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quinta-feira, 4 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19647: A galeria dos meus heróis (26): Aquele rapaz de Montemuro que queria ser pintor em Montmartre (Luís Graça)




Luís Graça, Guiné, Região de Bafatá, Centro de Instrução Militar de Contuboel, junho de 1969,
CCAÇ 2590/ CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71)




A galeria dos meus heróis: Aquele rapaz de Montemuro que queria ser pintor em Montmartre (*)



por Luís Graça (**)



1. Nascido no ano zero, 1945... Lembro-me de tu, Luís, teres escrito isso, muitos anos depois, no catálogo da minha primeira exposição de pintura no SNI... Lembras-te do SNI,o Secretariado Nacional de Informação, ali no Palácio Foz, nos Restauradores ?

Lembras-te, dessa história, em 1965 ?!... Ainda pensámos em "dar o salto" até Paris, éramos vagamente existencialistas, e ainda mais vagamente anticolonialistas e anti-imperialistas, eu sonhava com Montmartre, a boémia e as copines das belas artes (o meu lado mulherengo!),enquanto tu devoravas o Camus e o Sartre e querias estudar filosofia, jornalismo ou sociologia, ou coisa parecida,  na Sorbonne!...

Estava quase a completar os meus vinte anos, com a tropa à perna, sem o saber. E tu ligeiramente mais novo, um ano e picos, mas com a mania da filosofia, da crítica literária e do jornalismo, acho que eram esses os teus interesses na época.  Convidei-te para passares uns dias comigo, em Lisboa, por ocasião da montagem da minha primeira exposição de pintura. E, claro, escreveres o texto para o catálogo.


Não conseguimos convencer o nosso "gestor de conta" a financiar os nossos inconsistentes projetos de aventura. Ou melhor, só queríamos chegar a Paris, de comboio, à boleia, ou "a salto", o que desse mais jeito. Contámos os tostões. Quanto é que tu tinhas no bolso e no mealheiro ? Se calhar, menos do que eu...E, quando descobriram a marosca, os meus "padrinhos" de Lisboa, expulsaram-te de casa e, a mim, cortaram-me a "mesada"... Foi nessa altura que eu te pus a dormir  na casa que a Flora partilhava com mais duas amigas, estudantes, no Campo Grande. A Flora, a minha namorada, madeirense, estás recordado ?!

Eu era mais corajoso do que tu. Tu eras mais politizado e, sobretudo, mais pragmático do que eu:
– E os nossos pais ? – interrogavas-te tu. – E a PIDE à perna ? E a Guardia Civil espanhola antes de chegares aos Pirinéus?

E não te calavas, chamando-me à razão:
E os dez contos de réis para dares ao passador ? E vais fazer o quê, em Paris? Trabalhar como maçon ? E dormir no bidonville? E comer baguettes com marmelada ?


2. Ano zero da idade atómica. 1945… Hiroshima. O cogumelo. O horror. Mas também o fim da guerra. Libération, diziam os parisienses, ainda em 1944. Para eles, era o fim do pesadelo da ocupação nazi e o início de uma nova era. O direito à esperança, ao sonho, incluindo na nossa terra, o recomeço da história da humanidade... Blá-blá, blá-blá... 

Mas ainda não foi dessa que o Salazar caiu da cadeira...

As palavras eram tuas, escritas  no meu catálogo (exceto a referência ao Salazar, claro!)...   Até estava bonito e original, o catálogo ... não estava ?! ...Original,  "subversivo", no mínimo, provocador... Com o  teu treino de jornalista, aprendeste a  escrever nas entrelinhas, e a cultivar o sarcasmo, a ironia, o humor negro, para iludir a vigilância dos censores da nossa praça...

Uma exposição no SNI em 1965!... Que privilégio!... Lembras-te do SNI, o Secretariado Nacional de Informação, no Palácio Foz, nos Restauradores ?!...Criado pelo António Ferro,  tu até tinhas relutância em lá entrar,,,

Não havia artista que não quisesse expor no SNI naquela época!... Ora, um merdas como eu a expôr no SNI!... Um casapiano, serigrafista, sócio de uma cooperativa de artes gráficas, estudante de Belas-Artes, afilhado de um gajo do regime, aprendiz de pintor que sonhava ir para as belas-artes em Paris e pintar, ao ar livre, nas ruas de Montmartre, de boina preta, lenço de seda vermelho ao pescoço, e uma rosa na lapela... Sempre adorei o preto e o vermelho.

Ah!, 1945, que raio de ano para se nascer, o fim de uma época, o início de outra… Que ilusão, meu amigo, tu que me chamavas o Renoir de Montemuro, só por que eu já frequentava o 3ºano das Belas Artes, e tinha um "padrinho", em Lisboa, que terá metido uma cunha, ao César Moreira Baptista, para eu poder fazer a minha primeira exposição no SNI, ali nos Restauradores…

Só por que eu fazia umas coisas démodées, vagamente impressionistas, com mais de meio século de atraso... Vagamente impressionistas, mas já a caminho do abstracionismo... Enfim, aprendiz de Renoir, talvez imitador da Vieira da Silva, de que só conhecia umas reproduções de má qualidade. Alguns amigos, como tu, faziam-me o favor de me incentivar, mostrando que eu tinha talento!... Sim, ao nível da gravura, acho que podia ter ido mais longe!...

Ainda ganhei, confesso, uns tostões com as serigrafias, havia gentinha com dinheiro fresco que comprava tudo que fosse obra de arte, naquela ... A começar pelos amigos do meu "padrinho" de Lisboa... 

Enfim, aprendiz de Renoir, aprendiz de pintor, que o sonho naquele tempo não pagava imposto!...


3. Na minha cédula pessoal, um nota a lápis já meio sumida. Letra talvez de regedor, de merceeiro, de padre ou de conservador do registo civil. Qualquer coisa como "mais uma boca com direito a senha de racionamento". Milho, açúcar, farinha, azeite, café, etc., que tinha que se ir à vila de Cinfães buscar, serra abaixo, serra acima… Uma porrada de quilómetros a pé ou de burro... Ou então na loja do "Francês", na minha aldeia, tudo mais caro, porque aqui não havia concorrência...

Havia racionamento de géneros por causa da guerra, a II Guerra Mundial. Lembras-te ? Talvez não te lembres, nasceste já depois, em 47, não apanhaste esses tempos que foram duros para a minha mãe e os meus avós, e para todos os demais pobres da minha aldeia. Tu estavas muito mais perto da capital, no Oeste Estremenho, imagino que lá se vivia melhor, à beira-mar.

Nesse mesmo ano em que nasci, filho de mãe solteira e de pai incógnito ( um estigma que me perseguiu até ir para a tropa, ou me persegue ainda hoje!), acabava de regressar da Índia (da Índia portuguesa, como então se dizia, englobando os territórios de Goa, Damão e Diu) o filho do "Francês", o cabo chefe da aldeia e um dos poucos que sabia ler, escrever e contar. 

Seria depois o primeiro filho da terra a estudar na Universidade. Casou-se no Porto, teve um primeiro filho em 1947, o Gustavo.  E no Porto arranjou um tacho como advogado de uma conhecida empresa. 

O "Francês" tinha uma pensão do ministério da guerra. Fora gaseado na Flandres. Regressara herói medalhado de La Lys. Admirava Pétain, Sidónio Pais, Gomes da Costa, Salazar e Franco. Vociferava contra "a corja dos republicanos e dos 'rojos' que tinham destruído a Espanha". Berrava, igualmente, contra a malta do "reviralho", os que eram contra a "situação", como então se dizia. Mas não havia malta do "contra", na minha aldeia, a não ser um pobre diabo, sem eira nem beira, que ficava na corte dos animais, e que era meio atolambado, sobrevivendo à custa de pequenos fretes que ia fazendo, a este ou aquele.

O regedor era o meu... padrinho de batismo! Por favores que lhe deviam (e deferências que lhe prestavam) os meus avós e a minha pobre mãe!... Nunca soube quais. Nunca quis saber. Ou melhor, acabei por saber, ainda muito novo: havia quem na aldeia insinuasse que ele era o meu pai biológico... Na escola, chamavam-me "o filho do Francês", o "zorro", o filho bastardo... Nas aldeias, toda gente sabe tudo (ou quase tudo) da vida da gente. Mas eu ia aos arames, cheguei a andar à porrada na defesa do bom nome da minha mãe e dos meus avós, mal vistos na aldeia.

A minha mãe tinha sido criada de lavoura na casa do "Francês", desde muita nova, ao longo dos anos da guerra... Solteira, menor, com 18 anos, apareceu grávida, teve-me a mim em agosto de 1945...Uma mulher, muito bonita, e sobretudo de enorme coragem, como muito poucas que conheci na vida: recusou casar à pressa, só para salvar as aparências, não acatando o conselho do padre de Cinfães ou de Resende (já não me lembro), que ainda era aparentado com os meus avós... Casaria, sim, mais tarde, "de livre vontade",  com um rapaz bastante mais novo, pastor de cabras, o "cabreiro", de quem teve mais filhos, meus meios-irmãos, com quem, de resto, pouco convivi. E de quem perdi praticamente o rasto, lamento dizê-lo.


4. Quando comecei a pensar pela minha própria cabeça, passei a detestar as relações de clientelismo, dependência e nepotismo que vigoravam na aldeia. A minha aldeia da serra de Montemuro, a meia encosta, uma aldeia de pastores e de rendeiros que não era muito diferente de tantas tabancas fulas por eu onde passaria, depois, na Guiné…


Gostava que ainda chegasses a conhecer a minha aldeia. Não sei se terei coragem para lá levar-te. Disseste-me que de Candoz, a que chamas a "tua tabanca", se via Cinfães, do outro lado do rio Douro, com a serra de Montemuro à tua frente... Em agosto, no teu querido mês de agosto, bem podíamos lá dar um salto!…

Eu, confesso, que ainda gostaria de regressar, pela última vez antes de morrer, às minhas raízes telúricas, mas tenho uma relação de amor-ódio com a terra que me viu nascer. Voltei lá uma meia-dúzia de vezes, se tanto, depois de regressar da Guiné, a última das quais, para enterrar a minha pobre mãe, nos anos 90... Morreu cedo, a pobre, de doença oncológica, com sessenta e poucos anos. E os seus filhos, meus meios-irmãos, são-me completamente estranhos, conheci alguns de vista, no enterro da nossa mãe, mas já não seria capaz de os reconhecer se os encontrasse. Foram à vida, espalharam-se pelo mundo. Tal como eu, a partir dos 10 anos.

5. Havia sempre festa na aldeia quando um filho regressava das colónias. Mais tarde, Ultramar. No nosso tempo, Ultramar, como bem te lembras. O filho mais velho e herdeiro do "Francês", estava a chegar em meados de 1945, no final da guerra, tinha eu uns escassos meses, e uma ama de leite, a minha mãe ficara sem peito, talvez devido a depressão pós-parto...Os meus avós maternos, com quem fui criado, é que me contaram, mais tarde, quando eu já tinha entendimento para as coisas da vida e do mundo...

Quando puto, ainda sonhei ser missionário, e ajudar a converter os pretinhos lá nas missões do Ultramar. Problemas de pulmões impediram-me de seguir essa vocação precoce. Estás-me a imaginar de sotaina branca e longas barbas pretas, não estás ?! E acabar, mártir e santo, frito no caldeirão de uma tribo de canibais! Ah!, como era rica e delirante a nossa imaginação de putos!... 


Não sei quem me metei essa ideia maluca na cabeça, por certo o padre, a catequista ou a professora, o pregador da quaresma que vinha de fora... Ou o próprio regedor... Mas a serra de Montemuro, que abarca Resende, Cinfães, Arouca, Castro Daire e Lamego, deu muita gente para as colónias e depois para a guerra, mas também para a emigração. Eu próprio estava longe de imaginar, no verão de 1965, que três anos depois estaria a desembarcar em Bissau!


6. No início de 45, quando nasci, os tempos ainda eram bem duros. Escondia-se, na serra, nas minas de água, o milho, o centeio, os cabritos e os anhos, dos fiscais do Governo. Como sempre se escondera o pão (e o gado), da vista de todos os invasores e usurpadores. Contavam os meus avós, maternos, esses com quem vivi até ir para a Casa Pia, em 1955. Mesmo assim fazia-se festa rija quando os nossos rapazes regressavam das guerras do Ultramar, ou alguém, mais raramente, voltava do Brasil... para casar!...

O foguetório não era como hoje, em que se gastam rios de dinheiro... Nesse tempo era um luxo. Lançavam-se uns petardos. Pólvora seca. Não havia dinheiro para nada. Só no São João, que era a festa anual do concelho. Era a altura em que se fazia algum graveto. Os cabritos e os anhos do São João ajudavam a compor o magro orçamento das gentes da minha aldeia. Não havia dinheiro, pura e simplesmente. Não me recordo até aos dez anos de ver uma nota de 20, 50, muito menos de 100 escudos. Só tostões, pretos, encardidos como as mãos, sebentas e rugosas, daquela gente.

Iam para o Porto, de comboio, pela linha do Douro. Os cabritos e os anhos. Ou até nos barcos rabelos, embarcados no ancoradouro de Porto Antigo. À boleia de algum patrão, amigo, compadre ou conhecido. Ainda não havia as barragens, e o Douro era belo, puro, duro e selvagem, com um percurso cheio de cachões… Hoje está completamente amansado, e já aqui não chegam a lampreia e o sável.


7. O "Francês", meu padrinho, emprestava dinheiros a juros. Era o banqueiro do povo, diríamos hoje. O homem mais rico da aldeia. Negociante de gado arouquês, com clientes no Porto e até em Lisboa. Antes disso, ganhara muito dinheiro no garimpo e no contrabando do volfrâmio, com um sócio de Moncorvo, seu antigo camarada de armas, a quem também chamavam "Francês", por ter andado na guerra. 


Tinha fama de ser violento e andava sempre armado, o meu padrinho. Percorria os concelhos à volta da serra, de Resende a Castro Daire, numa velha camioneta Ford. Foi o primeiro a ter transporte automóvel. Além disso, era o dono da única mercearia da aldeia, com um anexo, misto de café e tasco, onde se podia ouvir a Emissora Nacional, através do único rádio existente ali nas redondezas… Vendia a fiado. Não havia luz elétrica, nem sequer a barragem do Carrapatelo, mas ele já tinha gerador... 

Ia lá a casa o povoléu para ver (e, de olhos arregalados,  benzer-se!...) aquela máquina que "parecia coisa do demo", que transformava a noite em dia...E tinha também o único telefone da aldeia... Por todas estas razões, mais o rol dos fiados, era o homem mais importante, mais poderoso e sobretudo temido e venerado da aldeia... Todos, de uma maneira ou doutra, lhe deviam favores...

Ainda por cima, dava-se bem com a gente graúda de fora: por exemplo, o major de Porto Antigo, que, segundo se dizia, descendia do Serpa Pinto, e estava bem colocado nos meios políticos e militares da época, a nível do distrito de Viseu. Não sei, nunca o conheci, nem posso confirmar.

Ao que parece, a esposa do major, a "Fidalga", mandava cartas diretamente ao Salazar, contava a minha mãe, a pobre da minha mãe, sempre atenta a (e não menos temerosa de) os fios com que se costurava o poder.

Nem por isso o meu padrinho, que era militante da União Nacional e amigo dos presidentes das câmaras da região e do governador civil do Porto, metera uma cunha para livrar o filho da tropa, durante a II Guerra Mundial. O rapaz esteve em Goa, como expedicionário, com muito orgulho do pai e maior mágoa da mãe (a quem chamávamos a "Madama").

Ele, o meu padrinho, sempre teve um grande carinho por mim. Ou, talvez melhor,  algum discreto  carinho por mim: chegava a beijar-me na testa, mas nunca em público. Aos 10 anos deixei de o ver... Ele, o padre, a professora da escola primária e os meus avós arranjaram maneira de me mandar para a Casa Pia em Lisboa, para "aprender um ofício"...

E foi em Lisboa que arranjei (ou me arranjaram) uns novos "padrinhos", um casal sem filhos, que me "adotou" e me "protegeu" até à minha ida para a tropa...Ao fim de semana, saía da Casa Pia, em Belém, apanhava o elétrico,  e ia ficar na casa deles, em Benfica. Depois de fazer o 5º ano, passei a viver com eles, fiz o liceu e matriculei-me nas Belas Artes. Ele era um quadro superior do Ministério das Corporações e Previdência Social. Sempre o tratei cerimoniosamente como "padrinho". Nunca houve adoção legal, porque eu já não tinha idade para isso.

Já doente, com setenta e tal anos, o meu outro padrinho, o da terra natal,o de batismo (meu hipotético pai biológico!),  soube da minha partida para África em 1968, depois de eu ter chumbado em Belas Artes, por ser cábula. Eu nunca lhe pedira nada, nem ele nunca me dera nada, sequer o tradicional folar da Páscoa. E muito menos lhe iria pedir que me safasse de ir parar à Guiné. Inclusive proibi a minha mãe e os meus avós, ainda vivos, de o fazerem por mim. Nem ele era homem para aceitar um pedido desses,  mais do que humilhante, inconcebível, para ambos. Nem sequer ao "padrinho" de Lisboa eu meti qualquer cunha ( a não ser a entrada no SNI, mas isso foi até iniciativa dele).

Tal como o "Francês" (nunca o tratei pela alcunha!, era "sua benção, padrinho" e pouco mais, sentia-me inibido na sua presença), eu tinha a mania dos princípios, dos valores, da palavra dada, enfim, da coerência. Coisas que hoje não vejo ser valorizadas pelos mais novos, por exemplo os meus filhos e sobrinhos.


8. Quando voltei da Guiné, em 1970, ele já tinha morrido, de um AVC isquémico. Ele e o Salazar ( que eu penso que ele nunca terá conhecido pessoalmente, mas de quem era um admirador acérrimo e acrítico).

O seu maior desgosto era um dos netos que devia seguir as peugadas do pai, advogado no Porto (e meu presumível irmão, mais velho). Numas férias de verão, em meados dos anos 60, ficou em Londres a lavar pratos. Em setembro desse ano já estava na Suécia, em Lund, aclamado como "herói", por ter fugido à guerra colonial... Fazia 18 anos,  era dois anos mais novo do que eu. Foi dado como refratário.  Como estava a estudar na Faculdade de Direito de Coimbra, já no 2º ano,  beneficiava do adiamento da data de incorporação, tal como eu, de resto. Aproveitou para dar o "salto", numa viagem de intercâmbio universitário, segundo me constou. 


Eu sei que nessa época ninguém escapava à guerra, até filho de general era mobilizado. Nunca conheci nenhum general,  mas imagino que, na pior das hipóteses, os filhos dos generais ficavam na guerra do ar condicionado: em Bissau, em Luanda, em Lourenço Marques…

Nunca conheci nenhum, minto: conheci o Schulz e o Spínola, mas não sei se esses tinham filhos em idade de ir para a tropa. O avô, o "Francês", pelo menos publicamente, viu na traição do neto uma desonra para a família (e para a terra, que considerava, abusivamente, uma extensão da família). 
– Coimbra, a república dos estudantes jacobinos, dera-lhe a volta à cabeça  lamentava-se ele.

 Para mais era o seu neto querido, o mais ladino, o mais  vivaço, o mais parecido com ele.
– Rédea comprida e chicote curto, eis a desgraça –  concluía o meu padrinho, quando o fui visitar, nas minhas férias em julho de 1969. 
 Sua bênção, padrinho   foram as primeiras palavras que lhe disse, desde há anos…
– Já o pai não prestava, era um fraco – arrematava  ele, entre dois ataques de tosse. 
– As melhoras, padrinho !– foram as últimas palavras que eu lhe dirigi… 

Julgo que eram sinceras, que nada tinham de cínico. (Mas como eu tanto gostaria de lhe poder chamar pai, se ele tivesse tido a coragem, nessa ocasião única, de me chamar filho!...)

Puxou então de uma nota de 100 paus, e disse-me que era "para a viagem de regresso à Guiné, meu rapaz". Fiquei banzado, nunca me tinha dado nada, nem um rebuçado ou um pirolito... Quis recusar, mas ele sentiu-se ofendido...

Impressionou-me a sua decadência, a sua descida do pedestal, acabrunhado pelos acontecimentos dos últimos tempos… A saúde a falhar, a família a desmoronar-se, a Pátria a esvanecer-se, o Império a ruir, a aldeia a minguar com a emigração… Não podia ouvir falar do Marcelo Caetano, que era para ele o coveiro do Estado Novo e do Império. 

Ele próprio morreria, na aldeia, um ano depois, respeitado, por certo,  mas não amado. Durante décadas fora pai, padrinho, cacique e patrão, um verdadeiro "capo", um "padre padrone", um cabo chefe de uma aldeia serrana do nosso velho Portugal… que pouco mudara com as mudanças de regime.


9. Gustavo, o neto do meu padrinho da aldeia, ainda me escrevera um dia para o meu SPM, já no final da minha comissão. Éramos amigos (e, provavelmente parentes: eu podia ser tio dele, mas tinha desistido há muito da ação de impugnação da paternidade!). 

Ou melhor, éramos mais conterrâneos do que amigos , tínhamos brincado juntos até aos 10 anos, quando garotos, nas férias de verão. Ele estudara em colégio particular, e vivia em zona fina no Porto. Só quando entrou para a Universidade, é que se mudou para Coimbra. Não gostava da aldeia do avô e do pai, que achava terra de gente "parola". Mas ia lá algumas vezes, com os pais, nas férias grandes, no Natal e na Páscoa. Nessa altura, brincávamos por entre as fragas que cercavam a aldeia. Havia aquela cumplicidade de putos, pesem embora as diferenças sociais. Ele era o "menino", que comia ovos estrelados, e eu o "catraio", alimentado a caldo e a broa... Nós, os putos da aldeia éramos a "canalha".

Agora, em Estocolmo, na Suécia, militava num grupúsculo marxista-leninista qualquer e angariava dinheiro para o PAIGC e para apoio aos "exilados políticos". Dinheiro que, no caso do PAIGC, tanto servia para comprar livros e medicamentos como armas e munições, questionava-me eu. Irritou-me a sua missiva, cheia de metáforas, clichés, prosápia, slogans, frases pomposas, retiradas do livrinho vermelho do execrável camarada Mao. (Devo dizer-te que sempre fui mais sinófobo do que sinófilo.)


10. As minhas próprias simpatias iniciais pelo PAIGC, algo quixotescas, guevaristas, românticas, desvaneceram-se com os imperativos da camaradagem na caserna e com a prova de fogo na frente de batalha, quando cheguei à Guiné. Não se podia objectivamente estar "do lado de cá", fardado de camuflado, e equipado com a G3, e ser-se um simpatizante, vagamente romântico, dos gajos do "outro lado de lá", daqueles que nos combatiam (e nós combatíamos)… E que feriam e matavam os nossos camaradas e a população que estava do "nosso lado".

Além disso, devo dizer-te, chocavam-me os métodos de terror usados pelo PAIGC contra os fulas, quer na zona leste quer no sul (que também conheci)… Tinha alguns amigos guineenses, entre eles, fulas, guias, picadores e milícias, desde Pirada até Piche, e depois em Cacine…

Nunca lhe respondi, ao Gustavo. Achava-o um puto mimado, egoísta e provocador. Em suma, um cabrãozeco. Não me admirei de o vir a encontrar, depois do 25 de Abril, num dos partidos do poder. Andará hoje por Bruxelas, segundo me disseram, assessor de um qualquer merda de político da nossa praça, com assento no Parlamento Europeu ou na Comissão Europeia. Tinha-se casado com uma sueca. Mas já estava divorciado nos finais da década de 1970. 

Confesso-te que, secretamente, ainda lhe cheguei a invejar a sorte, ele ali no bem bom da Suécia e das suecas louras, de olhos azuis, que faziam parte do nosso imaginário de machos latinos…... E eu a gramar a pastilha de uma comissão de serviço militar na Guiné!

Achei que o mundo não era justo. Mas mesmo assim não me podia queixar. Estava vivo. E os primeiros tempos, passados entre Nova Lamego e Bafatá, até nem foram maus. Ainda fiz o gosto ao dedo e pintei alguns quadros,em acrílico, que até tiveram um ou outro comprador, a preço simbólico. Outros ofereci a gente conhecida e amiga, incluindo uma família de comerciantes libaneses cuja casa costumava frequentar, e que tinha uma filha que ainda andei a catrapiscar.

Mas depressa percebi que esgotara o meu filão artístico. Afinal o teu Renoir nunca passara da cepa torta, isto é, da aldeia de Montemuro. da Casa Pia e depois do bairro de Benfica… Uma deceção!... Nunca me perdoei, de resto, ter estupidamente chumbado nas Belas Artes e de ter sido chamado, prematuramente, para tropa...


11. Nunca falei disto a ninguém, passei por uma grave crise existencial nos últimos meses da comissão, ainda tive, uma vez, uma única vez, depois de ter despejado uma garrafa de uísque, a pistola Walther apontada ao céu da boca. Senti a atração da morte, a vertigem do nada, a comiseração da autodestruição,
a autopiedade, a autocompaixão...Mas, mesmo anestesiado, era demasiado cobardolas para resolver, com um tiro mortal, as minhas contradições pequeno-burguesas, agravadas por uma idiota dor de corno.

A Flora, que tu ainda conheceste, no tempo da minha/nossa famosa exposição do SNI, em 1965, a bela menina-família do Funchal, que estava a estudar serviço social, ali no Campo de Santana, em Lisboa, tinha-me trocado por um javardo de um herdeiro de uma fortuna venezuelana… Ainda trabalhara uns tempos na Misericórdia de Lisboa, num dos projectos de realojamento de população de um bairro de lata, antes de regressar à Madeira. 


Não esqueço a última carta que ela me mandou, de despedida, em 1970, a dizer que ia para a Venezuela, para casar. Era um encanto de miúda, delicadíssima como uma orquídea, linda de morrer, com pele de veludo e blusinhas de renda, que mal tapavam os seus deliciosos marmelos, mas com pouca ou nenhuma margem de decisão em relação à sua vida pessoal e sentimental.

O clã é sempre quem mais ordena. O pai, tanto quanto percebi, era um homem do regime, da média ou média-alta burguesia funchalense, mas com problemas financeiras, por negócios, mal sucedidos, na área do import-export, bananas, frutas tropicais, flores, eletrodomésticos e coisas assim do género. Família numerosa, muitos manos. 

Nunca iria dar certo o meu casamento com a Flora. Nunca pensei, de resto, em pedir-lhe a mão. Muito menos depois de conhecer o paraíso da Guiné. Não me lembro de alguma vez lhe ter pedido a mão. Namorávamos apenas... Ou trocávamos cartas e aerogramas. E ela fora inclusive ao meu embarque, no Cais da Rocha Conde de Óbidos.

Fiquei surpreendido quando um furriel de uma companhia madeirense, por sinal do Funchal e conhecido da família da Flora, e que sabia da nossa história, veio-me lembrar que seria bom decidir-me e pedir-lhe a mão em casamento, de acordo com os usos e costumes da terra... 
Porque  havia mais pretendentes na fila, à porta de casa!...  

Estávamos a comer umas ostras e a beber umas cerveja, numa esplanada em Bissau, talvez no "Pelicano", já não me lembro. Foi um choque. Fiquei engasgado. Não estava preparado para tomar nenhuma decisão, e muito menos naquela parte do mundo, no cu de Judas. Muito menos para decidir quem deveria ser a mãe dos meus filhos. Estava na Guiné, estava na guerra, sem saber o que fazer da minha vida, sem saber sequer se iria chegar à meta, que era cumprir a minha pena de 21/22 meses, de “perigos e guerras esforçados, mais do que prometia a força humana”, a que fora condenado pelo único crime de ser português, natural de Cinfães, filho de mãe solteira, e de pai incógnito, o filho da puta que a violara… e que, cinicamente, se oferecera para ser o meu padrinho de batismo. 

No mínimo, a minha pequena grande ambição, e a única,  era chegar inteiro à meta, de novo ao Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa, donde havia partido... Inteiro, de cabeça, tronco e membros, e com os tomates no sítio. Ainda tentei telefonar-lhe, à Flora, de  Bissau (e depois de Nova Lamego). Em vão. As ligações com a Madeira não eram fáceis. Desisti. Sempre fui, afinal, um merdas, um fraco, um falhado. Nunca mais tive a conversa que gostaria de ter tido com a minha encantadora namorada madeirense que, cansada de esperar, acabou por me trocar... por um padeiro venezuelano rico!


12. Já agora, e se ainda tiveres pachorra para me ouvir, conto-me o resto da história, já que me apanhas em maré-alta de confidências...

Acabei, já em Lisboa, bancário, por casar com uma galega de Orense, que nunca chegarás a conhecer, por que já fomos cada um à sua vida… É apenas a mãe dos meus dois filhos, um deles a viver em Vigo, e cada vez mais galego como a mãe.

Depois, meu amigo, veio o rol de desgraças que me aconteceram. A descida aos infernos. A cafrealização, à maneira do Rimbaud. A porrada do segundo comandante no Gabu. A ida, por castigo, para o sul, para Cacine, em rendição individual. O tiro de Kalash que me mandou quase um ano para o Hospital Militar da Estrela. Enfim, poupo-te os pormenores, um dia contar-tos-ei, se ambos tivermos tempo e pachorra, eu próprio só agora ando a desenterrar esses esqueletos guardados no armário da minha memória…

Esqueci a Guiné durante décadas. Ou tentei esquecer a Guiné (o que é difícil quando te vês ao espelho e tens uma bruta cicatriz no peito). Até ao dia em que, não sei como nem porquê, vi na Net o teu nome, a tua cara, os teus óculos, associado a Bambadinca, um dos poucos sítios de que eu até guardava boas memórias, da minha breve passagem por lá, em trânsito para Bissau… Toda a malta do leste tinha que passar por Bambadinca... Eu sei que fiquei lá umas noites, à espera do "barco turra", para Bissau.


13. É verdade, desencontrámo-nos na Guiné. Eu nem sequer sabia que tu também lá tinhas estado, podíamos ter ido a sorte de dar de caras um com o outro, entre 1969 e 1970, nomeadamemnte em Bafatá, onde devemos ter estado alguma vez, no mesmo dia e na mesma hora, embora eventualmente em sítios diferentes, mas muito perto um do outro. 

Achei piada ao teu jogo de palavras, quando, ao telefone, me respondeste ao meu olá: “o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca … é Grande”.

Um dia prometo telefonar-te para marcarmos um encontro e matar saudades. Com mais tempo e vagar. Se ainda formos a tempo... É coisa que, de resto, me vai faltando, o tempo. Cada vez mais. Ando agora com o frenesim das viagens, por terra, mar e ar: só para saberes, já visitei mais de cem países dos cinco continentes... E ainda me faltam outros tantos...Tenho pressa de viver, à medida que eu vejo os meus parentes, amigos e conhecidos lerparem, naquela idade em que ainda há a ilusão de que temos o resto da vida toda à nossa frente. Eu já não tenho essa ilusão:  vivo o dia a dia!"Carpe diem", é o meu lema.

Preciso de ganhar coragem. Confesso que tenho medo de revisitar o passado. Tenho medo das armadilhas do passado. E, por agora, ando a recuperar o tempo perdido, depois de uma vida de idiota atrás de um balcão de um banco, a lidar com o dinheiro dos outros. Aceitei vir-me embora, com uma indemnização. Ou mandaram-me embora, para ser mais correto.

Até lá, ao nosso próximo encontro, se formos vivos, um abraço, como vocês dizem, do tamanho do nosso Rio Geba.

Assina este relambório o teu falhado amigo pintor, e, pior do que isso, frustrado companheiro da viagem "a salto", até Paris, viagem que nunca passou de um devaneio de umas tantas tardes de verão em que estivemos, juntos, em 1965, na casa dos meus "padrinhos" em Benfica e no SNI, o Secretariado Nacional de Informação, ali no Palácio Foz, a preparar a exposição que foi a minha "vernissage", entre copos de ginjinha nos Restauradores. Recordo esse tempo com muita saudade, muito mais do que a Guiné.


Até sempre, amigo e camarada!


Teu F...

o Renoir de Montemuro.


PS1 - Parabéns pelo teu blogue de que fui apenas um fortuito visitante. Mas não me peças para lá voltar.

E já que falei o meu "padrinho" de Lisboa, que tu conheceste (e bem, por ser um homem irascível e autoritário), tenho a dizer-te que ele foi, pobre diabo, uma das vítimas do 25 de Abril: trabalhava na Praça de Londres, no Ministério das Corporações e Previdência Social, foi saneado, pela Comissão de Trabalhadores, por ser assessor de um "fascista", entrou em depressão, cometeu suicídio... 

 Confesso que fiquei desolado: nunca foi o substituto do pai que eu nunca tive,  mas foi, para mim, um bom homem... À maneira dele, quis sempre o melhor para mim. Estou-lhe grato por me ter ido "buscar" à Casa Pia, e me ter dado uma "família normal", entre os 10 e os 20 anos... Foi graças a ele que continuei a estudar e entrei em Belas Artes. A minha "madrinha", essa, ainda aguentou uns anos, morreu de abandono e demência...Era professora de liceu...


PS2 – Nunca mais voltei aos Restauradores para beber uma ginjinha… E perdi-te o rasto depois que fomos cada um para o seu lado... Mas pago-te uma ginjinha, com todo o gosto, quando voltar a Lisboa. Afinal fiquei com uma pensãozeca de DFA, a par da reforma do banco. Vivo sozinho, e com poucos luxos, tirando as viagens.


________


Duas notas do autor:


(i) Ainda estou para beber a tal ginjinha, prometida pelo meu amigo F..., "aquele rapaz de Montemuro que queria ser pintor em Montmartre"... Nunca mais deu sinal de vida, depois que falámos longamente ao telefone, há uns anos atrás. Deve ter mudado de mail e de telemóvel. Sei que adora(va) viajar. E que tem(tinha) um filho, casado, arquiteto, a viver nos arredores de Paris. Enfim, deve andar por aí a dar o resto da volta ao mundo...Ou a descobrir novos mundos...

Mas perguntar-me-á o leitor mais atento ou curioso: "como é que, afinal, o conheceu e onde, a esse tal rapaz de Montemuro"? A resposta é simples: no Porto das Barcas, Atalaia, Lourinhã, no verão de 1964.. Tinha eu 17 anos. Os "padrinhos de Lisboa" costumavam lá alugar uma casa de verão e adoravam a lagosta suada do Zé Felipe... Foi lá que eu descobri o seu talento artístico.  Passámos a corresponder-nos. Até que veio o inesperado convite para lhe escrever o catálogo, um ano e tal depois.


(ii) Um bilhetinho para o F...

Meu caro F...

Não tenho a certeza se alguma vez vais ler este texto, que resume o essencial que eu sabia de ti mais o que passei a saber,  na nossa última (e única) conversa ao telefone, em 2008.

Mas sempre te direi que ninguém é feito de uma só peça, nem muito menos a nossa história (individual e coletiva) é escrita a preto e branco.

Foi o nosso autorretrato possível (ou a "selfie", como se diz agora) para este blogue que tu não segues, porque és daqueles que pôs (ou gostava de pôr) uma pedra (tumular) sobre o passado...

"O passado (e nomeadamente, o meu tempo na Guiné) está morto e enterrado", acho que foi a tua resposta ao meu convite para integrar a nossa Tabanca Grande.

Respeito a tua decisão, esperando que não seja definitiva... Por isso também não te identifiquei... Mas, como eu costumo dizer,  a nossa Tabanca Grande não tem portas, nem cavalos de frisa, nem arame farpado... Podes entrar em qualquer hora do dia ou da noite...

Se (ou quando) passares por aqui perto, faz-nos uma visita... Eu, pessoalmente, ficarei radiante. Por mim, por ti, pela nossa velha amizade de juventude.

Como a vida é feita de surpresas, talvez a gente ainda se encontre, em agosto, nas Portas de Montemuro... E a propósito, nunca me chegaste a dizer qual é a tua aldeia. Da minha tabanca de Candoz até à tua tabanca de Montemuro, do outro lado do rio Douro, vai apenas um tiro de obus 14...

Um abraço fraterno... Luís Graça

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16494: FAP (97): Pedaços das nossas vidas (1): "Marte, saia a Força Aérea, o Pirata ejectou-se em Gandembel", por TGeneral PilAv José Nico - I Parte (José Nico / Miguel Pessoa)

1. Mensagem do nosso camarada Miguel Pessoa, Cor PilAv Ref (ex-Ten PilAv, BA 12, Bissalanca, 1972/74), com data de 14 de Setembro de 2016, contendo um trabalho intitulado "Marte, saia a Força Aérea, o Pirata ejectou-se em Gandembel!", da autoria do TGeneral PilAv José Nico, relatando o abate, em 28 de Julho de 1968, do avião pilotado pelo então TCor PilAv Costa Gomes, Comandante do Grupo Operacional 1201, que vamos publicar em duas partes.

Caros editores
O General Nico (da Força Aérea) disponibilizou este texto para publicação no blogue "Luís Graça & Camaradas da Guiné", socorrendo-se da minha pessoa para vos fazer chegar o artigo.
Dada a sua extensão não sei se será possível a sua publicação num único poste. Tenho sempre receio da sua divisão em partes, por poder eventualmente desinteressar o leitor. Mas a equipa editorial irá certamente ponderar as duas hipóteses... e decidir-se pela melhor opção.

Um abraço.
Miguel Pessoa


PEDAÇOS DAS NOSSAS VIDAS[1]

Cumpri muitas missões durante a minha carreira na Força Aérea Portuguesa. A comissão na Guiné, porém, sobrepôs-se a todas as outras e marcou-me indelevelmente para o resto da vida. A mim e certamente a todos os que, de algum modo, partilharam a mesma experiência. É dela ou de acontecimentos com ela relacionados, que vos irei dando conta… 


VII – “Marte[2], saia a Força Aérea, o Pirata[3] ejectou-se em Gandembel!”

Por TGeneral José Nico

I Parte

A frase em título reproduz uma angustiante emissão rádio efectuada na frequência 49,0 MHz FM, ao fim da manhã do dia 28 de Julho de 1968. Nesse preciso momento encontrava-me a efectuar o “sector”[4] de Nova Lamego, com um DO-27, e confesso que fiquei gelado. O Comandante do Grupo Operacional 1201 (GO 1201), na altura o combatente mais graduado da Força Aérea na Guiné, tinha sido forçado a abandonar o avião por razões que não foram explicadas no momento, numa área que todos sabíamos infestada de guerrilheiros. Por esse motivo assumi instintivamente a sobrevivência, em consequência da ejecção, como um risco menor naquela situação. Foi a possibilidade do Tenente-Coronel Costa Gomes ser capturado pelo inimigo que mais me assustou. Respondi imediatamente ao Tubarão[5] informando-o que o Sampunhe na Mouco[6] ia interromper a missão e rumar a Gandembel para ajudar a tentar localizar o piloto no solo. Todos os aviões em voo mantinham escuta permanente em 49,0 MHz, que era o canal para apoio aéreo às forças de superfície, e foram vários os pilotos que também alteraram a missão para se dirigirem a Gandembel. Soube-se depois que o G-91 5411, pilotado pelo Comandante do GO 1201, tinha sido atingido por fogo antiaéreo e incendiara-se. O número dois da formação, alarmado com o enorme rastro de fogo deixado pelo avião, incitara o chefe a ejectar-se imediatamente o que ele fez alguns segundos depois. Logo a seguir, enquanto observava o pára-quedas a descer para a mata, o Capitão Vasquez comunicou a situação ao Centro Conjunto de Apoio Aéreo (CCAA) e com essa transmissão rádio alertou o dispositivo aéreo para aquela emergência. As palavras que então proferiu ainda hoje ressoam na memória de todos os que as ouviram naquele já longínquo dia e são elas que dão o título a mais este “PEDAÇOS DAS NOSSAS VIDAS”. 


Limitações organizacionais da Força Aérea na Guiné 

A minha vida mudou radicalmente quando, no dia 28 de Setembro de 1967, a porta do HC-54 Skymaster 7504, que me transportou até Bissau, se abriu e uma baforada de ar quente e húmido invadiu a cabine dos passageiros. Tinha feito a viagem desde Lisboa com o meu camarada de curso, o Tenente Balacó Moreira, e foi aquela bofetada de calor húmido com odor a ferrugem que nos anunciou o peculiar ambiente em que íamos viver e combater a partir daquele dia. 

Tínhamos completado o treino operacional em F-86F, na Esquadra 51 de Monte Real mas, para a guerra que se desenrolava na Guiné, não houve qualquer preparação específica. Era um nível de formação que ultrapassava as capacidades de uma pequena unidade de voo como era a Esquadra 51. Penso mesmo que nunca foram inseridos, no treino que se seguia ao curso de pilotagem de aviões de caça (em T-33), os ensinamentos resultantes da recolha de informações e da análise do que se estava a passar em África, nem a disseminação de eventuais lições aprendidas, nem sequer das práticas da cooperação aeroterrestre. A Força Aérea, com a expansão forçada pela defesa dos territórios ultramarinos, ficou de tal modo estirada que estas questões que exigiam um estado - maior central, com capacidade para estudar o nível operacional da guerra, nunca foram convenientemente resolvidas. 

Desembarquei assim em Bissau necessitando de tempo e experiência para perceber o que faziam os que já lá estavam e o porquê de como o faziam. Como a actividade era intensa as oportunidades para concretizar a necessária qualificação para operar no teatro de operações da Guiné surgiram em catadupa, umas atrás das outras. Apenas me foi explicada uma prioridade: como o DO-27 era pau para toda a obra quase todos os pilotos, independentemente do tipo de aeronave a que se destinavam, que no meu caso era o G-91, tinham que ser também qualificados naquela aeronave. E foi assim que, logo no dia seguinte à chegada, comecei a receber instrução no DO-27 e passados três dias fui considerado apto para operações. Só depois disso, no dia 3 de Outubro de 1967, efectuei então o primeiro voo em G-91 e poucos dias depois estreei-me contra o dispositivo antiaéreo do PAIGC no Quitafine[7].

Outra questão muito importante, que na altura me passou despercebida, foi que o nível operacional da guerra pura e simplesmente não existia na Força Aérea ou, para ser mais preciso, existia apenas uma pessoa que tinha estatuto para analisar o que se passava, pensar o que se poderia fazer com os recursos disponíveis e planear: o Tenente-Coronel Costa Gomes, Comandante do GO 1201 que nessa função era apoiado pelo Comandante da Esq 121, o Capitão Vasquez. Todos os outros elementos, na grande maioria jovens tenentes do quadro permanente e alferes e furriéis milicianos, eram executantes puros que dominavam apenas o nível táctico. Não havia um estado-maior operacional e isso influenciou sempre, sem que nos apercebêssemos, a qualidade da nossa operação mau grado o voluntarismo e agressividade dos pilotos, como se perceberá do episódio que me proponho relatar. 

De facto, agora à distância de 50 anos, analisando a nossa organização e a forma de emprego do poder aéreo naquele tempo, é óbvio que as responsabilidades de nível operacional residiam na pessoa do Comandante da Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné[8] (COMZAVERDEGUINÉ). Numa condição de guerra é, na actualidade, indiscutível que deviam ter sido responsabilidades apoiadas por um estado-maior o que nunca aconteceu. Poder-se-ia agora argumentar que dada a pequena dimensão da componente aérea as responsabilidades de nível operacional caberiam nas competências do Comando-Chefe e, de facto, isso podia ter sido feito não fosse o facto do QG conjunto ser um comando essencialmente terrestre. Da Força Aérea apenas contava com um oficial de ligação com o posto de capitão. Mas mais ainda, nos casos em que o comandante da zona aérea não tivera experiência anterior nas unidades de caça, essas responsabilidades eram informalmente assumidas pelo comandante do grupo operacional como se fosse uma coisa natural. Mas tal como o comandante da zona também o comandante do grupo operacional não dispunha de um estado-maior de combate. Em termos práticos foram responsabilidades de cariz vincadamente unipessoal e, por isso, foram deficientemente exercidas mas nunca ninguém se apercebeu desta lacuna porque não fazia parte da nossa cultura. 


Antecedentes do abate do Pirata[9]

No dia 26 de Julho de 1968 uma parelha de G-91, em patrulhamento na fronteira Sul, foi alvejada por fogo antiaéreo, na vizinhança do corredor do Guilege. O relatório do chefe da formação referia que foram detectadas três armas no ponto GUILEGE 8 H 1 5/9, próximo da antiga tabanca de Sare Morso[10]. Porque situações desta natureza tinham sido comuns nos últimos meses de 1967 até Março de 1968 tudo sugere que não foi atribuído nenhum carácter de urgência ou excepcionalidade à informação. No entanto, havendo diariamente um briefing dado pelos oficiais de informações do CCAA às 17h00, sobre a actividade efectuada em cada dia, é muito provável que o facto tenha sido divulgado nessa altura. Pessoalmente não tenho memória disso e tenho a certeza de que se tivesse dado conta dessa ocorrência teria ficado focado nela. Mas mais ainda, se o assunto não foi referido no briefing ao fim do dia deveria ter sido no briefing da manhã, no dia seguinte, às 08h00, onde era exposta a actividade prevista para esse dia. Também, provavelmente pensando que a posterior análise do relatório seria suficiente para desencadear as acções mais adequadas, os pilotos envolvidos não comunicaram o facto de viva voz, nem ao Comandante da Esquadra 121, nem ao Comandante do Grupo Operacional. O certo é que nenhum deles tomou conhecimento da existência daquela AAA[11] e isso influenciou negativamente as decisões posteriores.

Nesse mesmo dia 26 de Julho, ao fim da tarde, na reunião diária no Comando-Chefe[12], foram referidas pelos oficiais de informações notícias dando conta da existência ou construção de um túnel na zona fronteiriça, que passaria debaixo do corredor[13] que, vindo de Kandiafara, penetrava no território nacional. Como nessa altura o alvejamento dos G-91, ocorrido durante a manhã, ainda permanecia no âmbito da Força Aérea, os oficiais de informações do Comando-Chefe não estabeleceram qualquer ligação entre aquelas notícias e a AAA que já fora detectada. 

No dia seguinte, 27 de Julho, uma segunda parelha de G-91 voltou a ser alvejada pelas mesmas armas[14] mas, novamente, nem o Comandante da Esquadra 121, nem o Comandante do GO 1201 tomaram conhecimento do facto. O relatório deve ter tido o tratamento de rotina a nível do CCAA mas não influenciou imediatamente o nível de decisão do grupo operacional, o que se pode explicar por motivos de natureza circunstancial. Provavelmente, absorvidos por outras solicitações, nem o Comandante do GO 1201, nem o Comandante da Esquadra 121 assistiram aos briefings de informações das 17h00 do dia anterior nem ao das 08h00 desse dia e também nenhum dos pilotos envolvidos achou necessário comunicar-lhes o facto directamente. 

Sensivelmente na mesma altura em que os guerrilheiros, certamente apoiados pelos barbudos do Fidel[15] como era a prática corrente, faziam tiro ao alvo à parelha de G-91 que acabo de referir, o Tenente-Coronel Costa Gomes chamou o Capitão Vasquez que conhecia bem o trilho do corredor do Guilege e informou-o sobre as notícias que ouvira no dia anterior referindo o aumento da actividade do PAIGC e a história da construção de um túnel. Deu-lhe então instruções para efectuar um reconhecimento visual em DO-27, para confirmar ou desmentir essas notícias, e recomendou-lhe que levasse com ele um piloto de helicópteros para o caso de vir a ser necessário lançar uma operação helitransportada. 

Friso novamente que, até ao momento, apesar das indicações já existentes, tanto o comandante do grupo como o Capitão Vasquez continuavam a ignorar a existência de armas AA[16] activas junto ao corredor do Guilege. Começou assim a desenhar-se uma armadilha que iria ter consequências desastrosas. 


O RVIS[17] ao corredor do Guilege na tarde do dia 27 de Julho de 1968

É com as palavras que se seguem que o então Capitão Vasquez relata o que aconteceu durante o RVIS: 

“Planeei a missão com o Tenente Ruano e descolámos com destino ao corredor do Guilege. 

Iniciámos o reconhecimento a partir de Porto Balana voando a cerca de 300 pés sobre o terreno e mantendo o trilho à nossa direita. Fomos observando ou "lendo" o trilho, à procura de indícios que configurassem ou não a suspeita levantada na reunião no Comando-Chefe. 

Pouco depois de atravessar a picada Gadamael Porto - Gandembel, seguindo o corredor em direcção à “cambança” para Kandiafara e com o trilho entre 200 a 300 metros à direita, fomos subitamente surpreendidos por um intenso tiroteio antiaéreo, vindo da esquerda da nossa rota de voo. As armas que disparavam seriam duas ou mais, dado o intenso matraquear ouvido dentro do avião e a quantidade de trajectórias tracejantes avistadas, próprias de armas de calibre não inferior a 12,7 mm. (Ver a rota de voo, no croquis da carta de 1/50.000). Reagi voltando imediatamente pela direita para me afastar das armas e por sorte entrei imediatamente num aguaceiro que caía naquele momento sobre o trilho o que terá facilitado o escape. Não sentimos nenhum estrondo, nem surgiram sinais de mau funcionamento o que deu logo a sensação de que não tínhamos sido atingidos. 

Regressámos imediatamente a Bissau com uma aterragem intermédia em Buba para inspeccionar o avião o que permitiu confirmar que não tinha sido danificado.” 

A rota do RVIS desenhada numa carta 1:50.000 pelo ex-Capitão Vasquez 

À chegada à BA12, Bissalanca, o Capitão Vasquez e o Tenente Ruano foram imediatamente relatar ao Tenente-Coronel Costa Gomes o que se tinha passado. O comandante do grupo mostrou-se surpreendido e questionou a credibilidade da presença das armas AA naquela zona. Na sua ideia, a anterior tentativa do PAIGC declarar o Quitafine uma zona libertada[18], com recurso à instalação de numerosas armas AA, tinha acabado por ser derrotada em Março de 1968 e não faria agora sentido insistirem naquela táctica porque a Força Aérea acabaria por destruir-lhes o arsenal. Além disso, tinha sido o Tenente-Coronel Costa Gomes que liderara essa campanha e penso que lhe custou admitir que, pelo menos aparentemente, estava tudo a voltar à estaca zero. Chegou mesmo a chamar a atenção do Capitão Vasquez para a responsabilidade do que estava a relatar mas a segurança das afirmações dos dois pilotos acabou por convencê-lo. 

É certo que o PAIGC tinha continuado a instalar AAAA ao longo da fronteira mas apenas em território da Guiné-Conacri. Procuravam atingir os aviões a operar nas proximidades e raramente foram detectadas. Lembro-me de uma vez em que voava sobre a fronteira Sul com o Tenente Firmino das Neves ter avistado por entre a folhagem o característico relampejar de uma AA que não nos atingiu. Outro caso de que tenho conhecimento, esse na mesma altura em que ocorreu o episódio objecto do presente relato, deu-se com uma parelha com o Capitão Vasquez e o Tenente Balacó Moreira. Voavam também sobre a fronteira e começaram a ver uma série de flocos que se formavam mais acima da altitude de voo. Eram claramente rebentamentos de granadas de canhões AA 37mm que deviam estar programadas para os 8000´. Não foi possível detectar as armas e o chefe da formação deu ordem para descer imediatamente para anular o campo de visão dos atiradores não tendo havido consequências. 

Ao fim da tarde, na reunião no Comando-Chefe, o Tenente-Coronel Costa Gomes comunicou então o que se tinha passado durante o RVIS no corredor do Guilege. A reacção do Brigadeiro Spínola, no seu estilo peculiar, foi muito directa e até um pouco desabrida: 
- Isso é um problema para a Força Aérea resolver! – disse ele rodando a cara de modo a fixar o Comandante do Grupo Operacional. 

O ex-Tenente-Coronel Costa Gomes diz que até lhe pareceu que o monóculo do Comandante-Chefe faiscou quando deu aquela ordem. Talvez tenha sido o reflexo momentâneo de alguma luz mas o que mais o marcou foi a percepção de que naquele caso a Força Aérea era ele, Costa Gomes, e só ele. Sentiu por isso que o Comandante-Chefe lhe estava a dar uma ordem de missão personalizada e que ele, naturalmente, teria de cumprir. 


Um reconhecimento fotográfico que correu mal 

No dia seguinte o Comandante do GO 1201 deu ordem para que fosse preparada uma parelha de G-91 para se efectuar um reconhecimento fotográfico. Nessa manhã eu estava incumbido de executar um TGER[19] em DO-27 em apoio do batalhão de Nova Lamego. Por mero acaso, antes de partir, assisti a uma conversa entre o comandante do grupo e o Capitão Vasquez em que os dois combinavam um reconhecimento fotográfico a baixa altitude para localizar e identificar umas AA junto ao corredor do Guilege. Foi a primeira vez que ouvi falar dessas armas e, não sei porquê, fiquei com a sensação que aquilo podia correr mal. 

Conta o ex-Capitão Vasquez que planeou a missão sozinho e que, numa carta 1:50.000, traçou uma rota em que o ponto inicial para a aproximação ao alvo era o aquartelamento do Guilege. Daí para a frente era só manter rumo e velocidade e o alvo devia ser avistado, se tudo corresse bem, um minuto e dezasseis segundos depois. A baixa altitude não havia referências, só se via o campo verde de um ondulado uniforme formado pelas copas das árvores. A navegação tinha que ser por isso muito estável e ao fim do tempo era necessário subir ligeiramente para tentar detectar visualmente onde estavam as AA, manobrar para corrigir a posição relativa, colocar o retículo da camara mais adequada no alvo e accionar o sistema fotográfico. 

A seguir deviam descer imediatamente e afastarem-se flectindo para a esquerda para evitar entrar na Republica da Guiné-Conacri. 

Quando os dois pilotos chegaram à linha da frente levantou-se a questão de quem seria o número um da formação. Pessoalmente penso que isso seria indiferente visto que naquele tipo de aproximação baixa apenas contava o rigor da navegação. O Capitão Vasquez embora já tivesse sido alvejado por aquelas AA não sabia com precisão onde elas estavam e, portanto, tinha tantas probabilidades de acertar como o comandante do grupo. Estava é mais rotinado no voo baixo o que poderia facilitar a detecção de qualquer pormenor que lhe permitisse corrigir a navegação e, por último, estava mais habituado a utilizar o equipamento de reconhecimento fotográfico. No entanto, apesar de contestada pelo capitão, a decisão do comandante do grupo foi peremptória: seria ele a liderar a missão. Nos últimos anos ouvi várias vezes o ex-Tenente-Coronel Costa Gomes explicar o que o levou àquela opção. Evoca normalmente dois motivos. Diz ele que, naquela altura, imaginava ter sido directamente responsabilizado pelo Comandante-Chefe. Sentia que o Brigadeiro Spínola estava à espera que fosse ele a resolver o problema daquelas AA e, além disso, como se tratava de uma missão com algum risco e sendo o mais antigo não podia deixar de ser ele a ir à frente. Era inadmissível proceder de outra forma. O que se passou a seguir foi mais ou menos o seguinte: 

A parelha descolou seguindo os procedimentos de rotina e voaram a uma altitude confortável até terem o Guilege à vista. O Tenente-Coronel Costa Gomes pilotava o G-91 5411 e o Capitão Vasquez seguia-o cerca de 300 metros atrás no G-91 5416. Depois desceram e passaram o Guilege já a voar muito baixo. O número dois deixou-se então atrasar para criar maior espaçamento entre os aviões e facilitar a manobra individual. Ao fim do tempo previsto o número um iniciou uma subida suave para tentar localizar as armas. Viu-as imediatamente à sua direita, numa zona desmatada, com um ligeiro declive, mas estava praticamente em cima delas sem condições para fotografar. Aparentemente surpreendidos os atiradores das AA não abriram fogo imediatamente, possivelmente porque estavam à espera de alvos na direcção de Gandembel que era para onde estava virada a encosta onde estavam instalados. 

Reflectindo agora sobre os detalhes deste momento penso que o facto de não terem disparado logo terá funcionado no imediato como uma espécie de tranquilizante para o Tenente-Coronel Costa Gomes. Só assim se justifica que numa situação tão vulnerável não tenha iniciado imediatamente uma manobra de evasão. Ainda estava a avaliar o que poderia fazer para se colocar em posição para fotografar quando, por volta dos 800’ e com cerca de 250 KIAS, viu as armas começarem a disparar todas ao mesmo tempo e sentiu o que lhe pareceu serem umas pancadas na fuselagem. Imediatamente acenderam-se as luzes de aviso de fogo o que o levou, instintivamente, a aumentar ainda mais o angulo de subida. Pelo retrovisor viu que tinha fogo na cauda e então comunicou[20] ao número dois o que sucedera e pediu-lhe para verificar o estado do avião. 

O Capitão Vasquez concentrado na sua própria navegação não tinha dado por nada. Estava a procurar localizar as AA, que não chegou a ver, quando ouviu a comunicação do chefe da parelha. Olhou imediatamente para a frente e viu o outro avião numa atitude pronunciada de subida com a cauda envolta em chamas que se prolongavam num longo rastro. 

Há quase cinquenta anos que o ouço repetir o que sentiu naquele momento. Diz ele que a situação lhe pareceu tão severa que não hesitou em dar-lhe indicação para se ejectar imediatamente, apesar dos gravíssimos perigos que o esperavam no solo: 
- "Pirata, tem fogo, ejecte-se já, Pirata, ejecte-se já"!!!! 
- “Vou aguentar mais um bocado” – respondeu o Pirata que, apesar do fogo, estava bem consciente dos riscos da proximidade aos guerrilheiros do PAIGC. 

A seguir, o número dois observou o avião do chefe a meter a asa esquerda em baixo e rodar para esse lado, a muito baixa velocidade, como se fosse fazer um “renversement”. Não chegou a rodar 180º mas terá completado entre 110º e 120º de rotação nessa manobra saindo mais ou menos apontado ao sol e ao único aquartelamento do Exército naquela zona: Gandembel. 

O Tenente-Coronel Costa Gomes conhecia bem a área, tinha estado poucos dias antes no aquartelamento com o Brigadeiro Spínola e por isso estava orientado e foi sem dificuldade que, apesar da aflição, localizou imediatamente o aquartelamento. Manteve a direcção do voo até ter Gandembel mesmo à sua direita e então ejectou-se. Pelos meus cálculos terão decorrido cerca de 30 segundos desde que foi atingido até esse momento. 

O número dois, que entretanto tinha “cortado a volta” para se aproximar, ficou a ver o pára-quedas descendo sobre a mata, bastante próximo do aquartelamento. Foi então que mudou para a frequência de apoio aéreo e emitiu o alarme que compõe o título deste relato. 

O TCor Costa Gomes com o Comandante-Chefe em Gandembel poucos dias antes de ser abatido 

A rota desde o Guilege até ao alvo e depois à ejecção.

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Notas:

[1] - Série de artigos inicialmente projectada para ser publicada na revista Mais Alto da Força Aérea.
[2] - Indicativo táctico do Centro Conjunto de Apoio Aéreo na Base Aérea 12 (CCAA). Anos mais tarde passou a ser designado Centro de Operações Aero-Tácticas (COAT)
[3] - Indicativo táctico do TCor Francisco Dias da Costa Gomes, na altura Comandante do Grupo Operacional 1201
[4] - Missão de ligação e apoio logístico em proveito de um batalhão do Exército.
[5] - Indicativo táctico do Cap Fernando de Jesus Vasquez, Comandante da Esquadra 121 que emitiu o alerta e que, na circunstância, era o asa do Comandante do Grupo.
[6] - Indicativo táctico do autor do presente artigo.
[7] - Na altura, a única directiva superior para a Força Aérea era uma nota da Secretaria Geral da Defesa Nacional (na Cova da Moura, em Lisboa), com umas poucas linhas de texto dando conta do emprego de armas antiaéreas pelo PAIGC, no Sul da Guiné, e que terminava com as seguintes palavras “…pelo que deve a Força Aérea proceder à sua neutralização.”
[8] - O mais elevado nível de Comando da Força Aérea no Teatro de Operações da Guiné.
[9] - Pressupostos baseados na rotina diária das operações.
[10] - ZASITREP 209/68 26JULHO
[11] - Anti-Aircraft Artillery
[12] - QG do Comandante em Chefe
[13] - Corredor do Guilege
[14] - ZASITREP 210/68 27JULHO
[15] - O enquadramento das operações antiaéreas pelos cubanos já está suficientemente recortado para se assumir que também participaram nesta acção. Por essa altura os apoiantes cubanos eram quase todos pretos para não se distinguirem facilmente no meio da guerrilha.
[16] - Antiaérea(s)
[17] - Sigla que designava uma acção de reconhecimento visual
[18] - Estratégia desenhada pelo Comité de Descolonização da ONU, também conhecido como Comité dos 24. Como a estratégia não vingou o Comité dos 24 acabou por decidir enviar, em 1972, três embaixadores que efectuaram uma passeata furtiva no Sul da Guiné e declararam depois ter estado em “zonas libertadas”. Foi com base nesse testemunho, claramente fabricado, que Portugal foi considerado ocupante ilegal do território o que criou as condições políticas para que, a seguir, em 24 de Setembro de 1973, o PAIGC declarasse unilateralmente a independência. Na prática, a declaração unilateral da independência não foi uma iniciativa do PAIGC mas sim um plano concebido e orquestrado pelo Comité dos 24.
[19] - TGER: sigla para transporte geral que neste caso incluía tudo o que um batalhão normalmente necessitava distribuir pelas companhias. Normalmente era transportado pessoal, correio, víveres, munições, etc..
[20] - As comunicações tácticas entre os G-91 eram efectuadas em UHF, gama de frequências que não estava disponível nos outros tipos de aeronaves do GO1201.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16296: FAP (96); Algumas correções, para a história: (i) Morais da Silva comandava a Esquadra121, também dos Fiat G-91 e nunca voou helicópteros; (ii) quem veio substituir o cap pilav Cubas em 1970 foi o cap pilav Zúquete da Fonseca, o meu primeiro comandante de Esquadra; (iii) não foi a Esquadrilha mas a Esquadra de voo 122, que sempre se designou por Canibais; (iv ) quando lá cheguei, em 8/12/1970, ainda conheci a "velhice", o Jorge Félix, o Solano de Almeida, o Heleno e o Falé... (Lino Reis, ex-alf mil pil, BA 12, Bissalanca, 1970/72)

terça-feira, 12 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16296: FAP (96); Algumas correções, para a história: (i) Morais da Silva comandava a Esquadra121, também dos Fiat G-91 e nunca voou helicópteros; (ii) quem veio substituir o cap pilav Cubas em 1970 foi o cap pilav Zúquete da Fonseca, o meu primeiro comandante de Esquadra; (iii) não foi a Esquadrilha mas a Esquadra de voo 122, que sempre se designou por Canibais; (iv ) quando lá cheguei, em 8/12/1970, ainda conheci a "velhice", o Jorge Félix, o Solano de Almeida, o Heleno e o Falé... (Lino Reis, ex-alf mil pil, BA 12, Bissalanca, 1970/72)

Alouette III. Bambadimca (c. 1969/70). Foto:
Humberto Reis (2006)
1. Mensagem do nosso leitor e camarada Lino Reis [e, além disso, amigo e conterrâneo do nosso editor LG; foi alf mil pil, BA 12, Bissalanca, 1970/72, hoje cor pilav ref; tem página no Facebook]


De: Lino Reis
Data: 8 de julho de 2016 às 12:36
Assunto: Mais uma correcção cirúrgica.


Luís, bom dia.

Pensava entretanto encontrar-me contigo no Táss....qualquer coisa,[Bar da Praia da Areia Branca, Tasse-Bem] para te comunicar uma pequena correcção a um dado colocado por Humberto Reis que colo abaixo [, na sequência de uma pesquisa que fiz no teu blogue, sobre os Canibais]

" Notas de L.G.:

(1) Mensagem que recebi hoje, do Humberto Reis:

"(...) Este nosso novo tertuliano Jorge Félix, ex-alf mil pil av, julgo que era um que andava quase sempre com botas de cano alto. O comandante da esq 123 era o cap Cubas, de alcunha o Canibalão, pois a esquadrilha era a de Os Canibais. O Cubas foi substituído em 70, se não me engano, pelo cap Morais da Silva, que chegou a ser CEMFA depois do 25 de Abril."


Para que a verdade histórica seja uma meta suprema, sugiro que a referência a Morais da Silva, na altura Capitão Piloto Aviador e que mais tarde foi CEMFA após o 11 de Março [de 1975], seja corrigida.

Ele comandava a Esquadra 121, também dos Fiat G-91 e nunca voou Helicópteros na sua carreira militar.

Entretanto partiu há meses para o seu último voo. [José Alberto Morais da Silva, cor pilav ref, 1041-2014]

Quem veio substituir o Capitão Piloto Aviador Cubas em 1970 foi o Capitão Piloto Aviador Zuquete da Fonseca, que foi o meu comandante de Esquadra durante quase toda a Comissão [, na Guiné, 1970/72].

Não foi a Esquadrilha mas a Esquadra de voo 122, que sempre se designou por Canibais.

Quando lá cheguei, dia 8 de Dezembro de 1970, ainda conheci o Jorge Félix [, foto à direita], sempre com as suas máquinas a tiracolo, o Solano de Almeida (que teve a sua carreira civil na TAP seguindo o seu pai e o seu irmão), o Heleno (continuou a voar na TAP) e o Falé, pelo menos.

"Eram a velhice" e eu um garboso "periquito" ou abreviando um"PIRA".

Foram escassos dias de sobreposição ou de "largada" dos piras (graças às nossas qualidades no domínio das máquinas voadoras,kkk), pois desapareceram pouco tempo depois rumo à Metrópole; felizmente chegara a sua hora.

É um pequeno contributo para, repito, a verdade dos factos históricos. (**)

Desapareço com saudações aeronáuticas.

Um abraço

Lino Reis

Piloto Cmdt. de Linha Aérea de Aviões ref.

2. Comentário de LG:

Obrigado,  meu caro, pelas tuas "correções cirúrgicas"...  A verdade também é uma questão de detalhes. O meu camarada Humberto Reis (, ex-fur mil op esp, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71) não era da FAP, mas tinha amigos na BA 12 e tirou magníficas fotos áereas da zona leste, graças às boleias de heli...

Quanto ao Jorge Félix, há um vídeo dele (ou melhor, do  Pierre Fargeas),  a que ele acrescentou uma conhecida e nostálgica canção do Ch. Aznavour, com letra em espanhol, e carregou no You toube, na sua página... Está reproduzido no nosso blogue. Merece ser visto, revisto e comentado. Na altura escrevi-lhe o seguinte:

"Jorge, é um vídeo que eu vejo e revejo... Por muitas razões: por ti, amigo e camarada do meu tempo; pelo regresso ao passado; pelas saudades da doce, tranquila e bela Bafatá; pelos nossos 20 anos. tão generosos quanto verdes; pela beleza (pertubadora) da Ivete Fargeas; pela 'canción desesperada' do Ch. Aznavour... Uma combinação perfeita!...Um Alfa Bravo".

Julgo que ainda é do teu tempo este casal francês, os Fargeas, que suponho vivia na Base. O Pierre Fargeas (n. 1932) era o técnico francês de manutenção do Alouette  III, e representava o fabricante, a Aérospatiale, Terá estado na Guiné até 1974, segundo informação do Jorge Félix. No vídeo vê-se também o então cor pilav Manuel Diogo Neto (1924-1995).

___________________

Notas do editor:

(*) 28 de fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2592: Voando sob os céus de Bambadinca, na Op Lança Afiada, em Março de 1969 (Jorge Félix, ex-Alf Pil Av Al III)

terça-feira, 14 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14874: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (3): Convívio da Tabanca de Porto Dinheiro, 12 de julho de 2015 (Parte II): João Crisóstomo e António Nunes Lopes, do mesmo pelotão, da CCAÇ 1439, encontram-se 50 anos depois e falam, com emoção e dramatismo, da violenta emboscada que uma vez sofreram em Darsalame (Baio), no subsetor do Xime



Vídeo (7' 31''). Alojado em You Tube > Luís Graça 

Lourinhã > Ribamar > Praia de Porto Dinheiro > Convívio da Tabanca de Porto Dinheiro > 12 de julho de 2015 > (*) O João Crisóstomo e o António Nunes Lopes encontram-se ao fim de 50 anos... Pertenceram à mesma companhia e ao mesmo pelotão... E evocam aqui, com uma espantosa precisão de detalhes, e grande emoção,  uma dos mais duros episódios de guerra por que passaram, em 1966, em Darsalame (Baio), na zona de Baio/Buruntoni, no Xime, que o PAIGC sempre "controlou" durante toda a guerra, e onde era inevitável haver "contacto" com as NT... Qual o nome verdadeiro do místico soldado, de alcunha "Penálti", de aqui se fala ? Pode ser que alguém saiba mais sobre este homem, que foi herói e desertor...

João Crisóstomo, que é natural de uma freguesia vizinha, A-dos-Cunhados, do concelho de Torres Vedras, fez-se à vida depois do regresso da guerra. Andou pela Europa e Brasil, até se fixar em 1975, nos EUA, onde hoje vive (em Nova Ioprque) e que é a sua segunda pátria.



Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Susetor do Xime > Carta do Xime  (1961) > Escala de 1/50 mil > Posição relativa do Xime e Darsalame (Baio) onde o pelotão do João Crisóstomo (alferes) e do António Nunes Lopes (furriel) sofreram uma violenta emboscada, em 1966, e tiveram um comportamento heroico... Na zona de Poindom / Ponta do Inglês, havia população que cultivava as bolanhas, na margem direita do R Corubal e que "apoiava" a guerrilha... Também eu ali conheci o inferno, três ou quatro anos mais tarde, em 1969/71... (LG).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2015).


Praia de Porto Dinheiro

por Luís Graça (*)


Finisterra,
pórtico do tempo,
és gare, 
és algar,
porto dos portos das Atlântidas perdidas!

Foste estaleiro de vasos de guerra,
galeões, naus e caravelas
por haver ou nunca havidas,
diz o livro antigo do almoxarife.

Hoje não se constroem mais catedrais,
nas tuas fossas submarinas,
nem moinhos de vento,
nos teus corais de recife,
nem traineiras de grosso cavername,
nas rampas das tuas arribas fósseis.

Dóceis
são as ondas do teu mar com que afagas
a pele 
e apagas
a púbis das raparigas.

Praia de  Porto Dinheiro:
o irresistível apelo das algas
que são as hormonas do mar,
espigas, valquírias, ninfas, najas, canibais,
que vêm do fundo dos tempos imemoriais
para seduzir os filhos dos homens,
inebriar as suas almas,
enlear os seus corpos.

Há olhos que perscrutam a linha do horizonte
e rasgam a colina de neblina, 
por detrás das Berlengas.
É de lá que vêm corsários,
monstros e mostrengas,
dinossauros,
loucos menestréis,
contadores de lendas,
mouras encantadas,
mercadores, invasores, conquistadores,
vikings, vírus,
e os bretões com o seu barco a vapor,
o Bateau ivre.

É de lá que vêm os portadores da peste, da fome e da guerra…
Mercator ergo pestiferus,
mercador logo portador da peste,
de que Deus nos livre!

Deste nomes de fêmeas
aos teus barcos
que são machos,
máquinas fálicas
de lavrar e violar
o vento, a água, o ar,
Jessica, Mafalda, Sofia,
Inês, Patrícia, Maria.

Formidáveis muralhas de palavras e moluscos
emparedam vivas as gentes, ribeirinhas,
na canícula desta tarde de verão
em que esperamos em vão
as hordas bárbaras,
ou tanto faz,
os soldadinhos de chumbo do Napoleão,
os mercadores fenícios,
ou as legiões romanas,
devidamente equipadas 
e alinhadinhas,
nas suas galeras feitas de legos.


Não sabemos quem devemos mais esperar,
se Drácula ou Drake, 
disfarçado da pérfida deusa Europa,
o deslizamento das placas tectónicas,
a erupção do teu gigantesco dinossauro,
o cobrador de impostos

em nome das tribos teutónicas, 
Moisés e a tábua dos dez mandamentos,
a bela e frágil deusa Atena,
o profeta Jesus Cristo 
ou o profeta Maomé,
o último guru do Vale da Sílica, 
ou simplesmente o carteiro 
que nos há-de trazer a carta a Garcia,
com a solução alquímica da vida,
o elixir da juventude,
o algoritmo da felicidade,

a chave do Euromilhões
ou a password do sítio
da gruta de Alibabá e os 40 ladrões.

Estou sentado na esplanada da tasca da Ti Augusta,
depois de saborear uma sopa de navalheiras,
e comer uma posta de arraia frita,
recuando ao tempo dos meus avoengos Maçaricos,
arrebanhados em terra 
para a demanda, por mar,  das Índias…
E aqui penso em como o mundo às vezes é tão simples,
se descartado das métricas todas
com que nos lixam a vida 
e nos roubam o sonho e a poesia: 
a econometria,
a sociometria,

a psicometria,
a biometria…

Dizem que aqui reinou o rei Midas,
o mesmo que transformava lagostas e algas
em barras de ouro.

Porto Dinheiro,
dos casais por detrás das tuas colinas,
até ao mar imenso,
por aqui andaram, labutaram, penaram, 
amaram, lutaram e naufragaram 
os nossos antepassados


Um dia há de desaparecer nas Américas
o teu último carpinteiro de naus, caravelas e traineiras.
Não sobreviveu à industrialização da construção naval,
nem à crise dos anos 30.
Morreu longe, na Califórnia,
longe, muito longe do teu porto de abrigo.

Maldita pátria,
mil vezes amada, 
e outras tantas odiada,
querida mátria
que tantos filhos pariste,

cruel frátria
que tantos irmãos rejeitaste!


Luís Graça

Lourinhã, Praia do Porto Dinheiro, 18/8/2011



(...) À memória dos meus antepassados Maçaricos,
marinheiros, mareantes, navegantes,
pescadores, mercadores, construtores navais... desde Quinhentos

Ao António Fernandes (Patas),
contrutor naval que morreu na Califórnia
E ao seu neto, e meu primo e camarada, Horácio Fernandes,
capelão militar em Catió e Bambadinca (1967/69). (...)

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13680: Manuscrito(s) (Luís Graça) (40): Selfies /autorretratos: o meu amigo F..., pintor, e eu... Queria que fôssemos, a salto, até Paris, em 1965...



Guiné > Região de Bafatá > Contuboel > Junho de 1969 > O fur mil armas pes inf Luís Manuel da Graça Henriques, CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71).

Fotos e texto: © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados.


Luís (*):

Eu tinha nascido no ano zero. 1945.
Lembro-me de teres escrito isso,
muitos anos depois, 
no catálogo da minha primeira exposição de pintura no SNI... 
Lembras-te, em 1965 ?!... 
Ainda pensámos em dar o salto até Paris, 
éramos vagamente existencialistas, 
anticolonialistas 
e anti-imperialistas, 
eu sonhava com Montmarte,
a boémia
e as copines das belas artes
(o meu lado mulherengo!),
enquanto tu devoravas o Camus e o Sartre!...
Tinhas a mania da filosofia e eu da pintura...
Não conseguimos convencer o nosso gestor de conta 
a financiar este inconsistente projecto de aventura.
Tu eras mais politizado 
e, sobretudo, mais realista do que eu:
– E os nossos pais ?
E a PIDE (, mais tarde DGS) à perna ?
E a Guardia Civil antes de chegares aos Pirinéus?
E os dez contos de réis para dares ao passador ?
E vais fazer o quê, em Paris ?
Trabalhar como maçon ?
E dormir no bidonville ?
E comer baguetes com marmelada ?

1945… 
Ano zero da idade atómica, 
escreveste tu no catálogo do SNI.
Hiroshima. 
O cogumelo. 
O horror. 
Mas também o fim da guerra. 
Libération!, proclamavam, eufóricos,  os franceses. 
O fim do pesadelo da ocupação nazi. 
O direito à esperança,
em toda a parte, incluindo a nossa terra.
O recomeço da humanidade… 
As palavras continuam a ser tuas,
que sempre tiveste muito mais jeito para a escrita do que eu,
e vinham no meu catálogo 
que até estava bonito,
não estava ?! ... 

Ah!, 1945, que raio de ano para se nascer, 
o fim de uma época, o início de outra… 
Que ilusão, meu amigo, 
tu que me chamavas o Renoir de Montemuro… 
só por que eu andava no 1º ano das Belas Artes
e fazia umas coisas démodées,
vagamente impressionistas,
já a caminho do abstracionismo... 
Enfim, aprendiz de Renoir, 
talvez imitador da Vieira da Silva,
de que só conhecia umas reproduções de má qualidade.
Ainda ganhei uns tostões com serigrafias,
havia gentinha com dinheiro fresco
que comprava tudo...

Na minha cédula pessoal, 
um nota a lápis já meio sumida,
letra talvez de regedor, de merceeiro, de padre 
ou de conservador do registo civil...
Qualquer coisa como 
mais uma boca com direito a senha de racionamento. 
Milho, açúcar, farinha, azeite… 
Havia racionamento de géneros por causa da guerra, 
a II Guerra Mundial. 
Lembras-te ? 
Talvez não,
nasceste depois, já em 47,
na Lourinhã (, se bem me lembro,)
já não apanhaste esses tempos que foram duros 
para os nossos pais e irmãos mais velhos.

Nesse mesmo ano e mês em que nasci, 
acabava de regressar da Índia 
(da Índia portuguesa, como então se dizia, 
englobando os territórios de Goa, Damão e Diu) 
o filho do francês
o cabo chefe da aldeia 
e um dos poucos que sabia ler, escrever e contar. 
Tinha uma pensão do ministério da guerra,
fora gaseado na Flandres, 
regressara tuberculoso e herói de La Lys. 
Admirava o Pétain, o Franco e o Salazar. 
Vociferava contra  a malta do reviralho,
os que eram contra a situação, como então se dizia. 

Era meu padrinho.
Por favores que lhe deviam 
(e deferências que lhe prestavam) 
os meus pais, 
nunca soube quais, 
nem nunca quis saber. 
Quando comecei a pensar pela minha própria cabeça, 
passei a detestar as relações de clientelismo e dependência 
que vigoravam na minha aldeia. 
Na minha aldeia da Serra de Montemuro, 
uma aldeia de pastores 
que não era muito diferente de tantas tabancas fulas 
que depois irei conhecer na Guiné, no Gabu… 
Ainda hás-de visitar a minha aldeia, 
num próximo verão em que fores lá cima ao Norte… 
Em agosto, no teu querido mês de agosto,
como tu lhe chamas,
num escrito, algures, que eu li no teu blogue…
Mas já nada tem a ver 
com a aldeida da minha infância
nem com as invernias agrestes daquele tempo.

Havia sempre festa na aldeia 
quando um filho regressava das colónias, 
mais tarde, do Ultramar. 
No nosso tempo, Ultramar, como bem te lembras. 
Quando puto, imagina, 
ainda sonhei ser missionário, 
e ajudar a converter os pretinhos 
lá nas missões de Além-Mar. 
Problemas de pulmões impediram-me de seguir 
essa vocação precoce...
Estás-me a imaginar de sotaina branca
e longas barbas pretas,
não estás ?! 
E acabar, santo e mártir,
frito no caldeirão de uma tribo de canibais!... 
Ah! Como era rica e delirante a nossa imaginação de putos!…
Não sei quem me metei essa ideia maluca na cabeça,
por certo o padre da freguesia, a catequista ou a professora...
Mas a serra de Montemuro,
Resende, Cinfães, Arouca, Castro Daire, Lamego,
deu muita gente para as colónias 
e depois para a guerra,
mas também para a emigração.

Em 45,  os tempos ainda eram bem duros, 
escondia-se, dos fiscais do Governo, 
na serra, nas minas,
o milho, os cabritos e os anhos,
como sempre se escondera
de todos os invasores e usurpadores. 
Isso contavam os meus pais. 
Mesmo assim fazia-se festa rija. 
O foguetório não era como hoje, 
nesse tempo era um luxo. 
Lançavam-se uns petardos, 
de pólvora seca,
não havia dinheiro para mais nada. 
Só no São João,
era a altura em que se fazia algum dinheirito. 
Os cabritos e os anhos do São João
ajudavam a compor o tísico orçamento das gentes da minha aldeia. 
Iam para o Porto, de comboio, pela linha do Douro, 
ou até nos barcos rabelos, 
embarcados no ancoradouro de Porto Antigo,
à boleia de algum patrão, amigo, compadre ou conhecido.
Ainda não havia as barragens, 
e o Douro era belo, puro, duro e selvagem… 
Hoje está completamente amansado.

O francês, meu padrinho, emprestava dinheiros a juros. 
Era o banqueiro do povo, diríamos hoje. 
Negociante de gado ou, melhor, intermediário.
Antes disso, ganhara muito dinheiro
no garimpo e no contrabando do volfrâmio,
com um sócio de Moncorvo,
seu antigo camarada de armas,
também "francês". 
Era, além disso, o dono da única mercearia da aldeia, 
com um anexo, misto de café e tasco, 
onde se podia ouvir a Emissora Nacional, 
através do único rádio existente ali e nas redondezas… 
Enfim, uma espécie de rádio, uma galera… 
Ele era engenhocas. um homem de vida, 
e, sobretudo, dava-se bem com gente graúda: 
por exemplo, um tal major de Porto Antigo, 
que, segundo se dizia, descendia do Serpa Pinto 
e estava bem colocado nos meios políticos e militares da época. 
A esposa desse tal major mandava cartas ao Salazar, 
contava a minha mãe, sempre atenta a 
(mas não menos temerosa de) 
os fios com que se costurava o poder. 
Nem por isso o meu padrinho metera uma cunha 
para livrar o filho da tropa,
durante a II Guerra Mundial. 
O rapaz esteve em Goa, como expedicionário,
com muito orgulho do pai 
e maior mágoa da mãe.

Já doente, com setenta e muitos anos, 
o meu padrinho soube da minha partida para África,
em 1968,
depois de eu ter chumbado em Belas Artes.
Eu nunca lhe pedira nada,
e muito menos agora 
lhe iria pedir que me safasse de ir parar à Guiné. 
Nem ele era homem
para aceitar um pedido desses, 
mais do que humilhante, 
inconcebível, para ambos.

Proibi, inclusive, os meus pais de o fazerem por mim. 
Tinha a mania dos princípios, dos valores, da palavra dada,
e da coerência, 
coisas que hoje não vejo ser valorizadas 
pelos mais novos, 
por exemplo os meus filhos e sobrinhos.

Quando voltei, deficiente, no verão de 1970, 
já ele tinha acabado de morrer. 
Ele e o Salazar,
que eu penso que ele nunca terá conhecido pessoalmente,
mas de quem era um admirador completamente acrítico.
O seu maior desgosto na vida 
terá sido um dos netos 
que devia seguir as peugadas do pai, 
advogado no Porto, bem de vida. 
Numas férias de verão, em meados de 60,
o neto ficou em Londres, a lavar pratos,  
e em setembro estava na Suécia. 
Foi dado como refratário ou desertor, 
não te sei dizer ao certo, 
que eu de RDM fiquei farto até aos cabelos. 
Como estava a estudar na Faculdade de Direito,
em Coimbra, 
beneficiava do adiamento da data de incorporação,
tal como eu, de resto.
Eu sei que nessa época ninguém escapava à guerra, 
até filho de general era mobilizado, diziam. 
Nunca conheci nenhum, 
nem general nem filho,
a não ser o Schulz e o Spínola,
mas não sei se esses tinham filhos em idade de ir para a tropa.
Imagino que, na pior das hipóteses, 
ficariam na guerra do ar condicionado: 
em Bissau, em Luanda, em Lourenço Marques…

O avô, pelo menos publicamente, 
viu na traição do neto uma desonra para a família,
e para a terra,
que ele,  abusivamente, considerava
uma extensão da família. 
Coimbra, a república dos estudantes, 
dera-lhe a volta à cabeça, lamentava-se. 
Para mais era o seu neto querido, 
o mais inteligente, 
o mais parecido com ele.
Rédea comprida e chicote curto, eis a desgraça
concluía o meu padrinho, 
quando o fui visitar, nas minhas férias em julho de 1969. 
Sua bênção, padrinho!
foram as primeiras palavras que lhe disse, 
desde há anos… 
– Já o pai não prestava, 
era um fraco
arrematava ele, entre dois ataques de tosse. 
As melhoras, padrinho! – 
foram as últimas palavras que lhe dirigi… 
Julgo que eram sinceras, 
que nada tinham de cínico. 
Impressionou-me a sua decadência, 
a sua descida do pedestal, 
desgastado pela doença,
acabrunhado pelos acontecimentos dos últimos tempos… 
A família a desmoronar-se,
o Salazar a morrer,
a Pátria a esvanecer,
a aldeia a minguar com a emigração… 
Não podia ouvir falar do Marcelo Caetano, 
que era para ele o coveiro do Estado Novo.
Ele próprio morreria, na aldeia, um ano depois,
respeitado mas não amado. 
Durante décadas fora pai, padrinho e patrão, 
um verdadeiro capo,  cabo chefe,
de uma aldeia serrana do nosso velho Portugal…
Era um régulo, se quiseres...

Gustavo, o neto do meu padrinho, 
ainda me escrevera um dia para o meu SPM,
quando eu estava em Nova Lamego.
Éramos amigos, 
ou melhor, mais conterrâneos do que amigos, 
tínhamos brincado juntos, quando garotos, 
nas férias de verão. 
Havia aquela cumplicidade de putos,
pesem embora as diferenças sociais.
Estudara em colégio particular, 
vivia no Porto, na Foz, em zona fina, 
passava esporadicamente férias na aldeia. 
Agora, em Estocolmo, na Suécia, 
militava num grupúsculo marxista-leninista qualquer 
e angariava dinheiro para o PAIGC. 
Dinheiro que tanto servia para comprar livros e medicamentos 
como armas e munições, questionava-me eu. 
Irritou-me a sua missiva, 
cheia de metáforas, 
clichés, 
prosápia,
slogans,
frases pomposas, 
retiradas do livrinho vermelho do camarada Mao 
(Devo dizer-te que sempre fui mais sinófobo do que sinófilo)…

As minhas próprias simpatias iniciais pelo PAIGC,
algo quixotescas,
guevaristas, 
desvaneceram-se 
com os imperativos da camaradagem na caserna 
e a prova de fogo na  frente de batalha. 
Não se podia objetivamente estar do lado de cá, 
fardado de camuflado,
e equipado com a G3,
a comandar 30 homens,
e ser-se um simpatizante, 
vagamente romântico, 
daqueles que nos combatiam,
de Kalash na mão
(e que nós combatíamos, objetivamente falando)… 
Além disso, chocavam-me os métodos de terror
usados pelo PAIGC 
contra os fulas, na zona leste.
Fiz alguns amigos guineenses,
quando passei pela região do Gabu,
em tabancas onde estive destacado
(Não me perguntes quais,
que os nomes varreram-se-me da memória)...

Nunca lhe respondi. 
Achava-o um puto mimado, burguês e provocador. 
Não me admirei de o vir a encontrar,
depois do 25 de Abril, 
num dos partidos do poder. 
Andará hoje  (ou andou) por Bruxelas,
segundo me disseram. 
Tinha-se casado com uma sueca, 
mas já estava divorciado nos finais da década de 1970. 
Secretamente, invejava-lhe a sorte, 
ele ali no bem bom da Suécia 
e das suecas louras, de olhos azuis,
que faziam parte do nosso imaginário de machos latinos… 
e eu a gramar a pastilha
de uma comissão de serviço militar na Guiné. 
Achei que o mundo não era justo,
mas mesmo assim não me podia queixar,
estava vivo,
e os primeiros tempos, 
passados entre Bafatá e Nova Lamego,
até nem foram maus de todo. 
Ainda fiz o gosto ao dedo 
e pintei alguns quadros 
que até tiveram um ou outro comprador. 
Outros ofereci, 
a um família de comerciantes
cuja casa costumava frequentar,
e que tinha uma filha que ainda andei a catrapiscar. 
Mas depressa percebi que esgotara o meu filão artístico. 
Afinal o teu Renoir nunca passara da cepa torta,
uma deceção...
Nunca me perdoei, de resto, ter chumbado nas Belas Artes
e de ter sido chamado para tropa...

Passei por uma crise existencial,
ou lá o que queiras chamar, não sou psicólogo,
ainda tive, uma vez, 
uma única vez, 
depois de ter despejado uma garrafa de uísque no bucho, 
a pistola Walther apontada ao céu da boca.
Senti a atração da morte, 
a vertigem do nada,
a comiseração da autodestruição,
a autopiedade...
Mas, mesmo anestesiado, 
era demasiado cobardolas para resolver, 
com um tiro mortal, 
as minhas contradições, 
pequeno-burguesas, dirias tu em 1965,
agravadas por uma idiota dor de corno.

A Flora, 
que ainda tu ainda chegaste a conhecer, 
no tempo da minha/nossa famosa exposição do SNI, 
a bela menina-família do Funchal, 
que estava a estudar serviço social, 
ali no Campo de Santana, em Lisboa, 
tinha-me trocado...
por um javardo de um herdeiro de uma fortuna venezuelana… 
Ainda trabalhara uns tempos,
na Misericórdia de Lisboa, 
num dos projectos de realojamento 
de população de um bairro de lata. 
Não esqueço a última carta que ela me mandou, 
de despedida. 
Era um encanto de miúda, 
delicadíssima, 
linda de morrer,
com pele de veludo e blusinhas de renda,
mas com pouca margem de decisão 
em relação à sua vida pessoal.

O clã é sempre quem mais ordena. 
O pai, tanto quanto percebi, 
era um homem do regime, 
da média burguesia funchalense, 
mas com problemas financeiros, 
por negócios mal sucedidos, 
na área do import-export, 
bananas, frutas tropicais, flores, ou coisa do género. 
Família numerosa, católica, um bando de filhos. 
Nunca iria dar certo o meu casamento com a Flora, 
nunca pensara, de resto, em pedir-lhe a mão, 
muito menos depois de conhecer o inferno na terra 
que foi a Guiné. 
Não me lembro de alguma vez lhe ter pedido a mão, 
achava-me no direito de a ter como namorada 
e madrinha de guerra e confidente...
Fui surpreendido 
quando um dos meus amigos do Funchal 
me veio lembrar que seria bom decidir-me, 
porque havia mais pretendentes na fila...
Foi um choque,
não estava preparado para tomar nenhuma decisão, 
muito menos para decidir 
quem deveria ser a mãe dos meus filhos. 
Estava na Guiné,
estava na guerra,
a milhares quilómetros da minha terra,
sem saber o que fazer ao certo da minha vida… 
sem saber sequer se iria chegar à meta, 
que era cumprir a minha pena, de 21 meses, 
de “perigos e guerras esforçados, 
mais do que prometia a força humana”, 
a pena a que fora condenado 
sem ter cometido nenhum crime… 
a não ser o de ter nascido em 1945, em Montemuro...
No mínimo, queria chegar à meta,
inteiro, de cabeça, tronco e membros.
Ainda tentei telefonar-lhe,
dos correios de Nova Lamego,
horas a fio à espera por um ligação para Lisboa... 
Em vão. 
A chamada caiu, 
nunca mais tive a conversa que gostaria de ter tido 
com a minha noiva,
que afinal nunca o fora. 
Acabei, já em Lisboa, bancário,
por casar com uma galega de Orense, 
que nunca chegarás a conhecer, 
pela simples razão de que já fomos,  
cada um de nós,
à sua vida.
É apenas a mãe dos meus filhos.

Depois, meu amigo, 
veio o rol de desgraças que me aconteceram:
a descida aos infernos,
a cafrealização, à maneira do Rimbaud, 
a porrada do segundo comandante no Gabu,
a ida para o sul, 
de casttigo, em rendição individual,
a mina anticarro 
que me mandou, mais de um ano e tal, 
para o estaleiro,
com passagem pela Estrela, Alcoitão, Hamburgo.
Poupo-te os pormenores,
um dia contar-tos-ei,
se tiveres tempo e pachorra,
eu próprio só agora ando a desenterrar esses esqueletos
guardados no armário da minha memória…

Tentei esquecer a Guiné durante décadas,
(o que é difícil quando se tem uma prótese...)
até ao dia em que, 
não sei porquê, 
por mero acaso,
vi o teu nome na Net 
a tua cara, 
os teus óculos, 
vi o teu nome associado a Bambadinca, 
um dos poucos sítios,
de passagen obrigatória para malta do leste,
de que guardava algumas, poucas, boas memórias…
Reconheci-te, numa foto antiga,
sem barbas, 
em tronco nu,
de óculos esfumados,
a G3 ao ombro,
em pose turística...

Em suma, desencontrámo-nos na Guiné. 
Eu nem sequer sabia que tu também lá tinhas estado,
podíamos ter ido a sorte de dar de caras um com o outro,
em Bafatá,
onde devemos ter estado alguma vez,
no mesmo dia e hora,
embora em sítios diferentes.
Mas achei piada ao teu jogo de palavras,
no mail em que me respondeste ao meu olá:
“o Mundo é Pequeno 
e a nossa Tabanca … é Grande”.

Um dia prometo telefonar-te
para marcarmos um encontro
e matar saudades.
Preciso de ganhar coragem.
Confesso que tenho medo de revisitar o passado.
E por agora ando a recuperar o tempo perdido,
depois de uma vida de idiota atrás de um balcão de um banco.
Até lá, um alfabravo,
como vocês dizem,  
do tamanho do nosso Rio Geba.
Parabéns pelo teu blogue
de que sou apenas um fortuito visitante.

Assina este relambório
o teu falhado amigo pintor, 
e, pior do que isso,
frustrado companheiro da viagem a salto
até Paris, 
viagem que nunca passou de um devaneio
de umas tantas tardes de verão 
em que estivemos, juntos, em 1965, 
no SNI, o Secretariado Nacional de Informação,
ali no Palácio Foz,
a preparar uma exposição que foi a minha vernissage,
entre copos de ginjinha nos Restauradores. 

Teu F...
o Renoir de Montemuro.

PS – Nunca mais voltei aos Restauradores 
para beber uma ginjinha… 
E perdi-te o rasto depois que fomos cada um para seu lado.. 
Mas pago-te uma ginjinha, com todo o gosto,
quando voltar a Lisboa.
Afinal fiquei com uma boa pensão de DFA,
a par da  reforma do banco.

Nota de L.G.:

Ainda estou para beber a tal ginjinha,
prometida pelo meu amigo F...
Nunca mais deu sinal de vida, 
depois que falámos longamente ao telefone,
há uns anos atrás.
Deve ter mudado de mail e de telemóvel.
Sei que adora(va) viajar.
E que tem(tinha) um filho, 
casado, arquiteto, 
a viver nos arredores de Paris. (**)

Adaptação livre, fixação e revisão de texto: LG


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Notas do editor


(*) Último poste da série > 26 de setembro de  2014 > Guiné 63774 - P13654: Manuscritos(s) (Luís Graça) (39):Portugueses pocos, pero locos... Ou como vemos (e somos vistos por) os outros...O que fazer com tantos clichés, estereótipos e preconceitos idiotas ? E não se pode exterminá-los ?

(**) Vd. também os postes já publicados da série "Selfies / autorretratos":

22 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13634: Selfies / autorretratos (1): por que é que fomos à guerra... (Vasco Pires / Luís Graça / Francisco Baptista / José Manuel Matos Dinis)

22 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13638: Selfies / autorretratos (2): filho único, com pai emigrado no Canadá, podia também ter saído do país, aos 17 anos... Passei pela universidade de Coimbra e lutas académicas, tendo decidido participar na guerra colonial, contrariado e sabendo ao que ia (Manuel Reis, ex-alf mil cav, CCAV 8350, Guileje, 1972/74)

30 de setembro de 2014 >Guiné 63/74 - P13669: Selfies / autorretratos (3): Em 1966 o meu pai preparou tudo para que eu fosse a “salto”, seguindo assim o trilho de milhares de portugueses (Juvenal Amado)