceitando as visões dos seus interlocutores, embora não deixasse de lhes solicitar esclarecimentos por vezes incómodos." 


1. Voltamos aos depoimentos produzidos no âmbito dos Estudos Gerais da Arrábida  [A descolonização portuguesa > Painel dedicado à Guiné > 29 de Agosto de 1995 > Depoimentos de General Mateus da SilvaCoronel Matos Gomes,   José Manuel Barroso e Coronel Florindo Morais]

Iremos reproduzir alguns excertos das enrevistas para ficarmos com uma ideia mais viva, precisa e detalhada do que foi a 23ª hora do último com-chefe do CTIG, gen Bethencourt  (ou Bettencourt) Rodrigues, e  concomitantemente o que se passou nos dias 25 e 26 de abrl de 1974 em Bissau. 

Os antigos combatentes da Guiné, qualquer que seja o ano em que moram mobilizados para o território, de 1961 a 1974, têm o direito de saber como é que acabou a guerra.  E é bom lembrar que parte destes homens que arriscaram vidas e carreiras, na "conspiração" do MFA na Guiné-Bisau, já morreram, como é o caso do ten-gen Mateus Silva.

Sobre o "golpe militar de Bissau", iremos trancreer parte das entrevistas a:

  • Eduardo Mateus da Silva [1933-2021] : Engenheiro militar da Arma de Transmissões; chega à Guiné em Junho de 1972, como tenente-coronel; membro do MFA desde os primórdios; encarregado do governo da Guiné depois do 25 de Abril;
  • Carlos Matos Gomes (n. 1946): Oficial dos Comandos, comandante de Tropas Nativas Especiais; em Moçambique, participou na operação “Nó Górdio”; fez a sua missão na Guiné de Julho de 1972 a fins de Junho de 1974; pertenceu à primeira Comissão Coordenadora do Movimento dos Capitães na Guiné; foi membro da Assembleia do MFA;
  • José Manuel Barroso [n. 1943]  : jornalista, capitão miliciano na Guiné de Julho de 1972 a Maio de 1974; colaborador directo do general Spínola, na Guiné; membro do MFA da Guiné;
  •  Florindo Morais  [n. 1939] : só vai para a Guiné, como major, nos primeiros dias de Junho de 1974, sendo o último comandante do batalhão de Comandos Africanos na Guiné e regressa na véspera da independência. (Notas biográifcas dos organizadores dos Estudos Gerais da Arrábida

2.  O Golpe Militar de Bissau (##)

Entrevistadores: Manuel Lucena (1938-2105), Luís Salgado Matos (1946-2021)

Entrevistados, Mateus da Slva (1933-2021), Matos Gomes (n. 1946), José Manuel Barroso (n. 1943)

 [...] General Mateus da Silva: 

Há um aspecto que também é único no MFA da Guiné: é que o MFA em Lisboa, tinha principalmente capitães, muito poucos majores e não tinha os comandos das unidades. 

Na Guiné, porque o ambiente era totalmente favorável ao MFA, podíamos ter envolvido,  na conspiração, todos os capitães que quiséssemos, mas como não nos interessava isso, porque ia alargar muito, escolhemos os comandantes das unidades: envolvemos o comandante do Batalhão de Comandos, o comandante e o 2º comandante do Batalhão de Paraquedistas, o comandante da Polícia Militar, o comandante das Transmissões (as comunicações eram essenciais), o comandante da Engenharia, o comandante da Artilharia, e, quando quiséssemos carregar no botão e tomar o poder, era só querermos.

Luís Salgado Matos: 


Qual era o papel do general Bettencourt Rodrigues? Percebia o que se estava a passar? Sabia do que se estava a passar? Tinha alguém em quem tivesse confiança?  


Coronel Matos Gomes: 


Ele sabia muito pouco. Há uma história que demonstra a forma diferente do general Bettencourt Rodrigues exercer a sua função de comando, como comandante-chefe. O general Spínola falava com muita facilidade à hierarquia, até cá abaixo. Qualquer capitão podia muito facilmente obter acesso ao general Comandante-chefe. Portanto, estes circuitos funcionavam quase em ligação directa. 


Ao passo que o Bettencourt Rodrigues, até por questões de feitio pessoal e de formação militar e profissional, como oficial de Estado-Maior, a primeira acção que lhe corresponde como comandante-chefe é cortar essa ligação, e coloca um fusível na ligação, que era o seu Chefe de Estado-Maior, o coronel Hugo Rodrigues da Silva, passando a ser impossível um comandante de uma unidade falar com o comandante-chefe ou com outro operacional. Tudo passava pelo coronel Chefe de Estado-Maior. 


Para os comandantes das unidades, habituados a negociar concretamente com Deus Nosso Senhor, as coisas passaram a ser muito complicadas e a reacção é deste género: «Bom se ele não quer saber, não sabe e pronto!» E passa a saber muito menos coisas. Além de não saber aquilo que era o estado de espírito, passa a não saber também coisas [concretas] essenciais. 


José Manuel Barroso: 


 [...] Eu penso que o general Bettencourt Rodrigues (eu continuei a lidar com ele, não do modo como lidava com o Spínola, mas quase diariamente) tentou aguentar o que estava, não quis fazer grandes alterações, criar grandes problemas, grandes conflitos. Tentou aguentar o que estava em função das instruções que levava. 


Simplesmente, o que sucede, quando o general Bettencourt Rodrigues lá chega - e até pelo facto do general Spínola regressar à metrópole -, é que havia já um desencanto total em relação à evolução. 


Quer dizer, a própria retirada do general Spínola do terreno de operações (e do poder político na Guiné) significou, para a grande maioria dos oficiais, não só [para] os que conspiravam lá abertamente, quer fossem spinolístas ou não, mas também [para] os próprios milicianos, uma forma de dizer: «Isto não tem safa, tem que haver uma outra evolução qualquer». Ou: «O próprio Spínola já não tem qualquer hipótese e vai-se embora.» 


Pelo general Bettencourt Rodrigues, havia respeito, não era da «brigada do reumático». Mas ele era um corpo estranho.


General Mateus da Silva: 


[…] Bom, nós reunimo-nos na véspera [do 25 de Abril], estivemos até cerca da 1:00 hora, não conseguimos informação nenhuma de Lisboa, sobre se realmente tinha acontecido ou não alguma coisa. Nós tínhamos um centro de escuta no Agrupamento de Transmissões, que era óptimo. Escutávamos em permanência a Reuter e a France-Press, e tínhamos um tele-impressor ligado e apareciam as notícias em catadupa. 


Escutávamos todas as emissões de rádio dirigidas contra nós, desde a Rádio-Moscovo ao PAIGC, tudo. E todos os dias, era editado um documento, acho que era o Boletim Periódico de Rádio. São documentos que não sei se existem, se foram arquivados. E nós gravávamos, e transcrevíamos todas as emissões em português que eram dirigidas contra nós. Tínhamos as agências noticiosas e, antes de regressarmos a casa, nessa noite, avisei o oficial de dia, que era o alferes Rodrigues, para estar com muita atenção no centro de escutas, que podia acontecer qualquer coisa. 


Às 5 ou 6 da manhã, quando os tele-impressores da Reuter e da France-Press começaram a debitar as primeiras notícias, ele percebeu que realmente tinha acontecido qualquer coisa em Portugal. Telefonou-me logo para casa e eu avisei todos os outros pelo telefone e imediatamente soubemos o que se passava. Lembro-me de que o alferes Rodrigues até chorava a contar o que tinha acontecido. 


Isto foi a noite antes do 25 de Abril, e depois ia falar no dia 25 de Abril.


Quando nós tivemos as primeiras notícias do dia 25 de Abril, avisei o major Freire, que era o comandante da polícia e que também estava connosco (todos os comandantes das coisas importantes estavam envolvidos). 


E o major Freire diz-me assim: «Oh pá! Eu tenho de ir agora às 8 horas com o director da PIDE para a Ilha das Galinhas visitar os presos políticos. O que é que eu faço?» Eu respondi: «Oh pá! Só tens um remédio, vais!» 


Então, às 8 horas da manhã, ele foi para a ilha das Galinhas, com o director da PIDE. Passaram lá uma manhã estupenda, almoçaram, regressaram a Bissau e o director da PIDE não sabia rigorosamente de nada do que se estava a passar em Lisboa. 


Depois, reunimo-nos várias vezes para decidir o que é que fazíamos, o que é que não íamos fazer. E tentámos contactar com Lisboa, mas ninguém nos ligava nenhuma em Lisboa, estavam noutra. 


Ao fim da tarde, apareceu um telegrama do almirante Ferreira de Almeida, chefe do estado-maior da Armada, que,  apesar de ser um homem muito ligado ao regime, disse logo que, tendo o poder político mudado, a Marinha estava com o novo poder político. Tomou logo essa decisão, mesmo antes de ser substituído. 


O comandante naval em Bissau, comodoro Almeida Brandão, perante aquela mensagem, vai ao general Bettencourt Rodrigues, mostra-lhe a mensagem e diz-lhe: 


«Olhe, sr. comandante-chefe, passa-se isto… O chefe do Estado Maior da Armada já está com o 25 de Abril, o que é que o senhor quer fazer?» 


O Almeida Brandão também era um militar, digamos, democrata e aberto, e mandou uma mensagem para Lisboa a dizer que a Marinha na Guiné estava com o MFA. 


O general Bettencourt Rodrigues não tomava posição, estava à espera de receber instruções, e passou toda a noite assim. 


No dia 26 de Abril, logo de manhã, nós, este grupo que estava mais ligado, reunimo-nos no Batalhão de Paraquedistas, em Bissau, às 8.30h, a discutir o que havíamos de fazer. 


E foi nessa reunião que decidimos intervir e, digamos, fazer aquilo a que eu chamo um golpe militar em Bissau, que na altura não teria esta percepção, mas, a posteriori, considero que de facto foi um golpe militar. 


Discutiu-se quem ia ficar como encarregado do Governo, eu propus que fosse o secretário-geral, o dr. Libânio Pires, todos os outros acharam que devia ser eu, como militar mais graduado. Escolhemos o comodoro Almeida Brandão para futuro comandante-chefe, porque era o mais antigo e, além disso, tinha já tomado a decisão de mandar um telegrama para Lisboa, a dizer que aderia ao MFA. 

  [...] Às 9h (era feriado municipal em Bissau), fomos ao gabinete do comandante-naval, comodoro Almeida Brandão, convidá-lo a ser o nosso futuro comandante-chefe. Também tem piada porque, antes de destituirmos o governador, já estávamos a convidar o futuro comandante-chefe. 


O comodoro hesitou um bocado e disse que não podia aceitar. Nós até queríamos que ele também fosse logo connosco ao gabinete do Bettencourt Rodrigues. Recusou-se mas acabou por dizer que aceitava ser comandante-chefe. 


Em seguida, ainda passámos pelo Palácio do Governador mas ele não estava, estava no comando-chefe na Amura. Fomos então à Amura. Na altura, houve uma companhia da polícia militar que cercou o comando-chefe, e também havia tropas paraquedistas nossas que estavam ali à volta. 


Entrámos de rompante no gabinete do general Bettencourt Rodrigues, o ajudante meteu-se à frente e levou um pinhão que voou por ali adentro… A porta abriu-se de escantilhão e nós entrámos. 


Agora imaginem, do ponto de vista do general comandante-chefe, que vê um grupo aí de doze oficiais (###), entrarem-lhe assim pelo gabinete… 


Ele ficou logo desequilibrado psicologicamente. Quando falámos com o coronel Hugo Rodrigues da Silva, que era o intermediário de tudo com o governador, ele recriminou-nos por termos feito aquilo sem o informar primeiro. 


O brigadeiro Leitão Marques teve uma reacção perfeitamente despropositada, disse assim: 


«Meus senhores, hoje acabou a minha carreira militar, os senhores prendam-me, matem-me, fuzilem-me, façam-me o que quiserem.» 


Uma coisa perfeitamente dramática e despropositada. 


O general Bettencourt Rodrigues perguntou se estava preso, e este também é um aspecto que acho muito interessante. É evidente que ele estava pelo menos bastante coagido, mas eu disse:


 «Não, o meu general não está preso, simplesmente vai ao palácio, faz as suas malas e embarca hoje no avião para Lisboa.» 


E foi o que ele fez, mas muito civilizadamente. Eu tenho aqui fotocópias, está aqui um texto escrito mais tarde num jornal pelo general Bettencourt Rodrigues: 


«A perguntas minhas, aqueles oficiais acrescentaram que devia seguir para Lisboa nessa manhã, em avião que vinha de Luanda e sairia da Guiné em liberdade».


 Isto é dito por ele próprio e acaba com a polémica.  


O general Spínola já deu uma entrevista a dizer que o Bettencourt Rodrigues foi preso na Guiné, quando a verdade é que quem mandou prender o Bettencourt Rodrigues foi ele, Spínola. Porque quando Bettencourt chegou a Cabo Verde, teve de esperar por ligação para Lisboa, e teve de ficar um dia, ou coisa assim, e os elementos de Cabo Verde agitaram-se, falaram para Lisboa. E então veio um telegrama de Lisboa, da JSN [JUnta de Salvação Nacional ] , a dizer que o general Bettencourt Rodrigues devia regressar a Lisboa, sob prisão.

Do meu ponto de vista, foi o general Spínola, directamente ou alguém por ele, que prendeu o Bettencourt Rodrigues, o que tem a sua lógica, porque o general Spínola não podia com o Bettencourt Rodrigues, pois achava que tinha destruído a sua política da «Guiné melhor». [...]…

Luís Salgado Matos: 


Quando diz ao Bettencourt Rodrigues que não está preso, tem é de fazer as malas para voltar para Lisboa, o que é que ele responde?


General Mateus da Silva: 


Ele não respondeu, ele aceitou. Fez uma cena mais ou menos dramática, quase com as lágrimas nos olhos, a dizer: 


«Meus senhores, estão aqui os oficiais que mais considero na Guiné, os comandantes das principais unidades, fulano esteve ontem aqui sentado ao meu lado, a falar comigo, outro não sei que mais, eu não podia esperar jamais que me fizessem uma coisa destas, estou profundamente magoado.» 


Foi mais ou menos esta a reacção dele. […]


Coronel Matos Gomes: 


Só houve três oficiais que se solidarizaram com ele, o Leitão Marques, o coronel Rodrigues da Silva e, posteriormente, na sala de operações, o coronel Vaz Antunes. 


General Mateus da Silva: 


Eu acho que foi um mal-entendido, porque o Leitão Marques era um homem democrata e nós até gostaríamos que fosse ele a substituir o Bettencourt Rodrigues. Nós saímos do gabinete do general Bettencourt Rodrigues e dirigimo-nos à sala de operações. Como era feriado, o briefing era às 10h e, quando avança aquele grupo comigo à frente, na sala de operações, falando como as coisas são e se passaram, eu senti imediatamente que os coronéis e outros oficiais mais graduados do que eu me abriram alas e me cumprimentaram logo com toda a deferência. 


Entrei na sala de operações e sentei-me na primeira fila, no lugar do general Bettencourt Rodrigues. Antes de me sentar expliquei o que é que se passava e foi nessa altura que o coronel Vaz Antunes disse que não podia aceitar uma situação destas, que estava solidário com o general Bettencourt Rodrigues. E o Almeida Brandão virou-se para ele e disse:


 «Se está solidário, saia!» 


Já o Almeida Brandão a assumir-se como comandante-chefe. E depois teve lugar o briefing com toda a naturalidade. 


Às 3h da tarde, depois de uma grande informação pela rádio, tomei posse como encarregado do Governo. Antes de tomar posse, chegou ao nosso conhecimento a directiva da JSN, dispondo que nas províncias de governo simples o governador devia ser substituído pelo secretário-geral. Então pôs-se a dúvida se eu tomaria posse, ou daria posse ao dr. Libânio Pires e até à última hora estivemos em contacto com Lisboa, que acabou por aceitar: «Está bem, pronto então toma posse.» 


Isso foi de tal maneira que eu pedi ao José Manuel Barroso para me escrever o discurso que eu diria no caso de não tomar posse. Nunca o pronunciei, mas está aí escrito com a letra dele e pelo punho dele. Tomei posse, mas isso foi o próprio MFA da Guiné que decidiu, contrariamente à JSN. 


Manuel de Lucena: 

Da JSN, quem deu o aval à sua posse? 


General Mateus da Silva: 


Não foi ninguém, foi um intermediário, foi um dos oficiais que gravitava ali à volta, não me lembro exactamente quem foi. Aliás ouvia-se muito mal, as comunicações telefónicas eram muito más, confesso que não me lembro.  [...] (#)


(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, parênteses retos, notas, para efeitos de publicação deste poste: LG)

 _____________

(#) Atual endereço do sítio do AHS - Arquivo Histórico Social, ICS/UL

(##) Vd. também aqui o depoimento de J. Sales Golias [n. 1941] , ten cor > A descolonização da Guiné: Intervenção na Mesa Redonda levada a efeito pelo Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra / Fórum dos Estudantes da CPLP, Coimbra, 30 de Abril de 2005 

(###) O Jorge Sales Golias  fala em onze:

Lista dos Oficiais revoltosos (##);

TCor Mateus da Silva, Engº Tm | TCor Maia e Costa, Engº | Maj Folques, Cmd | Maj Mensurado, Pára | Cap Simões da Silva, Art | Cap Sales Golias, Eng Tm | Cap Matos Gomes, Cmd | Cap Batista da Silva, Cmd | Cap Saiegh Cmd (Africano) | Cap Ten Pessoa Brandão, Armada | Cap mil José Manuel Barroso
__________

Nota do editor:

Último poste da série > 12 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25374: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-Chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte XV: as ondas hertzianas também chegavam a Nhala, Gadamael, Pirada, Canquelifá...

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25374: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-Chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte XV: as ondas hertzianas também chegavam a Nhala, Gadamael, Pirada, Canquelifá...

1. O nosso camarada Eduardo Estrela (ex-fur mil at inf, CCAÇ 14, Cuntima e Farim, 1969/71) escreveu em comentário ao poste P25364 (*):


(..:) "Não vivi o 25 de Abril de 1974 na Guiné, mas lembro-me bem de a bordo do Niassa, depois de termos zarpado de Lisboa em 24 de maio de 1969, alguém ter dito em surdina que éramos nós que íamos fazer a comissão liquidatária da Guiné.

Infelizmente não foi assim e muitos outros ainda foram enviados para o matadouro. Mas por este pormaior se pode ver a enorme vontade que já havia em acabar com uma guerra que nunca devia ter começado." (...)

Pois é, Eduardo, fomos juntos no T/T Niassa, que ainda muitas viagens teve que fazer, levando e trazendo tropa, armas e bagagens... No dia 9 de abril de1974, já não partiu do Cais da Rocha Conde Óbidos: foi vítima de bomba, num atentado atribuido às Brigadas Revolucionárias. Ninguém soube, ou muita pouca gente... A censura continuava de lápís azul na mão...

Em Bissau, também se conspirava há muito... O gen Bettencourt Rodrigues parece que foi o último a saber, na madrugad de 26 de Abril de 1974 (*).

Continuamos a publicar mais alguns singelos testemunhos de camaradas nossos que lá estavam, no CTIG, cumprindo o seu dever... E que foram apanhados, como todos nós, aui na metrópole,mpelas notícias que rapidamente se propagaram pelas ondas hertzianas...


António Murta, ex-alf mil, 2ª CCaç / BCaç  4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74)

 (...) «25 de Abril de 1974 – Estava no mato a uns quilómetros de Nhala. Eram umas 3 ou 4 horas da tarde quando chegou numa Berliet um furriel “periquito”  com uma escolta, aos berros,  para que regressássemos porque a guerra ia acabar. Na Metrópole tinha havido uma revolução! 

Fiquei doido. O pessoal do meu grupo parece que não percebeu muito bem a notícia. Mas subiram alegres para a viatura. Eu e o furriel “periquito”, sentados nos guarda-lamas da Berliet, à frente, berrávamos para o ar e agitávamos as espingardas. Os soldados riam-se e faziam barulho. Pergunto ao furriel por mais pormenores e ele:
— Não se sabe mais nada. Houve uma revolução em Lisboa e prenderam os Pides. Não se sabe mais nada.

“...e prenderam os Pides”. O meu coração quase rebentava. A comoção perturbava-me. Chegámos ao quartel e estava tudo na maior confusão, agarrados aos rádios, mas pouco se adiantava. Quis ver e interpretar as caras das pessoas, ver as suas reacções e, de facto, elas eram diferentes, embora a generalidade estivesse radiante. Ainda era cedo para as pessoas se definirem e manifestarem, quer pela sua despolitização, quer pela incerteza dos pormenores dos acontecimentos».

A desinformação era tal, que os acontecimentos só me mereceriam nova referência em 5 de Maio, onde dou conta de ocorrências graves em Bissau: rebentamentos nas ruas, perseguições a Pides e, até, a agressão à esposa de um deles, frente ao Mercado de Bissau, em que a senhora foi completamente despida. A tropa interveio e impediu coisas certamente mais graves. Eram os rumores que iam chegando. (...) (**)

C. Martins,ex-cmdt., 15º Pel Art (Gadamael, 1972/74)


(...) Bem,eu estava em Gadamael,e após fazer a minha ronda higiénica,  liguei o rádio em onda curta e percorri as ondas do "éter"..."rádio Habana, Cuba, território libre in America", nada; "rádio Moscovo", nada; "Deutchsvella", nada: "rádio Globo", nada.."BBC.. golpe militar em Portugal, general Spinola, coiso e tal"... O  quê ?... Porra,.finalmente!...

Contactei o Sr. comandante H. Patrício, dizendo-lhe que estava a decorrer um golpe militar,e este pergunta se era o nosso General Spínola que estava à frente... E eu..claro que é.. (eram 7 da manhã e eu não fazia a mais pequena ideia)... Ah, sendo assim eu alinho...Boa.

Não houve a flagelação da ordem, já não saiu uma companhia para o mato  e o resto continuou tudo como dantes... Apenas troca intensa de mensagens com Bissau, que pouco ou nada sabiam,ou não queriam dizer.

Foi assim o meu 25A.(***)

Carlos Ferreira, ex-fur mil at cav,  3ª CCav/BCav 8323 (Pirada, set73/set74)

Um dia inesquecível, para mim. Estava em Pirada, em uniforme nº. 2, pronto para embarcar numa aeronave, com destino a Bissau, via Lisboa, para gozar as minhas férias disciplinares. Nesse interim, fomos atacados pelo IN, com um potencial de fogo muito superior ao do ataque que tivemos em Março.

Saltei para a vala mais próxima e aguardei que acabasse a flagelação. Não houve vítimas militares, mas pereceram, creio que 8 senegaleses, que se encontravm ao balcão, de uma loja, de um comerciante local. (***)

Joaquim Vicente da Silva, ex- 1º cabo at cav, 3ª/BCav 8323 (Pirada, set1973/set1974

(...) Vou contar a história do violento ataque que sofremos em Pirada,  exactamente no dia 25 de Abril de 1974.

No dia 25 de Abril de madrugada, saímos dois pelotões, mais os sapadores. Fomos levantar algumas minas que estavam na picada em direcção a Gabu (Nova Lamego). Regressámos a Pirada por volta das dez da manhã. Participei nesta saída, tínhamos de fazer a protecção aos sapadores.

Eram mais ou menos dez e meia, eu já tinha tomado banho e estava no meu quarto, abrigo nº. 1, deitado em cima da minha cama e ouvi um pequeno estalido. Um colega que estava cá fora sentado num banco, gritou logo:

- Saiam para a vala que isto é o início de um ataque!...

Naquele dia o PAIGG bombardeou Pirada com muitos mísseis e morteiros, alguns caíram bem perto do local onde eu me encontrava, eu não morri por sorte. A meu lado, morreram três africanos nossos colegas, um míssil caiu-lhes aos pés e cortou-os em pedaços. Nunca tinha visto nada daquilo. Fiquei horrorizado, ainda hoje mexe comigo.

Nós, soldados brancos, não morremos nenhum, porque estávamos bem agachados nas valas ou trincheiras. Vieram juntar-se a nós vários oficiais, incluindo o alferes médico que nos disse para nos espalharmos mais pelas valas porque aquilo estava a ficar feio.

Este bombardeamento durou cerca de duas horas. Nós respondemos com os morteiros 81, os nossos obuses 10.5 e o nosso obus 14 que estava junto à pista de aviação  de Pirada.  Bajocunda também nos deu apoio de fogo com o obus 14 deles. Foi um inferno. Só se ouviam bombas a voar, outras a assobiar e a rebentar por cima ou perto de nós.

Assim que terminou o ataque, mandaram-nos equipar para sair. Fomos patrulhar em volta de Pirada e encontrámos, para o lado do Senegal,  o mato todo a arder, mas felizmente não vimos ninguém do PAIGC. Caiu um míssil na casa de um comerciante branco, de nome António Palhas, que escapou ileso, mas morreram seis africanos que estavam noutro compartimento da casa.

Nesse dia,  nós, cabos e soldados,  não sabíamos nada do que estava a acontecer cá na Metrópole. Só à noite, através da BBC é que tivemos conhecimento do golpe de Estado. Foi uma grande alegria para todos nós porque pensámos logo que a guerra acabava naquele dia. Festejámos com muitas cervejas.

No dia seguinte na telefonia, começámos a ouvir a Grândola, Vila Morena e outras músicas do Zeca Afonso. A guerra ia acabar, que alegria! (...) (****)

Carlos Costa, ex-fur mil,  2ªC/BCAÇ 4516 /73 (Aldeia Formosa, Mampatá, Colibuia, Canquelifá, Ilone, Canquelifá, Bissau, jul73/set74)

Nesse dia estava eu em Canquelifá, a notícia foi recebida com natural surpresa e curiosidade de saber o que na verdade se estaria a passar. Escutávamos a rádio,  ávidos de saber notícias. 

No dia seguinte o capitão chamou,  a uma reunião, sargentos e oficiais, comunicando-nos que tinha duas mensagens para nos transmitir, um seria dada a conhecer naquele momento e a outra passadas 24 horas. Assim a mensagem lida de imediato anunciava que estaria iminente mais um ataque do PAIGC. 

Passaram-se as 24 horas, debaixo de uma enorme tensão, à espera do primeiro "buuu, BCAÇ m" que não chegou a acontecer. Foi então lida a 2ª mensagem que revelava ter havido os primeiros contactos do MFA com os movimentos de libertação das colónias, tendo sido acordado que as escaramuças seriam evitadas: não haveria mais ataques e, se encontros houvesse no mato, haveria apenas alguns tiros para o ar, sinalizando a presença, seguindo cada força em sentidos opostos. 

Os dias que se seguiram foram calmos,  com uma excepção,  com os paraquedistas em segurança de uma coluna,  um deles pisou uma mina, perdeu a vida. 

Como eu era do batalhão de intervenção da Guiné BCAÇ 4516/73, , passado algum tempo regressámos (a 2ª Companhia) a Bissau e,  até Setembro, mês do regresso à metrópole,  fizemos segurança à cidade.


José Carlos Gabriel, ex-1.º Cabo Op. Cripto, 2.ª CCAÇ/BCAC 4513
Nhala, 1973/74

Camarada António Murta: Embora me encontre na Alemanha junto aos meus netos (deixaram-me agora respirar um pouco), entrei no Blogue e vi a tua mensagem.  (..:)

Como me lembro dessa noite em que recebemos a mensagem sobre a revolução e que dizia o seguinte; 

252245NABR RELAMPAGO “Agências noticiosas informam Governo Professor MARCELO CAETANO derrubado por movimento Forças Armadas “. 

A festa que foi feita nessa altura por toda a companhia e, se a memória me não falha,  já ninguém foi mais para a cama e penso que até o “cantinas“ foi abrir a mesma mas já não tenho a certeza.  (...) (*****)
____________

Notas do editor:
 
(*) Último poste da série > 10 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25364: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-Chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte XIV: Foi pela rádio, a BBC e outras emissoras, que a malta ouviu a notícia do golpe de Estado em Lisboa... Uns em Bissau, outros em Bissorã, Canssissé, Guidaje, Xitole...

(**) 15 e abril de 2014 > Guiné 63/74 - P12988: No 25 de abril eu estava em... (20): No mato, algures entre Nhala e Buba, emboscado, junto à estrada nova que ligava as duas povoações... (António Murta, ex-al mil, 2.ª CCAÇ / BCAÇ 4513, Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973-74)

terça-feira, 2 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25328: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Lançamento do livro em 2010 - Parte IV: Um dos raros registos em vídeo do autor a fazer uma curta intervenção de agradecimento... Nesta sessão, venderam-se 140 exemplares do livro.


Lisboa >  Museu Militar > 15 de Abril de 2010 >  Lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló, "Comando, Guineense, Português" (edição da Associação dos Comandos, 2010) (*). 

Breves palavras, finais, de agradecimento proferidas pelo autor (aqui num raro registo videográfico), após intervenção do presidente da Associação de Comandos, dr. José Lobo do Amaral, e dos restantes oradores, cor 'cmd'  ref Raúl Folques (cmdt do Batalhão de Comandos da Guiné, de 28 de Julho de 1973 a 30 de Abril de 1974), cor inf  ref Manuel Bernardo e dr. Nuno Rogeiro, jornalista e analista político.

Vídeo (1' 07''): ©   Luís Graça (2010). Alojado em You Tube > Nhabijoes



Lisboa >  Museu Militar > 15 de Abril de 2010 >   Lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló, "Comando, Guineense, Português" (edição da Associação dos Comandos, 2010). Breve intervenção, final, do dr. Augusto Mendes Pereira, que foi furriel miliciano vagomestre da 1ª Companhia de Camandos Africanos, sediada em Fá Mandinga, onde conheceu o Amadu Djaló. (Augusto Mendes Pereira em 2019 era conselheiro do ministro da Energia para a área económica, no governo da Guiné-Bissau.)

Vídeo (2' 11''): ©   Luís Graça (2010). Alojado no You Tube > Nhabijoes



Lisboa >  Museu Militar > 15 de Abril de 2010 >  Lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló, "Comando, Guineense, Português" (edição da Associação dos Comandos, 2010).   Membros da nossa Tabanca Grande, o Alberto Branquinho e o António J. Pereira da Costa.


Lisboa >  Museu Militar > 15 de Abril de 2010 >   Lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló, "Comando, Guineense, Português" (edição da Associação dos Comandos, 2010). >  Membros da nossa Tabanca Grande, o José Martins (Odivelas) e o José Eduardo Oliveira Jero (Alcobaça e Oeiras) (1940-20219) ... 


Lisboa >  Museu Militar > 15 de Abril de 2010 >   Lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló, "Comando, Guineense, Português" (edição da Associação dos Comandos, 2010) >   Membros da nossa Tabanca Grande, e neste caso também da Tabanca da Linha, o José Manuel Dinis (1948-2021) e o António F. Marques.

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2010). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. O lançamento do livro do Amadu Bailo Djaló, "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, il.) foi um acontecimento cultural, social e militar, juntando no Museu Militar algumas conhecidas personalidades e sobretudo muitos amigos e camaradas da Guiné, antigos combatentes, incluindo guineenses,  membros ou não da nossa Tabanca Grande, alguns, infelizmente, já falecidos: cite-se o Carlos Santos, o José Eduardo Oliveira (JERO), o Coutinho e Lima, o José Manuel Matos Dinis, o Rui A. Ferreira,  o Calvão de Melo.

Mesmo em dia de chuva, a meio da semana,  ao fim de tarde, estes outros  amigos e camaradas nossos (como o António Santos,  a Irene Martins, a Alice Carneiro, a Giselda Pessoa, o Miguel Pessoa, o João Martins, o Alberto Branquinho, o António J. Pereira Costa, o António F. Marques, o Manuel Gonçalves, o João Parreira, o Mário Dias, o José Botelho Colaço, e tantos outros ...) fizeram, questão de comparecer para apoiar o Amadu Djaló e o Virgínio Briote. 

Temos estado a recordar alguns dos melhores momentos desse evento, a que o nosso blogue dedicou, na altura, em 2010, nada mais mais nada menos do que cinco postes, reproduzindo  nomeadamente as intervenções dos três oradores convidados: o jornalista, escritor e analista político Nuno Rogeiro, o cor 'cmd' Raul Folques, que foi cmdt do Amadu Djaló, em 1973, no Batalhão de Comandos da Guiné, e o cor inf ref e escritor Manuel Bernardo (*).

Como escreveu, no blogue,  o Virgínio Briote:

 "Estás a imaginar o esforço em pôr nomes nas caras que eu tive a sorte de ver hoje? Não contei o número de Camaradas que quiseram prestar homenagem aos Guineenses que connosco andaram e chafurdaram naqueles trilhos e bolanhas. Sei que vi muitas caras conhecidas do Luís Graça e Camaradas da Guiné e que a sala estava cheia. E que, no fim, tinham sido vendidos 140 exemplares. E que a sessão, globalmente, correu bem."

Outros camaradas não puderam estar presentes mas apoiaram esta memorável iniciativa através de comentários no nosso blogue: casos, por exemplo, do Torcato Mendonça (1944-2021), Juvenal Amado,  Joaquim Mexia Alves, Manuel Marinho (1950-2022),  Mário Fitas e  Carlos Cordeiro (1946-2018).

De registar a ausência da comunicação social.
___________

Nota de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores da série > 

15 de março de 2024 > Guiné 61/74 - P25274: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Lançamento do livro em 2010 - Parte III: Intervenção do cor inf ref e escritor Manuel Bernardo

segunda-feira, 1 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25324: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (24): O tio Ortiz (1906-1944), um herói trágico

Sem título. Ilustração: Luís Graça (1999)


Contos com mural ao fundo:  O tio Ortiz (1906-1944), um herói trágico

por Luís Graça (*)


Partiram de Lisboa para Berlim no mesmo avião. Tu e a Manuela, em 1997. E, com a boa vontade de um passageiro (que aceitou trocar contigo  de lugar, um lugar à janela sempre é mais apetecível do que o do meio), conseguiram fazer a viagem juntos, pondo a conversa em dia.

Já não se viam há bastante tempo. E iam estar juntos em Berlim numa conferência internacional sobre saúde e segurança no trabalho. A Manuela, por sua vez, viera do Porto, tinha lá estado uns dias na festa de aniversário do seu pai e aproveitara para rever o irmão mais novo (que dirigia a empresa da família) e demais parentes e amigos.

Inevitavelmente a história da família veio à baila. A Manuela já te falara em tempos da sua “costela francesa e basca”. E na época, a ETA, a Euskadi Ta Askatasuna (em português, “Pátria Basca e Liberdade”) ainda estava ativa, sendo notícia, de quando em vez, em títulos de caixa alta, nos jornais, na sequência dos seus atentados ou da prisão de alguns dos seus operacionais e/ou dirigentes.

Em 1981 tu tinhas andado no  coração do país basco, do lado cá  dos Pirinéus. Foste de férias, tendo feito campismo  e passado por sítios icónicos mas ainda “sitiados”, e de algum modo "desaconselhados" pelas polícias e agências de turismo, na transição do franquismo para a democracia espanhola. 

Alguns desses sítios “tocaram-te” muito, de forma ambivalente, por uma razão ou outra, como foi o caso de  Guernica e Amorebieta-Echano. As placas toponímicas  estavam todas grafitadas, a vermelho, com os nomes das localidades,  então ainda  em castelhano, a serem  sobrepostos pelos nomes em basco: Gernika, Amorebieta-Etxano...

Era uma época em que ainda poucos turistas, espanhóis, franceses ou portuguesas, se atreviam a andar de carro, por aquelas bandas. Os de Madrid eram tratados por "perros", os "perros castellanos" (sic).  Os franceses também eram hostilizados, a menos que fossem bascos do outro lado dos Pirinéus. Os portugueses, apesar de tudo, eram melhor acolhidos. O teu amigo V... (que infelizmente  já morreu há uns anos) andava de boina basca e ainda tinha uma visão romântica sobre os "etarras" e todos os demais antifranquistas radicais, a FRAP, o GRAPO...  E fez  questão de fotografar todos os restos de murais que ia encontrando pelo “país basco” com referência aos fuzilamentos de 27 de setembro de  1975 (de 3 membros da FRAP e dois da ETA político-militar).

Parece que é preciso a gente ir  lá fora, ou lá para fora, para o "estrangeiro", para ganhar a suficiente distância, perder-se no  "labirinto da saudade" de que fala o Eduardo Lourenço... Como tu e o teu amigo V..., mais as respetivas caras-metade, que numa noite de verão e de tempestade, já em finais de agosto ou talvez princípios de setembro desse ano de 1981, chegaram a um parque de campismo perto de Guernica / Gernika… Justamente quando estavam a montar a tenda, começaram a ouvir, no altifalante, a voz da Amália em  "Estranha Forma de Vida"... E, depois a seguir, o "Grândola, vila morena", na voz de Zeca Afonso...

− Há emoções sentidas fora da nossa terra, que são indescritíveis,  e que nos marcam para sempre... – escreverás tu, mais tarde.

Tu, pessoalmente,  que toleravas a Amália, passarás a ouvi-la com outro respeito e  emoção, desde que ela morreu, em 1999...  Para o V..., em contrapartida , a Amália em vida não passava de uma "reaça". E o fado uma "desgraça", um dos três FFF que “o regime” (referia-se ao Estado Novo) “explorava até à exaustão para a adormecer o povo”...

Morrera na Flandres, na I Grande Guerra, o avô materno da Manuela. Teria 33 anos, a idade de Jesus Cristo quando foi crucificado.

− Ah!, a Flandres, o grande matadouro da Europa – comentaste tu.

O avô Ortiz era origem basca e francesa, pelo lado da  mãe. Dois dos seus três filhos acabaram por vir parar a Portugal como refugiados de guerra… Fugidos da guerra civil espanhola…

− Em 1936 ?!...

− Não, já em meados de 1937, depois do bombardeamento de Gernika (com K).

E esclareceu a tua interlocutora:

− Claro, eu ainda não era nascida, nem os meus irmãos. A minha mãe teria então 20 e poucos anos…

 Era  uma história comprida, dramaticamente cumprida, a da família Ortiz.

− E trágica, pode acrescentar. Pelo caminho ficaram alguns dos meus familiares, do lado materno, os Ortiz. Todos vítimas da guerra.

E depois de um curto silêncio, enquanto bebia o seu sumo, a Manuel repetiu enfaticamente:

− Vítimas da guerra, da violência, da intolerância, da estupidez humana…

Uma tia, mais velha que a mãe da Manuela, morrera no antigo Congo Belga, por altura da independência, em 1960 ou 1961.  Barbaramente assassinada, à catanada.   Era enfermeira numa missão católica.

Adiantou depois, a Manuela, que a última vez que vira essa tia fora quando ela veio de férias a Portugal. Teria então  os seus cinquenta anos. Lembrava-se do ano, 1958, porque fora na altura da “campanha do Humberto Delgado para a presidência da República”.

Mas a tragédia da família , que começara na Flandres, em 1918, não acabava aqui. O tio Ortiz  y Ortiz (conhecido só por Ortiz), o mais velho dos filhos do avô,  já antes, em 1944, tinha sido morto num campo de concentração nazi. Aos 38 anos anos.

E depois confidenciou-te:

− Vou conhecer Berlim, é a minha primeira vez, e vou tirar uns dias de licença para poder viajar até à fronteira da Alemanha com a Polónia. Pode ser que eu descubra o sítio onde o meu tio Ortiz foi assassinado. Pelo menos quero conhecer Auschwitz. Vou ver se arranjo coragem para ir, pelo menos, até Auschwitz.

Uma colega alemã, de origem polaca, já tinha dado à Manuela umas dicas sobre a região e a localização de alguns dos antigos campos de concentração nazis, na Alemanha e na Polónia.

− O alemão não é o meu forte. Só sei uns rudimentos. Formei-me em línguas românicas. E, na realidade, nem  sei para onde foi enviado o meu tio. Como vocês dizem em Lisboa, não fiz o meu TPC, não tive tempo,  com a ida ao Porto.

A Manuela Ortiz Fernandes era, pois, neta do “soldado desconhecido”. Uma barragem de artilharia alemã – é fácil de imaginar − tê-lo-á apanhado a conduzir a sua ambulância quando evacuava feridos graves, perto da  linha da frente.

A família nunca soube pormenores. Difícil de imaginar é o horror desta cena da morte do avô. Os seus restos mortais  nunca foram encontrados, o que de algum modo adensa o mistério das circunstâncias da sua morte.

− Não repousam por isso – esclareceste tu – em nenhum dos cemitérios militares da Flandres, com direito a lápide de pedra, placa com identificação (nome, posto e data da morte)… Nem à cruz dos cristãos.

O avô da Manuela, infelizmente, teria  ficado numa pilha de restos humanos, numa vala comum, no próprio campo de batalha… Pulverizado. Mas, a pior de todas ainda era a vala comum do esquecimento,  como é costume dizer-se a propósito dos  milhões de combatentes de todas as guerras da História.

A Manuela pegou nesta tua observação, trivial, para ir buscar um exemplo ao seu passado em Portugal:

− Ah!, sim, infelizmente, no colégio de freiras, no Porto, onde eu andei, só se falava dos heróis, dos reis e dos generais, sobretudo como vencedores das guerras da história de Portugal. Fazia-me sempre confusão. Muito menos se falava da guerra do ultramar. Eu tinha 15 anos, ia fazer 16, quando rebentou a guerra de Angola. O ‘terrorismo’, como dizia o meu pai. Ainda andava no 5º ano, e ainda estávamos chocados, lá em casa, com a morte da tia no Congo.

Em boa verdade, não se falava das guerras, não fossem as pobres criancinhas, suscetíveis, indefesas, ficaram para sempre traumatizadas… Os rapazes, esses, sim, teriam a oportunidade, única, de conhecer uma guerra a cores e ao vivo, dentro de alguns anos, pensaste tu... Em Angola, Guiné ou Moçambique..

− Não se esqueça – recordou-te ela – que eu ainda apanhei a ‘escolinha’ do Estado Novo e a mocidade portuguesa feminina.

E que lembranças tinha a Manuela desse avô Ortiz?

− Vi,  uma vez, uma foto dele, no dia em que terá sido promovido a sargento, presumo eu. Era um garboso militar do serviço de saúde. Bonitão, de bigode farfalhudo, como se usava na época. Era basco, do sul de França. Depois da tropa,  seguira a carreira militar.

E acrescentou:

− Havia uma outra foto, com os três filhos e a mulher. A minha mãe, que devia ter dois anos, estava sentada ao seu colo. Ao lado, dos pais, cada um dos outros filhos, a irmã e o irmão da minha mãe, que eram mais velhos.  Deve ter sido tirada em 1913 ou 1914, pouco antes do início daquela maldita guerra.

− Esses filhos, a sua mãe e os seus irmãos,  o que lhes terá acontecido depois?

Delicadamente, mas algo a  contragosto,  a Manuela procurou  satisfazer a tua curiosidade  intrusiva,  sobre os acontecimentos subsequentes que levaram à dispersão da família. Ela, Manuela,  só sabia, por alto, o que se tinha passado, no pós-guerra. Aos três irmãos,  tendo ficado órfãos, pôs-se  a hipótese de serem “institucionalizados”: como filhos de militar falecido (ou desaparecido)  em combate, poderiam ser internados num orfanato. O mais velho teria então 12 ou 13 anos. A viúva, essa, já estava internada num hospício.

Mas em vez de irem parar a um orfanato, foram acolhidos por uma outra família basca, do outro lado da fronteira, que tinha sido poupada aos horrores da guerra. As duas famílias ainda eram aparentadas, com um bisavô em comum. Daí tratarem-se por primos…

E aproveitou para te dizer que dava muita importância aos “laços de sangue” e que esse seria um traço forte da cultura basca… O que não te convenceu, mesmo sabendo pouco ou nada da cultura basca:

− Mais do que aos laços de sangue, eu dou importância à língua, à partilha de afetos, às memórias, às vivências comuns… A sua mãe falava basco?

− Infelizmente, não. A minha mãe e os seus irmãos, o meu tio e a minha tia,  só falavam o francês e depois o espanhol. A minha avó materna não era basca, são as mães, no país basco (e em toda a parte, julgo eu) que transmitem a língua (materna) aos filhos.

− E depois o português, claro?!

− Ah!, sim, mas só mais tarde. Todos aprenderam o português, exceto o meu tio Ortiz  que, esse, havia regressado a França, em 1936,  já homem feito, na altura do ‘Front Populaire’, a Frente Popular .  Em Bilbau, já era  um bom cozinheiro. Tirou depois um curso de ‘chef de cuisine’.

Sobrevoavam já a França, quando ela te começou a falar, surpreendentemente com grande ternura, desse tio que ela nunca conhecera, a não ser de fotografia e das conversas, esparsas, com a mãe.

Cozinheiro de profissão,  “partisan”, membro da Resistência Francesa, o tio Ortiz terá sido preso,  em 1941 ou 1942,   a seguir ao armistício, numa cidade da Côte Azur,  pela milícia do Governo de Vichy, e mais tarde “miseravelmente” entregue à Gestapo. O facto de ter sido capturado com uma arma em casa, contribuiu para agravar a sua situação.

Terá passado primeiro pelo campo de Gurs, nos Pirinéus Atlânticos, originalmente criado pelos franceses para acolher os refugiados republicanos, espanhóis e internacionalistas, fugidos do terror franquista, e que, depois, com o governo de Vichy, fora transformado em campo de detenção para os membros da resistência francesa, os judeus e outros…

Uns meses a seguir, o tio Ortiz terá sido transferido, com outros detidos considerados perigosos (com destaque para os comunistas) para o campo de Royallieu, na comuna de Compiègne, a nordeste de Paris. E aqui perdeu-se o seu rastro. Sabe-se que mais de cinquenta mil presos  desse campo (incluindo judeus) foram depois deportados para campos de concentração e de extermínio fora da França: Auschwitz, Ravensbrück, Buchenwald, Dachau, Sachsenhausen, Mauthausen, Neuengamme…

Qual deles terá sido a  "última morada" do tio Ortiz ?

A Manuela infelizmente ainda não sabia. Quando quis voltar a falar com a mãe sobre o passado da família e o destino trágico dos seus dos dois seus  irmãos, já ela estava mal, com idas frequentes ao IPO, no Porto.  

−E em 1975, também não tínhamos cabeça para nada, muito menos  para recordar o passado da família. Eu ia fazer 30 anos, já estava a dar aulas como professora de  francês, e o verão quente de 75 também mexeu muito comigo. Houve saneamentos de pessoas, a política estava ao rubro, havia conflitualidade por todo o lado, nos quartéis, nas ruas, nas empresas, nos campos, nas escolas...

A mãe, ainda lúcida, foi assaltada pelos fantasmas da guerra civil espanhol. Mas a família procurou poupá-la, ocultando-lhe a situação social, politica e militar que se estava a viver, incluindo os problemas da empresa do pai… Morreu em paz, na véspera de Natal. E ficou “sepultada na terra onde, apesar de tudo,  fora muito feliz”, o Porto.

Sobre a avó materna, a Manuela sabia ainda menos. Pouco ou nada lhe contaram  sobre ela em criança. Era um assunto tabu na família. A Manuela viria, mais tarde, a descobrir, pelo álbum da família e da pouca correspondência que se salvara, das andanças de terra em terra, que a avó francesa  enlouquecera na sequência do trágico desaparecimento do marido na Flandres.

– Vestira-se de luto, como as mulheres dos pescadores da nossa costa, mas não acreditava  na morte do marido. Tinha a secreta esperança que ele tivesse sido feito prisioneiro pelos alemães.  Morreria cedo, a avó, num manicómio. Mas, como disse,  não era de origem basca… A minha mãe também morreria cedo, como já lhe contei. Em 1975, aos 63 anos, no Porto. De cancro da mama, doença que na altura era quase incurável. O meu pai ainda a quis mandar para Londres, mas os médicos desencorajaram-no. E ele, já com 78 anos,  também estava com pouca força anímica.

Explicou-te por que é que nunca falou basco. Nem ela nem a mãe. Só o avô materno é que era basco. Em Bilbau, onde vivia e trabalhava em 1997, a Manuela ainda começara  a aprender o “euskara”…

– Já sou capaz de ler e compreender alguma coisa. Mas é uma língua tramada para os nossos ouvidos, indo-europeus. E, depois, verdadeiramente não me sinto basca. Sou muito mais portuguesa, e tripeira, se quiser... embora também goste de Lisboa, onde fiz o meu curso. A minha mãe, essa, sim, tinha as melhores recordações do país basco, da sua adolescência e juventude passadas na província de Biscaia, perto de Bilbau… O basco falava-se sobretudo nas zonas rurais e havia (e ainda há) vários dialetos.

– Mas tem material genético basco no seu ADN...

– Apenas uma pequena parte, nem sequer metade... E mesmo que fosse metade basca e metade portuguesa, o que é que isso queria significar?

– Nada!... Mas há a lotaria genética... Qual a metade boa, qual a metade má?

– Só me preocupo com os 'defeitos de fabrico'.. Olhe, por exemplo, o cancro da mama... Quanto ao resto, é puro racismo... Será que os bascos são mais 'violentos' ou 'truculentos' que os portugueses?

– Oh!, Manuela, não quis dizer isso nem sequer  insinuar...

– A ‘violência revolucionária’ da ETA não é um  fenómeno exclusivamente basco, nem eu me identifico com a ETA ou qualquer outra organização nacionalista radical...

– Outros dirão 'terrorismo'...

– Como o meu pai… Mas eu não entro por essas diferenças semânticas e conceptuais. Poupem-me! Violência é violência. Mas quem quis destruir a identidade, a cultura, a língua bascas ? Mais recentemente o Franco... que proibiu os bascos de falarem o basco, o ‘euskara’  e transmiti-lo aos seus filhos... Mas no passado, os bascos também  foram discriminados em Espanha, tal como outras minorias, os judeus, os catalães, os galegos...

– Desculpe, Manuela, se  involuntariamente  a ofendi ou melindrei. Também temos, na nossa história comum, como portugueses, períodos de grande violência, física e simbólica.

– Pelo que sei de História (e sei pouco, confesso), Portugal está longe de ser o tal país de brandos costumes que a propaganda de Salazar contrapunha ao resto da Europa do seu tempo...  Embora a minha mãezinha estivesse grata ao Portugal de Salazar, diga-se de passagem…

A família que acolhera (e depois adotara, legalmente) a mãe da Manuela e os irmãos, no início dos anos 20,  teve meios de se refugiar mais tarde, em Portugal,  em 1937. Eram nacionalistas e republicanos, mas católicos, como muitos bascos. Beneficiaram das boas relações comerciais e até de  amizade que mantinham no Porto. Era gente com tradição no negócio do vinho, com filial no Porto (que prosperou). Gente de “classe média alta”, segundo a Manuela.

− Foram os nossos ‘avós’,  adotivos. Infelizmente já morreram. Regressaram, no final dos anos 50,  aos arredores de  Bilbau onde sempre tiveram a casa e a quinta, a 'baserri', que entretanto fora transmitida ao filho varão, o mais velho, o equivalente à figura do nosso morgado.  E que cuidou do património. Nunca saíra de Bilbau, apesar das grandes dificuldades do pós-guerra. Também nunca mais o vi, a esse meu ‘primo’, que fomos visitar uma vez, teria eu os meus 10 anos.

Portugal  tornou-se assim  a terceira pátria da família, depois da França e da Espanha.

− Neste caso, da minha tia (que foi para freira), e da minha mãe… que conheceu aqui o meu pai, também ele negociante de vinhos, amigo dos meus ‘avós’,  adotivos… Na Praia da Granja, que era frequentada por uma certa elite, no início dos anos 40… Era quinze anos mais velho que a minha mãe. E daí a razão de eu ter nascido, em 1945, no Porto, já depois do fim da guerra. Sou filha do pós-guerra, faço sempre questão de o dizer. Mas, em contrapartida, o meu nascimento foi saudado com a bomba atómica de  Hiroshima e Nagasaqui, nasci  poucos dias depois, em agosto de 45.

O senhor Fernandes era um conceituado "comerciante de vinhos e espirituosas", grossista, importador e exportador, da praça do Porto, com armazéns em Vila Nova de Gaia, na margem esquerda do rio Douro, e negócios prósperos em África (nomeadamente em Angola).

Sabia-se (alguns amigos mais íntimos e a família) que tinha “uma ascendência cristã-nova”, com raízes provavelmente na medieva comunidade judaica sefardita da cidade do Porto. A família deve ter tido, em finais do séc. XVII, problemas com a Inquisição,  razão por que se mudou, na totalidade ou em parte, para o Brasil onde prosperou. Alguns terão regressado com a corte de Dom João VI, em 1821. E estiveram no cerco do Porto, ao lado de Dom Pedro IV.

O patriarca da família não tinha pretensões a títulos nobiliárquicos como o futuro apoiante da causa de D. Pedro IV e da sua filha Dona Maria II, o José Ferreira, que num dia será sido feito cavaleiro, no outro barão, e depois visconde, e por fim, conde... O conde Ferreira, o grande benemérito do nosso liberalismo.

Apesar de ter conhecido e até convivido, ao que parece,  com o capitão Barros Basto, o senhor Fernandes nunca se aproximou da comunidade judaica do Porto. Punha os seus negócios acima de outros interesses. Mas sempre foi um homem do seu tempo, “laico, republicano, liberal… e tolerante” (sic), mas com boas relações com o poder, ou pelo menos com o poder económico,  a burguesia financeira, industrial e comercial do Norte.  Foi o retrato que te fez a sua filha, já depois de terem chegado a Berlim.

Mas quem era afinal a Manuela Ortiz Fernandes?

Tu já a conhecias de Lisboa, das “lides profissionais”. Desde o ano da adesão de Portugal e da Espanha à CEE, a Comunidade Económica Europeia,  em 1986. Ainda não havia a União Europeia nem o euro.  

O meio profissional ligado à saúde e segurança no trabalho (ainda se dizia por cá “higiene e segurança no trabalho”, por um lado, e “medicina do trabalho”, por outro…) era então pequeno e toda a gente se conhecia, daqui ou de acolá (o ministério do trabalho, que tutelava a área, a inspeção do trabalho, as grandes empresas, os médicos do trabalho, os técnicos de higiene e segurança, a Escola Nacional de Saúde Pública, etc.).

Deves ter conhecido a Manuela nalgum encontro ou fórum internacional. Sabias que ela na altura trabalhava em Barcelona, e estava cá com uma representação catalã. E ficaram em contacto. Reencontravam-se agora, em 1997, no aeroporto a caminho de Berlim, uns anos depois da queda do muro e da reunificação da Alemanha. Continuavam a tratar-se por você. Sentias que ela gostava de guardar alguma distância e, como toda a gente, tinha as suas defesas. Mas era uma pessoa agradável, uma boa companhia sobretudo quando se está no estrangeiro, por uns dias, em trabalho.

Estavam  os dois a participar numa conferência internacional sobre saúde e segurança no trabalho (“health and safety at work”). Tu, como académico, ela como tradutora-intérprete da Agência Europeia de Segurança e Saúde no Trabalho, com sede em Bilbao, criada em 1994, responsável pelo evento em parceria com a autoridade alemã para as condições de trabalho.

Por sorte, estavam alojados no mesmo hotel, de três estrelas, confortável, barato, e com bons acessos, perto da estação de metro que os levava ao centro de conferências onde se realizava o encontro.

O edifício, embora totalmente remodelado, ainda tinha traços da arquitetura “estalinista” do pós-guerra. A zona oriental de Berlim ainda era um mundo à parte, embora já sem o muro (ou com apenas alguns restos dele, todos grafitados). Era muito procurada pelos turistas, até porque os preços da hotelaria e restauração eram mais baixos do que do “outro lado”, ocidental… E, depois, ainda era um “museu vivo” da antiga RDA – República Democrática Alemã…

Para a Manuela e para ti,  era uma sensação estranha: o muro estivera de pé entre 1961 e 1989, dividindo não só os berlinenses e os alemães, como os próprios europeus. Era o “muro da vergonha” de todos os europeus, e não só dos alemães...

Se é verdade que a reunificação da Alemanha, há sete anos atrás, em 1990, marcara o fim da chamada guerra fria (opondo a União Soviética aos seus antigos aliados ocidentais da II Guerra Mundial), ambos se davam  conta, em 1997, que infelizmente outros muros, invisíveis (ou menos visíveis a olho nu), se estavam a erguer na “nossa velha e adorada Europa”. E que a Rússia afinal era um urso ferido e humilhado, o que não era bom para ninguém, a começar pelos europeus, tanto do leste como do oeste.

A decadência urbanística ainda era evidente. Mas Berlim já era então um estaleiro de obras públicas, estava em marcha a segunda reconstrução da cidade, depois da terrível destruição da II Guerra Mundial. (Quem não se lembra do filme "Alemanha, Ano Zero", de Roberto Rosselini, de 1948?)

Ainda era verão, mas as noites de Berlim não convidavam a grandes passeatas. Depois do jantar, ficavam à conversa sempre que não havia “programa social”.  Já tinham feito um “city tour” pela Berlim leste, e "canibalizado" um bocadinho do muro como "recuerdo", como toda a gente fazia.

Havia mais alguns portugueses, participantes no encontro, representando a administração do trabalho e os parceiros sociais, mais um ou outro médico do trabalho. Mas estavam alojados noutro hotel, dos selecionados pela organização, e que ficava no mesmo quarteirão, não longe dali.

Na época a Manuela ainda fumava muito, e queixava-se que o tabaco prejudicava o seu desempenho profissional como tradutora-intérprete: às vezes ficava rouca, ou com tosse, e até sem voz.

− Queria muito poder deixar de fumar – confidenciou-te ela, a ti, ex-fumador, mas tolerante.

Na época havia uma “cruzada fundamentalista” contra o tabaco e os tabagistas. A Manuela ficava “piursa” (sic) quando tinha que ouvir o discurso dos nórdicos (a que os latinos ainda faziam orelhas moucas)… O "fascismo sanitário", dizia ela, começara nos EUA e nos países nórdicos...

Mas foi a propósito da história da família que tu retomaste a  já longa conversa sobre o tio Ortiz y Ortiz (ou só Ortiz), interrompida, quando o avião aterrara.

Ela própria reconhecia que era “muito conversadeira”, saindo nisso à mãe. Por outro lado, aos seus olhos, tu terias a qualidade de ser uma boa companhia, senão mesmo um discreto confidente. Além disso, “sabias ouvir”, sem estar sempre a interromper, com perguntas ou apartes. Muito menos fazias críticas ou juízos de valor. E sobretudo inspiravas-lhe confiança. E nada como o “hall” de um hotel estrangeiro, convidativo ao “dolce far niente”, à conversa mole e também à má língua… sobre colegas, organizações e países.

−Auschwitz?... Poucos alemães lá devem ter ido. Havia o muro da vergonha, mas também antes os campos da vergonha – atalhaste tu.

− É como o Vale de los Caídos, em Espanha, onde tiveram a lata de sepultar o Franco. Recuso-me terminantemente a lá ir.

Da sua vida privada, nunca te falou ou só muito por alto. Tinha mais dois irmãos, sendo ela a mais velha. Do do meio, disse-te que não lhe apetecia sequer falar. Saíra do país antes de fazer os 18 anos, para escapar à tropa. Radicara-se em Andorra onde tinha um “hotel de charme”. Empresário, diretor turístico, pouco ou nada queria saber da família e de Portugal. Antes do 25 de Abril não podia sequer lá pôr os pés, sendo considerado faltoso ou refratário. O mais novo, esse, ficara à frente dos negócios do clã, para descanso e tranquilidade do velho pai que não queria ver morrer a empresa da família, que sofrera um abalo com o 25 de Abril e depois com a descolonização.

Ela, por sua vez, saíra de Portugal em 1976, no final do ano letivo.

− Não gostei do rumo político que tomou a revolução dos cravos… Também achei que fora um sonho lindo que acabara como todas as utopias… E cada um queria ver realizada a sua!... E muito menos gostei da minha curta e frustrante experiência de professora de francês. Na minha escola havia quase tantos grupúsculos políticos quantos os professores...

Foi para Barcelona onde fez um curso de pós-gradução de tradutora-intérprete. E arranjou a seguir trabalho como tradutora. Poliglota, além do inglês,  falava fluentemente ou lia quase todas as principais línguas latinas ou românicas (o castelhano, o catalão, o francês, o português, exceto o romeno). Não desgostava do que fazia, embora não morresse de amores pela área da saúde e segurança no trabalho. E viajava, que era uma coisa que lhe agradava. E sobretudo não ganhava mal (“ganhava muito mais do que em Portugal”).

Nunca soubeste se tinha filhos, relacionamentos, etc. Nem ela alguma vez te perguntou pela tua família. Era uma mulher atraente, mas de forte personalidade, “muita senhora do seu nariz”.

Só uns dois ou três anos mais tarde, já no virar do século, é que a Manuela te contou o desfecho da história (trágica) do tio Ortiz. Desta vez, fora em Bilbau, quando se voltaram a encontrar. Já existia o Museu Guggenheim e a cidade já nada tinha a ver com a decadência urbana e industrial  que tu conheceras em 1981, quando a visitaras pela primeira vez.

 Afinal,  não fora na Polónia  nem na fronteira da Alemanha com a Polónia, como ela imaginara, que o tio Ortiz morrera:

− O meu tio Ortiz morreu em Dachau.

− Em Dachau?!

− Sim, em Dachau, na Baviera, no sul da Alemanha, a escassos quilómetros de Munique...

Acabou por saber, mais tarde, de fonte francesa, que o tio Ortiz fora levado de Royallieu para Dachau. Por incrível que possa parecer, os SS (Schutzstaffel) que administravam o campo, construído pelos nazis para internar presos políticos e inaugurado pelo próprio Heinrich Himmler, em 1933, aproveitaram as competências profissionais do tio Ortiz. 

Por sorte ou por azar dele, puseram-no a cozinhar para os carrascos. Por sorte, porque foi poupado aos duros e infames trabalhos que eram reservados aos prisioneiros; por azar, porque não podia cometer erros. (Nunca lhe poderia, por exemplo, passar pela cabeça envenenar a comida: ele era o primeiro a ter que a provar.)

Ganhara as boas graças dos carrascos, que até o tratavam, à francesa, por "chef", em tom de chalaça, com um toque do humor, alarve, bávaro. Mas a “cuisine française” (tal como os vinhos, o "cognac" e o "champagne") não deixava de ter  prestígio aos olhos dos nazis…

− No inferno, a cozinha é inglesa, a gestão italiana e o humor alemão... Nunca ouviu dizer? – perguntaste tu à Manuela. − É uma variante da anedota  que os idiotas dos europeus contam uns sobre os outros...

Havia várias células, clandestinas, da resistência francesa em Dachau. 

− O tio Ortiz fazia parte  de uma. E, depois de ganha a confiança dos SS, começou a guardar as sobras das refeições  e reparti-las pelos seus camaradas que por sua vez também as faziam chegar aos mais fracos e doentes... 

É o testemunho posterior de um dos sobreviventes, disse-te a Manuela.

− A imaginação, a capacidade de resistência e a abnegação do ser humano, mesmo em situações-limite como a guerra, a prisão, o campo de concentração, o terminal da morte, levam-me a pensar que às vezes nós, homens, também somos capazes de  transcender a nossa condição animal e atingir, mesmo que por breves instantes, o estatuto do herói, do semi-deus, do herói grego como o Ulisses...

E concluíste o teu pensamento:

  Manuela, o seu tio Ortiz foi um herói. Um herói trágico.

O esquema funcionou até meados de 1944. Quando foi descoberto (ou denunciado?), o tio Ortiz foi sentenciada com a pena capital, sem apelo nem agravo, pelo comandante do campo, que adorava os seus cozinhados. Foi executado no dia seguinte para exemplo dos outros presos. Deram-lhe apenas a escolher (!)... entre a forca e o fuzilamento. Escolheu o pelotão de fuzilamento, honrando a sua condição de “maquisard”, de antigo combatente no “maquis”…

− Resistiu até ao fim, no limite das suas forças, da sua lucidez, da sua coragem. E, apesar da tortura, não terá denunciado ninguém... Morreu com grande dignidade, como poucos, gritando perante os seus carrascos: ‘Vive la liberté, l'égalité et la fraternité!... Vive... la France!’ [Viva a liberdade, a igualdade e a fraternidade!... Viva a... França!]

E, um pouco emocionada, a Manuela concluiu:

− Tenho orgulho no meu tio Ortiz!

[Por razões óbvias,  Manuela, que ainda deve estar  viva,  é um nome fictício. LG]

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