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sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21497: (In)citações (173): Crónica da Guerra da Guiné, segundo um seu Veterano - Parte II (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav da CCAV 703)

1. Em mensagem do dia 27 de Outubro de 2020, o nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66, autor do livro "Guerra da Guiné: a Batalha de Cufar Nalu") enviou-nos um texto a que deu o título: "Crónica da Guerra da Guiné, segundo um seu Veterano", do qual publicamos hoje a II Parte.


Crónica da Guerra da Guiné, segundo um seu Veterano - Parte II 

Manuel Luís Lomba

Esse I Congresso de Cassacá constitui referência da evolução para a segunda fase da sua guerra revolucionária, e, também, marco organização e estruturante do PAIGC, estereótipo de Partido-estado-armado. Entre outras providências, Amílcar Cabral dividiu os combatentes em milícias guerrilheiras e em exército revolucionário (as FARP), o seu armamento e orgânica à imagem e semelhança dos regimes ditatoriais comunistas (oficiais executivos e oficiais comissários políticos), o seu núcleo duro enformado por ex-praças e ex-sargentos do Exército Português, na disponibilidade e desertores, formados no quartel de Santa Luzia, em Bissau, e no CIM, em Bolama, que mandara tirocinar na China, Rússia e Checo-Eslováquia, reorganizou o seu dispositivo territorial, explicitou um Código de Justiça Militar, a legalizar a pena capital, para eliminar as diferenças (dissidentes e desalinhados) e visando os seus compatriotas que se distinguissem ou tivessem distinguido ao serviço das forças militares e militarizadas portuguesas, já praticada na eliminação dos feiticeiros e noutros fatalidades, concluiu-o a presidir ao julgamento, a condenar e a mandar fuzilar alguns dos seus subordinados, acusados de comportamentos desviantes. 

Localização de Cassacá, na Região de Cacine, onde decorreu o I Congresso do PAIGC
© Luís Graça & Camaradas da Guiné - Infogravura da Carta de Cacine 1:50.000

Amílcar Cabral ”libertara” tanta área, no entanto a “sua” capital esteve sempre instalada em Conacry), aqui redigiu um comunicado de guerra triunfalista da batalha do Como, que só a agência noticiosa France Press aceitou difundir (a Comunicação social francesa foi o grande porta-voz do PAIGC, talvez efeito da afinidade) ter causado 600 baixas aos actores da “Operação Tridente” e valorizou esse alarde com uma exposição de alguns despojos de material de guerra e de logística, focada nos destroços de 20 aviões abatidos. 

Sem correspondência com a verdade.

Essa “Operação Tridente” decorreu durante 72 dias, o Comando militar investiu nela 1150 homens e os três Ramos, houve 9 mortos, 15 feridos graves, 32 feridos ligeiros em combate e apenas um avião foi abatido, o bombardeiro T6, pilotado pelo Alferes José Manuel Pité; o PAIGC investiu 400 combatentes guineenses, um número não apurado de cooperantes estrangeiros, sofreu mais de 100 baixas, incluindo 3 comandantes, entre mortos, prisioneiros e feridos graves, tendo a tropa socorrido e evacuado 9 destes para o Hospital Militar de Bissau… 

Os destroços mais atractivos patentes nessa exposição eram de dois aviões T6, caídos muito antes dessa operação, por sinistro em manobra e não por danos em combate, um pilotado pelo Furriel Eduardo Casals, que não sobreviveu, outro pilotado pelo então Sargento-Ajudante Sousa Lobato, que foi capturado, levado prisioneiro para Conacry e libertado pela “Operação Mar Verde”. Os destroços pertencentes ao T6 do Alferes Pité não seriam apelativos, por Alpoim Galvão e os seus fuzileiros os terem deixado escaqueirados a trotil. 

Os bissau-guineenses continuam a pagar a factura das meias verdades e das grandes mentiras do PAIGC daquele tempo. 

Em alinhamento com o “politicamente correcto” e descartando a verdade dos factos e a multiplicidade de relatos na primeira pessoa dos actores “Operação Tridente” e de toda aquela guerra ultramarina, a generalidade da nossa Comunicação social, os autores domésticos, os militares da nova geração e os seus institutos perfilham as narrativas do PAIGC. Ou história contada por outros, versus parcialidade. 

As FARP criadas no I Congresso de Cassacá, infernizaram a vida e não raro superaram as clássicas e formais FA portuguesas em mobilidade táctica, em agilidade em eficiência, foram fazendo o seu caminho evolutivo e até as superaram na qualidade do armamento. O PAIGC aplicava esse Código de Justiça Militar, desde Janeiro de 1964, fuzilando opositores políticos e militares naturais capturados. 

Ao ignorá-lo, o MFA não terá cuidado de salvaguardar os mais de 60 000 naturais guineenses, militares e militarizados, voluntários ou recrutados ao serviço das FA portuguesas. Foram deixados para traz – uma traição a eles e uma indecência (no mínimo) para com os mais de 100 000 dos veteranos da Guerra da Guiné, para com os seus 2 500 mortos, para com os seus 4 000 feridos, a maioria no grau de deficiente e para com cerca de 20 000 pacientes de stresse pós traumático. 

O seu irmão e sucessor Luís Cabral, começou a aplicá-lo logo no após o cessar-fogo, e, diz-se que, entre 1974 e até 1976, sancionou com o fuzilamento, sem qualquer julgamento, mesmo sumário, diz-se que cerca de 11 000 guineenses, somando militares, militarizados portugueses e oposicionistas políticos ao regime do PAIGC. 

Parafraseando o Padre António Vieira, o povo português em armas fez o preciso e a sua República fez o costume. 

Enquanto subvencionava a novel classe política, pelos seus mandatos, abrangente a refractários e desertores, a República Portuguesa ignorava e ostracizava o povo que deixou tudo, não negou o sacrifício das próprias vidas ao país, foi carne para canhão na Guerra do Ultramar, em cumprimento do seu dever de cidadania, `os nossos governantes demoraram mais de 40 anos, até à chegada do jornalista Paulo Portas a Ministro da Defesa, que, sem sequer ter assentado praça, conseguiu um “suplemento de reforma” de 130 € anuais para os combatentes europeus. 

Enquanto a República da Guiné-Bissau criou um Ministério dos Combatentes da Pátria, a República Portuguesa nem uma Direcção Geral. Por ironia das suas ironias, o destino uniu os ex-inimigos terríveis Alpoim Calvão, então empresário em Bolama e Nino Vieira, então PR da Guiné-Bissau, em defesa da extensão do direito ao subsídio de reforma dos bissau-guineenses, que serviram Portugal, como militares ou militarizados. 

A propósito da sua condecoração, o 1.º Cabo Auxiliar de Enfermeiro José Soares Biscaia era um moço aprumado, competente e muito humano, partilhamos todas as operações de “intervenção” da CCav 703, excluindo a “Operação Tornado”, ao Cantanhez, e incluindo o sangrento evento de combate, cuja prestação lhe mereceu essa condecoração. 

A Companhia colocou rapidamente duas fiadas de arame farpado, escavou trincheiras e abrigos no perímetro interior do estacionamento. 

Ao princípio da madrugada de 25 de Janeiro de 1965, o “nosso” Capitão Fernando Lacerda delegou o comando do estacionamento ao Alferes Nuno Bigotes, Comandante do 1.º Pelotão, de que eu fazia parte, saiu ao comando do grupo de combate, formado pelo 2.º e 3.º Pelotões, como parceiro da CCaç 617, do Grupo de Comandos "Os Fantasmas" e do Grupo de Milícias de Catió na “Operação Alicate”. 

No dia anterior (soubemos mais tarde), Nino Vieira havia saído do seu santuário (em Quitafine?) no santuário do PAIGC no Cantanhez, com um bi-grupo a reunir-se na base de Cufar Nalu, comandada por Manuel Saturnino da Costa, outro tirocinado na China e um peso pesado da luta do PAIGC. 

Em Cufar Nalu formou um Corpo de Exército (efectivo equivalente a uma Companhia do Exército Portiguês, mas portador de maior potencial de fogo), manobrou-o à maneira de exército clássico, montou o cerco em meia-lua a essa nossa morada nas ruinas da fábrica de descasque de arroz, lançou dois ataques, tentou o assalto no segundo, decidido à nossa expulsão e captura. 

Porquê a prioridade de fazer prisioneiros? Amílcar Cabral fizera a cabeça dos seus comandantes de que a grandeza da vitória não era matar, era capturar e fazer prisioneiros e de que exército que mata prisioneiros perderá a guerra. 

Localização de Cufar e Cufar Nalu.
© Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné - Infografia da Carta de Bedanda 1:50.000

Estava o nosso grupo de combate na sua progressão em “bicha de pirilau” e em “passo fantasma” por esse laranjal, fronteiro à testa da pista de aviação e de uma laranjeira caiu um vulto sobre o Tenente Capelão Lavajo Simões, que integrava a coluna a seguir ao Capitão Fernando Lacerda (rectifico o erro meu), disparou um tiro de pistola, este voltou-se e ferrou um tabefe naquele “coirão” que quebrara a surpresa da operação: não era um soldado seu, era um vigia da vanguarda do inimigo. E logo rebentaram um medonho tiroteio e explosões de armas ligeiras e pesadas, de tiro tenso e de tiro curvo. 

Pela seteira do meu abrigo via a saída de múltiplas faíscas dos canos das armas, lembraram-me os pirilampos numa noite de Junho, a referência do posicionamento dos nossos e do inimigo, estimei em 50 metros o distanciamento entre nós e entre eles, abri a nossa hostilidade com uma rajada de G3, logo secundada pela nossa metralha, o inimigo passou a dirigir o seu fogo em duas frentes, para o laranjal e para as ruínas da fábrica, a nossa metralhadora Breda, a bazuca e o morteiro activaram-se, pela minha “banana” (emissor/receptor HVS) informei o Alferes Bigotes desse cálculo. O abrigo do comando ficava no lado oposto ao meu e seguiu-se o lançamento de granadas do nosso morteiro de 81. 

O estacionamento tinha sido implantado em círculo, conforme as NEP, dividido em dois meios círculos, de um lado referenciado pelo caminho de acesso à pista de aviação, de outro pelo caminho de acesso ao cais do rio Meterunga. 

Eu pertencia a esse 1.º Pelotão, a minha e as outras duas Secções ficaram desde o início posicionadas em frente ao alçado principal das ruínas da fábrica, separados da orla da mata de Cufat Nalu por um campo aberto de pouco mais de 1 km, o Alferes Bigotes mudou-se para o posto de comando, passei a substituí-lo nessa frente e a segundo mais graduado operacional do estacionamento, porque o Alferes João Sequeira era médico. 

O Furriel Santos Oliveira, nosso camarada tabanqueiro, viera trazer-nos adidos um morteiro de 81 e a sua Esquadra, do seu Pelotão de Morteiros 912, batalhador na ilha do Como e em Jabadá, situara o seu espaldão junto ao Posto de Comando, e, nessa circunstância, a defesa dessa frente foi cometida aos cozinheiros, padeiro, faxinas, escriturário, enfermeiro, maqueiros, mecânicos, transmissões, condutores e desempanadores, o comando directo exercido pelo Furriel O´Connor Shirley da CCS, um sapador adido a nós. 

Passado algum tempo, tiroteio e rebentamentos passaram a intermitentes, entendeu-se que retirada do inimigo, a “banana” avisou-me que o grupo combate do laranjal rastejava de regresso, cumpriu-me rastejar de abrigo em aviso a espalhar esse aviso e postar-me junto ao cavalo de frisa, para trocar o “santo e a senha” com a sua vanguarda, calculei e indiquei duas das mais prováveis rotas de retirada do inimigo aos briosos apontadores dos morteiros e da bazuca, que logo diligenciaram o lançamento de granadas, para lhes “acelerar o passo”. 

Estava a malta a rastejar do laranjal para chegar ao cavalo de frisa, o inimigo retomou os rebentamentos e tiroteio, ora posicionado em meia-lua no lado do alçado posterior dos edifícios em ruínas e as suas RPG puseram logo fora de combate o nosso morteiro de 81 e a sua Esquadra, com as suas granadas foguete. O 1.º Cabo Auxiliar de Enfermeiro José Biscaia deixou o abrigo, percorreu o campo aberto, indiferente a projécteis e rebentamentos, começou por carregar o 1.º Cabo Gregório da Silva Lopes, já cadáver, seguiram-se os três municiadores gravemente feridos, um a um, deixou-os na tenda enfermaria, aos cuidados do Alferes Médico Dr. João Sequeira, regressando ou ao seu posto de combate todo ensanguentado.

 O inimigo ousou cortar primeira fiada de arame farpado, iniciou a tentativa de assalto, e ele, o Furriel Shirley e outros saltaram para os tectos de cibes dos seus abrigos, estiraram-se a disparar, o Alferes Bigotes (também condecorado) a exercer o seu comando, com a sua habitual calma olímpica. A malta do laranjal começou a retomar suas posições e o inimigo foi rechaçado pelo novo potencial de fogo. 

O objectivo do inimigo era ocupar o nosso lugar, o seu comando apercebera-se da fragilidade de defesa daquele lado e da eficiência do morteiro de 81 – a nossa única arma pesada de tiro curvo (éramos atacados com dois de 82) – e o abrandamento e a intermitência do seu fogo não fora indicador de retirada mas da sua rotação para essa posição. 

Não tivemos acesso ao plano e à ordem dessa “Operação Alicate”. O certo é que a CCaç 617, o Grupo de Milícias de Catió e o Grupo de Comandos "Os Fantasmas" montaram emboscadas nos três eixos de retirada dos nossos atacantes, um bi-grupo (talvez o comandado pelo Manuel Saturnino da Costa) caiu na emboscada dos Comandos – e 8 deles ficaram na “zona de morte”, não regressaram vivos às bases da mata de Cufar Nalú ou de Quitafine. 

Sofremos um morto, sete feridos graves e mais alguns ligeiros. Ao primeiro clarear da manhã, o chão do estacionamento apresentava-se pejado de covões dos rebentamentos proliferavam pelo estacionamento, os cozinheiros fizeram e distribuíram um caldeiro de café, o ar fatigado e silêncio da tristeza imperavam, o Furriel Manuel Simas saiu com um grupo de combate a fazer o reconhecimento, deu contas de manchas de sangue e de grande quantidade de invólucros de calibres 7,62, 9 e 12,7 mm. Fomos cercados e atacados por cerca de 70 combatentes e alvos de impactos de PPSH (costureirinhas),de Kalash´s, de duas RPG, de 2 morteiros de 82 e de 2 super-metralhadoras. Tínhamos vivido uma eternidade de 2 horas sob o fogo dos infernos. 

O mesmo grupo de combate foi fazer a segurança à pista, eliminou um espião, e, ao fim da manhã e pela primeira vez, desde a sua construção, em 1955, um Dakota aterrou na pista de Cufar, com reabastecimentos da intendência, de munições e para evacuar o morto e os feridos. 

O Grupo de Comandos Os Fantasmas e o Grupo de Milícias de Catió vieram partilhar o rancho do almoço connosco, oportunidade de conhecer os lendários Tenente Maurício Saraiva, o Marcelino da Mata, os malogrados Alferes de segunda linha João Bacar e Teófilo Sayeg (futuro capitão do futuro MFA, que o PAIGC fuzilará) e abraçar o amigo, camarada e tabanqueiro João Parreira, amizade nascida no Café Bento e consolidada à mesa Restaurante Tropical, com os pés debaixo da mesa… 

Dos protagonistas de Cufar, do nosso lado faço a evocação da memória de Nuno Bigotes, Manuel Simas, José Biscaia, Maurício Saraiva, João Bacar e Teófilo Sayeg, já não estão entre nós; do lado do PAIGC apenas o Manuel Saturnino da Costa será vivo. 

Tivemos algo de responsabilidade pelo durante da guerra; nada tivemos de responsabilidade pelo seu finalmente. 

Camaradas da “Operação Tridente” e da saga de Cufar houve desenvoltos na arte da guerra e da pena, combatentes e plumitivos, cito de memória Armor Pires Mota, Mário Fitas e António de Graça Abreu (os omissos que me desculpem), e permitam-me não dar o ponto sem nó: envio o meu livro "Guerra da Guiné: a Batalha de Cufar Nalu", ao preço de 13 €, os portes (e autógrafo) incluídos, basta encomendar para a: manuelluislomba@gmail.com

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Nota do editor

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quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19433 (D)outro lado do combate (42): A nova estrutura político-militar do PAIGC decidida no I Congresso, de Cassacá, em 17/2/1964: os líderes do 1º Corpo de Exército Popular (Jorge Araújo)


Fig 4

Citação: (s.d.), "O Secretário-Geral do PAIGC e Presidente da Assembleia Nacional Popular, Aristides Pereira, e o Ministro das Forças Armadas, Nino Vieira, passando em revista uma base da Frente. A fotógrafa Bruna Amico, de costas.", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_11290 (2019-1-18)



Jorge Alves Araújo, ex-Furriel Mil Op Esp. / Ranger, CART 3494 
(Xime-Mansambo, 1972/1974): coeditor do nosso blogue






GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE

A NOVA ESTRUTURA POLÍTICO-MILITAR DO PAIGC DECIDIDA NO I CONGRESSO DE CASSACÁ EM 17FEV'1964

- OS LIDERES DO 1.º CORPO DE EXÉRCITO POPULAR 





1.INTRODUÇÃO


Ainda que o conteúdo inicial da presente introdução nada tenha a ver com o título deste trabalho, ele servirá apenas para conceptualizar o quadro narrativo, e factual, que o precedeu.

Pretendo, deste modo, partilhar no fórum, uma vez mais, o que foi possível apurar no âmbito desta pequena investigação cruzada, onde foram seleccionados e utilizados alguns dos depoimentos julgados pertinentes existentes em cada um dos lados do conflito, e que dão corpo a esta minha primeira narrativa de 2019, abrindo-a a outros (novos) horizontes de análise.




Fig. 1

Por outro lado, é de relevar o património documental existente no Arquivo Histórico do ex-Banco Nacional Ultramarino, produzido pela Administração da Delegação da Guiné [Vd. Fig 1] e remetido para a sua Sede em Lisboa, sobre o qual o nosso camarada, incansável, Mário Beja Santos, nos tem presenteado com as suas «Notas de Leitura», tituladas «Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné», a quem agradecemos.


Como consequência desse seu trabalho de inegável mérito, o seu conteúdo tem captado a minha superior atenção, aproveitando esta oportunidade para o citar.


Estamos, então, perante informações que consideramos de elevado valor historiográfico para a compreensão do processo iniciado em 1961 a nível interno, com diversas acções subversivas, e que evoluíram para a confrontação bélica, preparada e estruturada além-fronteiras.





Figura 2 – Mapa da Guiné com as principais linhas de infiltração da guerrilha, em 1961/63 – infogravura publicada no P15795: «O início da guerra da Guiné (1961-1964)», de José Matos, historiador – Parte I (com a devida vénia).

O primeiro acto, a Norte, ocorreu em 20 de Julho de 1961, 5.ª feira, com um assalto à povoação de S. Domingos, em particular ao edifício onde estava instalado um pelotão da 1.ª CCAÇ (CCAÇ 3), "fazendo uso de terçados [espadas curtas e largas], armas de caça, espingardas e garrafas de gasolina. Cinco dias depois, outro grupo armado provoca danos materiais na estância turística da praia de Varela e ainda em Susana" - (P15795).

Seguiram-se, depois, novas acções subversivas, desta vez a Sul, com incursões armadas vindas da fronteira com a Guiné [-Conacri], actos registados durante o segundo semestre de 1962.

Como exemplo dessa subversão, refere-se o caso narrado pelo gerente do BNU onde escreve: "é nosso dever levar ao conhecimento da V. Exa que por volta das três da madrugada de ontem [25Jun'1962; 2.ª feira], pequenos grupos de indivíduos, que se supõe pertencerem ao PAIGC, atacaram a tiros de pistola em Catió a Administração do Concelho, a Central Eléctrica, o posto da PIDE e os CTT, cortando os fios telefónicos e atravessando árvores na estrada. Incendiaram também a jangada e três pequenos barcos que fazem a ligação de Bedanda para Catió. Entre Buba, Empada e Fulacunda, foram cortadas as comunicações telefónicas e destruídos alguns pontões feitos de paus de cibe" (P19291).
Como elemento de comparação, dá-se conta da versão escrita e assinada pelo Rui Djassi (Faincam, nome de guerra) [1938-1964], responsável do PAIGC [Zona 8] pelas acções supras, cujo conteúdo se transcreve:

"30.06.1962 [sábado] > Da última hora – EMPADA

Destruíram pontes no dia 27-28 [Junho'62], cortaram fios em grande quantidade. Há dificuldade [de] comunicação para vários pontos, entre os quais Bissira-Empada, Empada-Pam-Tchuma, Sacunda-Aidara.

No dia 28 [Junho] foi morto um comerciante europeu [Januário Simões, irmão de Manuel Simões, 1941-2014] que está [estava] ao serviço da PIDE.


Na mesma noite meteram fogo na casa do Anso Mara, também agente da PIDE.
Todos os professores catequistas daquela área foram presos sem motivo de justificação. Eis os nomes: Domingos Lopes; Mário Soares; Avelino Mendes Lopes; Bernardo Mango. E mais alguns camaradas. Agradecia mandar-me relógio para José Sanha.

ass: [Rui] Djassi (Faincam)"
Eis a reprodução do original [Fig 3]



Fig 3

Citação: (1962-1962), "Comunicados [Zona 8]", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40585 (2019-1-18), com a devida vénia.

Fonte: CasaComum; Fundação Mário Siares. Pasta: 04620.104.055. 
Título: Comunicados [Zona 8].
Assunto: Comunicados assinados por Rui Djassi (Faincam): destruição de pontes e comunicações na região de Empada; ataque a agentes da PIDE; prisão de professores catequistas (entre os quais Bernardo Mango); ataque das tropas portuguesas à tabanca de Caur e à população.
Data: Quarta, 27 de Junho de 1962 - Quarta, 4 de Julho de 1962.
Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Correspondência 1960-1962 (interna).
Documentos anexos a 04620.104.054.
Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral.


2. A NOVA ESTRUTURA POLÍTICO-MILITAR DO PAIGC DECIDIDA NO I CONGRESSO DE CASSACA EM 17 DE FEVEREIRO DE 1964


Neste segundo ponto daremos conta da decisão tomada durante o I Congresso de Quadros do PAIGC realizado em Cassacá, entre 13 e 17 de Fevereiro de 1964, nomeadamente no âmbito político-militar, cujos elementos foram retirados de um documento manuscrito de Amílcar Cabral (1924-1973), localizado nos arquivos existentes na Casa Comum, Fundação Mário Soares, constituído por sete folhas, e que serão reproduzidas no fim deste trabalho.

De referir, ainda, que esta narrativa segue na "fita do tempo" uma outra relacionada com o envio de uma carta de Aristides Pereira (1923-2011) a 'Nino' Vieira (1939-2009), escrita igualmente em Cassacá, em 22 de Janeiro de 1964, um ano depois do ataque a Tite, informando-o da intenção de se realizar um encontro, ou seja, o "I Congresso" - P19335.[Fig 4, em cima]

Eis, então, o conteúdo das decisões tomadas.

23 de Junho de 1964 > Decisão

"O desenvolvimento da nossa luta armada exige que se tomem medidas urgentes e concretas tanto no plano político como militar. A VI Conferência de Quadros do Partido (I Congresso) tomou decisões importantes em relação a essas medidas, principalmente no que respeita à organização do Partido, as regiões libertadas, a criação das FARP, com o reforço das guerrilhas em todo o país, a criação do exército popular e a instalação das milícias populares.

Todos os responsáveis e militantes do Partido sabem que a zona 8 sofre ainda as graves consequências duma direcção que não esteve à altura das suas responsabilidades e ainda da acção nefasta e dos erros cometidos por alguns responsáveis dessa zona. Depois do nosso Congresso, os camaradas Arafam Mané e Guerra Mendes, encarregados de melhorar urgentemente a situação da zona 8, fizeram, juntamente com outros camaradas, o melhor que puderam para cumprir a palavra de ordem do Partido. Mas esses camaradas mesmos são os primeiros a reconhecer que as coisas não vão muito bem na "zona 8", onde a situação é agravada pelo desaparecimento do responsável Rui Djassi, cujo paradeiro ninguém conhece, embora seja certo que está vivo".


[O que terá acontecido a Rui Djassi (Faincam)?, uma vez que o seu nome deixou de constar na estrutura da «guerrilha», então aprovada, sendo substituído por Guerra Mendes [† em combate, em 09Mai'65, em N'Tuane (Antuane)], conforme pode ler-se no ponto 8.

A propósito de Rui Djassi, recupero o comentário do camarada Manuel Luís Lomba, feito no P13787, onde refere:

"O Rui Djassi era cobrador da Farmácia Lisboa, foi incorporado no Exército Português e desertou como furriel mil para ir com o Amílcar Cabral e mais 29 para a China, tirocinar "guerra revolucionária" e foi o 1.º a concluir tal formação. Residiu na estrada de Stª. Luzia e quando surgiu na guerra o pai ofereceu recompensa a quem o liquidasse. Foi o 1.º comandante de Quinara e terá sido o responsável do assassinato do irmão do Manuel Simões [, o Januário Simões], ora evocado por falecimento. Foi o comandante dos ataques a Tite, em Janeiro e Fevereiro de 1963, currículo que o terá safado das penas de morte decretadas por Amílcar no I Congresso de Cassacá,  na altura da Operação Tridente".
Alguém tem algo mais a acrescentar, relacionado com este mistério?].

O documento refere ainda:

"Nestas condições, todo o trabalho feito na zona 11 e nas outras regiões do país, está a ser prejudicado pela situação má em que se encontra a zona 8.

Por outro lado, a experiência feita no norte do país em que todas as zonas se encontram sob a chefia e responsabilidade dos camaradas Osvaldo Vieira e Chico Mendes (Té) mostra que é possível fazer o mesmo no sul, enquanto se prepara a nova fase da nossa luta. Quer dizer, todas as Zonas do Sul (11, 8 e 7) devem ficar sob a direcção centralizada dum pequeno número de responsáveis, directamente ligados ao Secretário-Geral do Partido. É portanto necessário fazer uma reorganização da direcção do Partido, da luta no sul do país, com a maior urgência possível.

Por isso, tomo as seguintes decisões, em nome da direcção do Partido.

I – Guerrilhas

1. Todas as zonas do sul do país (11, 8 e 7) ficam sob a chefia do camarada João Bernardo Vieira ('Nino'; Marga), membro do B.P. e actual chefe da região (zona 11). Ele dirige todos os responsáveis de zonas abaixo indicados.

2. O camarada "Nino" é assistido nas suas funções por um grupo de responsáveis constituído pelos seguintes camaradas: João Tomas Cabral, Arafam Mané, Guerra Mendes, Abdoulaye Barry e Constantino Teixeira.

3. O camarada João Tomas Cabral desempenhará junto do camarada Nino as funções de Comissário político para todo o sul do país. Ele deve trabalhar em inteira ligação com o camarada Nino.

4. O camarada Arafam Mané passa a ser o primeiro responsável da região de guerrilha Catió-Cacine (antiga zona 11).

5. O camarada Guerra Mendes é nomeado primeiro responsável da região de guerrilha Fulacunda-Bolama (antiga zona 8).

6. O camarada Abdoulaye Barry passa a ser o primeiro responsável da região de guerrilha Xitole-Bafatá (antiga zona 7).

7. O camarada Constantino Teixeira tem a categoria de primeiro responsável da região de guerrilha e passa a fazer a ligação permanente entre as diversas regiões e o camarada Nino, com função de controlador para todo o sul do país.

8. Os ex-responsáveis de zonas, camaradas Rui Djassi (Faincam) e Domingos Ramos (João Cá) devem vir imediatamente ter com o Secretário-Geral do Partido, passando as suas funções respectivamente a Guerra Mendes e Abdoulaye Barry.

9. O camarada Nino deve passar as suas funções na Zona 11 ao camarada Arafam Mané. Deve, além disso, começar a dirigir todas as regiões do sul do país, para o que deve fazer as inspecções necessárias e tomar todas as medidas que julgar úteis para a melhoria da luta nessas regiões. A base do camarada Nino deve ficar instalada na região de Catió-Cacine, onde considerar mais conveniente para o bom cumprimento dos seus deveres.

10. O camarada Nino tem autoridade para escolher e nomear os diversos responsáveis dos sectores e bases da guerrilha dentro das regiões a sul do país. Pode igualmente destituir ou transferir todo e qualquer responsável, se isso for conveniente para o desenvolvimento da luta.

11. Sugiro no entanto a seguinte reorganização da direcção das guerrilhas nas diversas regiões e sectores:

a) Catió-Cacine (zona 11) – comissão regional da guerrilha – Arafam Mané, Saco Camará, Quade N'dami, Aguinaldo Noda,

Comissário político geral: Sadjo Bambo.

Responsável principal: Arafam Mané

Responsável do sector de Quitafine: Saco Camará 

Responsável do sector de Chão de Nalus e Como: Arafam Mané

Responsável do sector de Canframe: Aguinaldo Noda

Responsável do sector de Calbert (Tombali): Quade N'dami

- Os responsáveis das diversas bases e dos grupos de guerrilha devem ser indicados pelo camarada Nino.


b) Fulacunda-Bolama (zona 8) – comissão regional da guerrilha – Guerra Mendes, João Tomás, Madna na Isna, Bromejo e Cabiru Baldé

Comissário político geral: João Tomás

Responsável principal: Guerra Mendes

Responsável do sector de Quinara: Guerra Mendes

Responsável do sector de Bolama: Caetano Barbosa

Responsável do sector de Buba: Bromejo

Responsável do sector de Cubisseco: Madna Na Isna

Responsável do sector de Fulamore: Yafai Camará

Responsável do sector fronteira (Contabari): Cabiru Baldé

- Os responsáveis das bases e dos grupos de guerrilha são indicados pelo camarada Guerra Mendes, com aprovação do camarada Nino [Vd. Fig 5].

c) Xitole-Bafatá (zona 7) – comissão regional da guerrilha – Abdulai Barry, Suleimane Djaló, Braima Camará, Tito Fernandes.

Comissário político geral: Tito Fernandes

Responsável principal: Abdulai Barry

Responsável do sector de Xitole: Braima Camará

Responsável do sector de Xime: Abdulai Barry

Responsável do sector de Saltinho e Caré: [?] [nome ilegível]

Responsável do sector de Bangacia: Suleimane Djaló

Responsável do sector de Bambadinca: Joãozinho Lopes

- Os responsáveis das bases e dos grupos de guerrilha devem ser escolhidos pelo camarada Abdulai Barry, com aprovação do camarada Nino."




Fig 5

Citação: (1965), "Desfile de um destacamento das FARP, comandadas por Nino Vieira", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43067 (2019-1-1)



II – Criação do 1.º Corpo do nosso Exército Popular


1. Deve-se criar imediatamente o 1.º Corpo do nosso Exército Popular no Sul do País, de acordo com as decisões do nosso Congresso. Nenhuma desculpa, razão ou argumento pode servir para retardar mais a criação do exército. Devemos criar as primeiras unidades do exército com os homens e o material de que podemos dispor neste momento, sem prejudicar grandemente a acção e o desenvolvimento das guerrilhas no sul do país. Temos no entanto que compreender que a criação do exército representará um reforço da nossa força e, portanto, permitirá indirectamente, o fortalecimento das nossas guerrilhas.

2. O camarada Nino deve empregar o melhor do seu esforço para a criação imediata do Exército no sul do país. Para isso deve ser devidamente ajustado com todos os camaradas responsáveis e militantes, que lhe darão a melhor colaboração. Terá, além disso, toda a assistência do Secretário-geral e da direcção do Partido.

3. Devem ser criadas imediatamente duas Subsecções do Exército, com os nomes de "Botchecol" (1.ª subsecção) e "Vitorino" (2.ª subsecção). A organização e a estrutura dessas unidades do Exército popular são descritas pormenorizadas em documento secreto, que segue para o camarada Nino.


4. Estas duas subsecções, com todos os Corpos do nosso Exército Popular, serão superiormente dirigidas pelo Comité Principal do Exército, o qual é subordinado ao Conselho de Guerra. No sul do país, as unidades criadas são directamente dirigidas por um comando-geral do sul e pelos responsáveis indicados pela direcção do Partido.

5. O comando-geral do sul é formado pelos seguintes camaradas:

Nino / Marga – comandante geral

Carlos Leal – comissário político geral

Umaro Djaló – comandante da subsecção

Saturnino Costa – comandante da subsecção

Na qualidade de comandante geral, o camarada Nino, com a colaboração do camarada Comissário Político geral, estuda e planeia, de acordo com o Secretário-geral, ou os seus representantes, todas as acções militares e políticas a realizar pelo exército no sul do país. Os camaradas das subsecções são responsáveis pela execução dos planos e a realização total das acções determinadas pelo comando, de acordo com a direcção do Partido.

6. A subsecção "Botchecol" tem os seguintes dirigentes:

Umaro Djaló – comandante

Humberto Gomes – 2.º comissário político

Gustavo Vieira – chefe dos grupos especializados


7. A subsecção "Vitorino [Costa] tem os seguintes dirigentes:

Manuel Saturnino Costa – comandante

Mamadu Alfa Djaló – 1.º comissário político

Ngalé Yala – 2.º comissário polític

Mário Silva – chefe dos grupos especializados

8. Os chefes de grupo e comissários políticos de grupos devem ser indicados pelo comando geral do Sul

Nota: Tudo isto deve ser feito completamente até ao dia 15 de Julho de 1964".


Segue-se a reprodução das sete folhas originais [Fig 6].











Citação: (1964), "Decisões da VI Conferência de Quadros do PAIGC (I Congresso)", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_42295 (2019-1-) (com a devida vénia)

Fonte: Casa Comum, Fundação Mário Soares.
Pasta: 07061.032.017.
Título: Decisões da VI Conferência de Quadros do PAIGC (I Congresso). Assunto: Manuscrito de Amílcar Cabral das decisões da VI Conferência de Quadros do PAIGC (Congresso de Cassacá). Organização do PAIGC; a situação das regiões libertadas; a criação das FARP; a criação do Exército Popular e a instalação das milícias populares; problemas da Zona 8; guerrilha; criação do I Corpo do Exército Popular; organização e estrutura de uma Subsecção. Em anexo uma carta de Amílcar Cabral para Nino Vieira e uma folha de apontamentos.
Data: Terça, 23 de Junho de 1964.
Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Manuscritos de Amílcar Cabral.
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral.


Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.
22Jan2019.
______________

Nota do editor Jorge Araújo:

Último poste da série > 26 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19335: (D)outro lado do combate (41): Carta de Aristides Pereira a 'Nino' Vieira, escrita em Cassacá, em 22 de janeiro de 1964 (Jorge Araújo)

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19437: PAIGC - Quem foi quem (12): Rui [Demba] Djassi, nome de guerra, Faincam (1938-1964), antigo comandante da região de Quínara, hoje "Herói da Pátria"







Citação:
(s.d.), "Relatório", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40094 (2019-1-24)  (Com a devid avénia...)

Casa Comum > Instituição:Fundação Mário Soares
Pasta: 04609.056.036
Título: Relatório
Assunto: Relatório remetido a Amílcar Cabral, Secretário Geral do PAIGC, por Rui Djassi (Faincam), acerca da repressão da população daquela zona pelas tropas coloniais.
Data: s.d.
Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Correspondência 1962 (interna).
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral
Tipo Documental: Documentos



Transcrição / revisão  / fixação de texto: LG


Camarada Cabral:

A situação está difícil. O povo não pode fazer revolta em grande parte; porque serão massacrados como acontece no Cubisseque [península de Cubisseco, a sudoeste de Empada, vd. carta de Catió].

E de maneira [que], passando mais dias, nem dentro  [, no mato,]  podemos estar .

A lavoura está quase parada,  porque se te virem entrar no mato é logo tiro. Para trazer-nos comida é difícil.

A dificuldade surge dia a dia.

O número dos mortos pode  alcançar 12.

Do camarada Djassi (FAINCAM)



1. O que terá acontecido ao Rui Djassi (Faincam)? - pergunta o nosso editor Jorge Araújo (*)


O seu nome deixou de constar na estrutura da «guerrilha», então aprovada no Congresso de Cassacá, em 17 de fevereiro de 1964,  sendo substituído por Guerra Mendes [que irá morrer em combate, em 9 de maio de 1965, em N'Tuane (Antuane)], conforme se pode ler no preâmbulo das  decisões tomadas então tomadas (*)

 (...) "Todos os responsáveis e militantes do Partido sabem que a zona 8 [região de Quínara]  sofre ainda as graves consequências duma direcção que não esteve à altura das suas responsabilidades e ainda da acção nefasta e dos erros cometidos por alguns responsáveis dessa zona. 

Depois do nosso Congresso, os camaradas Arafam Mané e Guerra Mendes, encarregados de melhorar urgentemente a situação da zona 8, fizeram, juntamente com outros camaradas, o melhor que puderam para cumprir a palavra de ordem do Partido. Mas esses camaradas mesmos são os primeiros a reconhecer que as coisas não vão muito bem na "zona 8", onde a situação é agravada pelo desaparecimento do responsável Rui Djassi, cujo paradeiro ninguém conhece, embora seja certo que está vivo".(...) 


E mais se acrescenta (*):

(...) "Nestas condições, todo o trabalho feito na zona 11 e nas outras regiões do país, está a ser prejudicado pela situação má em que se encontra a zona 8.

Por outro lado, a experiência feita no norte do país em que todas as zonas se encontram sob a chefia e responsabilidade dos camaradas Osvaldo Vieira e Chico Mendes (Té) mostra que é possível fazer o mesmo no sul, enquanto se prepara a nova fase da nossa luta. Quer dizer, todas as Zonas do Sul (11, 8 e 7) devem ficar sob a direcção centralizada dum pequeno número de responsáveis, directamente ligados ao Secretário-Geral do Partido. É portanto necessário fazer uma reorganização da direcção do Partido, da luta no sul do país, com a maior urgência possível.

No Ponto I.8, lê-se (*):

(...) " Os ex-responsáveis de zonas, camaradas Rui Djassi (Faincam) e Domingos Ramos (João Cá) devem vir imediatamente ter com o Secretário-Geral do Partido, passando as suas funções respectivamente a Guerra Mendes e Abdoulaye Barry"  (...).

Terá sido o Rui Djassi mais um "erro de casting" do Abel Djassi (aliás, Amílcar Cabral) ? É possível, mas o líder histórico do PAIGC também não tinha muito por onde escolher... De qualquer modo, um, Rui Dkassi (Faincam) e outro, Domingos Ramos (João Cá), desapareceram cedo, muito antes do "pai da Nação"... Um em 1964, outro em 1966.


2. O Bobo Keita, sobre o seu camarada Rui Djassim  diz o aegyuinte  no seu "livro de memórias" (in Norberto Tavers de Carvlaho - De campo em campo: Conversas com o caomandante Bobo Keita,edição de autor, Porto, 2011, pp. 237/238):

"Parte V - Guerrilheiros caídos no campo da honra (....)

Rui Djassi

O Rui  Djassi comandava toda a zona de Quínara. Tinha a sua base em Gampará. Cheguei a passar por aí quando íamos para o Congresso de Cassacá em 1964 [, de 13 a 17 de fevereiro de 1964; na região de Quitafine e não na ilha do Como, que na altura estava sob ataques terrestres, navais e aéreos das NT, no decurso da Op Tridente].

Na altura, pela maneira como se comportavam na base, notava-se logo que em situação de emergência, havia um perigo certo. Só quem não tivesse nenhuma noção de estratégia e de defesa poderia aceitar aquela situação. Os camaradas procediam a rituais animistas, cantando, dansando, bebendo o vinho do cibe [ou vinho de palma].

A base vivia num constante ambiente de frenesim. Foi assim que foram surpreendidos pela tropa portuguesa. Os tugas lançaram então a ofensiva. Escolheram um momento onde o rio estava na sua fase de plena enchente. O rio separava a base duma grande mata que se situava do outro lado da base. De forma que, quando houve o ataque, apanhados de surpresa, muitos camaradas tentaram ganhar o rio para atravessar e porem-se a salvo na outra margem.

O Rui Djassi tentou os mesmos gestos mas acabou pro morrer afogado no rio. O seu corpo desapareceu nas águas desse rio e nunca mais foi encontrado. Isto aconteceu pouco depois da realização do Congresso de Cassacá, que teve lugar em fevereiro de 1964".



Em suma, tudo indica que o Rui [Demba]  Djassi morreu "sem honra nem glória", contrariamente ao Domingos Ramos.  Ambos são, todavia,  "heróis da Pátria", e existe a sua "campa" (, embora não tenha sido encontrados os seus restos mortais) no Memorial aos Heróis da Pátria, junto ao Mausoléu Amílcar Cabral no interior da Fortaleza de São José de Amura, em Bissau. Lá consta qye nasceu em 1938 e morreu em 1964.


3. E a  propósito do Rui Djassi, recupera-se aqui  o comentário do nosso camarada Manuel Luís Lomba, também ele estudioso da história do PAIGC, feito no poste P13787 (**), onde refere:

"O Rui Djassi era cobrador da Farmácia Lisboa, foi incorporado no Exército Português e desertou como furriel miliciano  para ir com o Amílcar Cabral e mais 29 para a China, tirocinar 'guerra revolucionária' e foi o 1.º a concluir tal formação. 

Residiu na estrada de Stª. Luzia e, quando surgiu na guerra, o pai ofereceu recompensa a quem o liquidasse. Foi o 1.º comandante de Quínara e terá sido o responsável do assassinato do irmão do Manuel Simões [, o Januário Simões], ora evocado por falecimento. Foi o comandante dos ataques a Tite, em Janeiro e Fevereiro de 1963, currículo que o terá safado das penas de morte decretadas por Amílcar no I Congresso de Cassacá, na altura da Operação Tridente". (*)


4. Há vários Djassi no PAIGC,o que pode levar a confundir quem trata a informação do Arquivo Amílcar Cabar (***):

(i) o próprio Amílcar Cabral usava como nome de guerra "Abel Djassi"

(ii) o Osvaldo Vieira tinha, como nome de guerra, "Ambrósio Djassi";

(iii) Leopoldo Alfama era o Duke Djassi (, atuava na região do cacheu);

(iii) aão sabemos qual era o verdadeiro do Rui Djassi, que se assina sempre Djassi (FAINCAM).

(iv) aparace um documento, no Arquivo Amílcar Cabral, datado de 24 de junho  1965, em Madina do Boé, e assinado por Djassi, que  não pode ser atribuído ao Rui Djassi (morto em 1964) mas simn ao Osvaldo Vieira (Ambrósio Djassi); aliás, não é só um documento, são vários, dando o Rui como comandante da base do Boé.

Numa revista académica brasileira, ODEERE (que  "publica trabalhos inéditos e originais desenvolvidos em torno das discussões sobre etnicidade, relações étnicas, gênero e diversidade sexual em diferentes tempos e espaços e abordando diversos grupos sociais, tais como indígenas, negros, africanos, mulheres etc."), encontrámos uma referência a Rui Djassi.

Mais exatamente à sua sobrinha, Nhima Muskuta Turé, nascida em Gampará (Fulacunda, Região de Quínara), em 1954...  Nasceu na "luta de libertação", era filha de combatentes, foi recrutada ("contra a sua vontade"), aos nove anos, pelo seu "tio Rui Djassi". Teve uma instrução rudimentar, foi enfermeira do PAIGC. Foi entrevistada em Bissau em 14/10/2009, era então enfermeira-chefe do centro de saúde de Belém, Bissau (****)-

5. Recorde-se, por fim,  que o Rui Djassi fez parte da segunda leva de militantes do PAIGC que foram enviados para a China, no 2.º semestre de 1960, para formação político-militar como futuros comandantes.

Rui Djassi fazia parte destes 10 futuros destacados dirigentes do PAIGC, hoje todos desaparecidos, uns em combate outros na "voragem da revolução" (com exceção de Manuel Saturnino da Costa)… Aqui vão, mais uma vez os seus nomes, por ordem alfabética:

(i) Constantino dos Santos Teixeira (nome de guerra, “Tchutchu Axon”);

(ii) Francisco Mendes (“Tchico Tê”) (1939-1978);  oficialmente terá morrido de acidente na estrada Bafatá-Bambadinca; mas também há ainda suspeitas de assassinato, em 7/6/1978; foi primeiro ministro e chefe de Estado;

(iii) Domingos Ramos: morto, em combate, em Madina do Boé, em 11 de Novembro de 1966; tem nome de rua em Bissau; foi camarada do nosso Mário Dias no 1º curso de sargentos milicianos  (CSM) realizado na Guiné, em 1959;

(iv) Hilário Rodrigues “Loló”: , comissário político, morreu em 1968, num bombardeamento da FAP, no Enxalé;

(v) João Bernardo “Nino” Vieira (1939-2009): natural de Bissau; ex-Presidente da República; nome de guerrra, "Marga";

(vi) Manuel Saturnino da Costa, o único que ainda é vivo: será 1º ministro entre 1994 e 1997, num dos piores governos do PAIGC, na opinião do nosso saudoso Pepito (1949-2014);

(vii) Pedro Ramos: fuzilado em 1977, às ordens de ‘Nino’ Vieira, ao que parece, no âmbito do chamado "caso 17 de Outubro"); era irmão do Domingos Ramos;

(viii) Rui Djassi: comandante da base de Gampará, n aregião de Quínara, morreu por volta de fevereiro de 1964, por afogamento na sequência de um ataque das tropas portuguesas;  tem nome de rua em Bissau;

(ix) Osvaldo Vieira (1938-1974=; morreu, por doença, em 1974, num hospital da ex-URSS, e com a terrível suspeita de ter estar implicado na conjura contra Amílcar Cabral (ironicamente repousam os dois, lado a lado, na Amura); era também conhecido como "Ambrósio Djassi" (nome de guerra); tem nome de rua em Bissau; o aeroporto internacional também ostenta o seu nome;

(x) Vitorino Costa (morto, numa emboscada n o 2º semestre de 1962, antes do início oficial da guerra, por um grupo da CCAÇ 153 / BCAÇ 237, comandado pelo Cap Inf José Curto; a sua cabeça foi depois levada para Tite, como "ronco"; era irmão de Manuel Saturnino da Costa: e terá sido o primeiro revés de Amílcar Cabral, no plano militar; tem nome de rua em Bissau.
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Notas do editor

(*) Vd. poste de 24 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19433 (D)outro lado do combate (42): A nova estrutura político-militar do PAIGC decidida no I Congresso, de Cassacá, em 17/2/1964: os líderes do 1º Corpo de Exército Popular (Jorge Araújo)


(***) Último poste da série > 25 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19232: PAIGC - Quem foi quem (11): Lourenço Gomes, era uma espécie de "bombeiro" para situações difíceis ... A seguir à independência era um homem temido, ligado ao aparelho de segurança do Estado (Cherno Baldé, Bissau)

 Vd. postes anteriores da série: 

3 de abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6102: PAIGC - Quem foi quem (10): Abdú Indjai, pai da Cadi, guerrilheiro desde 1963, perdeu uma perna lá para os lados de Quebo, Saltinho e Contabane (Pepito / Luís Graça)

7 de junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4473: PAIGC - Quem foi quem (9): Luís Cabral, entrevistado por Nelson Herbert (c. 1999)

4 de junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4460: PAIGC - Quem foi quem (8): O Luís Cabral que eu conheci (Pepito)

1 de junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4447: PAIGC - Quem foi quem (7): Luís Cabral (1931/2009) (Virgínio Briote)

12 de janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2435: PAIGC - Quem foi quem (6): Pansau Na Isna, herói do Como (Luís Graça)

12 de dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2343: PAIGC - Quem foi quem (5): Domingos Ramos (Mário Dias / Luís Graça)

18 de outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2190: PAIGC - Quem foi quem (4): Arafan Mané, Ndajamba (1945-2004), o homem que deu o 1º tiro da guerra (Virgínio Briote)

6 de outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2159: PAIGC - Quem foi quem (3): Nino Vieira (n. 1939)

30 de setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2143: PAIGC - Quem foi quem (2): Abílio Duarte (1931-1996)

30 de setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2142: PAIGC - Quem foi quem (1): Amílcar Cabral (1924-1973)

(****) Vd, Patricia Alexandra Godinho Gomes  - "As outras vozes”: Percursos femininos, cultura política e processos emancipatórios na Guiné-Bissau.  ODEERE -  Revista do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnicas e Contemporaneidade (PPREC), UESB . Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Brasil

sábado, 28 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16998: (D)o outro lado do combate (Jorge Araújo) (5): O I Congresso do PAIGC em fevereiro de 1964, em Cassacá, a sul de Cacine, e a importância social da saúde e da instrução literária, analisada na base central do Morés em março de 1964 - Parte II







O nosso colaborador assíduo do blogue, Jorge Araújo (ex-Fur Mil Op Especiais da CART 3494. Xime e Mansambo, 1971/74): tem já mais de 110 referência no nosso blogue; ainda está no ativo, é professor universitário, doutorado em ciências do desporto. Este texto, a publicar em duas partes, foi submetido ao blogue em 4 de janeiro de 2017]



O I CONGRESSO DO PAIGC EM FEVEREIRO DE 1964 NO SUL E A IMPORTÂNCIA SOCIAL DA SAÚDE E DA INSTRUÇÃO LITERÁRIA, ANALISADA NA BASE CENTRAL (MORÉS) EM MARÇO DE 1964


II (e última) Parte


Um mês após a conclusão do I Congresso de Cassacá, na Frente Sul, os responsáveis da Frente Norte, Ambrósio Djassi [nome de guerra de Osvaldo Vieira; 1938-1974] e Chico Té [nome de guerra de Francisco Mendes; 1939-1978] tomaram a iniciativa de convocar uma reunião para o dia 21 de março de 1964, sábado, a realizar na Base Central [Morés] entre os responsáveis de bases e os sub-comisssários [políticos] com o objectivo de estudar e discutir as novas fases do desenvolvimento da luta, e ao mesmo tempo para pôr todos os camaradas ao corrente das resoluções aprovadas na reunião de Cassacá.

No final da reunião do Morés foi elaborado o respectivo relatório, que foi remetido ao Secretário-Geral, e por este recebido em 4 de abril de 1964, onde se fez referência aos temas tratados, ao conteúdo de cada intervenção e ao nome de todos os responsáveis que nela tomaram parte, num total de cinquenta e seis elementos.

Eis os dez pontos da Ordem do Dia [dos Trabalhos]:



1. - Mudança de Táctica

2. - Criação de novas bases
3. - Recrutamento e treinos
4. - Política
5. - Disciplina Militar
6. - Alimentação
7. - Saúde
8. - Instrução literária
9. - Segurança e controle
10. - Ligação.



Como ponto extra foi abordado o “ataque ao Enxalé” e analisada a sua necessidade.

Considerando a extensão do documento, constituído por doze páginas A4 manuscritas, iremos abordar neste texto somente os pontos 7 e 8, relacionados com os assuntos sociais – saúde e educação –, aliás em conformidade com o exposto na introdução.

Esta opção é justificada pelo facto de termos vindo a tratar o tema da saúde utilizando as memórias e experiências vividas por médicos cubanos no apoio à guerrilha, cujos relatos são posteriores a este evento (dois anos; com início em junho de 1966).

Já reproduzimos ao altop deste poste a folha de rosto, ou 1.ª página, onde consta o que acima foi referido.


Ponto 7 - SAÚDE


{Ambrósio] Djassi
– Tudo o que já fizemos e pensamos fazer é devido ao estado normal da nossa saúde. Passo a palavra ao nosso camarada Simão Mendes [enfermeiro] para nos apresentar o relatório elaborado em colaboração com os outros camaradas da saúde.


Simão Mendes
– Digo aos camaradas que vou relatar 10 pontos principais conforme o relatório que fizemos:

1 – Medicamentos: - os medicamentos passarão a ser requisitados trimestralmente, requisitando só os medicamentos de maior consumo na Guiné, dando uma regalia aos guerrilheiros como ao povo. Requisitar materiais de pequena cirurgia o mais breve possível.

2 – Doentes para a fronteira: - mandar urgente para a fronteira todos os feridos ocasionados por ferimento de balas uma vez que não há já recursos locais para a sua extracção. Formar um grupo de transporte de doentes ou feridos graves para a fronteira. Esse grupo será nomeado pelo responsável pela Zona Norte.





3 – Preparação de Ajudantes de enfermagem para outras bases: - serão escolhidas meninas e rapazes para receberem noções de socorros urgentes e de enfermagem.

4 – Escala de Serviço e sua conveniência: - far-se-á uma escala de serviço nomeando cada enfermeiro para a sua responsabilidade diária.

5 – Ginástica, sua necessidade e inconveniência: - a ginástica continuará a ser feita como dantes, isto é, todos os dias principalmente para os recém-chegados.

6 – Visitas guiadas às bases: - deslocação quinzenalmente às bases; nesta visita o enfermeiro escolhido procurará colaborar com o povo estudando assim as doenças de 1.ª instância. Serão construídas duas barracas para consultas.

7 – Noções ligeiras de primeiros socorros aos guerrilheiros: - fazendo parte da guerrilha é lícito que todos os guerrilheiros tenham noções de primeiros socorros. Oferecemos a nossa boa vontade neste momento.

8 – Higiene e sua conveniência: - fazendo parte da saúde, para evitar certas doenças, devem todos os guerrilheiros seguir os princípios da higiene do vestuário e limpeza de barracas.

9 – Escala de serviço e sua conveniência: - far-se-á uma escala de serviço, nomeando cada enfermeiro para a sua responsabilidade diária. (Este ponto é igual ao 4).

10 – Colaboração mútua em tudo que diga respeito ao nosso movimento com o povo e guerrilhas: - colaborar com a nossa população explicando a todos as inconveniências que o abuso excessivo dos medicamentos pode ocasionar. Paciência absoluta, dando ao povo explicações do emprego de medicamentos.




Resolução:


Todos os camaradas estiveram de acordo com as proposições dos camaradas da saúde e resolveram criar forças para garantir a execução do que está acima indicado.



Ponto 8 - INSTRUÇÃO LITERÁRIA



Djassi
– Depois de tudo devemos começar a pensar na instrução dos guerrilheiros e do povo. Hoje podemos dispor de alguns livros apanhados e que já empregamos para o mesmo fim. Os camaradas que vieram de Bissau vão ser distribuídos nas bases para começarem a instrução literária.

Chico Té
– Devemos fazer esforços para pôr isso em prática o mais breve possível apesar de poucos meios do que nos dispomos actualmente.


Luís Gomes – Neste ponto posso dizer que é muito importante para a nossa vida e o desenvolvimento da nossa terra. A instrução não é só para crianças mas sim também para adultos.






Resolução:


Todos os camaradas estiveram de acordo neste ponto, e os camaradas que vieram de Bissau vão ser distribuídos nas bases a fim de começar com a instrução literária. Devido à falta de material escolar solicitamos aos dirigentes superiores do Partido o envio de algum material neste campo.


Citação:
(1964), "Relatório da reunião entre os responsáveis de bases e os sub-comisssários da Base Central", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40112 (2016-12-28)


Fonte (,com a devida vénia...):

Instituição: Fundação Mário Soares
Pasta: 04613.065.157
Título: Relatório da reunião entre os responsáveis de bases e os sub-comisssários da Base Central.
Assunto: Relatório da reunião entre os responsáveis de bases e os sub-comisssários da Base Central, assinado por Chico Té (Francisco Mendes) e Ambrósio Djassi (Osvaldo Vieira). Ordem do dia: mudança de táctica, criação de novas bases, recrutamento e treinos, política, disciplina militar, alimentação, saúde, instrução literária, segurança e controlo e ligação. Ataque de Enxalé.
Data: Sábado, 21 de Março de 1964.
Observações: Doc. Incluído no dossier intitulado Correspondência 1963-1964 (dos Responsáveis da Zona Sul e Leste).
Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral.
Tipo Documental: Documentos


Em função do exposto, e em jeito de conclusão, podemos dizer que a organização do PAIGC, passados quinze meses do início da sua luta armada, ainda era excessivamente precária, onde os adjectivos: instável, delicada, insegura, débil e pobre, enquanto sinónimos, completam o seu quadro mais global.

Mas poderia ser diferente para melhor? Não creio… pois tudo na vida é processo e projecto.

Obrigado pela atenção.
Um forte abraço de amizade e votos de boa saúde.
Jorge Araújo.
4jan2017.

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Nota do editor:

Último poste da série 26  de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16991: (D)o outro lado do combate (Jorge Araújo) (4): O I Congresso do PAIGC em fevereiro de 1964, em Cassacá, a sul de Cacine, e a importância social da saúde e da instrução literária, analisada na base central do Morés em março de 1964 - Parte I

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Guiné 61/74 - P17765: (In)citações (111): Lembrando Setembro, o mês comemorável da Guiné, a sua Libertação, que intrujou todo o mundo e todo o mundo se deixou intrujar e os seus improváveis heróis (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav da CCAV 703)

Nuno Tristão
Com a devida vénia a AdBissau.Org

1. Em mensagem datada de 13 de Setembro de 2017, o nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, BissauCufar e Buruntuma, 1964/66) enviou-nos este artigo de opinião para publicação:


Lembrando Setembro, o mês comemorável da Guiné, a sua Libertação, que intrujou todo o mundo e todo o mundo se deixou intrujar e os seus improváveis heróis

Por Manuel Luís Lomba

A minha memória da Guerra da Guiné anda associada à lembrança das suas “mentiras revolucionárias” e das duas utopias, responsáveis directas e indirectas, da imolação dos seus milhares de vítimas - homens, mulheres e crianças: a de que a Guiné continuaria a ser dos portugueses, de um lado; e a de que os guineenses empreendiam a sua libertação, do outro. Um chamamento do além, à evocação se “valeu a pena?” ou ao piedoso respeito pelos que derramaram o seu sangue por ela?

A Guerra da Libertação da Guiné foi o meu (nosso) passado de mocidade, o nosso futuro próximo é estarmos todos mortos e, neste mês de Setembro, efeméride da Declaração unilateral da independência e do seu reconhecimento por Portugal, seja-me permitido evocar alguns dos seus acontecimentos e evidências.

Nuno Tristão chegado à Guiné, diz o cronista que na missão da “busca certa de informação e sabedoria daquelas partes” e foi morto pelos Mandingas pré-cabralinos, em Setembro; o reconhecimento da posse exclusiva da Guiné, pelos Reis Católicos da Espanha e pelo Papa de Roma, foi em Setembro; Amílcar Cabral nasceu em Setembro; o PAIGC foi fundado em Setembro; Amílcar Cabral fez a parceria do PAIGC com a União Soviética, em Setembro; as acções de sabotagem pelo PAIGC, adventícias da guerra da Guiné, tiveram início em Setembro; a declaração unilateral da sua independência, “nas colinas do Boé”, foi em Setembro; a demissão do general Spínola, que levantou e reforçou o moral combativo ao PAIGC, foi em Setembro; a fundação do MFA, a substância activa do PAIGC replicada nas Forças Armadas Portuguesas, foi na Guiné e em Setembro; a formação da Comissão Coordenadora do MFA, o mais eficiente “comité libertador” da Guiné, foi em Setembro; e o reconhecimento da independência da Guiné por Portugal, foi em Setembro; etc.

O apoio da Oposição sistemática ao regime do Estado Novo, o fenómeno eleitoral Humberto Delgado - a Guiné votou-o a PR - e aquele “massacre” no cais do Pidjiquiti, estereótipo das consequências das greves musculadas, foram o lastro para Amílcar Cabral começar a Guerra da Guiné. Mal começara o aliciamento de combatentes e já os apoios morais e materiais de todo o mundo lhe abundavam. Grande era o efeito multiplicador das adesões, com a sua eficiência subversiva, no desempenho de alto funcionário do governo colonial e pelo poder da mensagem que dirigia aos contactados, de que transformaria a Guiné, de pobre e atrasada colónia portuguesa, na Suíça da África; e, a seu exemplo, o seu núcleo duro de combatentes foi formado por soldados e graduados da guarnição militar da Guiné, no activo e na disponibilidade.

Levou com ele os primeiros 30 a tirocinar na China, devolvidos com os cérebros lavados e como operacionais preparados para a guerra de guerrilhas. E foi essa malta, iniciada na arte militar nos quartéis da guarnição da Guiné que, ao longo de 11 anos, saberá comer as papas na cabeça (falta-me expressão mais erudita) aos militares formada nos quartéis, nas Escolas Práticas, nas Academias e nos Altos Estudos Militares das FA de Portugal!
Para desconforto dos tabus do lado deles e das más-línguas do nosso lado, segundo as quais a longevidade da Guerra da Guiné aconteceu por interesses carreiristas e pelos estipêndios da quase generalidade dos militares profissionais, não me permito a omitir que os principais comandantes do PAIGC não só eram bem pagos (em escudos, dólares ou coroas suecas?) e bem prendados, relógios de ouro Rolex inclusive, mas também, sem qualquer preparação, se alcandoraram aos altos cargos do novel Estado da Guiné-Bissau!
Isso pela unidade e luta ou a génese da corrupção, responsável pelo falhanço da Guiné-Bissau como Estado?

A partir de 1961, os dirigentes de Lisboa viraram-se para Angola “é nossa” e o PAIGC foi-se instituindo e instalando no arquipélago do Como, formado por três ilhas, separadas entre si apenas na maré alta, onde foi crescendo, em subversão, orgânica e como base de guerra, posto em sossego, pela cumplicidade da autoridade colonial de Catió, desempenhada por um militante. De feudo do colono Manuel Pinho Brandão e por bravata de Nino Vieira, aquele arquipélago passou a República Independente do Como, com a capital na tabanca de Cachil, a rádio Brazzaville deu a notícia e a PIDE de Angola alertou as autoridades de Bissau e Lisboa. Naquele tempo, o efectivo paigcista naquele arquipélago seria inferior a 400 combatentes e o efectivo da guarnição militar da Guiné era de cerca de 1800 homens, metropolitanos e naturais, distribuídos pelos três ramos das Forças Armadas.

Tendo partido da base-mãe de Koundara (para não contrariar Skou Touré), 30 km além fronteira, em Janeiro de 1963, um grupo de guerreiros, comandado por um puto guineense de 20 anos, que atendia pelo nome de Arafan Mané, veio fazer o baptismo de fogo, dele e do PAIGC, numa tentativa falhada de assalto ao quartel militar de Tite. O Estado-Maior de Bissau convenceu-se de que as três ilhas eram a mãe dessa guerra, a aviação de Bissalanca passou a bombardear regularmente as copas das suas árvores e um bombardeiro T6, abalroado pela sua parelha, fez uma aterragem de emergência.
A Guerra da Guiné entrava nos seus primórdios e já Amílcar Cabral se antecipava ao seu evoluir e desfecho, a percorrer as arenas internacionais e as chancelarias de Estados, numa diplomacia de propaganda e triunfalista, exibindo o mapa com 2/3 da Guiné libertada, a autoridade colonial circunscrita a Bissau e Safim, provas de aviões abatidos e um piloto de combate aprisionado.

Arvorado em líder dum Partido-armado e de uma guerra política, de efeito dirigido à Comunidade internacional, era mister a Amílcar Cabral formalizá-lo em assembleia constitucional; e, em finais de Dezembro de 1963, marcou o I Congresso do PAIGC para a tabanca de Cassacá, implantada numa densa mata, cercada de bolanhas, quais fossos naturais de fortaleza inacessível, na “área libertada" da ilha do Como, que o seu caudilho dava por inexpugnável.
Nessa mesma altura e dispondo do reforço de meios, vindos da Metrópole e de Angola, o Comandante-Chefe das FA da Guiné, por ordem directa de Salazar, emitiu a directiva da organização e da manobra de uma operação de grande envergadura sobre aquele arquipélago, com a missão de liquidar a situação e a sua causa. Por ironia do destino, os dois eventos decorrerão paralelamente e em proximidade, que só a realidade geográfica da Guiné poderia permitir, primeiro por casualidade e, depois, pela tradicional resiliência cabralina.

Eis dois comandantes-chefes e a sua circunstância – ambos antagónicos ao ditador, ambos favoráveis à negociação e não à guerra: o eng.º agrónomo Amílcar Cabral, ex-alferes miliciano do Exército Português, que havia deixado o emprego para se tirocinar na guerra subversiva na Academia Militar de Pequim, arvorado em líder da guerra independentista da sua terra natal, sustentado pelo ordenado da sua mulher, a eng.ª flaviense Maria Helena Ataíde; e o brigadeiro Louro de Sousa, oficial-general do Exército Português e Comandante-Chefe das FA da Guiné.

Então, em princípios de Janeiro de 1964, o arquipélago do Como foi o objectivo de uma invasão anfíbia, de metodologia semelhança à invasão da Normandia, com o código de “Operação Tridente”, envolvendo o efectivo de cerca de 1200 homens e a panóplia do armamento dos três ramos das FA – Exército, Marinha e Força Aérea. Com os seus escrúpulos de poupar as populações a sobreporem-se ao efeito da surpresa, o Comandante-Chefe mandou que a invasão fosse precedida de dois aviões Dornier de reconhecimento a lançar panfletos sobre o arquipélago, a avisar a metralha que lhes viria da terra, mar e ar.
Assim prevenidos, os cerca de 400 guerreiros nacionalistas do arquipélago do Como, encabeçados por três comandantes, de que apenas sobreviverá Agostinho de Sá, supervisionados pelo felino Nino Viera, estavam para as suas populações “como o peixe para a água”, prepararam-se para festa da recepção. Acontecerá uma metralhada infernal, combates renhidos, sem quartel, e dois aviões de combates derrubados por antiaéreas de grande calibre. Muita bravura e muitos sacrifícios humanos - a bravura mais da parte dos guerrilheiros, os muitos sacrifícios mais da parte da tropa, por maioria de razão.

Na sua consciência de que a fortaleza do Como não passava de quimera revolucionária, a tropa ocupara Cachil e circulava por Cassacá, Amílcar Cabral protelou o congresso, em data a indicar apenas na antevéspera. Atravessou a Guiné com o aludido Arafan Mané, ora seu guarda-costas e manteve a face, confirmando o congresso em Cassacá, não a do Como, mas a do Cubisseco, na península do Cantanhês e mandou Nino Vieira desmobilizar a resistência no Como; e, durante 4 dias, de 13 a 17 de Fevereiro, numa reunião, mais de quadros político-militares que assembleia de massas, estabeleceu orgânicas, ditou directivas e lavrou sentenças de morte. E o PAIGC não deixará de cumprir uma dessas directivas – a execução sumaríssima dos guineenses com ligações à tropa, caídos nas suas garras, assim como dos oposicionistas ou dos que desalinhassem do PAIGC.

Guiné > Região de Tombali > Carta de Cacine (1960) > Escala 1/50.000 > Posição relativa de Cassacá, a 15 km a sul de Cacine, região também como conhecida como Quitafine.

A resistência do Como feneceu, os guerrilheiros sobrevivos esconderam o armamento pesado e dispersaram-se pelo Cantanhês e Cufar, coisa que a guerrilha sabia fazer e a tropa não (veja-se o acontecido em Tancos…) e, ao fim de 71 dias, as forças invasoras retiraram para Bissau. De tão grandiosa, a “Operação Tridente” não passará de solução de continuidade: a Guerra da Guiné continuou em crescimento, em efectivos, armamento e intensidade.

Passados 10 anos, o então Major Otelo Saraiva de Carvalho e o então Capitão Vasco Lourenço, “rapazes” do General Spínola na Guerra da Guiné, descobriram a sua vocação libertadora, naquela madrugada em que se entreajudavam a mudar uma roda do carro em que regressavam de Santarém, qual sua “estrada de Damasco”, de um churrasco desabafo-conspirativo na casa do Capitão Salgueiro Maia, outro “rapaz” da mesma guerra, que aquele general havia injustamente sacrificado e à sua companhia, na batalha de Guidaje, no auge da crise dos “3 G´s” - o contexto gerador da formação do MFA. O Major Otelo receberá a unção dos seus pares, para planear e desencadear a “Operação Mudança de Regime”; e o seu sucesso culminante foi a conclusão da “Operação Tridente”, pela resolução da problemática da Guiné. Foi no dia 25 de Abril de 1974, o Terreiro do Paço, as suas acessibilidades e o Largo Carmo foram os seus palcos principais; parecerá heresia, mas o seu desfecho vitorioso poderá ser creditado ao discernimento e à coragem moral do Coronel Romeiras Júnior, que fora o 2.º Comandante Operacional da “Operação Tridente”, então comandante do RC 7, posicionado no campo contrário. Qual teria sido o desfecho da “Operação Mudança de Regime” se ele, desobedecendo abertamente ao Brigadeiro Junqueira, não tivesse usado os seus galões para impedir que os poderosos canhões dos seus tanques M44 Paton, vindos da Calçada da Ajuda, dizimassem os conjurados Tenente Assunção, Major Jaime Neves, Capitão Salgueiro Maia, os seus subordinados e as suas Chaimite ocupantes do Terreiro do Paço, desprovidas de armamento para se bater com eles.

Em Setembro de 1974, após o reconhecimento por Portugal da independência da Guiné, consumando a sua proclamação pelo PAIGC, no inóspito lugarejo de Lugajole, deu-se a emergência da substância paigcista do MFA – a sua deriva para um PREC (Processo Revolucionário em Curso), réplica do terceiro-mundismo ou de república das bananas, tentativa para que o “Fim do Regime” fizesse um caminho no sentido único de outra dinastia ditatorial, um delírio indigno e que indignou o país: além da sua honrosa história, os portugueses eram de maior idade desde 1128 e Portugal era o segundo país mais antigo da Europa e o terceiro mais antigo do Mundo!
No contexto desse paigcismo, os subsistentes da “Operação Tridente”, actores do dia 25 de Abril e do seu dia seguinte – Brigadeiro Louro de Sousa, Comodoro Paulo Costa Santos, Coronel Fernando Cavaleiro, etc. foram metidos na cadeia; e outros, como os Comandantes Alpoim Calvão, Benjamim Abreu, etc. passaram a foragidos.
Não será politicamente correcto; mas eles foram uns heróis, improváveis, da independência da Guiné.
E assim começou o futuro da República da Guiné-Bissau.
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de agosto de 2017 > Guiné 61/74 - P17666: (In)citações (110): À procura de… Luís Vassalo Rosa, arquiteto e comandante da CART 1661 (Mário Beja Santos)