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sábado, 11 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24840: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (19): O Bairro Alto... de finais do séc. XIX, mal afamado durante muitas décadas, e hoje gentrificado...

Capa do livro de Avelino de Sousa (1880-1946), "Bairro Alto: romance de costumes populares". Lisboa: Livraria Popular de Francisco Franco, Lisboa, 1944, 290 pp. 


1. Já não é do nosso tempo de meninos e moços...Mas se fosse,  não nos deixavam lá ir, sozinhos... Nem já é do tempo dos nossos pais, nascidos por volta dos anos 20... Estamos a falar de 1896/97/98, e de um dos guetos de Lisboa... o mal afamado Bairro Alto. 

Irreconhecível hoje, ou talvez não: as suas ruas, o seu casario, são os mesmos... Ainda existem casas com aventais de pau (meias-portas, nos pisos térreos), e persianas de tabuinhas nos andares de cima. Mas já ninguém sabe hoje o significado da expressão, "estar de avental de pau" (estar debruçada, a mulher,  sobre as meias-portas, oferecer-se, prostituir-se).

A toponímia pode ter mudado num caso ou noutro. As tascas dos galegos desapareceram. Tal como os candeeiros a gás, de iluminação pública.  E a redação dos jornais e as tipografias, que começaram a concentrar-se nesta zona histórica, logo desde meados do séc. XIX. Já não há cheiro a peixe frito nem se servem entaladas, candas, iscas com elas, etc., nem se bebe um meio-curto (copo mal cheio, com café, vinho, canela e açucar)... Ou uns tintos.... cortados (vinho com soda).

A fauna humana também mudou... Todos/as tinham alcunhas, "nomes de guerra", das rascoas aos faias, dos artistas aos amigos do alheio:  Pinoia, Enjeitada, Pantera, Micas, Camélia, Pinta-Monos, Pé de Chumbo, Zé-Bode, Garrafão, Fininho, Janota... O fadista ou faia, com o seu traje característico e o seu calão,  perdeu-se na voragem do tempo...As modas são outras,,,  A fadista de faca na liga, também. 

Grosso modo, há o antes e o depois de Amália Rodrigues, que ajudou a branquear o passado "lumpen", proletário,  rasca, ordinário, popular, do fado...O mesmo  é dizer: nobilitou o fado, arrancando-o da rua, da viela, do vicio, da taberna... 

E já não há Adelaides Pinóias a cantar ou a gemer: "Quem nasceu no Bairro Alto / há de sofrer e chorar / ao ouvir uma guitarra / docemente a soluçar" (pág. 289).  Nem o Bairro Alto é mais o dos "amores tão delicados": se o foi, foi no bom tempo do palácios e conventos do séc.  XVI... Degradando-se, foi apropriado pelas "classes laboriosas" e pelos grupos socialmente marginalizados. O "acantonamento" das prostitutas em certas zonas da cidade, bairros populares, ribeirinhos  degradados, imposto por postura municipal de 1833, por razões de "saúde pública" e de salvaguarda da "moral pública", de acordo com o discurso liberal então dominante,  acabou por estigmatizar o Bairro Alto (e outros; Mouraria, Alfama, Madragoa, etc.) durante mais de um século... Mas foi também um dos "laboratórios sociais" do fado, "canção popular urbana de Lisboa"... hoje "património imaterial da humanidade", tal como o "cante" (que nasceu nos campos, na rua, na taberna...).

Perderam-se "bons e maus costumes"... Ganharam-se outros.  Em 2013, o antigo bairro aristocrático quinhentista fez 500 anos. O antigo Carnaval de Lisboa. com as suas cegadas,  também não existe mais, "muito bruto, por vezes malcriado, mas ao mesmo tempo divertido e com graça" (pág. 159). Em 1963, o Estado Novo hipocritamente fechou as "casas de passe" (nome eufemístico para os prostíbulos, em que as prostitutas tinham número de matrícula e inspecção médica periódica)... Já o tinha feito, de resto, no Ultramar (em 1954). 

Vinte anos depois, em 1983, Portugal legalizou a prostituição, mas não resolveu o problema das suas suas causas e consequências. 

Vale a pena, todavia, dar aos nossos leitores uma "ideia" e um "cheirinho" do que foi  o Bairro Alto das últimas décadas do século dezanove, social e espacialmenteĺ segregado, mal afamado tantos anos (até mesmo para lá do 25 de Abril de 1974)... 

Alguns de nós ainda o conhecemos nos anos 60/70, ao tempo da tropa e da guerra colonial ... Mesmo para aqueles que nunca lá foram, ficou no seu imaginário, tal como o Pilão, em Bissau...

A partir dos anos 80, o Bairro Alto "aperaltou-se", lavou a cara,  passou a ser uma zona turística, sítio obrigatório da noite de Lisboa, e hoje cada vez mais "gentrificado"...  Novas formas e lugares de prostituição apareceram, a começar pela prostituição de luxo (a que as elites do Estado Novo, de resto, já recorriam: veja-se o "escàndalo" do Balet Rose, em 1967).

Reproduzimos a seguir alguns excertos deste pitoresco "romance de costumes", do Avelino de Sousa,  publicado em 1944, mas que começou por ser uma opereta, com o mesmo nome, e do mesmo autor. (Terá tido bastante sucesso no ano de 1927, já em plena Ditadura Militar...)


O Bairro Alto de antigamente

(...)  Bairro Alto – bairro de gente honesta, bairro de artistas e de operários,      bairro da Imprensa, de boémios e de fadistas e também – na época em que decorre a ação deste romance – bairro de rascoas que se estendiam como que em alas de ambos os lados da maioria das artérias, debruçadas sobre os aventais de pau [nome  dado vulgarmente às meias portas], por todas as ruas, da Atalaia, dos Calafates, da Barroca, das  Salgadeiras, do Norte, das Gáveas, Travessas da Cara, da Boa-Hora, da Água da Flor, dos Fiéis de Deus, das Mercês, da Espera, do Poço da Cidade. (…) (pág. 58).

(...) A velha casa das iscas do Bairro Alto na rua da Atalaia, à esquina da Travessa da Água da Flor, era a mais antiga de Lisboa, depois da que ainda existia na rua do Arsenal, à esquina da Travessa do Cotovelo. Os seus proprietários, dois irmãos galegos, Manuel e José, usavam matacões [suiças],(...) (pág. 76).

***

 (…) Havia no Bairro Alto um fadista − ajudante de cortador no talho do Augusto, na rua da Rosa, esquina dos Inglesinhos − rapaz alto, desempenado, aloirado, de pequeno bigode e nariz saliente, vestindo rigorosamente à fadista: jaquetão e colete de astracã preta, camisa de cordões de seda em substituição da gravata, calça de boca de sino, até ao bico do sapato, em fantasia às riscas, num tom acastanhado,  algibeiras ao alto, larga pestana a guarnecer a perna,  cinto de seda vermelha, chapéu de aba de tela. Usava uma grande melena,  em caracol como que colada à testa, bamboleava muito o corpo,  quando andava, e fumava charutos cortados de dez cada um.

Bons tempos!

Chamava-se Augusto César de Carvalho,  mas era conhecido pelo Augusto   Bombinhas. (…) (pp. 116/117)

***

(...)  Ora, graças!... A velha, foi amiga!... Doze mal reis!...Ena pai!... 24 c’roas!... É melhor do que nada e eu estava sem vintém! (…)

E metendo o dinheiro no bolso do  colete, abandonou o saquito num canto, desceu a escada, saiu pela rua Formosa, meteu-se  à calçada do Combro, entrou na Adega do Estucador ao lado do quartel  dos Paulistas, e, ao mesmo tempo que tirava do prato, que estava em cima do balcão, um ovo cozido pintado de encarnado à força de anilina,molhando-o no sal grosso, depois de rebolar a casca sobre o balcão para a partir, pediu:

Dê cá três celitros, ó patrão!... e deu  uma dentada no ovo.

Mas, nisto, uma voz,  por detrás dele, dizia-lhe ao ouvido:

Não pagas nada, ó Cambalhotas ?...

Era o Pé de Chumbo gatuno como ele.

− Estás teso ?...

− Palavra de honra que estou! Não tenho  chapeca, e o raio da Micas, hoje, ainda não se estreou!

  Andas com azar!... Olha, come um ovo cozido, que estão bons!...Vá anda, e bebe um copo! O cofre, está aberto! Queres duas c’roas emprestadas?...

− Estás armado ?...

− E bem armado! Tive um belo gancho!, camarada.

− Não percebo!

− Contos largos! Toma lá as duas c’roas, não se fala mais nisso!

− Viste o Garrafão ?...

− Hoje, não. Ontem à noite,estive com ele no João da Arruda na rua da Atalaia.  Estava danado com a dor!

− Está no pinho?... [não ter amante]

− Pois, !... A Pantera correu com ele, e passou-se para o Zi-Zi!

 E o gajo não lhe deu um flàquibaque na tabuleta  [ bofetada na cara] ?

− Não, porque  tem medo do Zi-Zi. Tu sabes que o Garrafão não é mau rapaz, mas é fracalhote. Aquele corpo, todo é balofo!

− Ora, meu amigo, tu  também  quando a pregas é à carunfa [à traição] ! – disse o Cambalhotas.

− É como calha! Também não és tu quem dá os bons dias [ser o mais valente, ou o mais cotado em qualquer manifestação da vida].

O Cambalhotas engoliu em seco, e disse, fugindo à discussão:

− Também o Garrafão não perdeu nada! A gaja era um estojo horrível!

  bem, ela é atanado, é feia que nem um pente de pau do ar, mas governa-se bem a vender os trapos  às outras! Olha que o Garrafão talvez não arranje outra assim!

− Não sei… Ele andava a fazer-se [a atirar-se, a fazer o cerco] todo com a Beatriz Gorda, e também com a Augusta do Campos! Mas esta não deixa o João da Isabel [Também cantava o fado e era irmão do Zé-Bode e do Júlio Martelo].

− Pelo lado do interesse, nenhuma delas vale a Pantera! Agora como mulheres…

Enquanto estes dois patifes conversavam, comendo ovos cozidos e bebendo a sua pinga, na Adega do Estucador, outras cenas de roubo se desenrolavam em todas as casas de penhores do Bairro Alto (…) (pp. 129-131).

***

(...) Pendurados junto às ombreiras das  portas de um lado e outro da Travessa do Poço da Cidade, no renque de luz indecisa,  os candeeiros de petróleo difundiam uma claridade bruxuleante, mal eliminando as caras pintadas das infelizes rascoas, encostadas às tradicionais meias portas.  Nos primeiros andares,  de tabuinhas, a mesma luz soturna lucilava, mal se distinguindo da rua.

A cada esquina , um candeeiro de iluminação pública, espalhava aquela luz amarelada e mortiça do gás da Companhia. Lá em cima, na esquina da rua da Rosa, um polícia,  de palestra com o guarda noturno, chupava um magro cigarro.

No Bairro Alto, pelo menos na época que estamos descrevendo. a maioria das raparigas da vida, como era de uso chamar-lhes, eram comedidas de linguagem e de atitudes, raro sofrendo uma admoestação policial, e até se dava o caso interessante de cumprimentarem e serem cumprimentadas, cortesmente, por pessoas honestas da vizinhança. (…) Acarinhavam e  beijavam a petizada da vizinhança, tornando-se assim simpáticas aos pais e às mães das crianças.

E não se pegava nada, como diz o povo judiciosamente,  ou quem sabe ? talvez houvesse menos maldade naquele tempo! (...)  (pp. 137/138)

***

(…) A Enjeitada afastou um pouco a cortina de ramagem, sentou-se no canapé, de guitarra em punho, e a Adelaide, sem sair da porta, pegou no papel dos versos.

− Dá-me entrada, sim?...

A Enjeitada começou a tanger a guitarra,  tirando uns acordes à maneira de introdução.

− Entra agora!

E  a Adelaide começou:

Este livro é a grilheta
que a corrente a desgraçada, 
que chafurda e que vegeta 
nesta vida segregada!

É o nó que à perdição 
nos prende por toda a vida, 
− o selo da podridão,
e a algema da perdida! (…)

A Pinoia interrompeu-se:

− Vou bem ?

− Muito bem ! Segue, anda!

 A Adelaide prosseguiu: 

É ferro em brasa,
 que nos queima
 e nos arrasa! 
Um alvará 
que, por teima, 
a Lei nos dá.

Um passaporte p’ra viver no lodaçal:
Um escarro ignóbil ao serviço da Moral!

− Que tal,  ó Enjeitada ?

− Muito bem, Adelaide! E os versos ? Cheios de verdade!... (pp. 184/185) (**)

***

(...) E  a Adelaide senta-se no canapé.  O Pinta-Monos toma lugar a seu lado e observa:

 − Ah!, Adelaide se tivesses sido a minha, já não estavas aqui!

Ela solta uma gargalhada, e contrapõe;

− Tu estás doido,  rapaz ?! Deixar esta vida, eu ?! Aqui,  é que eu sou gente! Fora disto,  seria uma mulher corriqueira, uma senhora honesta,  como outra qualquer!

− Mas... 

− Já te disse: aqui,  sou eu Rainha! (...) (pág. 198) (**)

(Seleção / revisão e fixação de texto / adaptação: LG. As notas dentro dos parênteses retos são notas de rodapé, da responsabilidade do autor, Avelino de Sousa)
____________

Notas do editor:

(*) Último poste da série de 5 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24824: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (18): a taberna em meio rural (António Eduardo Ferreira, 1950-2023, Moleanos, Alcobaça)

(**) Glossário (termos e expressões idiomáticas da gíria ou do calão usados no romance):

Alcouce - Bordel, prostíbulo (etimologia duvidosa)

Alcoveta -Mulher intermediária no comércio do sexo (do árabe, al-qawwâd, intermediário.)

Belfe - Calote


Buchinha - Num baile, era ceder a dama a outro cavalheiro

Carunfa - Traição

Carunfeiro - Traiçoeiro

Celitro - Decilitro (de vinho)

Cheta - Um vintém (20 réis), 5 chetas equivalia a 1 tostão

Cortado - Vinho  com soda

C'roa - Dois mil (ou mal...) réis 

Cunfia - Confiança

Dar os bons dias - Ser o mais valente

Duques - (?)

Elas - Batatas ("Iscas com elas")

Ensaio de galheta - Par de bofetadas

Entalada - Uma isca metida num quarto de pão.

Estar no pinho - Não ter amante

Ético - Sem dinheiro ("estar ético")

Flaquibaque - Estalada

Garonga - (?)

Labita - Fraque

Libra - 4500 réis

Meio-curto - Copo mal cheio, com café, vinho, canela e açucar.

Meia-lata - Meio litro (de vinho)

Meia-unha - Meio tostão

Pai de vida - (?)

Ourelo -  Cuidado, cautela

Quarto de bife ou quarto de dose - Um meio bife custava 140 réis (sete vinténs). Um quarto custava metade. Pretexto para se beber nais um copo.

Queijada - Gratificação

Rascoa - "Mulher da vida", prostituta... Era duplamente exploradas: pelos chulos  (rufiões, que nem todos eram fadistas, vivendo do pequeno crime)  e pelas "patroas", as donas das casas ("cobravam, em geral, quinze tostões a dois mil réis por dia por cada casa"; (...) "uma exploração ignóbil de que as infelizes eram vítimas, pois que, na maior parte dos dias, não ganhavam nem para o petróleo, como elas próprias diziam". (pág. 192).

Requineta - Fraque

Roda - Tostão (duas rodas, dois tostões ou dois-tões)

Tabuleta - Cara

Tostão - 100 réis, 5 chetas ou 5 vinténs

Toudas - Sopapo

Trompázio na fuça - Soco na cara

Trovas a atirar - Cantigas que encerravam uma provocação, dando origem por vezes a conflitos.

Vintém - 20 réis

quarta-feira, 20 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23446: Memórias da minha tropa: localidades por onde passei, que amei e onde sofri: de Ponte de Sor a Mafra, Amadora, Lamego, Tancos, Lisboa, Abrantes, Tomar... até chegar a Bissau (Veríssimo Ferreira, Ponte Sôr, 1942 - Loures, 2022)


Veríssimo Ferreira, soldado instruendo: BI militar, 
emitido pela EPI (Escola Prática de Infantaria), 
Mafra, em 25 de abril de 1964.


Verísismo Ferreira, furriel miliciano: BI militar, 
emitido pela CCS / Quartel General, 
 CTIG (Comando Territorial Independente da Guiné), 
Bissau, 14 de julho de 1966.



Guião da CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, "Bravos e Serenos"


1. Há três dias, em 17 do corrente, às 22h19, a sua filha Cristina F. Titau já temia e nos fazia temer o pior:

O meu pai está neste momento a lutar pela vida nos cuidados intensivos, ligado a um ventilador.

Para o meu pai "os melhores anos da sua vida" foram os que passou na tropa, na Guiné. Não pela guerra, mas por ser jovem, forte e pela camaradagem.
 
As probabilidades estão contra ele mas rezo para que ganhe mais esta batalha. Peço aos seus camaradas na honra de ter servido o país que rezem também comigo.

O meu pai é Veríssimo Ferreira.

A ontem, às 12h54, sabíamos qual era o doloroso e irrevogável desfecho (*):

O meu pai faleceu esta manhã. Quando souber do funeral, aviso. Obrigada a todos que foram amigos dele. ELA 
Esclerose Lateral Amiotrófica ]+ COVID, dificilmente podia ser diferente...

Recordem-no e guardem-no no coracão, que ele tinha medo da solidão... Nunca estarás só,  paizinho. Andas sempre em nós. 

Segundo informação da filha, Cristina Paula, a cerimómia funerária será realizada amanhã, quinta feira, dia 21. O corpo do nosso camarada Veríssimo Ferreira ficará em câmara ardente na capela da casa mortuária de Loures, a partir das 10h00. Às 15h15 será celebrada missa de corpo presente, seguindo o funeral para o cemitério de Loures.   

Como recorda a Cristina, "o pai nasceu a 21, casou a 21, partiu para a Guiné a 21 e voltou a 21, e fecha-se assim o ciclo deste modo no dia 21".

Vamos nós, seus camaradas, recordá-lo com saudade e honrar a sua memória. (LG)

2. Ainda antes do seu corpo descer à terra, vamos aqui lembrar o nosso querido amigo e camarada Veríssimo Ferreira, através da republicação, revista, de dois postes em que ele, com o seu típico bom humor de alentejano, recordava os seus primeiros vinte meses de tropa (a que se seguiram outros tantos de guerra, na Guiné, entre agosto de 1965 e abril de 1967). 

O Veríssimo Ferreira:

(i) nasceu em Ponte Sôr, distrito de Portalegre, Alto Alentejo,  em 21 de fevereiro de 1942;

(ii) fez o Curso de Sargentos Milicianos (CSM), com a recruta em Mafra e a especialidade de atirador de infantaria em Tavira, em 1964;

(iii) foi furriel miliciano, CCAÇ 1422, subunidade do BCAÇ 1858: mobilizada pelo RI 15 (Abrantes), partiu para o TO da Guiné em 18/8/65 e regressou a 15/4/67, tendo passado por Bissau, Bula, Farim, Mansabá, Saliquinhedim / K3;

(iv) foi o primeiro (e único) representante da CCAÇ 1422, no blogue, onde tem mais de 7 dezenas de referências;

(v) era (e é) o membro n.º 581 da  Tabanca Grande, onde ingressou em 3 de outubro de 2012;

(vi) passa a figurar na já longa lista (alfabética, ver coluna estática, no lado esquerdo do blogue) dos 121 amigos e camaradas da Guiné que "da lei da morte já se libertaram".


3. Memórias da minha tropa: localidades por onde passei, que amei e onde sofri: de Ponte de Sor a Mafra, Amadora, Lamego, Tancos, Lisboa, Abrantes, Tomar... até chegar a Bissau

por Veríssimo Ferreira (1942-2022)


E vai daí... Por edital, soube que me deveria apresentar em Mafra, na Escola Prática de Infantaria (EPI), a fim de frequentar o Curso de Sargentos Milicianos (CSM).

Saí de Ponte de Sôr, pela matina e no comboio. Chegado a Lisboa, pedi informações para ir para o Martim Moniz, local donde sairia a camioneta para Mafra.

A confusão, nesta louca cabecinha, era mais que muita (primeira vez na grande cidade) e, habituado que estava a ver muita gente junta aquando das feiras, pensei:
— Há por aqui uma como a nossa de outubro!!!

Bom, mas lá fui ter e parti para o destino... E cheguei enquanto no entretanto comi as duas sandes que a minha querida mãe preparara para a viagem.

Mafra, surpreendeu-me, quando logo ali mirei o Mosteiro.
— Um quartel? — duvidei.

Na entrada, havia um enorme grupo de juventude de cabelinhos cortados à inglesa curta e que esperava,  e a eles me juntei.

Lá chegou a minha hora e,  preenchidos que foram, uns papéis, mandaram-me para o alfaiate que tirava medidas olhando-nos de alto abaixo, o que significou que recebi umas roupitas bem bonitas por acaso: um  bivaque onde cabiam duas cabeçorras, duas camisas cinzentas n.º 54 (e eu até aí, usava 42), dois pares de calças que me chegavam dos pés à cabeça, duas botas 47 (e eu calçava 41)... e por aí fora.

Na caserna, assim chamavam ao quarto luxuoso, um 5.º andar e 183 degraus para subir, onde me colocaram, e onde, para me não sentir só, deixaram-me acompanhado por mais 151 recrutas que se tornaram meus amigos.

No dia seguinte reuniram-nos num espaço rectangular, que ainda hoje existe, lá atrás do convento e a que chamaram (e chamam) "a parada".

Éramos, talvez uns três mil, que sairiam dali como oficiais ou sargentos milicianos. Juntaram-nos depois, sentados no chão,  e rodeando o oficial instrutor, cá fora,  ali ao lado esquerdo de quem entra, e esclareceram-nos sobre as normas em vigor, para contactos eventuais, com os residentes civis,  e também como distinguir os postos militares.

Ficámos a saber, que a coisa começava desta forma: o início e por aí fora: recrutas; soldado; 1.º cabo; furriel; sargento; aspirante; alferes; tenente; capitão; etc., etc., etc.; general; marechal; e, finalmente, 1.º cabo miliciano...

Contentíssimo fiquei. Então não é, que o filho do meu pai iria alcançar o mais alto posto, lá para agosto de 1964 e já especialista de infantaria?!... E 1.ª classe em metralhadora Dreyse 7,9? E 3.ª classe em espingarda mauser 7,9? E 1.ª classe em comportamento? E atirador, terminada a instrução complementar?

Aparvalhado ainda, com o facto de ontem ter visto, Lisboa, aviões dos grandes  e barcos a atravessar um rio a que ouvi chamarem Tejo, e ter ainda a possibilidade de (e também, pela primeira vez) poder ir ver o mar, as praias da Ericeira e mais agora esta notícia, plena de responsabilidades... Olhem, fiquei de tal maneira entontecido  que julgo não ter voltado a ser o humano normal de antes.

Continências e divisas, foram-nos sabiamente mostradas, bem como o manejo duma espingarda, o seu desmanchar em bocados  e a consequente limpeza com o escovilhão.

No 3.º dia, e após o pequeno almoço, começou a preparação para que pudéssemos vir a ser militares disciplinados, bravos, heróicos e que, acima de tudo, voltássemos inteiros: corridinhas na tapada, rastejar no meio da trampa, percursos de combate, saltos para o galho, jogos de brutobol, tiro na carreira do dito, actividades desportivas com vários empecilhos no meio, audição dos gritos estridentes e ameaçadores dos monitores do pelotão... Enfim, toda uma panóplia útil que só mais tarde entendemos ter sido preciosa para que aqui e agora estejamos ainda semivivos e, ah!,  sempre acompanhados pela fiel Mauser e de capacete enfiado, no local próprio de enfiar capacetes.

Regressávamos depois e quase na hora do repasto. Íamos à suite tomar um banhito rápido e mudar de fato. Toca a corneta e ala que são horas de almoço.

Boas refeições, sim senhor e até vinho havia e da cor que entendêssemos, embora eu achasse que aquilo era mais água e cânfora, substância que, e ao que diziam, transformava em eunucos, embora provisoriamente, quem bebia a zurrapa.

A 4 de julho de 1964, após portanto 5 meses e 10 dias e com aproveitamento e todos os créditos alcançados, consideraram-me então, apto, ou seja, vais tirar a especialidade de "atirador" e, como ordens não se discutem, decidi-me e fui para Tavira

Terra linda que continuo a visitar. Linda praia, onde até a água era e é, quente, comparada com a da Ericeira, de que tinha provado o sal. Boas gentes, embora e nesse período, as tenha considerado más com'ás cobras, tendo em conta que quando os pobres militares, sedentos e até com alguma fomita, colhíamos algumas amêndoas, alfarrobas ou figos, ou ainda, lhes bebíamos umas gotas nos escassos poços existentes, iam de imediato participar ao quartel e algumas vezes lá tínhamos que desembolsar os 25 tostões para compensar o prejuízo.

A miséria patrimonial deste povo algarvio era notória e justificava a queixa. O turismo mal começara e aquelas frutas e água eram o seu ouro.

No que se refere à instrução militar, foi o acrescento próprio, para quem já estava treinado.
Novidade apenas para o "deitá...á...á...r!" nas salinas. Lindo de se ver, creiam. E nós, vestidinhos, lavadinhos e engomados, calçadinhos, botas engraxadas e reluzentes, espelhando o sol quente desse mês de julho, obedecíamos, está claro, só para não nos considerarem desobedientes.

Saíamos enlameados, cheios de lodo até aos cabelos, mas mais fortes alguns, aqueles que engoliam alguma distraída enguia. Até nisso, a sorte me foi madrasta já que o único brinde que me calhou foi uma enorme serpente que resolveu aninhar-se no bolso esquerdo das calças.

À tardinha dispensavam-nos e podíamos então confraternizar mas as tascas locais, onde sempre comíamos generosas doses de grandes conquilhas, ou jaquinzinhos atados pelo rabo e em grupos de 5 ou 6, regados com aquele saboroso tintol carrascão de tal forma que até os dentes ficavam coloridos.

Alguns mais afortunados, proporcionavam, a outros, passeios e assim conheci, Quarteira, Armação de Pera, Albufeira e Faro.

E em 30 de agosto de 1964, fui promovido a 1.º cabo miliciano, pois então... Começa aí um percurso agitado, com constantes mudanças, assim estilo "faça férias cá dentro" e foi o que me valeu para ficar bem a conhecer algum deste País, que eu julgava ser só o Alto Alentejo:

1.º - Amadora (Regimento de Infantaria 1);
2.º - Lamego (Rangers);
3.º - Tancos (Minas e Armadilhas)
4.º - Lisboa (Grupo C. Trem Auto)
5.º - Abrantes (Regimento Infantaria 2)
6.º - Tomar (Regimento Infantaria 15)
7.º - Bissau e o resto (CCAÇ 1422).

À Amadora cheguei... nem ao almoço tive direito e mandam-me avançar, de forma a estar, e sem falta, no dia seguinte em Lamego.

Voei para Sta. Apolónia, fui para o Porto, daqui para a Régua e o certo mesmo é que às 8,30 entro no novo poiso.

Bambúrrio,  dei logo de caras,  à porta de armas, com um herói da minha terra, combatente já com uma comissão prestada em Angola, 2.º sargento e monitor agora das tropas a preparar. Trocámos abraços, continências e amigáveis palavras, e logo ali ele próprio se disponibilizou para me ajudar no que eu precisasse.

A caserna era óptima e fiquei em lugar privilegiado de cama. Fora dos últimos a chegar e não houve hipótese de arrebanhar melhor. Havia só que subir três beliches, até chegar ao 4.º,  onde dormia e com uma vista fantástica para os barrotes em madeira, que até me davam para estender a roupa molhada e esta, por sua vez, passava as gélidas noites, a afagar-me a tromba, durante os raros momentos que ali estacionei, pois que os treinos eram constantes, a qualquer momento,  prolongados, estafantes...

Foram tempos duros, mas uma óptima preparação para as dificuldades que vieram depois. Ficou-me gravada, a frase: "Nunca se sabe", resposta que sempre ouvíamos a qualquer pergunta que fizéssemos.

Lá de quando em quando, também nos convidavam a ir até lá abaixo à City e então era um fartote... Que belas pingas, bom presunto (coisa da qual eu já ouvira falar mas não provara qu' a crise abundava com'agora) e até as pessoas eram simpáticas prá rapaziada fardada.

No aspecto da preparação militar, gostei manning d'atravessar o rio dum lado pró outro, agarrado a uma corda e com os pés assentes noutra e a água lá em baixo, revolta com'ó caraças fez-me perguntar a mim próprio: 
 —  Porqu'é que não trouxeste o calção de banho em vez da farda de trabalho?

Tancos desejava-me ardentemente e as Minas e Armadilhas que as amasse... e a Barquinha ali tão perto e com tão boa comida e melhor buída...

Recordo com alguma emoção, convenhamos, aquele dia em que cá em baixo, junto ao Castelo de Almourol, me pediram atenciosamente para experimentar um pedaço de massa explosiva, a que chamavam farinheira. Colocada que foi, debaixo dum pedregulho de todo o tamanho, a que juntei depois um detonador, mais um cabo eléctrico com 50 metros que trouxe até cá ao alto e liguei a uma caixinha com alavanca que pressionei...

O estardalhaço do rebentamento foi impressionante, levantei a cabeçorra e é nessa altura que vejo no ar aquele monstro redondo a dirigir-se a jacto, precisamente para o local onde me encontrava e a quem eu disse:
— Trá-la-rai, la-rai, la-rai... falhaste, pá, paciência!

Acabara, sim, por derrubar uma pobre e velha árvore centenária.

Passou-se, e eis senão quando, me vejo a caminho de Lisboa, Avenida de Berna, Grupo de Companhias Trem Auto, o que me confundiu do porquê. E não só a mim, também o senhor sargento da Secretaria se espantou e exclamou:

—  Ora , porra, pedi um cabo miliciano condutor e mandam-me um atirador?! Mas... — continuou ele — aguente aí, ó patrício, você é da Ponte Sôr,  eu sou de Alter, temos de resolver isto.

E, após perguntar-me se conheço a capital e eu respondido "negativo", decidiu que eu devia ficar por ali, até que fosse rectificado o lapso, o que deveria demorar um mês.

Sem função atribuída, saía, à civil, de manhã e voltava para dormir, às vezes, num quarto com mais sete militares e cinco ratazanas, das maiores que já vi.

Turismei... Vi cinema no Piolho, Condes, Éden, S Jorge... Conheci, a desoras, as boas zonas: Intendente, Cais Sodré, Bairro Alto, Alfama, Mouraria, Madragoa... Vi campos de futebol, com relva imagine-se... O aeroporto, Cabo Ruivo e os hidroaviões, comboios em Santa Apolónia e Rossio... Fui a Cacilhas...  Fui ao Jardim Zoológico, Parque Mayer, Parque Eduardo VII, Feira Popular... Comi bifes na Solmar, Portugália, Império, Ribamar..., sopa de marisco na Rua de S. José, iscas na Travessa do Cotovelo,  bacalhau com grão no João do Dito... Bebi na Ginginha e no Pirata e uns tintos no Quebra Bilhas...

Até que um dia me transmitem:
— Vais para Abrantes.
Bati o pé e disse:
— Não vou... Não vou... Não vou... 
E fui.

Em Abrantes, estava mais perto de casa, o que me agradou. Lá se foi passando o tempo e coube-me ajudar o oficial instrutor, ensinando novos militares. Por que alguns de nós, os recentes cabos milicianos, estávamos já a ser mobilizados, fui-me preparando. Contudo, tal mobilização só veio a acontecer, quando já houvera prestado 20 meses de tropa.

Entretanto em abril de 1965 e "por equivalência a seis meses consecutivos em unidade operacional, condição a que satisfaz para promoção ao posto imediato (sic)" , fui promovido a senhor furriel miliciano. Estava então em Tomar a preparar outros jovens, que afinal acabaram por ser os que, fazendo parte da Companhia de Caçadores 1422, embarcaram comigo para a Guiné, em 18 de agosto desse ano.

Quando digo "embarcaram comigo", em vez de "embarquei com eles", deixem que explique: quer o Comandante, quer os restantes oficiais e sargentos, haviam partido uma semana antes, de avião, ficando apenas connosco, um senhor sargento-ajudante, (pessoa com alguma idade e peso e que era chefe de secretaria) e nós próprios, os furriéis milicianos e toda a restante e valorosa CCAÇ 1422, claro.

A ele pertenceria comandar-nos antes do embarque, no desfile perante as autoridades e perante os nossos familiares presentes. No último momento, nomeia-me para o fazer... Ordens não se discutem, cumpri.

Correu lindamente, marchámos com garbo. Depois? Bom...,  depois a vinte e tal de agosto de 1965 chegámos a Bissau, para ganhar a guerra e preparar zonas de turismo para que os vindouros ali passassem férias descansadas.

Não precisam agradecer.
Disse.
Veríssimo Ferreira (**)

[ Seleção a partir dos postes P12617, de 21/1/2012, e P12649, de 28/1/2012 / adaptação / revisão / fixação de texto / negritos, para efeitos de publicação deste poste no blogue: L.G.]
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Notas do editor:


(**)  Vd, também os primeiros postes da série "Os melhores 40 meses da minha vida";

sábado, 27 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22757: Agenda cultural (790): Camarada, se vives em Lisboa ou na Grande Lisboa, leva amanhá o(s) teu(s) neto(s) à Maratona de Robertos, no Museu da Marioneta... Eu levo a minha neta, que acabou de fazer dois anos..... (Luís Graça)

Teatro Dom Roberto, Porto. Com a devida vénia...


1. Ólh'óó Rrrrrrroberrrrto!!!
Maratona de Robertos


Lisboa, Bairro da Madragoa, Comvento das Bernardas
Endereço: Rua da Esperança 146, 1200-660 Lisboa

Domingo, 28 Novembro de 2021 |
Sessões contínuas :  das 11h00 às 18h00 | Aconselhado a famílias |
Entrada Livre! 

No dia 28 de novembro o Museu da Marioneta festeja 20 anos, mas festeja também a classificação no Inventário do Património Cultural Imaterial do Teatro Dom Roberto, uma das formas mais antigas e mais genuínas de teatro de marionetas português. 

Dom Roberto é direto e rude, mas também simpático e bonacheirão, criando grande empatia nos seus públicos!

Até meados do século XX, era comum encontrarem-se Robertos e as suas coloridas barracas nas ruas, praças, jardins e praias de todo o país. De carácter essencialmente popular e frequentemente ignorada pela maioria dos historiadores e investigadores das artes teatrais, o repertório do teatro de robertos era composto por textos de tradição oral, de sabor popular, com direito a muito improviso. 

Novos e velhos, crianças e adultos, acorriam aos primeiros sons agudos da palheta, prontos a deliciarem-se com os episódios cómicos que aqueles bonecos protagonizavam com ritmo e destreza.

No final do século XX, no entanto, esta forma teatral estava quase esquecida. Foi João Paulo Seara Cardoso, do Teatro de Marionetas do Porto, que primeiro percebeu a necessidade de preservar os Robertos, aprendendo a arte com o marionetista António Dias, ainda em atividade nos anos 80. 

Hoje, em Portugal, há de novo uma família de bonecreiros que percorrem o país com os seus ‘atores de palmo e meio’, as suas guaritas e a sempre característica voz de palheta.

No domingo dia 28 estarão reunidos no Claustro do Museu, para uma Maratona de Robertos. Venha celebrar connosco e assistir ao teatro de marionetas Dom Roberto – pelos roberteiros:

  • Fernando Cunha
  • Filipa Mesquita
  • Francisco Mota
  • João Costa
  • Jorge Soares
  • José Gil
  • Manuel Dias / Trulé
  • Marcelo Lafontana
  • Nuno Pinto
  • Raul Constante Pereira
  • Ricardo Ávila
  • Rui Sousa
  • Sara Henriques
  • Vítor Santa Bárbara 

Vd. também aqui a história do Museu e Página do Facebook do Museu da Marioneta 

 
2. O Teatro Dom Roberto  é um género de espectáculo, teatral, popular,  satírico, itinerante, de bonecreiros, também conhecido como "teatro de fantoches", destinado a todas as idades, mas que faz parte, muito em particular  das nossas melhores recordações de infância...  Era então um dos grandes divertimentos populares, até cair hoje (quase) no esquecimento... Foi recentemente  inscrito no Inventário de Património Cultural Imaterial Português.

Nesse tempo, em que éramos putos,  ainda  não havia a televisão, nem a Net nem muito as redes sociais. Víamos os "robertos", literalmente maravilhados, fascinados, boaquiabertos, assombrados, divertidos, sentados no chão, à volta de uma "barraquinha de feira", montada nalguma praça, jardim,  feira, terreiro de festa ou praia das nossas santas terrinhas...  Infelizmente, esses espetáculos, sazonais, não eram tão frequentes quanto isso...

Citando o sítio das Marionetas do Porto: “Nos finais dos anos 50, ainda os fantocheiros populares calcorreavam terras portuguesas por festas e romarias, divertindo o povo de pequenos e grandes que acorria a ver os seus espetáculos. Os pequenos bonecos de madeira e trapos bailavam caprichosamente ao som dos gritos estridentes produzidos pelo fantocheiro e tudo terminava invariavelmente pela tradicional cena de pancadaria, para grande alegria do público.

"Hoje, o Teatro Dom Roberto é apenas uma imagem feliz da infância de alguns, um traço  vivo de uma preciosa herança cultural que se vai esvaindo com os tempos da 'modernidade' ".
 
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Nota do editor:

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22569: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (71): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
A relação de Jules com Noémie é muito estreita, Jules veio bastante deprimido até às suas férias em Lisboa, a visita foi uma verdadeira lavagem da alma e ele descreve à irmã aqueles dias prodigiosos de uma cidade com mais de oito séculos de portugalidade, com os seus bairros típicos a caminho da gentrificação, a preocupação de Paulo de lhe mostrar a cidade e os miradouros, gostou dos museus, das igrejas, adorou os comes e bebes, enterneceu-se com aquela casa pejada de quadros de todos os tamanhos, fotografias espalhadas por todas as divisões, encantou-se com a varanda virada para quintais onde primam flores e árvores de fruto, deliciou-se com os serões, Annette nunca perde oportunidade, é uma cronista assumida, de continuar a escrever os relatos da comissão do Paulo, às vezes há um olhar lacrimejante do protagonista, noutras vezes Annette e Paulo dão gargalhadas, Jules a tudo assiste, sente a ternura que atravessa a vida daquele casal, sente-se parte integrada na felicidade da mãe, como conta a irmã. Esqueceu-se de lhe dizer que foi a primeira viagem, ele ainda não sabe mas regressará muito mais vezes a Lisboa, sempre feliz pelos doces regressos e por ver sempre a sua mãe tão feliz. Também se esqueceu de dizer que tinha prometida uma visita à Feira da Ladra, que ainda não aconteceu.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (71): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Segunda e última carta de Jules Cantinaux para a mana Noé:

Chère Noé, muito provavelmente irás ler as minhas notícias quando eu já estiver na Bélgica, acordei com uma empresa de La Louvière, três semanas de trabalho em artes gráficas, no entretanto irei estabelecer contato telefónico contigo. No seguimento do que te escrevi, todos aqueles sete dias da minha estadia foram ocupados com os programas que fiz com o Paulo e a mamã. Ele ofereceu-me um livrinho chamando-lhe raridade para bibliófilos, é um livro sobre Lisboa com data de 1940, o autor do texto chama-se Norberto de Araújo e as ilustrações são de Maria Keil, esta conheci-lhe a azulejaria quando andámos no Metropolitano. Paulo ofereceu-me a edição em francês, além de um guia moderno, tem um conjunto de propostas de passeios, como é evidente não percorremos tudo, como te disse na carta anterior, visitei a Sé Catedral, o castelo de S. Jorge, a igreja e o Largo do Menino de Deus, a Graça, uma parte da Mouraria, estivemos num largo muito amplo chamado Campo dos Mártires da Pátria; como também terás visto na carta anterior, demos uma volta pela Madragoa, estivemos no Museu Nacional de Arte Antiga e fomos ao miradouro onde se vê o porto de Lisboa e a outra margem do Tejo. No dia seguinte percorremos Estoril e Cascais, era inevitável passearmos pela zona de Belém, vi no Mosteiro dos Jerónimos um claustro soberbo, passeámos à beira do Tejo e é impressionante o panorama que se avista da Torre de Belém.

Paulo insistia que devíamos voltar ao casco histórico e por isso saímos de manhã cedo e viemos até ao Terreiro do Paço, é um bom hectare de terreno, cercado de construções relativamente homogéneas, o Paulo referiu-me que estiveram ali muitos ministérios e seguimos por uma rua chamada Rua da Alfândega, ele queria mostrar-nos outra preciosidade do que aqui se chama estilo manuelino, um tardo-gótico do reinado de D. Manuel I. Ainda se pensou em voltar a Alfama, onde estivemos no primeiro dia, mas o Paulo queria mostrar outro lado do casco histórico, o Chiado, já estivera no café A Brasileira, agora foi a vez de irmos ao Largo do Carmo, voltámos a subir e entrámos numa igreja de nome São Roque, nunca vira esplendor igual, a mamã estava boquiaberta diante de uma capela chamada de S. João Baptista cujos materiais vieram diretamente de Roma. E seguimos para mais um miradouro, São Pedro de Alcântara, outro panorama esmagador sobre a cidade, atravessámos outro bairro antigo, de nome Bairro Alto, mas antes estivemos num local chamado Solar do Vinho do Porto a degustar esta saborosa bebida, sentia-me profundamente feliz não só pelo que estava a ver e que era uma inteira surpresa mas por sentir a alegria esfusiante da mamã, o seu olhar carinhoso para este seu bem amado português.

Lembro-me, querida Noé, de há uns bons anos atrás termos conversado sobre a solidão em que vivia a mamã, sempre nos pareceu que aquela maratona de viagens como intérprete camuflava a solidão, do que me foi dado entender depois da separação ela parecia resignada talvez ao papel de avó ou de se relacionar com mulheres da sua idade a caminho da velhice. Posso constatar a toda a hora que ela e o Paulo se entendem admiravelmente, como adiante te contarei como a história em que os dois gargalhavam sobre um episódio passado num hospital.

Os últimos dias foram para eu conhecer a Lisboa moderna. O Paulo gosta muito de Arte Deco e levou-me a uma igreja chamada de Nossa Senhora de Fátima, tu não podes imaginar o esplendor dos vitrais, senti-me esmagado num espaço destinado a batismos, eu conhecera este artista, de nome Almada Negreiros, quando num passeio na zona portuária o Paulo nos levou à Gare de Alcântara, fiquei siderado com aqueles painéis. Estes últimos dias já andámos sempre no carro do Paulo, ele queria mostrar-nos a Lisboa Oriental e o que se projetara construir com a exposição de 1998 que deu origem a uma zona moderna chamada Parque das Nações. Novo passeio à beira do Tejo, surpreende a estrutura da ponte que construíram de nome Vasco da Gama, ajardinaram espaços e temos ali uma zona de lazer magnífica. Visitámos bairros antigos da Lisboa Oriental, muito decadentes, há sinais de que estão a surgir novas construções, mas a um ritmo lento. Passámos por um local chamado Xabregas e o Paulo disse-me que no próximo passeio irei visitar um museu só com azulejos, e que depois desta visita perceberei porque é que Portugal é a potência nº 1 à escala mundial do azulejo.

Tenho muito mais coisas para te contar, saíamos sempre de manhã e regressávamos ao entardecer, o Paulo insistia em confecionar as refeições para nós, num espaço agradável na varanda com belos quintais. E sempre bem-dispostos íamos conversar para a sala, acompanhados de infusões de gengibre ou menta, a mamã muito disciplinadamente com o dossiê da tal guerra da Guiné nas mãos, dele extrai uma agenda onde toma freneticamente nota das conversas havidas com o Paulo. Creio que te contei que ele viera a Bissau para várias consultas mas impunha-se um tratamento mais cuidado para repor os sonos, meteram-no num serviço de Neuropsiquiatria numa divisão com três camas, os seus dois vizinhos eram pessoas altamente perturbadas, felizmente que a carga de medicamentos era de tal modo forte que passava uma boa parte do dia a dormir, havia a rotina dos preceitos higiénicos e das refeições, uma hora de visitas por todo o hospital, onde ele descobriu que os militares feridos se mediam com os danos corporais dos outros, uma vez viu alguém quase feliz por só ter perdido uma perna, foi neste ambiente de permanente discussão entre um capitão e furriel, tudo numa divisão em que as paredes tinham a brancura da cal, havendo uma janela ao alto com um discreto gradeamento, camas com colchas brancas destoando de um chão de pedra marmoreado que se irá passar um episódio em que me vi também a gargalhar com a mamã e com o Paulo, tratava-se da visita de senhoras benemerentes, Paulo falou na Cruz Vermelha e no Movimento Nacional Feminino, primeiro entraram as senhoras da Cruz Vermelha, traziam aerogramas, revistas um tanto puídas, os doentes tinham recebido instruções rigorosas para ter as mãos esticadas fora dos lençóis e da coberta e que não se atrevessem a qualquer dito inconveniente a tais senhoras de alto coturno.

Tudo parecia que ia correr bem, com as senhoras da Cruz Vermelha comportaram-se como três surdos-mudos, as senhoras devem ter pensado que eram doentes muito mortificados, e também com uma expressão mortificada saíram. Entraram as senhoras do Movimento Nacional Feminino, quem capitaneava a delegação era a mulher do comandante militar, mostrou-se afável, pronta a contatar as famílias, parecia a provedora do doente. Paulo e o furriel que escapara fisicamente incólume de um sistema de minas antipessoal olhavam seraficamente para o teto, mas o capitão parece ter perdido a tramontana, saiu da cama em pijama e gritou para as senhoras que estava ali como um prisioneiro de guerra, houvera uma cabala sinistra para o remover do seu posto de oficial de informações, que as senhoras o ajudassem prontamente, aqueles dois companheiros de quarto eram totalmente indesejáveis, o tal furriel não passava de uma máquina falante e apontando para o Paulo, em tom desdenhoso, disse que aquele menino de coro, com este arzinho de quem não parte um prato, não passava de uma fera adormecida, um hediondo criminoso, bastava saber que comandava pretos, deve ter sido escolhido pelos seus maus fígados, e gritava para as senhoras “tirem-me daqui, tirem-me daqui!”, as senhoras recuaram e fugiram, o zelador, o 1º cabo Morais discursou-lhes à bruta, iam ter todos um castigo. Querida Noé, ríamos os três, o Paulo era quem ria mais.


A mamã perguntou ao Paulo o que se seguia depois deste episódio do tratamento em Neuropsiquiatria, dois dias depois daquele despautério com as senhoras benemerentes o psiquiatra deu-lhe alta, levava umas mezinhas para conforto. Juntou os trastes, foi buscar a guia de marcha, ainda andou dois dias por Bissau à deriva antes de um avião o deixar em Bafatá. Percorre a cidade agradado por se sentir só, na messe de oficiais come e, em vez de ir diretamente para o grande dormitório que dá pelo nome de Vaticano III, passeia-se, escreve, regressou o gosto pelas leituras, voltou ao Centro de Estudos da Guiné Portuguesa e comprou livros. Parte ao princípio de uma tarde de Bissalanca, durante a manhã fez compras para os seus bravos soldados. Durante o voo faz contas ao trabalho que o espera, recebera vários aerogramas dos seus colaboradores Ocante e Cascalheira, anda tudo numa rotina. Sente que a sua comissão se encaminha para o fim, já se deu a mudança de batalhão, sabe pois que irá encontrar novas caras. Mas grandes surpresas ainda o esperam, até que nos primeiros dias de agosto é conduzido ao porto do Xime, metido numa LDG, numa estranha viagem em estado de espírito contraditório, dilacerado pelo apartamento e a sonhar pelos desafios que o esperam. A mamã tomou nota de tudo. E momentos houve em que eu sentia que também fazia parte daquele romance da vida daquele casal que me parecia o mais surpreendente ao cimo da terra. O resto contar-te-ei de viva voz, irei de La Louvière a Uccle quando me convidares, minha querida irmã. Bisous, comme toujours, bien à toi, Jules.

(continua)

O BNU chegou a Bissau e instalou-se na Avenida da República, foi conhecendo melhorias, depois da independência foi ministério
Muralha da fortaleza da Amura noutros tempos
Portal manuelino da Igreja de Nossa Senhora da Conceição Velha, Rua da Alfândega, Lisboa
Igreja de São Roque, a sumptuosidade entre o Chiado e São Pedro de Alcântara
Painéis de Almada Negreiros na Gare de Alcântara
Miradouro da Rocha do Conde de Óbidos
Rua da Madragoa
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22550: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (70): A funda que arremessa para o fundo da memória

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22550: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (70): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
Jules acompanha Annette na viagem a Lisboa, passará uma semana na companhia dos dois. Paulo preparou-lhes um programa de arromba, muita digressão por lugares típicos, procura fazer comparações entre o passado da sua juventude e o presente, Lisboa conhecera um processo revitalizador depois da exposição de 1998, a dinâmica mantinha-se imparável, iam desaparecendo os armazéns que atravancavam a vista do Tejo, os bairros populares começavam a gentrificar-se e a conhecer referências no turismo internacional, os primeiros dias foram consagrados exatamente ao casco histórico tirando uma visita a Cascais e Estoril. Jules sente-se feliz com a receção, com as explicações que Paulo lhe dá sobre a evolução da cidade, mas tal como escreve à irmã o que o deslumbra é ver a felicidade da mãe, sempre entregue àquele estranhíssimo papel de cronista de algo que ultrapassa completamente Jules, uma tal guerra colonial em que Paulo andou metido, assiste a uma conversa estranhíssima em que se fala da vida hospitalar, de gente gravemente sinistrada, que compara as suas maleitas com as dos outros, e fica boquiaberto quando a mãe casquina uma cena tremenda de discussões no quarto onde Paulo tenta dormitar, um capitão furibundo com um furriel, chegam às vias de facto, um numa cadeira de pernas partidas e outro com uma faca romba, não se estivesse num hospital militar parecia uma comédia italiana.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (70): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Carta de Jules Cantinaux para a mana Noémie

Chère Noé, estou há quatro dias em Lisboa, sinto-me ultrapassado pela velocidade de tudo que o Paulo nos põe diante dos olhos, é uma cidade fascinante, ele começou por nos levar para uma zona chamada Alfama, tem a ver com a fundação da nacionalidade, depois da tomada de Lisboa aos Mouros nesta zona teriam ficado a viver as minorias muçulmanas e judaicas.

Quando olhamos este bairro histórico do Miradouro das Portas do Sol tem-se a sensação que tem um formato poliédrico, tudo pode ser posto a rodar, as formas encaixam perfeitamente. Quando cheguei, o Paulo logo me disponibilizou um mapa da cidade, um guia em francês, foi-me mostrando imagens antigas, reproduções de quadros de um pintor chamado Carlos Botelho, de um aguarelista chamado Roque Gameiro, falou-me da Lisboa antiga que ele conheceu nos anos 1950, os passeios que fazia aos fins-de-semana com a mãe, numa Alfama onde se cantava o fado, tal como noutros bairros populares que dão pelo nome de Mouraria e Madragoa. Procurou contextualizar a evolução da cidade, pediu-me para eu ler à noite alguns artigos sobre a cidade antiga e ler os textos do guia, fiz o possível por me documentar.

Na manhã seguinte, depois do pequeno-almoço, tomámos um táxi os três, visitou-se a catedral românico-gótica, o Paulo asseverou que tem os fundamentos assentes numa mesquita, é um edifício sóbrio, foi muito afetado pelo terramoto de 1755, o tesouro de alfaias religiosas é de uma sumptuosa riqueza. Subimos até outro miradouro, de nome Santa Luzia, uma vista espraiada sobre o Tejo, Paulo disse que do outro lado estava o Castelo de São Jorge, onde houve paço real e mesmo castelo dos Mouros, durante séculos esteve ao abandono, em 1940, por causa das comemorações dos centenários da fundação de Portugal e da sua independência, foi alvo de uma grande intervenção, visitei-o dois dias mais tarde, é uma outra panorâmica estarrecedora, para mim a mais bela de todas, bom, voltámos a subir para um outro miradouro, as Portas do Sol, e descemos junto a muralhas antigas que Paulo lembrou que eram medievais, e assim entrámos na Alfama.

Noé, senti-me num mundo antigo, há muitas obras de restauro em curso, mas aquelas ruas estreitas, os largos, os becos, as igrejas, as casas apalaçadas, as conversas em voz alta nas ruas dão um ambiente magnífico, é um passeio que se faz sempre com a curiosidade desperta, percorremos Alfama de alto a baixo, visitamos uma igreja que segundo a tradição foi onde nasceu Santo António e o Paulo contou-nos a devoção da mãe pelo Santo, todos os anos no dia 13 de junho ele acompanhava-a na procissão, tocava-lhe profundamente o apreço que a mãe sentia pelo milagreiro e casamenteiro.

Almoçámos num restaurante muito curioso em gabinetes privados, em frente dessa igreja, nunca tinha comido choco panado, a mamã pediu chocos com tinta, o que eu me ri quando lhe olhei para os lábios e os dentes, tudo enegrecido, mas tudo tão bem apaladado, com boa batata cozida e batata frita aos palitos. O Paulo pediu iscas, explicou-me que a receita portuguesa inclui banha, as iscas ficam a marinar em vinagre com louro, sal e pimenta, devem-se comer com batata cozida e uma porção de salada. Impressionou-me a variedade de sobremesas, os flans, mas o Paulo insistiu que eu provasse requeijão com compota, uma delícia. A mamã sempre feliz, às vezes corrigindo certas expressões do Paulo, por deferência comigo a conversa foi sempre em francês. E após o café tomou-se um novo táxi para uma zona chamada Chiado, o Paulo mostrou-nos um café recheado de obras de arte, de nome A Brasileira, e dizendo que mais tarde faríamos um passeio ali a preceito, descemos ao Rossio, falou-nos num importante hospital que aqui houve até ao terramoto, mostrou-nos a Igreja de São Domingos, onde tinham lugar casamentos reais e de onde partiam os condenados da Inquisição para morrer na fogueira.

Seguimos para a Praça dos Restauradores, o Paulo é admirador de um arquiteto do período Arte Deco e mostrou-nos um antigo cinema que está transformado em hotel mas que mantém exteriormente linhas maravilhosas, um risco surpreendente em que se cruzam o moderno e o antigo. Foi nessa altura que a mamã acusou cansaço e pediu para regressarmos a casa, ali ficámos os três a conversar à varanda e a olhar os quintais onde vi damas da noite, buganvílias, jasmins, árvores de fruto, muitos vasos espalhados com hibiscos, sardinheiras e camélias. O Paulo propôs que no dia seguinte fossemos a Belém e depois tomássemos o comboio até Cascais, faríamos depois um passeio junto ao mar até ao Estoril. Aceitámos, foi mais um dia extraordinário. E ontem andámos pelo Castelo de São Jorge, não me esqueço do nome de um largo, Menino de Deus, subimos à Graça, a dois miradouros, novo almoço típico, espetadas de peixe para todos, e de táxi seguimos para um local chamado Campo dos Mártires da Pátria, novo miradouro, chamado Torel, ali avistámos a tal Praça dos Restauradores e o tal antigo cinema Éden.

Novamente de táxi seguimos para outro percurso, a Madragoa, foi entrada por saída, Paulo ainda queria que visitássemos o Museu Nacional de Arte Antiga, a mamã e eu ficámos deslumbrados até pela riqueza de Arte Flamenga. E quando regressamos a casa o Paulo disponibilizou-me o catálogo de uma exposição que ocorrera em 1991 em Antuérpia, com o título de Feitorias, no âmbito da Europália Portugal, ele gosta muito de Antuérpia e mostrou-me um bilhete que tem junto da sua secretária, uma reprodução da descida da cruz, pintura de Rubens, está na catedral.

Querida Noé, sinto-me profundamente feliz por dois motivos. Nunca pensei em ter umas férias como estas, os aspetos típicos e o caráter desta cidade deslumbram-me, o acolhimento do Paulo não podia ser melhor. E vejo a mamã enternecida, é grande o amor que os une e eles não escondem o apreço mútuo. Há momentos em que me ponho à margem só para os ver conversar, inevitavelmente o tema da tal guerra da Guiné vem à baila, numa das últimas noites a mamã dava gargalhadas com as descrições que o Paulo fazia sobre a sua ida para um serviço de Neuropsiquiatria de um hospital militar em Bissau. Ele falava numa enfermaria de três camas, numa estava um capitão que pedira por duas vezes a vinda de meios aéreos para entregar aerogramas para a mãe, ato inconcebível, tresloucado, para o capitão era a coisa mais natural do mundo, veio para o hospital para se tratar; noutras estava um furriel que pisara um sistema de minas antipessoal, andara pelos ares, ficara fisicamente sem danos mas com profundas alterações psicológicas, o Paulo viera para tratamento, tomava vários medicamentos ao longo do dia, tudo se tornava difícil com as discussões permanentes entre os outros dois doentes, o capitão acusando o furriel de chanfrado e o furriel verberando o capitão como tarado sexual, todos os dias aparecia por ali uma lavadeira a quem o capitão acariciava os seios e depois entregava vinte escudos, cena patética, o Paulo deitado, sem tugir nem mugir, o furriel encrespando o capitão, que não lhe respondia.

Mas a mamã deixou de rir quando o Paulo abordou um aspeto insólito daquela estadia, à hora da visita aos doentes, noutras enfermarias, ouviam-se conversas em que se comparava quem estava mais doente do que o outro, isto é, quem só tinha perdido uma perna, uma mão ou um olho parecia que estava mais confortado que quem perdera duas pernas, duas mãos ou a vista toda. Nesse período em que os doentes andavam numa certa liberdade, parecia que todos se concitavam para junto das varandas ver os helicópteros com os feridos, era uma estranha partilha do sofrimento alheio. Depois trocavam-se notícias, procuravam-se patrícios doentes, dava-se informação sobre quem veio queimado, quem estava no bloco operatório, se havia estilhaçados da cabeça aos pés… Se a contabilidade dos danos já era confrangedora, o Paulo sentia-se assombrado com ele voyeurismo dos sinistrados, passou lá uma semana e todos os dias olhava para este espetáculo arrelampado.

Ficou combinado que amanhã vão falar os dois à noite sobre a visita das senhoras da Cruz Vermelha e do Movimento Nacional Feminino, foi aí, naquele quartinho de três camas, que aconteceu o espetáculo mais insólito da estadia do Paulo. Vou estar atento a essa tão bizarra conversa, a mamã toma nota de tudo, está sempre a pedir fotografias, às vezes duvido que ela esteja interessada em escrever um livro e queira mais um álbum comentado, mas também percebo, aquilo é um mundo completamente novo na vida dela, este romance que ela prometeu escrever tem para ela um grande valor simbólico, é como um conto das mil e uma noites que une indelevelmente o narrador e quem o escuta. Querida Noé, estou tão feliz por mim e pela mamã, não acredito que tu não queiras fazer férias em breve em Lisboa. Sabe-se lá se a mamã não virá para cá viver quando chegar a idade da reforma. Escrevo-te antes de partir, está prometido. Bisous, ton frère, Jules.

(continua)

Hospital Militar Nº 241, Bissau
Rua do Arco do Marquês do Alegrete, aguarela de Roque Gameiro
Cerca Fernandina de Lisboa
Miradouro Portas do Sol, Alfama
Antigo cinema Éden, do genial Cassiano Branco
Sala do cinema Éden, interior do antigo cinema, as linhas puras e dinâmicas da Arte Deco
Um dos mil recantos da Lisboa antiga
Edifício da Rua dos Bacalhoeiros, ao lado da Casa dos Bicos, hoje Fundação José Saramago
Descida da Cruz, Rubens, Catedral de Antuérpia
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Nota do editor

Último poste da série de 10 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22529: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (69): A funda que arremessa para o fundo da memória