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domingo, 28 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25117: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (16): Excertos do Diário de um 'Bate-chapas'


Guiné > Zona leste > Região de Gabú > Piche > CCAÇ 3546 (1972/74) > Coluna logística, vinda de Piche, a chegar à Ponte Caium... À frente uma Chaimite,  seguida de uma White...  

Foto do álbum fotográfico do nosso camarada Jacinto Cristina (natural de Figueira de Cavaleiros, Ferreira do Alentejo), o mais famoso padeiro do CTIG, esteve mais de um ano no destacamento da Ponte de Caium.

Foto: © Jacinto Cristina (2010) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].





Imagem da parada de Bajocunda, em dia de chuva... Foto cedida por Amílcar Ventura, ex-fur mil mec auto, 1ª CCAV / BCAV 8323 (Pirada, Bajocunda, Copá, 1973/74).  

Foto: © Amílcar Ventura (2010) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Contos com mural ao fundo (16): Excertos do Diário de um 'Bate-chapas'

por Luís Graça


Excertos do Diário de um 'Bate-chapas'...Trata-se de uma alcunha, "Bate-chapas", o que era vulgar na tropa e na guerra. A começar pelo Spínola, toda a gente tinha alcunhas. E algumas bem brejeiras, se não mesmo pornográficas. Dizem os entendidos que a palavra vem do árabe al-kunia, sobrenome... (Significa: epíteto, geralmente fundado nalguma particularidade física, moral ou comportamental do indivíduo ao qual ele se atribui.) 

Neste caso, o indivíduo és tu, fotógrafo amador que, nas horas vagas, fazias retratos dos teus camaradas, na Guiné, tendo um pequeno laboratório de fotografia, a preto e branco, onde revelavas os negativos. Frequentemente usavas a expressão  "Vamos bater uma chapa"... Daí a alcunha...

Estes excertos fazem parte de um texto que, se um dia passar no crivo da crítica,   talvez  ainda possa vir s ser publicado como livro de memórias de um ex-combatente, numa  singela edição de autor.  (
Só tens dúvidas sobre o eventual interesse que as tuas memórias poderão ter para a posteridade.)


2/3/2018

Dia de inverno. Não admira, estás em março. E a primavera é só daqui a três semanas. E parece que vai continuar assim nos próximos dias. Partidas da meteorologia. Ou nem por isso. Se há algo que é previsível (ou devia sê-lo) é o tempo. Razão por que há as previsões meteorológicas e os meteorologistas. Ciência matemática, garantem-te, o que não quer dizer exata. Como a ciência militar, que é arte e engenho...

Dantes, qando eras miúdo,  pensavas que era o São Pedro quem mandava nos céus e arredores. Metiam-te medo com o dilúvio e a arca de Noé na catequese. Santa ignorância, quando se é puto. Quem te metei isso na tua cabeça,  essas patranhas ?  O senhor abade, a catequista, a professora (cresceste na aldeia)... 

Agora parece que já destronaram o santo, não havendo ninguém de respeito que mande nesta... "merda" cá em baixo. Anda tudo desregulado: o tempo, o clima, a economia, os quatros humores, a saúde, a cabeça dos humanos… Até as estações do ano andam trocadas.

Quando eras puto, havia quatro estações, e o Natal era no inverno, e fazia frio, e caía neve. Ou, pelo menos, a água gelava no fontanário da aldeia da tua mãe. 
Na Guiné, no teu tempo, havia duas estações, dividindo o ano ao meio: a das chuvas (de maio a outubro), e a do tempo seco (de novembro a abril). 

E quando as primeiras chuvas caíam era uma explosão de vida e de alegria. Lembras-te dos milhões de insetos que caíam no chão (e no prato da sopa, se era à hora do rancho). É das imagens de rara beleza que tu guardas de África, a alegria de miúdos e graúdos que vêm para a rua "embebedar-se de água". Literalmente, "embebedar-se de água". Tens pena de nunca ter tirado uma "chapa" a cenas "bíblicas",  como esta.

Até tu, ó "Bate-chapas", pé de chumbo, vinhas para a rua, no meio da tabanca, dançar com os "djubis", as bajudas e as mulheres grandes. Grande tonto!... Mas, de facto,  nunca te lembraste de tirar umas "chapas" desses momentos que, afinal, eram dos mais felizes da vida na Guiné, os primeiros dias de chuva!... E o cheiro que  a terra molhada recendia!...

Reflexão amarga, quando pensas nesse tempos, de há 50 anos atrás: hoje o deserto avança, e
stás a dar cabo da tua casa, do teu chão, do teu teto, da tua terra, dos teus rios, dos teus mares. Aqui  e na  Guine, pelo que te têm  contado, a malta que lá voltou..  A fauna e a flora, as criaturas de Deus, sofrem sem terem culpa, à exceção do bícho  homem.

Pintem-no de todas as cores, para que ele apareça ainda mais feio, fero e mau, neste caso o "diabo branco" que metia medo aos "djubis" na "festa do fanado"!… O povo precisa, em todas as culturas, da figura de um diabo, ora branco, ora preto, ora vermelho,  que simbolize o mal absoluto, que aterrorize, mas que também brinque com a gente. Como os caretos transmontanos da tua infância.

Em dias assim, o que te resta é meter-te num centro comercial, o mais perto de casa, com estacionamento à borla, luzes, lojas, ar condicionado, ... e o formigueiro humano, 
gente tão solitária como tu,   cada um no seu carreiro, co a formiga,  subindo e descendo escadas rolantes...

Enfias-te num cinema, dantes ia-se para a tasca, o homem, ou a igreja, a mulher. A oferta é muita mas a maior parte é lixo. Puxas dos cartões, à cata de descontos. Sempre dão para as pipocas. Afinal, ser velho  é um "privilégio"  nesta ociedade!....  Sénior, se faz favor
 Veterano!....

Não sejas intelectualmente arrogante. Se o lixo está em cartaz, é porque há clientes, há público para consumir o lixo. Ainda por cima pagam para comer lixo. 

Não sejas mau, da tua parte também és um consumidor de lixo, seja cinema, sejam salmões da Noruega,  ou douradas da Grécia, ou nozes da Califórnia,  ou as mensagens de gente megalómana ou mesquinha  nas redes sociais. (Felizmente, e para bem da tua saúde mental, eliminaste a tua conta no Facebook.)... Sem esquecer  o  futebol ou as pregações evangélicas ou os "sites" pornográficos. Ou os "best-sellers" de Natal. O último romance do...  "Ah!, Ainda não o leste, bolas, não sabes o que estás a perder ?!... Devias ter lido, está no 'top ten'.... É o máximo!"...

Em suma, o que se vende é o que é badalado, o que é visto na televisão.   Claro, há uns gajos de fato completo e gravata que gozam à brava com isto tudo, e vão aumentando as suas contas bancárias e fortalecendo as suas redes de poder e de influência. As lojas e as redes sociais estão cheias de lixo, barato, a preço de saldo, que tu compras. E "a malta não olha a preços, quer é descontos"… e viver, freneticamente, o cagagésimo de segundo do presente... que amanhã já será passado. E pesado.

"O último a morrer que feche a tampa do caixão!", lembras-te do sacana do quarteleiro que nunca saia do quartel, era a função dele,  ficava a guardar as armas e as bagagens, quando a gente saía....  Mas  tinha um medo do caraças de  um eventual ataque ao quartel com foguetões 122 mm. (Não o dizia nem o confessava, mas percebia-se.)

Lembras-te, ó "Bate-chapas"?!... Foi a frase publicitária de maior sucesso que tu criaste lá no quartel: "A malta não olha a preços, quer é descontos"… Tão atual, hoje em dia, cinquenta anos depois!... Eh, pá, tu devias ter ido para o marketing criativo!...e nunca para fotógrafo de casamentos e batizados!... E será que hoje serias mais rico e feliz ?

Houve "chapas" ao preço da chuva, no primeiro Natal que lá passaste. A malta mal ganhava para a cerveja. Mas um luxo era a fotografia para mandar para casa... Não perdeste dinheiro, até ganhaste algum. Foi uma operação de "marketing", para lançar a marca do "Bate-chapas". E o sucesso foi de tal ordem que vendeste logo umas largas dezenas de fotos da malta vestida de pai Natal tropical, ladeado de bajudas de "mama firme"... Fizeram sucesso, os gajos da CCS do batalhão  também se juntaram à festa, a clientela foi aumentando...

Com esse  "patacão" começaste a  investir em máquinas fotográficas e outro  material  para o laboratório. No final da comissão, tinhas três máquinas compradas em Bissau, lá na loja dos libaneses, o tal Taufik Saad...  E compraste peças de artesanato em prata, feitas pelo ourives de Bafatá... E mais quinquilharia asiática, louça chinesa, etc. , que chegava a Bissau, oriunda de Macau.  Ainda chegaste a embalar tudo, até que um incêndio reduziu os teus "recuerdos" da Guiné a cinzas...

Havias gajos que arriscavam,  faziam chegar algum contrabando, como as bebidas alcoólicas da Intendência, através desse truque dos caixotes feitos com tábuas de madeira preciosa, que valiam ouro na metrópole, nessa época.

"Bate-chapas"!!!... A princípio, não achaste piada nenhuma à alcunha... "Bate-chapas" era uma especialidade dos gajos da ferrujem. Havia bate-chapas,  estofadores e até correeir
os.  Afinal, a tua arma era a cavalaria. 
Mas não te lembras de ver por lá alimárias, a não ser uma ou outra besta humana... , coisa que, de resto existe em todo o lado.

"Bate-chapas!"... Que insulto!.... Era desvalorizar o teu talento e a tua arte de fotógrafo. Mas toda gente tinha uma alcunha. E tu acabaste por assumir a tua. Até a mulher do capitão, era a "Capitoa". E o alferes "Casanova", do esquadrão,  era o... "Picha d'Aço". E o cozinheiro, o "Merda Seca"... E o impedido do capitão  o "Meia-Leca"...

As lojas aqui, no centro comercial, também tresandam a "merda seca", "made in" China, Indonesia, Bangladesh. Dantes, tinhas "scotch whisky", marca branca, que vinha diretamente da Escócia em barris para a malta da tropa. O mais baratinho. E depois engarrafado no Beato com água do Tejo, dizia-se. Chamavam-lhe "uísque de Sacavém". Para os bravos que se batiam para sobreviver à tona de água do Geba!... Nunca foi coisa que apreciasses, tinhas os teus problemas de estômago...

"Beber a água do Geba"...  Lembras-te da expressão ?!... Bebeste algumas vezes a água do Geba, mas nunca tiveste saudades da Guiné nem muito menos vontade de lá voltar. Mas quem recorda, não desdenha, é isso ?!

E nos saldos saldam a roupa de inverno e os sapatos de inverno, porque já vem aí a primavera e logo a seguir o verão do contentamento da malta. "Ainda vamos ser felizes, meu amor, com casa à beira da praia no reino de Portugal e dos Algarves", diz a chavala para o gajo, ali ao teu lado, comendo pipocas. (Não percebes esta mania, horrorosa, de as miúdas de agora se tatuarem de alto a baixo, parecem umas osgas, todas pintalgadas!)

Compra-se a crédito, barato, a casa de praia, pré-fabricada. E a mobília. E os electrodomésticos. E o amor. E a moda é quem mais ordena. Consumir é bom para a economia, que acelera e às vezes desacelera, para desespero do senhor ministro das Finanças… Mas nem tudo o que é bom para a economia é bom para o balanta, o felupe, o fula,  o mandinga ou o bijagó... Ou o morador do Bairro da Bela Vista em Setúbal onde vivia um dos teus antigos camaradas do esquadrão,  de quem não sabes noticias há já uns largos anos.  Era de Cabo Verde, chamavam-lhe o "Turra", na brincadeira. (HoJe acusavam-te de racista!)
 
10/3/2018

Foste à praia do Guincho, "levaste o carro a passear", gostas de lá ir no inverno. O mar está sujo, escuro e bravo como um touro. Espuma de raiva. Às vezes apetecia-te ter a raiva do mar. "Vamos ter forte temporal esta noite", dizem os metereologistas da Antena Um, os novos profetas da desgraça. Aviso amarelo a passar para o vermelho daqui a umas horas. Tempestade Félix. 

Não percebes nada de meteorologia, meu estúpido. O que é o anticiclone dos Açores ? E o que é uma tempestade ? E um furacão ? Há uma escala para medir estas fúrias dos elementos da natureza. Devias saber mais sobre estas merdas de que agora tanto se fala, as alterações climáticas, a subida da água dos oceanos, os fogos florestais....

Há gajos que são pagos para saber.  Tivestes 22 meses na Guiné, na puta da guerra, a defender a Pátria, nunca te explicaram quem era a Pátria, essa entidade nebulosa, hermafrodita, simultaneamento macho e fêmea. Nem nunca te disseram quem eram os pais da Pátria... Nunca te explicaram isso, nem na recruta nem na guerra. O teu capitão de cavalaria.  que até era um gajo fixe, afável, católico, não tinha jeito nenhum para as tiradas patrióticas. (Tinham má fama, não sabes porquê,  os oficiais e sargentos de cavalaria.) Nunca o ouviste falar da Pátria. Mas os camaradas que morreram na estrada de Piche, esses, "morreram em nome da Pátria"... Viste cópia do telegrama, "tipo chapa um", que se mandava para a família, da malta que morreu, calcinada na Chaimite. na estrada de Piche-Buruntma.

15/3/2018

Fazes horas… Meu estúpido, que raio de expressão?!... Se tu soubesses em que ano, mês, semana, dia ou hora a morte te vinha bater à porta, já tinhas dado um salto mortal no sofá, no "hall" do cinema, e programado os últimos dias ou meses que te sobravam para viver… Ninguém entra em pânico com esta hipótese felizmente teórica, a não ser quando ouve o verídico final do médico, do juiz ou do carrasco. Os médicos agora já não estão com paninhos quentes, olham-te, olhos nos olhos, e fuzilam-te:  "Dois ou três meses de vida, trate de fazer as malas"...

A sacana da tua médica de família mandou-te ir ter com os gajos do ACP, o Automóvel Clube de Portugal, para te passarem o atestado médico a enviar ao IMT – Instituto da Mobilidade e Transportes. Está de greve, a gaja! Ah!, querias revalidar a carta de condução ?!...Ela diz que não pode atestar a tua validade (e, muito menos, a virilidade, a acuidade auditiva, a sanidade mental, a integridade da rede neuronal, a verticalidade da coluna vertebral, e por aí fora)…

"Estamos todos a prazo, doutora… Quem me diz que não apanho uma macacoa ou não sou atropelado à porta do centro de saúde ?!... Ainda há dias, um velhote com 90 anos, sem carta (há mais de cinco anos!), me iam passando a ferro na passadeira… Velhote de 90 anos, um  piloto, medalhado!... Um histórico da TAP, que ainda pilotara os Super Contellation nos anos 60 e tinha saudades de Lourenço Marques do Kanimambo!"...

E tu que vais fazer setenta em 2020, se lá chegares ?!.. 20 anos de distância ainda é muito ano… Não é nada, idiota, é já daqui a 20 anos!... E a guerra já acabou há 50!...

Fazes horas!... em vez de estares a viver intensamente o resto dos dias que te faltam para cumprir calendário… Agora vives para cumprir calendário, para não dar cabo da estatística da esperança média de vida… Por patriotismo, para que o teu país não fique "mal na fotografia", como ficava nos anos em que lá andaste, na Guiné, apontador de Chaimite!...E, nas horas vagas, a tirar o retrato à malta... Toda a gente queria tirar o retrato para mandar para casa, no aerograma do dia seguinte, como "prova de vida"... "Estou bem, meus amores, até ao meu regresso!... Rezem por mim"... (Não se podia mandar fotografias nos aerogramas, mas a malta queria lá saber!)

Até tu, lembras-te ?!, ias fazendo um tracinho na parede, em cada semana que passava… 4 eram um mês, 48 um ano, mais coisa menos coisa… Que um gajo queria era cavar daquele campo de concentração!... E "a Pátria deles, que se fodesse"!...

Quando um gajo trabalhava, tinha horas para tudo, estava tudo planeado, regulamentado, havia normas e leis, livro de ponto,  usavas agenda e gravata, saías de casa de manhã, entravas à noite, metias-te no comboio de Sintra a caminho de Lisboa, com regresso a Rio de Mouro, a tua gaiola dourada com vista sobre o Palácio da Pena, a serra de Sintra, o pavoroso cimento à volta!...

 Um mouro de trabalho, isso sim, uma besta de carga, foi o que tu foste!... Sem sábados nem domingos, que eram dias de casórios e batizados... Para quê ?, para quem ?... E sobretudo porquê ?

Agora não já precisas da puta da agenda, nem de apontar o nome e o número de telefone dos clientes e fornecedores, a não ser para marcar a consulta do dentista e registares o dia e a hora da última vez em que deste uma queca! Fazes as palavras cruzadas e a sopa de letras que é para prevenir o Alzheimer, a recomendação da tua vizinha, ainda boazona, que vive sozinha com o cão, e que trabalha lá na clínica manhosa do teu bairro…(Deve pensar que ainda és um bom partido, com umas pequenas recauchutagens! )

Agora és um cinéfilo compulsivo, vais ao cinema todas as semanas...As sempre adoraste cinema. Foste ver opp filme "Três cartazes à beira da estrada"… Passa-se num cidadezinha ronceira do Missouri e há uma mãe justiceira que quer vingar a violação e a morte da filha, um lugarzinho do mundo onde nunca foste, nem onde nunca irás, porque é sítio que não interessa nem ao menino Jesus, tal como o Rio de Mouro, ou a puta da aldeia da tua mãe, Mazouco, lá em Freixo de Espada à Cinta onde nasceu também a tua avó e a tua bisavó (que nunca conheceste).  Tal como não conheceste o filho ilustre da terra, o almirante Sarmento Rodrigues que foi governador da Guiné, nos anos 40 (coisa que não sabias, imagina!).  Nem muito menos o poeta Guerra Junqueiro. (Nunca te falaram dele na escola.)

Morrerá de parto, a tua mãe, do teu mano mais novo, uns anos depois,  ainda andavas na escola, contava-te a chorar o sacana do teu velho, que voltou logo a casar, sem chegar a fazer o luto...

Cresceste sem mãe a partir dos 10 anos. A outra foi sempre madrasta… Mãe é mãe e só há uma... Também lá está a fazer tijolo, a tua madrasta, ela e o teu velho, morreram, há mais de dez anos, os dois num acidente de carro, na autoestrada a caminho do Norte… Um estúpido acidente com a gaja a conduzir com a mão direita, com o telemóvel na mão esquerda… Infelizmente, o teu velho morreu sem teres resolvido o contencioso que tinhas com ele… Nunca gostaste da gaja dele, que afinal o acabou por matar... Há anos que não falavas com ele e muito menos com ela...E estás com essa atravessada na tua consciência, acusa-te o teu irmão mais novo, que aparava o golpe. Sentes culpa por o teu velho ter morrido, nas circunstâncias trágicas em que morreu, sem nunca teres tido uma conversa séria com ele, nem que fosse de despedida, de filho para pai, de pai para filho...

E lá no Missouri, no sul, na América profunda onde nada acontece, o raio do realizador fez um filme que é um misto de tragédia, comédia, "western" e "thriller" policial. (Eh!, pá, andas a pensar fino e a falar grosso, ainda acabas em crítico de cinema… E já tens "nick name", o "Bate-Chapas", registado na Sociedade Portuguesa de Autores, para quando acabares de escrever e publicar o teu livro, "Memórias de um 'Bate-chapas' que queria ser fotocine na Guiné")…

Ea propósito, achas que é um bom título, camarada ?... Não é, não, senhor, vão-te confundir com os gajos da ferrugem… E depois é comprido demais!...."Bate-chapas", essa, sim, era uma especialidade dos gajos da ferrugem... Havia uma 1º cabo bate-chapas, na CCS do batalhão, que estava em Nova Lamego, mas a malta chamava-lhe o "Penedo Durão", era teu conterrâneo de Poiares, imagina como o mundo era pequeno!... (Chegaste a beber uns copos com ele, quando lá ficavas!... Perdeste-lhe o rasto,  nem sequer voltaste mais a Mazouca. )

E alguém sabe lá o que é um fotocine!… Estes gajos de agora não foram à tropa, esta geração do pós-25 de Abril… "Bate-chapas"… que raio de alcunha que te puseram!.. Tu nunca foste mecânico, eras operacional, 1º cabo apontador de cavalaria…   E fotógrafo nas horas vagas.

Chamavam-te "Bate-chapas", tamubém na reinação, os "djubis" e as bajudas, por que andavas sempre a tirar fotografias, no quartel, na tabanca, nas colunas, era o teu biscate, o teu "vício", para arredondar o pré ao fim do mês, e fazer um pé de meia para as férias… Eras um fotógrafo compulsivo, rconheces hoje. Revelavas e expunhas as provas, numeradas, num placard que servia de mostruário.

A Arminda e a garota, que tu mal conhecias (tinha escassos meses, a tua filha, quando partiste para a Guiné), ansiavam por ti, ainda faltavam dois ou três meses para vires de férias… Quem eram os cabos que vinham de licença de férias à metrópole nesse tempo? Só tu, que tinhas dois ordenados, e o cabo cripto, que era um gajo evoluído, com estudos como tu (por sinal,  chumbaram os dois no CSM), e o "escritas" que também comia da gamela com o "nosso primeiro"… E, claro, os graduados, os f urriéis, os sargentos, os alferes, e o capitão no 1º ano (no segundo ano levou para lá a esposa, a "Capitoa", uma valentões que aguentou com um ataque de foguetões 12mm ao).

Podias ter sido fotocine, se tivesses tido uma boa cunha, se tivesses tido sorte na puta da vida, era uma rica especialidade, não saías de Bissau, quando muito terias que fazer uma ou outra sessão de projeção de cinema no mato… Ias de avião até Bafatá ou Nova Lamego, depois apanhavas uma coluna… Na outra semana, descansavas e ias beber umas "bazucas" no Pelicano ou na 5ª Rep (o Café Bento!).

Lembras-te quando a malta do esquadrão esteve de prevenção em Bafatá?!... Mesmo assim, furava-se o esquema, ia-se à noite ao Bataclã ( uma espécie de clube noturno lá  do bairro), no dia dos teus anos, armaste-te em rico, até convidaste as gajas todas que fodiam com a tropa, para ir ao cinema, ver uma cagada de um filme cómico italiano do tempo da Maria Cachuca ?!… Foste que tu pagaste os bilhetes, foi bodo geral aos pobres... Os "djubis", as bajudas e as mulheres grandes, riam-se que nem uns perdidos, mesmo não percebendo patavina que os gajos e as gajas do filme diziam, em italiano, e muito menos as legendas… E o sacana do Lopes, trocista e racista, a mandar as suas bocas: "Ó Barrote Queimado, quem não sabe ler, vê os bonecos"…

O cinema de Bafatá, a grande obra de civilização que lá deixou o "tuga" no leste… Mais a piscina, e a mesquita, e a catedral… Nunca mais viste um filme quando a guerra começou a sério para o esquadrão, e os índios e os cobóis deixaram de ter tempo para limpar as armas…


16/3/2018

Rica vida de reformado, dirás tu, a gozar contigo próprio. Dias de inverno, a escassos dias da primavera que há-de vir (ou não). Foi um mês em que choveu sem parar. E vai continuar a chover , pelo menos até ao dia 22, segundo viste na Net. Afinal, do que seria de ti sem o raio da Net, mesmo já não tendo os teus amigos virtuais do Facebook... Aliás, não tens um   amigo verdadeiro, do peito, daqueles  que te possam dar um ombro para chorar, se um dia vieres a precisar. ("Que um homem não chora, muito menos os camaradas da Guiné", dizia o "Casanova", armado em durão...)

Voltas a enfiar-te no "porto de abrigo" do teu centro comercial. O que dá para ver a meio da tarde, ó cinéfilo ? O filme "Post", de SpielBerg, com o Tom Hanks e a Merry Streep. É sobre quê ?, perguntas. O papel do jornalismo nas democracias modernas. O braço de ferro do "Whashington Post" e do poder político-militar na América que queria cortar o bico aos jornalistas.

Não é nada de empolgante, mas é importante pelo episódio (histórico) que recria: publicação, pelo "New York Times" e pelo "Washington Post", dois jornais de referência, dos papéis do Pentágono, um documento ultrassecreto feito por académicos sobre o envolvimento americano no Vietname, desde o presidente Eisenhower. Os governos americanos foram-se atolando no Vietname e as perspetivas eram claramente as de uma crescente escalada e quiçá desastre a nível militar.

O estudo encomendado pelo Robert McNamara estava guardado a sete chaves até que uma cópia foi parar aos jornais… Mas há lá chaves e cofres que guardem um segredo ?!... Só a malta na Guiné é que foi apanhada de surpresa pelo Strela!... E antes pela notícia da morte do Amílcar Cabral, "teu vizinho de Bafatá" (dizia-se que a mãe vivia lá!), e depois pela declaração unilateral da indepência em 24 de setembro de 1973. Mas o que é que os "pides" andavam a fazer nessa época ? E os craques da Força Aérea… não sabiam que já havia uma arma dessas, o Strela, a ser utilizada no Vietname ?... E a golpada dos capitães, não se estava mesmo a ver que um dia haveria de estoirar a bernarda ?!... E os generais e os  almirantes do Caetano  ? Onde andavam ? A arear o bronze das cruzes de guerra?... Andavam todos, afinal,  a brincar ao faz-de-conta!...  Por isso o Império caiu sem honra nem glória!  ( Confesso que não dei conta do estrondo.)

Não te quiseram para fotocine, os sacanas  da tropa, tu que já eras fotógrafo, amador, na vida civil!... Amador, uma ova!, profissional, com cartão passado pelo sindicato corporativo!... Eras um fotógrafo encartado, fazias casamentos e batizados, tinhas um patrão, já velhote, que não podia a ir a festas, que se enfrascava todo, cortava a cabeça aos noivos com a bezana e dava cabo dos rolos… Valia-lhe o genro, que acabou por tomar conta do negócio...  

Mas, olha, safaste-te, a biscatagem deu-te para montar o teu negócio próprio, quando regressaste de vez, são e salvo, graças a Deus, benzia-se o teu velhote, amarrado a uma gaja vinte anos mais nova do que ele, e que o chupava até ao tutano… Pobre do velho que podia ter tido mais sorte na puta da vida!... Polícia da Brigada de Trânsito, com uma boa reforma e um bom pé de meia.  Também transmontano como a tua mãe, ali de Mogadouro.

Mais tarde, com as tuas economias todas, deixaste Lisboa e abriste uma papelaria e livraria com secção de fotografia, lá no teu bairro, em Rio de Mouro. Tal como na tropa, em matéria de fotografia, fazias tudo menos a revelação de diapositivos. Uma merda, veio depois a fotografia digital, a revelação automática, os computadores, os computadores,  as impressores, o "self-service",  os centros comerciais...  

O negócio foi por água a baixo!... Os livros vendiam-se pouco, a não ser o material escolar... E a fotografia deixou de ter procura...

Vendeste a baiuca, ainda antes da crise de 2008, 2009… Que tristeza, hoje recusas-te a passar por lá… Já passou por mais mãos. Agora deve ser uma loja de um chinês ou um templo evangélico. Valeu-te ao menos o dinheiro do trespasse, compraste títulos da dívida pública, que sempre te dão algum rendimento, no banco não vale a pena teres dinheiro, ainda tens que pagar por cima.

−Ó "Bate-chapas", tira-me aqui um chapa, e faz-me um postal com dois corações que é para mandar para a minha Maria  que vai fazer 21 anos e já pode casar comigo quando eu voltar!...

− Ó "Bate-chapas", arranja-me umas fotos das putas do Bataclã que é para eu mandar para o meu mano mais novo que vai às sortes, e que nunca viu uma gaja nua…

E a alcunha ficou mesmo, para o resto da vida, "Bate-chapas"... Não levas a mal. Já faz parte da tua identidade... Afinal, foste um "Bate-chapas" toda a vida... Ainda hoje te fazem uma festa quando vais aos convívios anuais do esquadrão:

− Ó "Bate-chapas", bate-me aqui uma!...

Eras um gajo popularucho. Tinhas centenas, milhares,  de provas e negativos, no teu estaminé, improvisado, por detrás da caserna grande... Tinha lá a tua "morança", de paredes de adobe, barrotes de cibe e cobertura de colmo,  com a devida autorização do capitão, a quem não levavas nada dos trabalhos fotográficos (nem a ele nem ao "nosso primeiro", como não podia deixar de ser)...  

Ficou tudo reduzido a cinzas quando houve aquela pavoroso incêndio, que até parecia um ataque dos gajos do PAIGC ao arame farpado… *Ninguém soube como aconteceu, contaram-te depois.)

Foram muitos os palpites, mas tudo indica que tenha sido um raio numa aquelas frequentes trovoadas tropicais… Houve quem dissesse que foi sabotagem, gajos civis que trabalhavam no quartel e que eram "turras", e que terão deitado o fogo à tua palhota, quando estavas fora, a fazer segurança a uma coluna logística até Piche ou Buruntima. Em boa verade, não te lembras de ter inimigos..., a não ser os gajos a quem apontavas o canhão  da Chaimite. ..

Estavas já perto do final da comissão, felizmente tinhas depositado um mês antes a guita, o teu pé de meia, no BNU, uma semana em que te desenfiaste até Bissau, com a devida  licença do capitão… Ficaste de tanga, sem máquinas, sem rolos, sem laboratório, sem arquivo, sem as bugigangas que querias trazer para a família, sem trocos, sem peúgas nem cuecas… Até a lista dos calotes ardeu!... 

 Não havia bombeiros no esquadrão!... E muito menos água e mangueiras e bocas de incêndio!... "Deixa arder, que o meu pai é bombeiro!", diziam alguns gajos, cínicos, que já estavam com a cabeça feita, a pensar no avião que os levaria de regresso a casa... 

E hoje aqui estás, viúvo, reformado, fechado numa sala de cinema de um centro comercial, comendo pipocas para aliviar a angústia do fim de tarde… Antes de ires para casa, e aqueceres a sopa requentada que a tua empregada, guineense do Biombo ou Binar (vê lá tu!),  faz-te para toda a semana… Trabalha como segurança, de segunda a sexta, e o serviço doméstico é uma biscatagem. Ela tem um bom físico, é de origem balanta. Mas já nascida em Portugal.  (O avô morreu numa  mina nossa, no corredor de Guileje, em 1973.)

De tempos a tempos, meia dúzia de vezes se tanto por ano, falas pelo Skype com a tua filha que está na Austrália, casada com um grego... E mal conheces os teus netos que não falam português. Porra, tens uma filha com 50 anos!... Foste pai aos 20, grande irresponsável!...

E lá vais escrevinhando o teu diário, falando em voz alta com o teu "alter ego", o mesmo é dizer, falando para as paredes do teu T2 em Rio de Mouro, agora grande demais para um homem só.

Podias ter sido um grande fotocine, um grande fotógrafo, até um grande cineasta, quem sabe ?!... Foste apenas uma "Bate-chapas"… 

Consola-te: levaste um pouco do calor da amizade e da camaradagem da Guiné a muitos lares portugueses, mães e pais, esposas, namoradas, madrinhas de guerra…, arrancaste muitos sorrisos a "djubis", bajudas de "mama firme" e mulheres grandes de teta caída… E até a homens grandes, régulos, milícias, guerreiros que habitualmente nunca sorriam... Foste à guerra, deste e levaste… Tiveste mulheres que gostaram de ti. E tiveste sorte de não ter ficado esturricado dentro de uma caixão blindado como era a Chaimite.

E hoje ? Nem amigos e amigas tens, do Facebook, tristes e empedernidos corações solitários… E olhas-te para o espelho e vês um gajo velho, como ó caraças!,… e pegas no teu bilhete de identidade, que é vitalício, e a foto que lá está não condiz com a puta da imagem que vês no espelho da casa de banho … O São Pedro não te vai deixar entrar no Paraíso, quando chegar a tua vez… 

Mal por mal, vais ficando por aqui, esquecido (e oxalá que ainda por uns bons aninhos!), no Limbo da Terra, depois de teres conhecido o Inferno da Guiné.  Gostavas, em todo o caso, que na tua lápide, alguém escrevesse por ti:

"Não adianta reclamar, ó 'Bate-chapas', ninguém te vai devolver o dinheiro... Nâo há livro de reclamações no Céu, no Paraíso ou no Olimpo dos deuses e dos heróis, como lhe queiras chamar: tu é que compraste o bilhete errado para a sessão de cinema errada… Trocaste o filme… da tua vida, ó 'Bate-chapas'! "...

© Luís Graça (2018). Revisto em 28/1/2024.
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Nota do editor:

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terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25101: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (15): A vida é curta e a arte é longa: memórias de um médico que também passou pelo Hospital Militar de Bissau

 Guiné > Bissau >  O  antigo Pavilhão de Tisiologia, desenhado pelos arquitectos Licínio Cruz e Mário Oliveira, do Gabinete de Urbanização do Ultramar,  Projeto de 1951/53. Passará a Hospital Militar, o HM 241, com o início da guerra, em 1963.

Foto (e legenda): © Mário Beja Santos (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


A vida é curta e a arte é longa: memórias de um médico que também passou pelo Hospital Militar de Bissau

por Luís Graça


Fizeram-te um almoço de despedida nessa semana em que passaste à reforma. Sempre detestaste as festas de despedida. E aquela tinha  qualquer coisa de amargo e ao mesmo tempo de inquietante. Era como partir, de barco, de um porto seguro para uma viagem desconhecida. Sabias o que tinhas, ou o que acabavas de perder, desconhecias o que te esperava o dia seguinte. Porque esse seria "o primeiro dia do resto da tua vida", citando a letra da canção  do Sérgio Godinho que costumavas ouvir no CD que punhas a tocar no carro logo pela manhã a caminho do hospital. (Maldita IC 19, foi o primeiro pensamento que te veio à cabeça no teu último dia de trabalho.) 

Aconteceu-te isso, a angústia da despedida, talvez pela primeira vez, quando foste mobilizado para a Guiné, em rendição individual, aos 28 anos, em março de 1968  (se a memória não te estiver a trair, o que já não podes garantir, cinquenta anos depois).

Amigos da faculdade e do hospital, colegas de curso e um ou outro "pilão" (antigo colega dos Pupilos do Exército), "poucos mas bons", fizeram-te uma festinha, discreta mas comovente, de despedida.

Foi num café-restaurante das Avenidas Novas, em Lisboa, que já não existe, hoje deve ser uma agência bancária ou imobiliária. 

Na altura, eras monitor de Anatomia na Faculdade de Medicina, um cadeirão que sempre foi o terror dos candidatos a médicos. E trabalhavas, para mais, no Hospital de Santa Maria, à borla, na equipa de um dos "barões" que eram os donos dos serviços… 
 
Não, não vale a pena recordar o nome. Não te deixou saudade, nem a ti nem aos outros "escravos". Era um professor que estava ligado a um dos grandes do futebol da cidade de Lisboa. Já ninguém se lembra dele. Arrumou as "chuteiras" com o 25 de Abril, foi coerente, não virou a casaca, como os "democratas do 26 de Abril"...

Carreira médica  ?  Não , também não havia ainda carreiras médicas, so foram criadas em 1971.... Os jovens licenciados em medicina tinham que "pagar para aprender", com um patrono, "um grande clínico ou um grande cirurgião"…

Como o local do almoço era público e a PIDE costumava ter "bufos" por aqueles sítios, não houve grande discursos, e muito menos efusivos, e muito menos ainda contestatários… Aquilo, o teu almoço de despedida, parecia mais um velório do que outra coisa... 

Bolas, tu eras médico, ias para a Guiné, haverias de voltar, com vida e saúde!.... A tropa protegia os médicos, não os mandava fazer operações, de G3 em punho,  "não iam para o mato" (como se dizia então) !... Era pelo menos a garantia que tu tinhas, de alguém importante do Hospital Principal na Estrela, com quem te aconselhaste.  E depois com a tua prática de "ajudante de  cirurgião" (sic) haverias de ficar em Bissau, nem seria preciso meter nenhuma cunha. 

Afinal, foste tu que tiveste de animar os teus amigos e colegas, todos mais acabrunhados do que tu, só de pensarem que, um dia destes, também veriam a tropa interromper-lhes  as "promissoras carreiras"  e despachá-los, com  "guia de marcha",  para a África dos tiros e dos mosquitos. Pelo sim pelo não adiavam-se casamentos e outras decisões importantes na vida de um homem como a de fazer um filho.

Só muito mais tarde, há uns anos atrás, é que tu foste à Torre do Tombo, movido por uma natural curiosidade,  legítima mas algo mórbida. Acabaste então  por saber que também tu tinhas  ficha nos arquivos da PIDE/DGS… (No teu íntimo, não foi nada que te revoltasse, até pelo contrário,  surpreendeu-te mas fez-te bem ao ego que de vez em quando também tem de ser massajado.) 

E verdade que o motivo era mesquinho, para não dizer anedótico: alguém te denunciara por seres amigo de um tipo da direção da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina, envolvido na crise estudantil de 1962… Uma pecha nacional, desde os tempos da Inquisição, comentaste tu para a malta da tua equipa: denunciava-se o primo ou o vizinho, às vezes por pura maldade ou inveja, como aconteceu com o grande Ribeiro Sanches, o nosso maior médico do séc. XVIII, que teve de sair do país e nunca cá mais  pôs os pés. Morreu em Paris, se  bem me lembro das aulas de história da medicina.

Fator aparentemente abonatório para a tua pessoa aos olhos da polícia política: eras filho de militar de carreira, com "boa folha de serviços no Ultramar" e tido como “adepto da situação”… E depois tinhas passado pelos Pupilos do Exército... Um "pilão" só podia ser um bom português! ...

Em boa verdade, tu nunca te tinhas metido em "encrenca" nenhuma até acabar o curso de medicina, não querias ver o teu pobre pai embrulhado em maus lençóis, e sobretudo perder a tua valiosa bolsa de estudo, paga por uma conhecida fundação.

Em suma, não tinhas liberdade económica para te poder armar em herói antifascista e anticolonialista, como alguns dos teus colegas (que tinham papás da classe média alta, gente bem relacionada ). Mas não escondias que, em 1968, eras "contra o regime" (como então se dizia) e achavas uma estupidez a continuação da guerra do Ultramar, sem fim à vista. (Para mais o "velho", o "botas", estava a "esticar o pernil"...)

Uma parte da juventude universitária daquele tempo começou a "ganhar consciência política" (como então se dizia) com a crise universitária de 62 e com o alargamento da guerra  do Ultramar aos territórios da Guiné e de Moçambique.

Não vais dizer "boa parte da juventude universitária",  porque isso era mentira: quem estudava naquela época eram filhos e filhas de gente da "situação", ou que tinha algum, para não dizer razoável, poder económico, empresários, proprietários, comerciantes, professores, advogados, médicos, médio e alto funcionalismo público… Conheceste inclusive vários estudantes que eram filhos de ministros e secretários de estado do Salazar... e que "degeneraram", cuspind0 na sopa ou mordendo a mão a quem lhes dera o ser e o ter...

A maior parte da juventude estudantil, liceal e universitária, acomodava-se e tratava da vidinha, como acontecia em todas as ditaduras até então conhecidas. Para mais a tua que até tinha a benção da Santa Madre Igreja... Bom, já não era bem assim, tiveste colegas, católicos, que já não liam a missa pelo mesmo missal do Cardeal Cerejeira, amigo íntimo de Salazar...

Entretanto, tu davas conta de que a guerra, de que pouco ou nada se falava em público, muito menos nos jornais, na rádio e na televisão (a não ser no programa do "Natal do Soldado"), 
começava a mexer com a malta. Havia mortos e feridos, havia faltosos, refratários e desertores, e alguns até eram da tua rede de relações ou conhecimentos… 

Guerra que, em todo o caso, era bem longe da nossa terra, da nossa casa, da nossa família, das nossas escolas e locais de trabalho, enfim, dos nossos cafés das Avenidas Novas... Portugal, naquele tempo, ainda era Lisboa e o resto era paisagem... 

Na altura, tu moravas por ali, perto do Campo Grande, num quarto alugado. E quando chegava a hora da verdade, poucos afinal davam o corpo ao manifesto. Participaste, em 1962, num ou noutra manifestação de estudantes, com cargas da polícia de choque, tinhas 22 anos, sangue na guelra e e começavas a ter asco ao autoritarismo (dos professores,  da policia,  das administracoes...) sem todavia nunca te teres metido em nenhuma organização clandestina, nem muito menos assinado papéis que te pudessem  comprometer. Nesse aspeto, sempre foste um "medricas", sabias que nunca aguentarias a tortura do sono por mais de 48 horas... (Se tivesses feito na altura um teste psicotécnico, terias chumbado de certeza para cirurgião!)

Também nunca tiveste conversas, nem grandes nem pequenas, com o teu pai, quando ele vinha de férias, ou regressava de mais um comissão de serviço, sobre a situação nos territórios ultramarinos, como então se dizia e escrevia. Sabias (ou melhor, suspeitavas) que ele "não morria de amores pelo regime" mas não podia dar-se ao luxo de morder a mão de quem lhe pagava o vencimento ao fim do mês. Além disso, era um militar de secretaria, oriundo da Escola Central de Sargentos que, se bem te recordas, funcionava em Águeda.


A tua mãe, embora apenas com a 4ª classe mal tirada, era mais politizada do que o teu pai. Ela era natural de Alcácer do Sal, emigrara, muito jovem, para Setúbal com a família. Trabalhara como empregada doméstica, logo acabada a escola, e depois como operária na indústria conserveira. Foi em Setúbal que os teus pais se conheceram. E foi aí que tu nasceste.  Tempos difíceis. Valeu-te uma bolsa de estudos que te permitiu ir fazer, em Lisboa, o curso de medicina, em 1958. És do curso de 1958/59.

Em solteira, quando operária conserveira, aos 17/18 anos, ainda menor, a   tua mãe terá chegado a distribuir o clandestino jornal "Avante", na fábrica e no bairro onde residia. Não sabes se alguma vez foi "antifascista", um palavrão que nunca lhe ouviste, da sua boca. 

De qualquer modo, depois de casada, acabou o seu eventual "antifascismo". Casada com o teu pai, subira um degrau na hierarquia social. E depois vieram os filhos. Julgas que ainda viveu, com alguma euforia e esperança, o fim da II Guerra Mundial. A ditadura manteve-se de pedra e cal,  e a tua mãe teve de continuar a ser pai e mãe durante o resto da vida. Quando muito lembras-te,  isso sim, de ela  barafustar, à mesa,  contra a carestia da vida na época em que andavas na escola primária. Nunca te faltou nada, isto é, o pão à mesa.

A tua mãe também não era beata, se bem que fosse à igreja, uma vez por outra, em cerimónias militares oficiais e em certas datas, por conveniência social: na festa de Natal, no dia do Regimento, no dia nacional da infantaria, etc. Afinal, era casada com um militar de carreira (e isso era, de facto,  uma pequena promoção social naquele tempo, para uma filha e neta de trabalhadores dos arrozais). A tropa, mal  ou bem,  era também um pouco a sua família alargada… E depois tinha orgulho no seu "menino que andava nos Pupilos do Exército". Fazia gala de o dizer às amigas, vizinhas e patroas.  Todavia, não havia nesse tempo grandes misturas, entre as famílias dos senhores oficiais e as dos sargentos… Eram oriundos de estratos sociais diferentes, estava tudo dito.


Em todo o caso, para completar o magro vencimento do teu pai, a tua mãe vira-se obrigada a trabalhar de costura, em casa, e fazer bolos para festinhas, nomeadamente para as famílias dos oficiais e sargentos do RI 11, em Setúbal.

Não,  também nunca acompanhou o teu pai nas quatro comissões de serviço no ultramar (Cabo Verde, Índia, Angola e Moçambique), ou nas mudanças de regimento (além do RI 11, em Setubal, esteve em Tomar e nas Caldas da Rainha). E ficaria viúva bastante cedo, aos quarenta e oito anos. 

Era mais nova  do que o teu pai. Nascera em 1920 e teve-te, a ti, aos 20 anos, já depois do teu pai regressar de Cabo Verde. (Depois nasceria a tua irmã, já falecida, que foi enfermeira, estava nos finais dos anos 60 no Alcoitão, quando o teu pai faleceu em maio de 1968, ia completar os 57 anos e passar à reserva, se bem te lembras.)

Nasceste num ano bissexto, em 1940, no dia 29 de fevereiro, uma quinta-feira, recordava a tua falecida mãe. Nasceste em casa, de um parto difícil, já quase de madrugada. Daí talvez tu teres sido sempre mais mocho do que cotovia.

Não chegou a ser preciso chamar o médico do regimento, o RI 11, onde o teu pai estava colocado, na altura. O médico era um bom homem,  alentejano de Évora. O teu pai era de Estremoz. E até se dizia que o médico era do reviralho, só por ser alentejano e republicano.

Tens uma vaga ideia de o ter ido esperar, ao teu pai, já criança com quatro anos, ou coisa assim, a Lisboa, ao Cais da Rocha Conde de Óbidos. Regressava de Cabo Verde, com a sua companhia ou batalhão, não sabes ao certo.

Terá sido a primeira vez que andaste de automóvel e, depois, de barco. Foste tu, e a tua mãe, de carro, à boleia. Não sabes de quem era o carro, pensas que era conduzido por um amigo da família, que tinha carros de aluguer na praça de Setúbal. Talvez também fosse de Estremoz, conterrâneo e colega de escola do teu pai. 

Foste até Cacilhas, ainda não havia a ponte sobre o Tejo, nem nada que se parecesse. Apanhaste um cacilheiro até ao cais do Sodré. Não reconheceste o teu pai, naturalmente, ele andara fora trinta e tal meses. E tu eras ainda muito novo.  Ele não terá vindo bem de saúde, segundo contava a tua mãe. Tinha estado na ilha do Sal e depois na ilha de São Vicente, já para o fim, antes do regresso.

Ou, se calhar, foi mais tarde. Tens as memórias de infância baralhadas. Se calhar foi quando ele voltou a partir para outra comissão, desta vez para a Índia, já como 1.º sargento, aí por volta de 1947 ou 1948, quando masceu a tua irmã. Tu devias ter 7 ou 8 anos. Já andavas na escola, deve ter sido, pois, em 1948. Lembras-te que ainda não havia o Cristo-Rei em Almada.

Ele acabou por fazer lá duas comissões, a segunda como voluntário, com direito a vir de férias de licença graciosa. Aproveitou para fazer o 7.º ano no liceu de Goa. Virá depois a frequentar a Escola Central de Sargentos. Ainda esteve em Angola, em 1961, aqui já com o posto de  tenente SGE. Acabou a sua carreira militar em Moçambique, em 1965… 


Regressou em 1967, para morrer um ano depois, já tu estavas na Guiné. Morreu cedo demais, o teu pai, ainda primeiro que o Salazar. Foi em maio de 1968. Estava o Schulz a ir-se embora. E tu no mato, na zona leste,  quando recebeste a triste notícia. Não foste ao funeral do teu pai, não te deram a devida autorização a tempo de apanhar o avião da TAP. Uma prepotência ou uma mesquinhez que nunca perdoaste ao teu comandante do batalhão. Talvez por esse motivo nunca morreste de amores por ele. (Soubeste, mais tarde, que, sendo
  hipocondríaco e egocêntrico,  não suportava a ideia de ficar sem médico, em pleno mato,  na tua ausência.)

Escassos meses depois de chegares à Guiné, foste colocado no Hospital Militar de Bissau, "onde fazias muito mais falta do que no mato", segundo a ordem pessoal que recebeste de Spínola, ainda brigadeiro,  o teu comandante-chefe que  tiveste a honra de conhecer na altura. 

Com o recrudescimento da guerra e o aumento dos efetivos militares, havia falta de cirurgiões, anestesistas, estomatologistas, intensivistas, etc., para além dos tipos da medicina tropical, que as doenças infectocontagiosas eram mais do que muitas. Com um diganóstico de hepatite, mandava-se um desgraçado tratar-se na metrópole, o que para muitos era a "sorte grande"... 

Estás a falar do Hospital Militar de Bissau,  o HM 241 (ainda te lembras do número). E, em boa verdade, foi um grande escola para ti e outros medicos e cirurgiões. Foi lá que fizeste verdadeiramente o teu internato em cirurgia geral e  ortopedia. Tiveste lá grandes mestres. O que não admira, também não faltava "matéria-prima". E depois, com o Spínola, o Hospital tornou-se um verdadeiro orgulho para todos. Dizia-se, sem exagero, que era o melhor hospital da África Subsariana, só tendo paralelo nos hospitais centrais da África do Sul… (Não sabes, nunca lá estiveste nessa altura.)

Ganhaste admiração pelo homem e pelo militar, que fazia visitas frequentes  ao pessoal do hospital, aos serviços e aos doentes internados.  Ele e a esposa, a simpatiquíssima dona Helena, uma senhora muito fina. E falaste com ele mais do que uma vez. Chegou-te a convidar para ficares na Guiné. Ele sabia que tinhas sido "pilão",  e julgava que tinhas as virtudes militares no teu ADN (coisa que verdadeiramente tu nunca pudeste confirmar).

Em suma, e voltando à tua infância e adolescênia, cresceste com um pai ausente, que tu mal conhecias, a não ser pelos retratos que a tua mãe e espalhava pela casa, com uma velinha acesa para que a santa da sua devoção o protegesse. Quando vinha a casa, recompensava-te com alguns brinquedos, baratos, de lata, e sobretudo muitas histórias. Era um bom contador de histórias, sabia as aventuras todos do Tigre da Malásia, dos livros do Emílio Salgari. Mas nunca falava da guerra,  da guerra do ultramar, que depois passou a chamar-se guerra colonial...


Era um homem meigo, contrariamente à tua mãe (que, coitada,  tinha de ser pai e mãe, que tinha de
 dar o pão, o amor e a educação, a ti e à tu mana; era uma mulher precocemente marcada pela dureza da vida e pelas agruras do casamento com um homem ausente do lar).

Por tudo isto, é difícil responder a perguntas estúpidas como aquela de saber se tiveste uma  infância feliz...  Também não sabes por que razão é  que foste agora desenterrar estas memórias, recalcadas,  do passado.
Na semana em que fizeste 70 anos, o dia 28 de fevereiro de 2010 calhava a um domingo e o dia 1 de março era segunda-feira. Alguém sugeriu fazer a tua "festinha de despedida" na sexta-feira à noite, mas tu opuseste-te terminantemente.

Durante os dias úteis da semana não dava jeito, porque afetava o normal funcionamento do serviço e muita gente não poderia vir. E depois nunca se devia comemorar o aniversário natalício, na véspera, porque dava azar. E tu nessas coisas, eras mesmo supersticioso. Ou não fosses cirurgião.

Ah, sim, as profissões de rilsco têm os seus mlecanismos de defesa contra o sofrimento psíquico. Já alguém te explicara isso, num congresso médico em França: dos toureiros aos pilotos de avião, dos mineiros aos tipos que trabalham nos arranha-céus, dos artistas de circo aos pescadores de alto mar, sem esquecer os polícias e os militares… Todos têm que saber racionalizar os riscos a que estão expostos. 

No caso dos médicos, eles lidam todos os dias com a doença e a morte, pelo que acabam por ter a perigosa ilusão de que são invulneráveis e imortais. Por outro lado, estão sujeitos ao erro, à incerteza... Mas o preço a pagar é, muitas vezes, a exaustão. 

Enfim, a "tua festa" (ou foi a festa dos outros ?)  acabou por ser marcada para um sábado, dia 6 de março de 2010.

Bolas, já lá vai uma boa dezena de anos!... Como o tempo passa. Há mais de meio século atrás andavas em Bissau a amputar pernas e braços, de homens, brancos e pretos, apanhados pelas malditas minas e armadilhas que o PAIGC punha nos trilhos e picadas. Mas também da população civil, nomeadamente fula, que era atacada com armas pesadas e balas incendiárias, nas suas tabancas, sem dó nem piada. 

Enfim, mesmo na retaguarda de um hospital viste o suficiente da guerra para não falar dela de ânimo leve e, muito menos, com saudade.

Com Spínola, há uma escalada da guerra. Mas não se discriminava ninguém... Propaganda? Não, no HM 241  chegava-se a a operar "turras" do PAIGC (e até um cubano, o capitão Peralta!),  feridos e aprisionados pela tropa e evacuados de helicóptero, que custava uma pipa de massa à hora. 

Recordas-te da péssima disposição com que te levantaste, nessa sexta-feira, dia 26 de fevereiro de 2010. Era o teu último dia de trabalho. Segunda feira era já o início de outro mês. Costumavas dizer que só fazias anos de quatro em quatro anos, nos anos bissextos. A partir de 2010, fizeste questão, talvez por pirraça, de deixar de fazer anos...

Nessa semana tu atingias o limite legal de idade para trabalhar na função pública, neste caso no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Já te poderias ter reformado alguns anos antes, acumulando os anos de serviço com o tempo da tropa. Mas não quiseste. Por altruísmo? Por amor ao serviço  público? Não  tens a certeza... Se calhar, foi antes por medo de ir para casa onde ninguém te esperava de braços abertos . Chamavam-te, por isso, o “dinossauro” do Hospital, o "velhadas", o "marreta", o "missionário"  e outros mimos. 


É uma imposição estúpida: sentias-te ainda, aos 70 anos, em boa forma, física e mental, com forças para continuar a dirigir o serviço de ortopedia, que era o teu mimo,a menina dos teus olhos. É certo que já não operavas há uns tempos. Ou melhor: ias fazendo uns “biscates” para não perder a firmeza da mão… Enfim, umas coisas mais leves: fraturas simples, joanetes, uma ou outra artroplastia do joelho, umas infiltrações... Por outro lado,  tinhas uma excelente equipa, de fazer inveja a qualquer hospital.

De qualquer modo reconhecias que um tipo, aos 70 anos,  já não tem o mesmo treino de mão, a mesma agilidade, a mesma paciência, a mesma resistência e os mesmos reflexos de quando era mais novo. E sobretudo a mesma pachorra para aturar os diretores clínicos e os administradores hospitalares e as suas folhas de excel, os gráficos de desempenho, qualidade e produtividade, enfim, para lidar com a burocracia e a numeracia da saúde. Um hospital, público ou privado, é uma fábrica, é cada vez mais gerido como uma fábrica. E infamante foi a imposição do controlo biométrico da assiduidade, da iniciativa de um ministro qualquer, de quem também já esqueceste o nome.

Uma parte dos teus colegas, nesse tempo,  reformava-se do público, logo que preenchia os requisitos legais, na expetativa de vir a poder trabalhar na privada. Alguns até aceitaram ser penalizados na contagem de tempo. Mas era uma ilusão. No privado eram esmifrados até ao tutano. E tinham que alimentar todos os setores da fábrica, da imagiologia ao bloco operatório, da hotelaria aos cuidados médicos e de enfermagem, do nascer ao morrer...


Nunca pensaste em vir a trabalhar na privada, querias tu dizer, numa clínica ou num hospital fora do SNS. E muito menos depois de acabar a carreira no público. Afinal estavas cansado de aturar doentes cada vez mais reivindicativos (e que sabiam tudo da sua doença através da Wikipedia!),  para além dos constrangimentos impostos pela direção clínica e o conselho de administração, da escassez de recursos humanos e materiais, das birras dos anestesistas, da ingratidão dos internos, dos narizes empinados das senhoras doutoras enfermeiras,  

Acho que fizeste bem em pôr um ponto final na tua aventura terrena no domínio da saúde… Na próxima encarnação, serias o que Deus ou o Diabo quisessem…

Estavas em regime de dedicação plena, o que era raro na tua especialidade, que até pode ter uma baiuca cá fora numa qualquer clínica com nome de santo. De qualquer modo, aos 70 anos, punha-se o dilema: o que irias fazer a partir de então, com todo o tempo do mundo à tua frente?!... 

Cedo te apercebeste, depois de reformado, que o tempo era, afinal, depois da saúde e da liberdade, o recurso mais precioso que um homem tinha, e que em geral era mal gerido... 

Afinal, deste conta de que desperdiçaras uma boa parte da tua vida. E, de ciência certa, só se vivia uma vez. Tiveste essa terrível certeza quando, logo aos sessenta, começaste a ver desaparecer alguns amigos e conhecidos.

Não eras escritor nem pintor como alguns dos teus colegas médicos, mais talentosos e famosos. Vivias na periferia de Lisboa e tinhas perdido as tuas raízes em Setúbal e no Alentejo. Perderas completamente o rasto aos teus parentes de Alcácer do Sal e de Estremoz. Também nunca tiveste o culto da família. E infelizmente também nunca tiveste um filho. A tua vida conjugal não fora feliz. Casaste-te, descasaste-te, e com o tempo, depois de alguns relacionamentos desastrosos, começaste a  ficar cada vez mais... misógino.

Mas, voltando ao teu almoço de despedida e à tua retirada de cena…Desde o início do ano de 2010, tinhas o sacana do teu adjunto à perna, a contar os dias do calendário, sempre  à espera do "grande dia" em que o "o filho da puta do velho" (sic) arrumasse de vez o bisturi e despisse a bata… Se ele não o dizia, bem o pensava: “O filho da puta do velho!”…

Reconhecias que tu eras o último obstáculo para ele subir até ao topo da hierarquia do serviço… Para isso, era preciso "matar o pai"…

Mas tu não o condenavas… No lugar dele, tu farias o mesmo, confidenciaste a alguém. De certo modo, acontecera-te o mesmo com o teu "patrão" no hospital anterior, onde começaste a tua carreira. Desististe de esperar que ele arrumasse as botas, tinhas mais três ou quatro rivais à frente… O que fizeste foi concorrer para outro hospital, que ia abrir e que tinha vagas para ortopedistas, e logo a chefiar. Aliás, foste tu  que, aos quarenta e tal anos, foste montar o serviço… E essa foi a tua coroa de glória, abrir um serviço de raiz.


Em suma, já estavas ali, no último hospital em que trabalhaste, há uma eternidade… Enfim, chegara a vez do render da guarda, por muito que isso te custasse. 

Mas voltando ao teu sucessor: e se tu foste um pai para ele!... E que pai!... Recebeste-o de braços abertos, ajudaste-o a fazer o internato da especialidade e, se ele hoje é um grande ortopedista, muito melhor do que tu (és tu próprio a reconhecê-lo), a ti também o deve. Pelo menos em parte. O resto é mérito dele e da estrelinha da sorte que o levou até ao estrangeiro onde aprendeu novas técnicas que tu não dominavas... É verdade?!

Em contrapartida, ele foi o filho que tu nunca tiveste.

Reconheces igualmente que tu foste uma espécie de pai tirano. Foste muito mais exigente e menos condescendente com ele do que com qualquer outro dos internos que por lá passaram pelo serviço. Porque ele era melhor do que os outros, ou tinha que ser o melhor. Provavelmente ficou-te a odiar… Mas nunca o deixou transparecer. É apenas o teu “feeling”…

Em suma, tu e ele tinham, então, na véspera da tua jubilação (odeias a palavra!), uma relação de amor-ódio, latente.

No almoço, nesse tal sábado, foi ele que fez o discurso da praxe… E que discurso! Deixou-me sensibilizado, quase até às lágrimas (a ti, que não tens lágrima fácil)… É difícil, se não impossível, saber se foi sincero, ele era um homem, ainda jovem, brilhante, eloquente, de grande inteligência e um sedutor nato, um "charmoso", bendito entre as mulheres.

Foi ele e a tua secretária clínica que organizaram tudo… Apareceu quase toda a gente, médicos, enfermeiras, assistentes técnicas e administrativas… O mulherio em peso, não tanto por ti mas mais provavelmente por ele, que era o teu sucessor. O poder é afrodisíaco, alguém o disse.

Veio também o teu colega de Ortopedia B, que nunca foi teu amigo íntimo, mas era um colega, bom e leal (também passara pela Guiné)... E  mais alguns médicos, esses, sim, amigos, dos poucos que tu tinhas no Hospital. Nunca foste um homem muito sociável nem de trato fácil, mas sempre foram vinte e tal anos passados naquele hospital, a que chamavas a tua casa. Achavas que era respeitado e, no mínimo,  estimado. Hoje não tens tanta certeza.

O hospital, ou seja, o conselho de administração, ofereceu-te uma salva de prata com o teu nome gravado, e duas linhas de blá-blá de cujo teor já não te lembras. O Ministério da Saúde também te deu uma medalha de mérito (era o mínimo!). E o pessoal do serviço, incluindo os participantes no almoço, tiveram a gentileza de te presentear com um “voucher” para tu fazeres um cruzeiro à Grécia, com visita ao sul da Itália (Vesúvio, Nápoles, Pompeia...), e uma excursão ao templo de Asclépio, em Epidauro, no Peloponeso, na Grécia, onde começou a grande aventura da medicina ocidental de que tu, embora insignificante ator (modéstia tua), também fazias parte.


Não sabes porque é que estás agora a recordar o teu passado. E, depois, a conversa é como as cerejas. Tem piada, reconheces que há séculos que não falavas da tropa, do teu passado como alferes miliciano médico, entre 1968 e 1970, na Guiné de má memória. Em boa verdade, desde que regressaste em 1970... (Também nunca ninguém tivera curiosidade em saber, nunca te perguntaram, nem tu falavas sequer sobre esse período da tua vida. )


Guiné de má memória?!... Confessas que não tens saudades desse tempo, a não ser pelo que aprendeste como médico e como ser humano. Da guerra não tens saudades, as guerras nunca são populares, e aquela muito menos o era. E tens pena de então não teres conhecido melhor os Bijagós onde fizeste uma pequena visita,  num fim de semana prolongado, 

Com os primeiros tempos de Spínola, logo em meados de 1968, tens a ideia de que a guerra se agravara, de um lado e do outro. Chegavam feridos muito graves ao Hospital de Bissau, politraumatizados, que era preciso tratar de imediato. O teu maior orgulho foram as vidas que conseguiste salvar, embora alguns dos rapazes que tu (e a tua equipa) operaste, tenham ficado deficientes para o resto da vida. Nunca, como naquele lugar distante da tua terra, tu tiveste a perceção da justeza do velho aforismo hipocrático: "A vida é curta e a arte é longa"... A arte, a  medicina, a cirurgia, as ciências da saúde. Quantas vezes não te sentiste impotente, inseguro, frustado com as limitações do teu conhecimento e do teu treino, com a escassez de recursos, técnicos e humanos....

A Guiné era pequena, aí do tamanho do Alentejo, e ainda mais pequena na maré-alta, a Força Aérea chegava a todo o lado, nomeadamente os helicópteros, os Alouettes III, que faziam as evacuações Ypsilon (se bem te recordas). Eram as ambulâncias do céu,  estavam equipadas com bom material de suporte de vida, e enfermeiras paraquedistas que prestavam logo, "in loco", no mato ou em pleno, os primeiros socorros, essenciais para manter o fio da vida até Bissau.

Elas eram poucas, mas desdobravam-se em múltiplas missões e foram uma mais-valia (como se diza agora...) para os serviços de saúde militares. Eram muito jovens mas corajosas e competentes. Já não te lembras do nome de nenhuma delas, nem sequer da cara. 

Sabes, isso sim, que, às vezes, ao domingo, chegavam a almoçar juntos, os médicos do HM 241 e elas. Se bem te recordas, os oficiais paraquedistas e os pilotos de Bissalanca guardavam-nas com algum ciúme e e sentido de posse, como "fêmeas do seu harém" (dizia um despeitado de um colega teu)... Uma coisa patológica? Nada, era mais uma manifestação do corporativismo castrense... Na realidade, elas eram poucas e valiosas e pertenciam à Força Aérea, se bem que não dormissem na base de Bissalanca.

Do mato, propriamente dito, tens poucas recordações. Fotos, algumas, mas não te lembras  onde param. Uma das situações que te marcou, talvez pela positiva (o que até pode parecer estranho!), foi a receção que te fizeram no quartel que te calhou na rifa (já não te recordas do número do batalhão).  

Tu já estavas avisado que os gajos mais velhos gostavam de pregar partidas aos "periquitos"… Mas nunca mais te lembraste desse precioso "lembrete", que já trazias de Mafra…  

Recordas-te de ter chegado ao sítio onde foste colocado, em 1968, não longe de Bafatá (não interesse agora o nome), 
nos finais da época seca,  a de maior atividade operacional, de parte a parte. Ao que parece, o quartel nunca tinha sido atacado, nem nas proximidades havia atividade inimiga recente, a não ser a norte do rio Geba e ao longo da margem direita do rio Corubal donde o PAIGC nunca fora desalojado...

Foste de avioneta, viste aquela enormidade de terras pantanosas e alagadas, e aqueles rios em ziguezague que eram a estreita porta de entrada na zona leste.

Mal acabaras de arrumar os teus pertences, num quarto partilhado com mais dois alferes, no edifício do comando, ouves alguns rebentamentos e rajadas de armas automáticas. E depois um profundo silêncio… Nem tiveste tempo de ficar acagaçado, veio logo um militar de transmissões chamar-te à pressa, porque tinha havido uma emboscada com mina anticarro, ao fundo da pista, ali a menos de um quilómetro e tal… Havia “manga de mortos e feridos”!… Manga? Não percebeste...

Logo as Daimlers e o piquete que estavam de serviço, partiram a toda a velocidade, ao longo da pista, do lado de fora do arame farpado…

Um dos majores, talvez o segundo comandante, já não podes precisar, eufórico, quase histérico, apareceu, equipado a rigor (o que te surpreendeu, já que tinhas estado com ele, há menos de um hora!), a conduzir um jipe, mais o furriel enfermeiro, com a bolsa dos primeiros socorros… Os maqueiros já tinham seguido com o piquete, garantia-te o furriel. Havia uma grande excitação no ar, com gente a correr pelo corredor que ia dar à messe, atropelando-se uns aos outros...

O major deu-te ordens, com voz grossa (mas que te pareceu... algo teatral), para tu subires para o jipe. (Tratava-te, com alguma deferência, por doutor e não pelo teu posto.) … Tu nem sequer estavas de camuflado, nem tinhas nenhuma arma de defesa distribuída… Ficaste sem pinga de sangue, confessarás mais tarde, mas veio ao de cima o teu sentido do dever hipocrátrico, mais forte do que o medo do cagarolas do militar "periquito"… Pegaste na tua malota, ali à mão, e lá seguiste com o major a todo o gás…

Até apareceu uma "enfermeira paraquedista", vinda não sabes
 donde, de calça de camuflado, cabelo bem apanhado, e uma T-shirt branca, e  que, para vergonha tua, era bem  bem mais expedita e desembaraçada do que tu, no socorro aos "feridos"… Eles eram tantos que tu não sabias para onde te virar… E cada um gemia mais do que o vizinho... Mas, estranhamente, não havia fraturas expostas...

Ainda levou uns bons minutos até tu te aperceberes que tinhas caído… na esparrela!... Foras praxado, que nem um pato, para gáudio daquela cambada de malandros que estavam a escassos semanas de acabar a comissão!... Disseram-te depois que os oficiais "periquitos", de rendição individual, eram todos praxados à chegada... Mas nem todos gostavam da brincadeira!...

A encenação estava tão bem feita que até o sangue era sangue mesmo, embora de galinha ou de vaca, não era mercurocromo, como nos filmes de cobóis.

Soubeste mais tarde que a "enfermeira paraquedista" era a esposa de um dos furriéis ou alferes da CCS, e o que o furriel enfermeiro tinha sido o "cérebro" da brincadeira, com a cumplicidade sacana do major… 

Não levaste nada a mal, mostraste o teu "fair play", convidaste a malta  para o bar de sargentos, pagaste logo uma rodada de uísque a toda a malta, atores e figurantes… Em boa verdade, duas rodadas, que te custaram o equivalente a duas ou três garrafas!... Os gajos eram umas esponjas...

Pronto, são estas as histórias de que tu ainda  te lembras do teu passado, da infância, da juventude, e da guerra, ou das guerras, a da Guiné e dos hospitais onde, num caso como noutro, procuraste sempre fazer (e dar) o teu melhor… Tens a consciència do dever cumprido como médico, quer civil quer militar.

E aqui fica o resumo  da entrevista que aceitaste dar, com alguma relutância, para um projeto de investigação  sobre os médicos na guerra colonial...  Não tens a certeza da tua história valer grande coisa, mas esperas, ao menos, que os jovens historiadores façam bom uso dela. 

© Luís Graça (2019). 

Revisão: 21/1/2024
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Nota do editor:

sábado, 13 de janeiro de 2024

Guiné 63/74 - P25065: Efemérides (425): O António Marques, meu companheiro de infortúnio, na CCAÇ 12, cujo relógio parou às 13h30 do dia 13 de janeiro de 1971: nunca se esquece de me telefonar todos os anos, neste dia e hora (Luís Graça)


 António Fernando Marques, empresário, reformado, natural de Abrantes, nascido em 24 de agosto de 1946, residente em Cascais, nosso grão-tabanqueiro desde 23/1/2010 (*),  DFA, ex-fur mil at inf,  CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71). 





Guiné > Região de Bafatá > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Da esquerda para a direita, os ex-fur mil Marques e Henriques, da CCAÇ 12 (1969/71), em amena conversa ou talvez disputando amigavelmente o "lugar do morto" (que era ao lado do condutor). Cairão, ambos, meses mais tarde, em 13/1/1971, `*as 13h30, com 20 meses de comissão, numa mina A/C, à saída do destacamento de Nhabijões... 

Foto (e legenda): © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados. (Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. O António Fernando Marques   foi meu amigo e camarada de infortúnio.  Chamava-lhe, por brincadeira, "o Marquês sem acento circunflexo". Esteve 17 dias em estado de coma, no HM 241, e 2 anos hospitalizado, em Bissau e em Lisboa, em tratamento e recuperação... Penitencio-me de nunca o ter ido ver ao Anexo do Hospital da Estrela, em Campolide, durante anos perdemos o contacto!.... 

Ele acha que me deve a vida, e eu estou-lhe grato pela sua gratidão: todos os anos, quer faça sol, quer faça chuva, pelo dia 13 de janeiro, às 13h30, ele me telefona a lembrar a triste efeméride (**)...

Um minuto antes da fatídica mina A/C que nos ia mandando ambos para os anjinhos, às portas do grande  redordenamemnto de Nhabijões, a escassos quilímetreos de Bambadinca, discutíamos, amigavelmente, sobre quem ia à frente, na velha GMC, ao lado do condutor, no "lugar do morto".... Depois da habitual cantilena, "vais tu, vou eu, vais tu"..., ele foi para trás com o resto do 4º  pelotão, e eu sentei-me à frente... (O alferes mil cav, Rodrigues, já falecido, ia noura vtuar, umUnimog.)

Azar do Marques, sorte a minha: ia justamente por cima do dupla roda traseira da GMC,  do lado direito, que fez accionar a mina...

Vamos lá relembrar, "ad nauseam", meu companheiro de infortúnio, essa viagem de GMC até Nhabijoes, "ali ao virar da esquina",  nos arredores de Bambadinca... Seriam 11h00, do dia 13 de Janeiro de 1971... O 4º pelotão estava de  piquete, éramos o 112 naquele dia, 13, que nem sequer era sexta-feira.  Fomos chamados para acudir a explosão de uma primeira mina, que matou logo o nosso sold cond auto, Spares. Mas as desgracas também sobraram para nós... Duas horas e tal depois, outra mina, meu Deus... 

O Marques ficou  dois anos no "estaleiro" (!), eu tive mais sorte, mas agora ando a pagar as favas....

Somos irmãos de "irmão de sangue"... Possivelmente salvei-lhe a vida, chegando "just in time" com ele ao heliporto de Bambadinca, a tempo de apanhar o helicóptero que o levou para a HM 241. (**) (Ainda não sei, mas gostava de saber,  quem foi o "anjo do céu" que lhe prestou a bordo os primeiros socorros...).

Sim, chamei-lhe há uns anos atrás, pela primeira vez , "irmão de sangue"!... E não podia ser talvez mais apropriado: não fui "herói de guerra", não tive cruzes de guerra, mas no  caso dele tenho consciência (e orgulho) de que o ajudei a salvar a vida,,, Eu e o condutor do Unimog, que o levou, a ele e outros, numa correria louca até Bambadinca, sem repicar a picada nem medo de novas minas... Mais a enfermeira parquedista, o piloto de helicópterio, os médicos e os magníficos profissionais de saúde do HM 241...

Se há um sentido para a palavra "camarada de armas" é, nestas ocasiões, em que um de nós est+a estendido no chão, já em coma, se calhar todo rebentado por dentro, depois da explosão de uma poderosa mina anticarro... E quem está a teu lado sabe que tu tens 30 minutos para chegares a Bissau, ao HM 241, para a equipa dos cuidados intensivos te salvarem!... 

E foi isso que aconteceu... Em, Angola ou Moçambique o Marques teria morrido  à espera do helicóptero...

Marques, orgulho de te ter ajudado a salvar!... Ficaste com a perba mais curta, mas salvaste-te, ao fim de 17 dias em estado de coma!...E valeu a pena, porque eras (e és) um gajo decente, um camarada porreiro, um homem bom!... Parabéns por continuares vivo!... Luís
 
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Notas do editor:


(**) Último poste da série > 28 de dezembro de 2023> Guiné 61/74 - P25011: Efemérides (424): Há dois anos que partiu o nosso amigo e camarada Jorge Cabral (1944-2021) (Paulo Santiago, Águeda)


(**) Vd. postes de:

13 de janeiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22903: Efemérides (361): À uma e meia da tarde, à saída do reordenamento de Nhabijões... Em 13 de janeiro de 1971... Quando o teu relógio parou... (Luís Graça)

24 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20091: 15 anos a blogar, desde 23/4/2004 (13): Hoje faz anos, 73, o António Fernando Marques... Porque recordar é viver duas vezes, e blogar é três... Relembramos o fatídico dia, 13/1/1971, em que o PAIGC nos quis mandar para os anjinhos... O meu querido Marquês, sem acento circunflexo, tem filhos, netos, amigos e camaradas que o adoram... E o Mário Mendes, morto de morte matada 16 meses depois... será que alguém ainda o recorda na sua terra natal? (Luís Graça)

14 de janeiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12583: Manuscrito(s) (Luís Graça) (17): À uma e meia da tarde quando o relógio parou, na estrada de Nhabijões-Bambadinca, no dia 13 de janeiro de 1971... Homenagem a um grande sobrevivente, António Marques

11 de outubro de 2013 > Guiné 63/74 - P12139: A minha CCAÇ 12 (29): 1 morto e 6 feridos graves em duas minas A/C, no reordenamento de Nhabijões, Bambadinca, em 13/1/1971, aos 20 meses de comissão (Luís Graça)

Vd. também poste de:

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24951: Excertos dos melhores escritos de António Eduardo Ferreira (1950-2023), ex-1º cabo cond auto, CART 3493 / BART 3873 (Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) - Parte IX: A sorte naquele dia esteve do nosso lado

 

Guiné > Região de Tombali > Bedanda > 4ª CCAÇ (1965/67) > c. 1966 > Mulheres do mato, oirundas dos arredores de Bedanda, muito provavelmente Cobumba, na altura sob controlo do PAIGX. Ao centro está o alferes Oliveira, da 4ª CCAÇ. 

Fonte: livro "Panteras à solta: No sul da Guiné uma companhia de tropas nativas defende a soberania de Portugal", de Manuel Andrezo, edição de autor, s/l, s/d [c. 2010], 399 pp. il, disponível em formato pdf, na Bibilioteca Digital do Exército). [ Manuel Andrezo é o pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade, ex-cap inf, 4ª CCAÇ / CCAÇ 6, Bedanda, jul 1965/jul 67]

 
1. Série com pequenos excertos dos melhores postes do António Eduardo Jerónimo Ferreira (1950-2023) (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493 / BART 3873, Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) (*).

O nosso camarada era natural de Moleanos, Alcobaça. Na tropa e na guerra era mais conhecido por Jerónimo. Lutou quase 20 anos, desde 2004, contra um cancro. Criou o blogue Molianos, viajando no tempo, por volta de 2013 ou 2014.




Parte IX -   A sorte esteve do nosso lado naquele dia


(...) Certo dia um grupo de elementos da nossa companhia foi a Cufar, como acontecia algumas vezes, tendo usado o nosso sintex.

 Nesse dia eu estava de serviço de condutor, ao fim da tarde fui com a viatura e mais três ou quatro camaradas para o cais, junto ao rio Cumbijã, onde estivemos durante algum tempo à espera que eles chegassem para os trazer de volta ao destacamento.

Enquanto esperávamos, os Fiat iam bombardeando não muito longe de nós. Naquele tempo, ao contrário do que acontecia antes dos Strela por lá terem chegado, altura a que eles faziam os bombardeamentos era bastante mais afastada do solo o que nos permitia vê-los. 

Durante o tempo que lá estivemos à espera, a conversa não parou, durante a qual alguém afirmou que a "Maria Turra" tinha dito que breve nos iam atacar. Era coisa tão normal ela dizer isso,  que nós não demos importância, dizia muitas coisas que não eram verdade. 

Quando em Mansambo fomos atacados, a primeira e única vez enquanto lá estivemos, no outro dia ela apareceu na rádio a dizer que nos tinham feito grandes estragos, entre os quais a destruição de um abrigo, o que era mentira, dentro do destacamento, nesse dia, apenas caíram duas granadas.

Guiné > Região de Tombali > Carta de Bedanda (1956) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Bedanda, Cobumba, Cufar e rio Cumbijã.


Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)



Entretanto os Fiat terminaram o seu trabalho e foram embora. Passados poucos minutos de terem partido começamos a ouvir alguns rebentamentos, e a nossa primeira reação foi pensar que eles tivessem voltado, pensamento que durou apenas breves instantes, rapidamente nos apercebemos que afinal éramos nós que estávamos a ser atacados. Ataque continuado e diversificado no armamento por eles utilizado, tendo sido o que demorou mais tempo dos vários com que fomos flagelados enquanto por lá permanecemos. 

A sorte naquele dia esteve do nosso lado, mas o susto motivado pela impotência com que nós fomos confrontados junto ao rio, foi terrível, nada podíamos fazer. 

Com uma das armas utilizada, o morteiro 82, eles conseguiram colocar uma granada de cada lado da picada com uma distância de cerca de quarenta ou cinquenta metros, uma da outra, desde o início das primeiras tabancas até a poucas dezenas de metros do local onde nós nos encontrávamos, que era a uma distância de cerca de quinhentos metros. 

Restava-nos ir para dentro do rio, naquela altura com a maré muito baixa. Foi o que fizemos, recordo-me de com as mãos tirar o lodo para os lados e me ter deitado nesse espaço, um disparate mas naquele momento tudo nos ocorria ao pensamento.

O armamento por eles utilizado estava distribuído por quatro locais: 

  • os RPG 7, um do lado de Pericuto, outro do lado oposto, início da mata de Cabolol; 
  • o canhão s/r deles, era daqueles que quando se ouvia a saída, a granada já estava a cair; 
  • o morteiro 82, dada a precisão com que eles colocaram as granadas junto à picada, só podia estar na direção da mesma, penso eu.

 Porque a sorte esteve do nosso lado, apenas tivemos um ferido leve, o apontador de um dos nossos canhões sem recúo, o que fez com que ele tivesse feito apenas um disparo.



Crachá do BART 3873 (Bambadinca, 197274). Divisa: "Na Guerra Construindo a Paz.



Passados largos minutos passamos a contar com a ajuda dos obuses de Catió

Se os camaradas que tinham ido a Cufar, têm chegado alguns minutos antes, tudo nos podia ter acontecido, dado o trajeto que nós tínhamos de fazer para regressar ao destacamento, atendendo à precisão com que eles colocaram as granadas junto à picada.

Quando os camaradas chegaram no Sintex, junto de nós, o ataque já tinha terminado, ainda bem que eles demoraram, assim safamo-nos de ter vivido aquela situação na picada no regresso… onde não havia sítios para nos abrigar, se tal fosse necessário.

Entre a população houve uma vítima mortal, uma senhora. No outro dia efetuaram o seu funeral, tendo sido enterrada junto à tabanca onde morava. Nesse dia apareceram por ali algumas pessoas vindas de outros locais. 

Ao fim do dia havia alguns com pedaços daquilo que nos parecia ser carne de porco, não chamuscado, gostava de saber se seria alguma tradição. Haverá alguém que saiba? (...)  (**)

(Seleção / revisão e fixação de texto / negritos: LG)

2. Comentário do editor:

Embora tardiamente, aqui vai a resposta à pergunta que o nosso camarada Ferreira nos colocou (em comentarioa um poste que ora não identifico)... 

Mesmo em contexto de guerra, o enterro da senhora que morreu em Cobumba, seguramente de etnia balanta, nesse ataque do PAIGC (portanto, vítima do "fogo amigo") (***), tem de ser entendido no quadro da cultura da sua etnia, e do indispensável "choro" (o mesmo é dizer o velório e o enterro) .. 

Aqui vai um excerto do artigo "Toca Tchur, uma celebração da vida", de Jamila Pereira (Bantumen, 17 de abrilde 2023) (com a devida vénia...)

(...) Tomemos, por exemplo, as etnias Balanta e Pepel na Guiné-Bissau, duas tribos com actos fúnebres similares mas, no entanto, distintos. (...)

Para ambas as tribos, sendo animistas, a compreensão de que o curso da vida é cíclico e não linear, como uma experiência contínua, permite que a morte seja percebida como um deslocamento para outro espaço habitacional. Consequentemente, existe a noção de que o “enterro perfeito” garante que o espírito do antepassado não fique entre os vivos para assombrá-los ou controlá-los, mas sim para protegê-los enquanto descansa pacificamente. Destacando então a narrativa de que aqueles que estão no reino dos mortos possuem poderes sobrenaturais, podendo amaldiçoar, curar ou abençoar e tirar ou dar vida. Entretanto, a pessoa também pode reencarnar em várias pessoas, como renascidos, ou habitar o mundo espiritual através da sua forma terrena como antepassados, posição muito valorizada nas crenças Africanas. Tornar-se um antepassado é, portanto, uma meta valiosa para muitos. 

E não enterrar o corpo “adequadamente” implica a possibilidade de a pessoa tornar-se num espírito vagante, incapaz de prosseguir convenientemente após a morte, constituindo um prejuízo para os que ainda estão vivos. Aliás, após uma morte, geralmente são procuradas respostas divinas para atribuir uma causa ao ocorrido: inveja, bruxaria, ofensa aos antepassados ou aos deuses. Então, aqueles que podem ter sido rotulados de indignos ou feiticeiros, indivíduos que morreram “muito cedo” ou não levaram uma vida “significativa” e “honrada”, talvez lhes seja recusado um “enterro perfeito” também, negando-lhes assim que se tornem antepassados.

Após um falecimento, família e amigos reúnem-se para celebrar a vida do indivíduo, denominado Toca Tchur, nome comum entre todas as etnias. Na etnia Balanta, caso seja um homem que tenha cumprido o fanado (conhecido por circuncisão), é lavado pelos anciãos e enrolado num fundinho, um tecido tradicional. Os vizinhos são então informados da morte através dum bombolom (tambor grande). No entanto, se o falecido for alguém mais jovem, por exemplo, como mencionado previamente, a celebração não ocorreria, pois a sua morte seria considerada ultrajante ou talvez uma maldição.

Eventualmente, após a mensagem ser enviada, o falecido será coberto mais adiante por mais panos doados por entes queridos como vizinhos, família e amigos. Ao longo da cerimónia os anciãos, em conjunto, retiram então os tecidos e entregam-nos à família para que os guardem carinhosamente depois de serem lavados, sendo assim uma lembrança permanente. Além disso, caso a família não possa cobrir o montante duma caixa (caixão) para o enterro, eles podem enterrá-lo numa esteira de palha. Assim têm a possibilidade de finalizar a primeira parte da cerimónia, depois de atravessarem por cima do porco sacrificado, abençoando o animal e a futura alimentação dos participantes.

Do álcool à fartura de comida, a celebração evidencia o orgulho que as pessoas carregam por estarem presentes e como vêem como uma bênção o poder duma vida plena e encerrada pela velhice. A celebração tem um impacto significativo no bem-estar dos entes queridos, mesmo que já tenham aceite o falecimento em questão. 

Ao longo do Toca Tchur, também são utilizados um bombolom e um tambor para que se estabeleça a comunicação com o espírito, conduzindo-o diretamente ao mundo dos mortos. Para finalizar a cerimónia, danças e rituais são feitos com os símbolos dos povos ganha pão, dependendo de cada profissão. E a maioria das cerimónias são realizadas entre abril e junho, pois representa a época de colheitas. (...)
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Notas do editor:


(**) Vd. poste de 10 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22361: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (15): A religião, a fé e o medo

Utilizámos  também pequenos  excertos do blogue do autor, Molianos, viajando no tempo.

(***) Vd, também poste de 23de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9642: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (12): Os infelizes que estão em Cobumba...