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sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Guiné 63/74 - P14276: Notas de leitura (683): “De Passo Trocado ASP”, por Carlos Vale Ferraz, Bertrand Editora, Fevereiro de 1985 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Maio de 2014:

Queridos amigos,
Temos já uma literatura que se espraia entre a recruta e a especialidade mas cujo núcleo é a guerra e os seus fantasmas, essa literatura parece deter-se propositadamente no regresso, a partir daí faz-se um silêncio púdico. Talvez porque esses regressos tenham sido em larga medida dolorosos, ziguezagueantes, confusos, tudo mudara em nós e as pessoas do nosso ambiente incomodavam-se com as histórias que trazíamos de longe.
ASP veio da Guiné e apanhou o 25 de abril em cheio, foi alterando os seus esquemas mentais e optou por uma situação extrema. É a história de um de nós, que andou sempre de passo trocado.
Um convite à literatura dos regressos, praticamente inexistente.

Um abraço do
Mário


ASP, uma história de quem regressa da guerra e vive de passo trocado

Beja Santos

O romance chama-se “De Passo Trocado ASP”, quem o escreveu foi Carlos Vale Ferraz, autor de “Nó Cego” e “Soldadó”, aqui largamente versados. Ao que se sabe, dado à estampa pela Bertrand Editora, em fevereiro de 1985, não obteve a notoriedade dos títulos atrás citados.

O autor fala-nos concisamente da trama, com malícia e ironia: “ASP é António Silva Pereira um homem que regressa duma guerra que mal acaba em África e mal recomeça ao pé da porta. Um homem que, sempre forçado pelas circunstâncias, rebenta as amarras que o ligam à segurança do cais e parte sempre para mais longe quando gostaria de permanecer onde está. Dentro e fora. Longe e perto. Receoso e esperançado. Um homem que gostaria de ser outro e viaja num barco fustigado pela tempestade e do qual se julga terem já saído os ratos e alguns passageiros clandestinos.
A história que aqui se conta é a de ASP, de mais ninguém! Não é a do barco, nem dos ratos, nem dos pilotos, nem mesmo dos passageiros clandestinos. É simplesmente a história de quem foi a guerras que não declarou, viveu como pôde os dias em que são férteis as revolução e se cruzou com os acontecimentos de passo trocado”.

É sabido que a literatura de guerra anda preferencialmente centrada na comissão militar propriamente dita, na experiência do relator e no registo do ambiente que o cerca; em muitos casos, há descrições preambulares, conta-se a recruta e a especialidade e o tempo que precede a mobilização e os eventos associados à partida, num barco ou num avião. O que é raro neste ramo literário é contar o que se passou depois, mal se regressou. Não é difícil perceber porquê, foram tempos de desconforto, ninguém percebia muito bem a nossa história bélica africana, aquelas colunas e emboscadas, aquele viver em aquartelamentos com gerador ou petromax, aquelas flagelações e aqueles golpes de mão, quem nos ouvia não podia compreender, tratava-se de um universo desconhecido, era uma guerra que não lhe entrava pelas portas adentro, vinha filtrada pelos meios de comunicação social, em suma era um desassossego todo aquele relato, toda aquela exaltação que trazíamos ainda nos poros, no coração e na boca.

Em termos arquiteturais da escrita, ASP é um cidadão que bastante protestou na sua jornada universitária, a tal ponto que engenheiro foi malhar na infantaria. No regresso, é prontamente acomodado pela ordem vigente, passa a circular no meio de comendadores da indústria. Trouxe uma grande amizade da guerra, o Picolo, “Herdeiro de família com origens perdidas no tempo”. Cai no meio de uma festa tipo bacanal em Cascais, Picolo brada pela conversão: “Irmão, estamos aqui como passageiros da classe de luxo do Titanic, enquanto ele se afunda. É o nosso último baile, o adeus ao mundo em que nascemos e fomos criados. Quando soarem as campanhas de alarme e o comandante anunciar que o navio está a ir a pique, então cada um de nós descerá aos decks inferiores em busca das baleiras de salvamento”.

Combateram na Guiné, na Companhia de Caçadores Número Mil Oitocentos e Tal, foi aí que se afeiçoou a Picolo Nunes de Almeida, eterno brincalhão, menino-bem, finalista de Direito e repetente vezes sem conta. Quando desembarca, deu-se o 25 de Abril, tem a família à espera, vai de Mercedes para casa. O sogro é o comendador Mattos, veio de trolha, fez-se a pulso. O compadre Alcides, também comendador, dá-lhe lugar como engenheiro-chefe da Metalomecânica Alcides. Depois de umas férias no Algarve, pagas pelo sogro, apresenta-se no trabalho e é apresentado aos quadros, a agitação já reina na fábrica. ASP vai falar aos trabalhadores: “Tinham o aspeto que se imagina, mãos pretas de óleo, barbas crescidas e fato-macaco como segunda pele. ASP foi reparando nos seus braços tatuados a tinta azul: Angola – 1961/63; Guiné – 1963/65; Moçambique – 1965/67, o ferro a marcar o ano e o local da comissão na guerra. Por vezes, acrescentavam pormenores, coração atravessado por uma seta e amor de mãe, em legenda; um mapa, o nome da sua tropa, as mascotes, gatos do Niassa, cágados de Buruntuma, cobras de Mueda, escorpiões daqui e dali, desejos de ir e voltar. ASP havia passado por alguns desses buracos da manta rota do império e não pode evitar sentir por eles uma certa irmandade”.

O comendador Alcides está fulo com o despautério de tanta petição, querem saber de dinheiro, querem reuniões regulares, há ameaças geladas de greve. ASP encontra uma saída no meio da alta tensão, sugere que se constitua uma comissão de representantes dos trabalhadores e dos quadros, e que se apresente um relatório, a CEAR – Comissão Encarregada de Apresentar o Relatório. Alcides está de cabeça perdida quando lhe anunciam que vem à fábrica pessoal do sindicato para uma sessão de esclarecimento, não foi fácil acalmá-lo nem ao operário a quem ele arrancou um autocolante estampado no peito. Picolo funciona como uma consciência de ASP, as recordações da Guiné vêm sempre ao de cima. E acabamos por ser introduzidos no ambiente da fábrica, é-nos criada uma certa familiaridade com os quadros, a secretária de ASP, os representantes dos trabalhadores. Vem o 28 de setembro, a dinâmica revolucionária acelera. As discussões com o sogro sobem de tom. Alcides abandona a fábrica, ASP fica ao leme, vivem-se tempos exaltantes, ninguém conhece a verdade do amanhã, Fred Mascarenhas entra em cena, é o protótipo do adaptativo, o molúsculo que tem sempre a cor da ocasião.

Chegou o tempo da reconversão, ASP procura levar a fábrica a bom porto, os militares vão chegar, chegou a hora da intervenção, ASP está convicto de que age bem, adere à revolução, passou a acreditar nela. Conversa com Picolo, este graceja, desengana-o, vem para aí um refluxo devastador. A sua vida familiar é quase neutra, entretanto nasceu-lhe um filho. A mulher vai ser fulminada por um cancro, felizmente que existe o trabalho, os operários acreditam nele, no seu esforço por manter a fábrica de pé. E veio depois o descarrilamento, ASP, no termo da revolução, é sujeito a inquéritos, suspenso e depois readmitido, se bem que marginalizado. Gradualmente, ASP entra na clandestinidade, processo que Carlos Vale Ferraz manuseia com o extremo cuidado, dando-nos os claros-escuros da nova personalidade desse ASP que não acredita nos novos triunfadores e aceita fazer a revolução com bombas e tudo. A clandestinidade é absoluta, ASP desapareceu num bairro da lata, mudou de identidade, trabalha numa oficina clandestina, deixa mesmo de ter acesso ao filho, educado pelos sogros. Com todas as cautelas, visita o cemitério onde vai “conversar” com a defunta mulher, sente-se já muito esquecido da antiga personalidade e dúvida que consiga adaptar-se à vida à face da lei (…) ASP abandona-se a esse tempo de águas paradas no rio, fumos serenos de fábricas a fechar, sons de ecos infinitos. Afinal, toda a sua vida tem sido uma progressão contínua de passo trocado. Sem nenhuma dor na consciência, constata que fora assim, deste estudante inconformista, passando por resignado gestor de fábrica, até revolucionário. Em “De Passo Trocado ASP”, Carlos Vale Ferraz deu-nos um poderoso fresco social e humano mesclado de densidade dramática, da atmosfera cínica e cruel em que se movem os alcatruzes da nora, entre as escolhas políticas e as do coração.
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14264: Notas de leitura (682): "Guerra Colonial - Fotobiografia", por Renato Monteiro e Luís Farinha, Publicações D. Quixote (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10498: Notas de leitura (415): Uma viagem à Lapónia que ficou por Bissau (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Agosto de 2012:

Queridos amigos,
Sem nenhum constrangimento acabo de deitar no balde do lixo o arremedo poético que deu ensejo ao texto que vos ofereço.
Tudo aquilo me sabia a água chilra, a uma inquietação de quem não sabia comunicar que estava punido e só veria a família um ano e meio depois. Durante anos, atirava as folhas amarelecidas de uma gaveta para outra, a supor uma pirueta imaginativa para a sua aplicação. Prestes a reformar-me, chegou a hora de vazar no balde do lixo todas as insignificâncias. Só que foi neste espaço que tudo publiquei à volta da minha comissão militar, intui que fazia todo o sentido passar-vos a lembrança de um tempo onde, meu Deus, até se invocou a Lapónia a pretexto de um saboroso relato de viagens.

Um abraço do
Mário


Uma viagem à Lapónia que ficou por Bissau 

Beja Santos

Em Março de 1969, fui submetido no hospital militar em Bissau a uma intervenção cirúrgica, tratou-se de uma remoção de cartilagem por detrás do joelho direito que me tornava o caminhar cada vez mais difícil, dava tombos a toda a hora e demorava a conciliar o sono, tais e tantas eram as dores, fruto de um grande tombo de bicicleta, ocorrido largos anos atrás. Estava recém-chegado a Bissau, a ameaça de dois dias de prisão simples tornara-se uma realidade, detido já eu estava, desfazia-se era o sonho de ter férias, singularidade que me levou a viver non stop a comissão militar na plenitude, fora curtas andanças na capital provincial. Fodé Dahaba era visitado todos os dias, nem ele nem eu tínhamos saído do estado de choque que fora o fornilho que o acidentara para o resto da vida, nas fimbrias de Madina, no Cuor profundo, no mês anterior. Sentia-me triste, ainda não tinha recebido a notícia da destruição de Missirá, irá acontecer em 19 de Março. A atmosfera mais aprazível que me era dado viver naquela Bissau era no Pidjiquiti, a olhar aquele bulício de embarcações e vozes, aquele odor da vazante que impregna a atmosfera e que sobe até mesmo à Pensão Central. Aquele magneto que se chama Ilhéu do Rei sempre ao fundo, alargando a panorâmica, era fascínio permanente. Ali sentia-me sereno, ali fazia contas à vida. E ali poetei, imprevistamente.

As circunstâncias em que escrevi “Uma viagem à Lapónia” prendem-se com a dificuldade que sentia em comunicar telefonicamente aos entes mais queridos que não iria vê-los antes de 1970. Sentado num banco, acompanhado de um caderno, lia uma obra de Regnard sobre uma viagem à Polónia, em pleno século XVII, fora uma prenda de Natal do Ruy Cinatti e deu-me para garatujar uma sentimentalidade, era expediente de que me socorria para ganhar coragem para informar, via telefone nos CTT, os factos daquela punição devida a “não ter apresentado, durante uma visita do comandante-chefe, o aquartelamento nas melhores condições de organização e asseio”. E assim se escreveu: “Toda esta inquietação de viajar, não do cais do Pidjiquiti que me pode levar até um ponto do mapa iluminado a petromax e três fiadas de arame farpado, nada tem a ver com este Geba prateado pela fornalha solar; estou é impaciente em partir, fazer uma viagem na Lapónia, estou a ler um relato de um viajante que por lá andou em 1681 e que fala da tundra, de iglus, trenós e campainhas que quebram o silêncio nas noites geladas, mas é neste cais do Pidjiquiti que está tomada a decisão: hei de viajar à Lapónia quando regressar desta terra de sede oleaginosa, talvez feito rapsodo de quem vai do Sol à Lua ártica, contar estas andanças dentro do capim, explicar o que são cibes, a mancarra e o fundo, como são coloridos os cemitérios pelos cajueiros em flor, como as casas podem ser cobertas de colmo ou chapas de polegada e meia. É curioso como o Cuor rima com suor ou, baixando a voz, amor.

Mas tenho que ir telefonar para Lisboa, este passeio pela Lapónia é um devaneio e nada mais, era o que faltava ensarilhar-me, petulante, com noites brancas e nevões suaves, quando estou a viver em plena época seca, era mesmo o que faltava pôr-me ao telefone a divagar sobre madrugadas lustrais, conversas com lapões risonhos, o que eu estou a olhar é para um rio de águas barrentas, taciturnas, que nem rumorejam em direção à foz. Tomavam-me como louco se dissesse: quero ir à Lapónia, não posso passar por Lisboa, é o melhor derivativo que encontrei para me sossegar da guerra, não se esqueçam que parti daí gentil moço, que nunca vira uma cobra verde ou uma surucucu, nem balas tracejantes, nem crianças com barrigas de fome, nem árvores majestosas desfeitas a tiro de canhão, muito menos sabia o que era o baga-baga, nem que estas guerras põem populações em fuga e dividem brutalmente as famílias.

Pronto, ponho termo ao devaneio, a Lapónia é uma mera curiosidade. Daqui a minutos pego no telefone, desdramatizo a operação, calo a raiva desta punição, vou falar de saudades, destas leituras tão inofensivas como seja uma viagem à Lapónia, no ermo da Suécia. Direi então que fui punido, coisa de pouca montra, contem comigo no termo da comissão, daqui a ano e meio. Sim, estamos todos bem, não se preocupem comigo. Dentro de dias volto a Missirá onde me sinto bem. Quantas saudades de vós! Esta noite escrevo. Adeus”

Terá razão o leitor em perguntar a que propósito vem este papelucho se já se escreveu tudo quanto se passou durante a dita comissão. Para ser honesto, o arremedo poético andou de gaveta em gaveta durante a confecção dos livros, que começaram em 2006 e que já acabaram. É que espero em breve reformar-me, toda a papelada saiu das gavetas, no essencial apontamentos, faturas e documentos de vária índole têm vindo a encher o caixote do lixo. E apareceram umas folhas amarelecidas e deu-se conta que o arremedo poético já não me pertencia. Mas se é verdade que nem tudo pode ficar escrito, apaziguou-me passar a limpo o garatujado no cais do Pidjiquiti e dar-lhe publicidade aos meus confrades. Coisa curiosa, é que nunca me apeteceu ir à Lapónia. Mas gostei muito de ler o que Regnard escreveu, sentir aqueles nevões na época seca de 1969. Ponto final sobre uma viagem que não se fez.
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Notas de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10485: Notas de leitura (414): "História da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936", por René Pélissier (3) (Mário Beja Santos)

domingo, 17 de abril de 2011

Guiné 63/74 - P8118: 7º aniversário do nosso blogue: 23 de Abril de 2011 (4) : Não é o filho pródigo de volta a uma casa que tem como sua! (António Matos)


1. O nosso camarada António Matos, ex-Alf Mil Minas e Armadilhas da CCAÇ 2790, Bula, 1970/72, enviou-nos, em 15 de Abril, a seguinte mensagem:
Um pequeno texto em tom de olá a todos!
Não! Não é o filho pródigo de volta a uma casa que tem como sua;
que ajudou a construir enquanto teve tijolos disponíveis;
que refez uma ou outra parede que se inclinava perigosamente desacautelando a integridade intelectual bem mais do que a física;
que se ausentou para outras paragens;
que tentou novas abordagens que a expectativa espicaçava;
que se emociona num crescendo à medida que o tempo passa e lhe vêm à memória cenas duma vida ultrajada;
não! não! não!
Não é um filho pródigo quem aqui vos vem visitar por um mero sentimentalismo bacoco a pedir meças às exaltadas consciências de outros pródigos mais ou menos bacocos também...
Em 10 de Novembro de 1971, comemorei o meu 23º aniversário.
Em vez dum bolo tive um prato de arroz com arroz;
Em vez de velas, iluminava aquela noite um petromax;
Em vez do frio invernoso a que estava habituado nos Novembros, tive uma noite quentíssima...
Em vez de palmas e alfarreás, tive um tiroteio!

Passaram-se 40 anos e sou localizado por um ex-furriel do Esquadrão das Panhards de Bula que me socorreu em Augusto Barros naquela longínqua noite...

Os bons demónios que há em nós também dormem e também se agitam quando sobressaltados...

Comoveu-me o Leonel Olhero pela gentileza do seu contacto via facebook naquele dia de 2010...

Daí a ser convidado para o almoço de confraternização das suas gentes, foi um ápice!

Estive lá (Coimbra) e foi muito bom reconhecer outros camaradas como o ex-alferes Barbosa (O Bigodes) e o ex-capitão Ruben.

O ambiente e o espírito foi-me familiar, razão pela qual considerei um verdadeiro clik para vir aqui postar este testemunho em prol das amizades feitas naqueles tempos e que perduram, pesem embora as 4 dezenas de anos de silêncios que as tecnologias, finalmente, desfizeram.

Abraços,
Alf Mil Minas e Armadilhas da CCAÇ 2790
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:
16 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8113: 7º aniversário do nosso blogue: 23 de Abril de 2011 (3): Que rica é a nossa Tabanca (Albino Silva)

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20858: (De)Caras (152): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal? Um "agente duplo"? - Parte I (Depoimentos do embaixador Nunes Barata, e do nosso saudoso camarada Carlos Geraldes)



Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Piche > BCAÇ 506 > Abril de 1964 > Da esquerda para a direita: (i) o alf mil António Pinto; (ii) o  Mário [Rodrigues]  Soares, comerciante de Pirada e "agente duplo", segundo era voz corrente; (iii) o alf méd médico (e grande intérprete do fado de Coimbra) Luiz Goes (1933-2012( ; e (iv) e o alf mil Spencer.

Foto (e legenda): © António Pinto (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Zona leste > Região de Gabu >  Setor L6 > Pirada > c. 1973/74 > 14 de Fevereiro de 1974, ten cor cav, cmdt do batalhão e o célebre comerciante  Mário Soares (este em primeiro plano: dizia-se que tinham contactos privilegiados com os "dois lados da guerra", as NT e o PAIGC, ou pelo menos, as autoridades senegalesas).

O ten cor cav Jorge [Eduardo Rodrigues y Tenório Correia] Matias, cmdt do BCAV 8323/73, que estava sediado em Pirada (, o comando, a CCS e a 3ª C/BCAV 8323/73) faz aqui uma homenagem, emocionada aos bravos de Copá, o 4º pelotão, da 1ª C/BCAV 8323/73, comandado pelo alf mil at cav Manuel Joaquim Brás, e a que pertencia o António Rodrigues, e reforçada por mais uma secção, do 1º pelotão, comandada pelo fur mil Carlos Eugénio A. P. Silva.

Foto (e legenda): © António Rodrigues. (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


I. O célebre comerciante de Pirada, Mário [Rodrigues]  Soares era uma figura "intrigante"... Conviveu com vários camaradas nossos, ao longo da guerra, como o António Pinto (*) ou o Carlos Geraldes(**)... Dizia-se que tinha relações privilegiadas com os dois lados do conflito, as NT e o PAIGC. Dizia-se inclusive quer era um "agente duplo", trabalhando para a PIDE/DGS e para o PAIGC. Ora, não temos provas disso. Está em causa a sua honra. 

Temos que ser cautelosos, não fazer juízos apressados sobre o comportamento dos comerciantes portugueses e outros (libaneses, cabo-verdianos...) que ficaram no mato, apesar da guerra. Em boa verdade, a tropa tinha tendência para pôr em causa a "lealdade" dos comerciantes, colocados num posição difícil no interior da Guiné.

Do Mário Soares sabe-se que tinha bons contactos no Senegal. E que  desempenhou o seu papel na história da indepência da Guiné-Bissau.  Foi através dele que o gabinete do Governador António Spínola consegiu chegar ao Leopoldo Senghor (como se depreende de um histórico depoimento do embaixador Nunes Barata, ex-alf mil, na altura, colaborador íntimo de Spínola,  de que a seguir reproduzimos um excerto; por lapso, chama-lhe António Mário Soares)...

Não sei o que é feito  dele, é provável que já não esteja entre o número dos vivos. Em 1974 já teria cerca de 40 e tal  anos, a avaliar pelas fotos acima reproduzidas,  Li algures (, já não posso precisar onde...) que ficou na Guiné, depois da independência, mas terá saído do país ainda no tempo do Luís Cabral, em novembro de 1975.  Sabemos, pelo Carlos Geraldes, que em 1964/65, era casado, tinha duas filhas e um filho e era natural de Lisboa. Luísa era o nome da esposa. A filha mais chamava-se Rosa, o filho do meio era José (e estudava em Lisboa) e mais nova, Eva Lúcia, tinha nascido em 11/9/1957.

Alguém dos nossos leitores ainda se lembra dele, do  Mário Soares ? Tem fotos e histórias dele ?

O seu nome era referido com muita frequência nas cartas que o Carlos [Adrião] Geraldes (1941-2012), ex-alf mil da CART 676 (Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66) mandava para casa, e de que foi publicada uma seleção no nosso  blogue, em 2009 (**).

O Carlos Geraldes conheceu o Mário Rodrigues Soares quando a sua companhia, a CART 676, chegou a Pirada, em 15 de outubro de 1964, vinda de Bissau (via Bambadinca, Bafatá e Nova Lamego). Vão tornar-se amigos. O Carlos passa a ser visita frequente da sua casa. E descreve-o logo nestes termos: "É uma excelente pessoa. Muito gordo, de bigodinho à brasileiro, mas sempre de boa disposição, irradiando simpatia na forma franca e directa com que trata toda a gente branca ou preta." (Pirada, 15/10/1964). E defendo-o das suspeitas de colaborar com o IN.

Estamos a reler as suas cartas, que nos ajudam a perceber melhor a personalidade e o comportamento deste comerciante português, "bon vivant", hospitaleiro, insinuante, amável, prestável, com um vasto capital de  relações sociais, a nível interno e até externo (com as autoridades e os comerciantes do outro lado da fronteira, no Senegal). Nesta I parte, selecionámos excertos das cartas para a família, do período de Outubro de 1964 a março de 1965, e em que o Carlos faz referências ao seu "amigo M. Santos", pseudónimo de Mário Soares.

Segundo a historiadora Maria José Tístar ("A PIDE no Xadrez Africano: Conversas com o Inspector Fragoso Allas", Lisboa, Edições Coilibri, 2017), o comervciamte  António Mário Soares, estabelecido em Pirada, na fronteira com o Senegal, seria  um "agente duplo":  informador da PIDE/DGS,  e ao mesmo tempo informador do PAIGC.

Contrariamente ao Rodrigo Rendeiro,  comerciante de Bambadinca,  que terá tido problemas logo a seguir ao 25 de Abril, pela sua ligação à PIDE/DGS, o Mário Soares terá ficado na Guiné independente mas terá "caído em desgraça" e sido expulso do país, um ano e tal depois, em novembro de 1975. (***)

A CART 676 foi mobilizada pelo RAP 2, partiu para o CTIG em 8/5/1964 e regressou a 27/4/1966. Esteve em Bissau, Pirada e Bissau. Comandante: cap art Álvaro Santos Carvalho Seco.


1. Depoimento do embaixador João Diogo  Munes Barata:

[Alferes miliciano na Guiné (1970); secretário e, posteriormente, chefe de gabinete do Governador da Guiné, general António de Spínola (a partir de Maio de 1971); adjunto diplomático da Casa Civil do Presidente da República, António de Spínola (Maio a Setembro de 1974),  tendo no desempenho deste cargo, colaborado no processo de descolonização; delegado do MNE na Junta de Salvação Nacional]

(...) Com essa ideia, portanto, com a ideia de avançar no processo de descolonização, o general tentou estabelecer contactos com o Governo senegalês e, através dele, com o PAIGC. Os primeiros contactos foram feitos através do chefe da delegação da PIDE/DGS [em Bissau], o inspector Fragoso Allas e por Mário Soares. Mário Soares, não o Dr. Mário Soares, mas [António] Mário Soares um comerciante de Pirada, um homem que se chamava Mário Soares, mas que era comerciante em Pirada, uma povoação fronteiriça da Guiné com o Senegal. Esse comerciante ….

Eu lembro-me de um dia estar no meu gabinete no Palácio e de o senhor Mário Soares ir lá comunicar que já tinha estabelecido o contacto com o lado de lá e que, portanto, se podiam iniciar as negociações para uma ida, para um encontro do Governador com o presidente Senghor. Houve previamente um encontro. O general Spínola foi duas vezes ao Senegal (acompanhei-o em ambas as visitas).

A primeira, para um encontro com o ministro senegalês dos Assuntos Parlamentares, porque evidentemente o presidente Senghor, na altura, ainda não sabia bem quais eram as ideias do general Spínola e não quis, evidentemente, romper as exigências protocolares e, como chefe de Estado encontrar-se com o governador de uma província, de uma colónia. E mandou um ministro. (...) (****)


2. Depoimento do nosso saudoso camarada Carlos [Adrião] Geraldes (1941-2012), ex-alf mil da CART 676 (Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66), que se tornou amigo do Mário Soares e visita frequente da sua casa... Reprodução de excertos das suas cartas com referência explícitas ao Mário Soares:


Parte I (outubro de 1964 - março de 1965) (*****)

Pirada, 15 de outubro de 1964


(...) Segunda-feira de manhã partimos para Pirada. (...)

Começámos logo por ser apresentados ao comerciante mais importante cá da terra, o Sr. Mário Soares, um grande amigalhaço de toda a tropa que por aqui tem permanecido. Acompanhado de um empregado que segurava um enorme cesto cheio de pão fresco acabado de sair do forno. Ali mesmo no meio da estrada, começou a distribui-lo pelos soldados que o recebiam boquiabertos de espanto. Não poderia haver melhor recepção de boas vindas. Um verdadeiro luxo.

(Daqui em diante, sempre que mencionar esta personagem, designá-lo-ei pelo pseudónimo, M. Santos, para não suscitar quaisquer parecenças, com a figura pública actual que todos conhecem) (...)

(...) Quanto à nossa casa é esplêndida. Tem um grande quintal, com um poço no meio e uma larga extensão cimentada debaixo de um enorme alpendre, encostado à casa, sob o qual tomaremos as nossas refeições, quando tivermos aqui a nossa Messe. A casa é fresquíssima e dorme-se aqui muito bem, pois não tem mosquitos! Faltam apenas os móveis, mas temos cá um carpinteiro indígena muito habilidoso que já nos está a fornecer mesas e cadeiras. Camas temos duas de casal, uma em madeira, outra em ferro, emprestadas pelo M. Santos. Os sargentos estão a dormir em camas de ferro militares, que trouxemos. (...)

(...) Quanto à luz eléctrica, por enquanto não está montada, embora tenhamos um gerador trifásico de 220 Volts, movido por um motor a diesel. Só estamos à espera de arranjar fio para fazer a instalação por toda a aldeia. Contamos que lá para Janeiro se possam pôr de lado os Petromax e se pense até na possibilidade de sessões de cinema com uma máquina de projectar do Sr. M. Santos.

É uma excelente pessoa. Muito gordo, de bigodinho à brasileiro, mas sempre de boa disposição, irradiando simpatia na forma franca e directa com que trata toda a gente branca ou preta.


É o nosso Anjo da Guarda. Todos os dias manda cá o criado dele, o Demba, com uma garrafa de água filtrada e um termos com cubos de gelo, para que nunca nos falte água fresca no quarto. É um indivíduo que, mesmo aqui, longe da nossa civilização, não descura todos os pormenores de conforto para criar à sua volta um ambiente requintado e de um bom gosto que se julgaria inacreditável encontrar por estas paragens. 

Vive como um nababo indiano rodeado por uma família tranquila (a esposa e duas filhas) e que, pelo menos, aparenta a mais completa felicidade. Um verdadeiro achado que vim encontrar aqui neste fim do mundo mas, estou bem em crer, quase princípio do Paraíso.

Já começou a afluir gente vinda de todo o lado, até do Senegal, para se tratar no nosso posto clínico, pois a novidade de termos um médico na Companhia, depressa se espalhou. Aliás, a dois passos daqui, estão os nossos principais informadores, nas pessoas do chefe da polícia e outros funcionários administrativos da aldeia senegalesa nossa vizinha, com quem o nosso amigo M. Santos mantém fortes relações de interesses mútuos. São eles os primeiros a comunicar a presença de grupos armados que habitualmente passam por esta zona a caminho da região centro da Guiné, o Oio. Está até combinada uma jantarada em que eles serão nossos convidados. (...)

Pirada, 1 de dezembro de 1964


(...) Bafatá é uma vilória bastante razoável. Tem um clube que até dá cinema todos os dias. A energia eléctrica é fornecida por um gerador a diesel, um bocado velho e a luz está constantemente a ir abaixo. Mas é melhor que nada. Fui lá este fim-de-semana com o M. Santos e a família, e não deixei escapar a oportunidade de farejar um pouco de civilização.

Hoje também posso dizer:

- Olhem, sabem? No sábado fui ao cinema! Agora não são só vocês que me dizem isso em todas as cartas que me escrevem.

Por acaso até era um filme do Jerry Lewis, que já tinha visto, “Jerry, Primeiro Turista do Espaço”.

Jantámos em casa de um comerciante amigo do M. Santos e, no domingo, almoçámos em casa do Secretário da Administração, outro amigo dele e que, conforme vim a descobrir, depois, é de Viana! Falámos sobre a nossa terra, recordando os tempos em que andou no Liceu, que nessa altura seria ainda, evidentemente, o Liceu Velho.

Bajocunda, 8 de fevereiro de 1965

(...) Ontem, domingo, fui até Pirada, resolver alguns assuntos pendentes e aproveitei para rever os amigos que lá deixei, o M. Santos e a família, (...)

(...) O M. Santos, como sempre, faz questão em receber-me para jantar, o que eu nem me atrevo a recusar, tão maravilhosos são os jantares em casa dele.

Quando finalmente regressei a Bajocunda já passavam das 23h00, hora propícia para eles andarem por aí a preparar alguma emboscada… mas felizmente, por enquanto ainda não se resolveram.
Na noite anterior tinha também visitado, de jeep, algumas tabancas por aqui perto, para dar uma impressão de que estamos sempre vigilantes a qualquer hora do dia e que podem confiar na tropa para os proteger, caso venham a ser atacados por algum grupo armado que, vindo do Senegal, resolva fazer política de terra queimada para assustar as populações e levá-las a abandonar este território, que é o que esta gente mais teme.

Quem me sugeriu a ideia para esse passeio nocturno, e até me serviu de guia, foi um comerciante de Bajocunda, o Sr. António Costa. Muito alto e muito gordo, este indivíduo de raça negra é também um grande bonacheirão que gosta imenso de beber e de receber visitas mas que no entanto não chega aos calcanhares do M. Santos, lisboeta de gema, recém incluído nestas guerras por ter tido dificuldades financeiras na Metrópole, segundo se consta.  (...)

Bajocunda, 22 de fevereiro de  1965


(...) O M. Santos, por várias vezes já me mandou recado para ir lá [, a Pirada,]  comer uns camarões ou umas sardinhas assadas mas, obviamente, nem tenho podido. (...)


Bajocunda  1 de março de 1965


(...) Ontem à noite, antes de jantar, estivemos em Pirada, eu o Gabriel e o Inácio (outro alferes da mesmo Companhia de Cavalaria, que gradualmente se está a juntar a nós em Bajocunda). 

O M. Santos recebeu-nos com a habitual cortesia mas não conseguimos ficar lá muito tempo, pois o capitão começou a resmungar pelo facto de terem vindo todos os oficiais de Bajocunda, de maneira que, a contragosto, tivemos de vir embora. Aliás, desde que apanhou aquele susto na estrada Bajocunda-Canquelifá, o capitão nunca mais foi o mesmo. (...)


Pirada, 15 de março de 1965


Estou de novo em Pirada, onde me sinto como em casa. Foi um verdadeiro alívio deixar Bajocunda pois não consegui afeiçoar-me aquilo de maneira nenhuma. 

Isto aqui, em Pirada, é muito mais airoso, há muito mais população, a Messe é fora do quartel e tenho o meu amigo M. Santos que continua a ser uma excelente pessoa.

Bajocunda ficou entregue a uma Companhia de Cavalaria e nós ficámos apenas com Pirada e Paúnca. É muito menos trabalhoso. (...)


Pirada, 21 de março de 1965



Mais uma vez aqui estou a colocar, à pressa, a escrita em dia, à luz do Petromax, pois desta vez adiantaram o dia do Correio. Tenho de fazer serão para poder chegar a tempo. Mas não faz mal, amanhã só me levantarei lá para as dez da manhã.

Aqui dorme-se muito. Depois do almoço, dorme-se a sesta, quase sempre até às 4 da tarde. Depois quando há serviço para fazer, vamos até ao quartel. Quando não há, toma-se banho, jogamos o Ôri ou vamos a casa do M. Santos beber uns whiskies.

Autêntica vida de malandro! Quero dizer… de guerreiro! Porque de vez em quando também se vai para o mato a qualquer hora do dia ou da noite e fica-se por lá não importa quanto tempo, a dormir em que cama houver, ou mesmo até sem dormir!

E quando o Manel Jaquim [, o homem do cinema ambulante,]por cá aparece, lá tenho de pagar os bilhetes a uma data de gente muito simpática que me enche de mimos, interesseiros, claro!
-“Alfero Gérardis, bonito, boniiito… dimais!!!” – são os elogios que estou sempre a ouvir, por esta acção psico-social, actividade a que agora me dedico no intervalo das guerras. (...)

[Seleção, fixação, revisão de texto, e realces a negrito e a amarelo: LG]

(Continua)

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28 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4875: Cartas (Carlos Geraldes) (4): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1964

domingo, 13 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22996: Os nossos médicos (92): Nunca na vida te deixarei sozinho (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico, CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

© ADÃO CRUZ


1 - Em mensagem de 12 de Fevereiro de 2022, o nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68) enviou-nos este seu conto:


NUNCA NA VIDA TE DEIXAREI SOZINHO

Nunca na vida te deixarei sozinho, disse a Isabel ao seu marido Joãozinho, na véspera de meter outro homem na sua cama.

A Isabel não andou na Faculdade, para assim falar tão bem nas traseiras do sentimento, mas foi criada de servir em Bissau, o que, numa aldeia do mato, era um curso superior. Isabel era uma mulher muito bonita, daquelas que são sempre futuro, ainda que a pele se engelhe. As suas formas afeiçoavam-se aos olhos, mais despindo a existência do que o corpo. Uma espécie de mulher à flor da pele, bem calculada por dentro. Mulheres paridas de si mesmas, sem vida nos outros. Mulheres de além-desejo, voo de ave caminhando fora dos passos. Isabel, o torvelinho das tonturas do Joãozinho.

Joãozinho, servente da messe, sabia a mulher que tinha e todo se babava quando a gente dizia que ela era mais linda que surucucu empinada, mais pura que fruto de cajú. Todo ele era uma viagem por dentro da Isabel, adivinhando-lhe o mundo no contar das coisas. Manhã levantada era sol de todo o dia, noite deitada era sonho que não morria.

Um dia…

Encontrava-me eu frente à palhota da Isabel, limpando com uma compressa embebida em permanganato de potássio, as feridas do dorso das vacas, verdadeiros buracos abertos pelos estilhaços das granadas e pelos pássaros pica-sangue, impiedoso tormento dos animais, quando ouvi atrás de mim uma voz de asas, leve de tempo, onde não havia destino, medida por lonjuras de sonho.
- Sr. Doutor, Sr. Doutor.

Do peito me nasceu um soluço que só anos mais tarde se escapou.
- Olá Isabel, que bela surpresa!
- Doutor, tenho galinha que consegui arranjar e vou fazer frango à cafreal para Doutor e nosso Capitão.
- Isabel, tu és um anjo, e nosso capitão, todo católico, vai pensar que é dádiva do céu, quando eu lhe contar.

Todos somos fingimento quando o sangue não se entorna no desaconchego da solidão. O provisório serve o regresso da alma, o fogo de outros calores invade os olhos através de janelas que há muito se não abriam. O capitão não mediu a fome nem a galinha, esqueceu a comunhão do Padre Gama, sonhou o despir da Isabel até à nudez pecaminosa e espetou os olhos no cair da noite.

Ao cair da noite, lá fomos os dois à palhota da Isabel, enquanto o Joãozinho lavava a loiça na messe. A Isabel estava no último acto da confecção do delicioso cafreal da tabanca. Primeiramente refogado, apenas em sumo de limão e piripiri, depois grelhado na brasa e em seguida frito com cebola.

Notei que os olhos do capitão se cruzavam constantemente com os meus, não na galinha mas nas ancas da Isabel. Seguiam a luz sensual do petromax, que penetrava abusivamente na malha de tule até às roupas que vinham de dentro. Senhora de reflexos e de encontros, Isabel não prestava menos atenção à sedução do que à galinha.
- Doutor, nosso Capitão, tenho gira-disco e morna, mim dançar para doutor e nosso capitão.

Não nos empenhámos em perceber como é que uma pequena caixa e um disco de madeira giravam música. O esvoaçar do tule era o centro do mundo, o arder da fogueira de todo o nosso frio. Toda a força daquele colo maternal, toda a ternura da silhueta envolta em cabelos penosamente desfrisados durante longos anos, toda a firmeza das carnes subtis, todo o trigo desse abrigo adormecido, toda a tempestade recolhida nesse pedaço de noite tombaram sobre nós quando a Isabel iniciou o strip-tease.

Não me lembro do sabor da galinha. Recordo apenas uma espécie de vento fustigando as entranhas, reduzindo-me a um calção e uma camisa, ardendo dentro de mim com sabor a cinza.
Olhámos um para o outro, sorrimos, assumindo o que sempre estivera assumido, antes de darmos ao espírito a momentânea liberdade de um passeio pelo sonho que morre ao pé dos coqueiros.

Aconteceu nessa noite ou na noite seguinte. O Joãozinho entrou em casa e deu com alguém a fugir da cama da Isabel. Pobre do Joãozinho, sofreu mais com a sova que deu na mulher do que com a traição. Sofreu mais pelo avesso do que ela dissera na véspera, nunca na vida te deixarei sozinho, do que em todas as noites que passara enterrado na bolanha à espera de turra. Doeu muito mais do que picada de escorpião.

Isabel apresentou queixa no Chefe de Posto. Argumentava e provava com as equimoses dificilmente visíveis na sua pele de negra. Dolorosas como as equimoses em pele de branca. Afastara bondades de Joãozinho, denegrindo sua violência, grande de mais para coisa de momento. Não ser vontade de ela mas força de imaginação que vem de dentro. Destino de todo fogo que acende rápido.

Foi constituído o tribunal. Perante o Chefe de Posto, Capitão e eu, compareceram queixosa e réu. O Joãozinho estava disposto a perdoar, a despeito de um sonoro desabafo, bengala de toda a sua alma, letra de toda a sua filosofia, resguardo de toda a sua defesa.
- Boca de ela ser boca de mim, olho de ela ser olho de eu ver, dor de ela corpo de mim qui dói, vida de ela valer morte de mim, mim ca pude pensar que Zabel durme cum gajo na cama de mim, dibaxo di memo tecto… inda si foi sinhô dôtô ou nosso capeton…!

(Conto rigorosamente verdadeiro. Mas nem dotô nem capeton estiveram na cama de Zabel).

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Nota do editor

Último poste da série de 10 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21878: Os nossos médicos (91): recordando o sentido do humor do nosso saudoso J. Pardete Ferreira (1941-2021), ex-alf mil médico (CAOP, Teixeira Pinto, e HM 241, Bissau, 1969/71)

domingo, 23 de outubro de 2005

Guiné 63/74 - P236: As estórias que não contamos aos nossos filhos

Não houve mata na Guiné que o Alferes Comando Briote não tivesse pisado uma ou mais vezes, incluindo Satecuta/Galo Corubal, na região do Xitole, por onde andou 19 dias, na época das chuvas (!). E mata aqui significa território sob controlo (militar, político e adminmistrativo) do PAIGC. L.G.

Entre outros camaradas africanos, o tuga Briote - que foi em rendição individual, nos finais de 1964, para a CCAV 489 (Cuntima, região do Cacheu) e que seis meses depois estava em Brá a fazer o curso de comandos - trabalhou com o Marcelino da Mata e o Jamanta que vieram mais tarde a integrar a 1ª Companhia de Comandos Africanos que eu vi crescer em Fá Madinga (1). L.G. © Virgínio Briote (2005)


Texto de Virgínio Briote, ex-alf mil comando (1965/67):

Pois, a Guiné! A Guiné faz parte de mim. Entrou-me no sangue aos 21 anos, tenho 62, vive comigo. Percorrem-me sentimentos contraditórios, não devia ser, mas é o que sinto às vezes. Assaltos, pé ante pé, ao nascer do dia, ou ainda de noite, de heli a qualquer hora do dia. Descargas de adrenalina e de tiros, estardalhaço de rockets, granadas, 10 minutos no máximo, retirar a seguir no goss-goss. Depois, o regresso a Bissau, o banho e o sono, o almoço farto no Fonseca. E o desassossego e a dor tantas vezes levados àquelas gentes, um peso que trago comigo, que me curva. Passou-se comigo, não ouvi contar.

O Virgínio Briote em Mansoa, já com as insígnias de comando, o crachat na boina (Julho de 1966)

© Virgínio Briote (2005)

Tenho respeito pelas tropas especiais, que fizeram aquilo que lhes pediram. E muito mais pelos soldados, furriéis, sargentos e alferes milicianos que, sem lhes perguntarem nada, os arrancaram ao trabalho e ao estudo. Espalhados pelas Mafras do País, encaixotados nos comboios, nas camaratas, nos beliches ou nos porões sujos e escuros dos Uíges, de G3 na mão pelas matas, savanas, tarrrafos e bolanhas, corações aos saltos, T6 e Fiats G-91 no ar, helis à procura de locais para pousarem, macas com feridos e mortos, os regressos aos abarracamentos, partir para outra, sempre assim, até ao fim dos dois anos. Viram derreter-se 2 anos da vida deles, a fazerem contas aos dias, dentro do arame farpado, entre abrigos, à luz do petromax, sem frescos, à mercê de tudo, da Dornier, das colunas de reabastecimentos, do valente IN.

Quartel de Brá, a nordeste de Bissau. Aqui nasceram os primeiros comandos da Guiné, primeiro organziados em grupos e depois em companhia. Estes comandos, de primeira geração,antecederam a primeira companhia de comandos metropolitana, formada em Lamego, e aqui chegada em Junho de 1966 (3ª CCmds). L.G.

© Virgínio Briote (2005)

Alguns nem chegaram a ir ao Cupilom, saíram dos Niassas, meteram-nos em GMCs, Mercedes, Unimogs e, ala que se faz tarde, estrada fora, a caminho de Nhacra, Mansoa, ou Geba abaixo, Buba a aparecer ao longe. Dois ou três dias depois, parecia que estavam em Bissorã, Mansabá, Cacine, há que meses.

Muito tempo, manga de chatice passada, o caminho do regresso, directos para as lanchas, quando deram por eles, nem acreditavam, era o velho Niassa ou Uíge, outra vez. E, quando chegavam a Lisboa, à terra deles, encontravam gente que lhes fazia perguntas:
- Mataste muitos turras, juntaste algum?

Cemitério de Bissau onde ficaram muoitos dos nossos os e alguns dos nossos melhores (1966).

© Virgínio Briote (2005)

Tempos difíceis que a nossa geração viveu e, valha a verdade, tudo tem sido feito para fazer de conta que nada se passou. E, se calhar é melhor assim, foi só um sonho de uma noite, uma noite que durou 13 anos.

E os que viveram aqueles tempos, quando se encontram agora, recordam episódios, pequenas histórias, quase nunca factos da guerra. Devem ter motivos bem fortes para recordarem os episódios marginais e esquecerem histórias que muitos de nós preferia não ter vivido.

Desculpa lá esta lavagem, Luís. Muito raramente abordo estes assuntos, nunca contei um episódio de guerra que fosse aos meus filhos. Quando desembarquei em Lisboa, jurei a mim próprio nunca mais pegar numa arma, nem na Feira Popular. Quase quarenta anos ao arrumar um sótão de uma casa na aldeia, bem lá para o Norte, vi duas malas cheias de pó. Cartas, roupas, facturas, e uma pistola dentro de um estojo. Quebrei a promessa. Peguei-lhe, meti-me a caminho das margens de um rio e lancei-a para o sítio mais fundo.

E pronto, Luís, a minha prosa bélica acaba aqui, por hoje. Na próxima semana vou estar fora, só regresso no próximo sábado e na semana a seguir, a primeira de Novembro, tenho muito gosto em tomar um café contigo (...).
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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri

Vd. também a página não oficial dos comandos portugueses > Comandos - Tropa de Elite

domingo, 7 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P731: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (5): Periquito em Mansoa

V parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).


Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 15-16 (1).


Guiné > Região do Oio > Mansoa > 1968 > Um periquito em Mansoa
© Paulo Raposo (2006)

MANSOA - Parte I

Seguimos finalmente para Mansoa, em coluna. Como ainda não estávamos armados, nos sessenta quilómetros que se seguiram, íamo-nos perguntando:
- E se houver ataque à coluna, como é?

Mansoa era uma terra importante com ruas alcatroadas. Durante essa primeira noite, o Batalhão que lá estava, o 1911, simpáticos, fizeram uma salva de artilharia à noite para verem a reacção dos periquitos (alcunha dos recém chegados).

Logo na primeira semana em Mansoa, dei por outra situação semelhante à que tive em Abrantes com o meu colega de quarto. Um belo dia estávamos a almoçar na Messe e, na cozinha, que ficava junta, alguém fechou com força a tampa de uma arca frigorífica.

Um Alferes do 1911, portanto já com algum tempo na Guiné, dá de repente um salto, e faz menção de correr para o abrigo. Pergunto-me:
- 0 que se passa?

O barulho seco do fecho destas arcas frigoríficas era semelhante ao da saída de um tiro de morteiro. Aquele rapaz ouviu o barulho e saltou, como um reflexo condicionado.

Passado pouco tempo, isto começou a acontecer com quase todos nós, e manteve-se ainda muito tempo depois de termos regressado de vez.

O nosso estado de alerta era uma constante. O clima era horrível. No verão havia calor e chuva todos os dias. O inverno era quente e seco. Foram dois anos a dormir só com um lençol. Muitas saudades tive do peso e do calor do cobertor da minha cama.
A noite os mosquitos eram às núvens, não se podia dormir. Era um suplício.

A vegetação era luxuriante, cheia de vários verdes muito bonitos. Tudo crescia e se desenvolvia desordenadamente. A Guiné era rica em madeiras exóticas. Naquele tempo não havia o cuidado de cortar e plantar ordenadamente a floresta para explorar a madeira. A mãe natureza era generosa naquela terra. Quanto a animais selvagens só vi gazelas, macacos e gibóias.

Todos os que por África passaram trazem saudades da sua mística. Quanto a mim tem a ver com dois factores. Um é o espaço: há espaço e oportunidades para todos. Não há pressas. Neste ambiente a inter-ajuda e a solidariedade são infinitas e com elas vem o convívio e a amizade. As amizades de África são para a vida e para a morte.

O outro factor é o clima. O dia quando nasce, nasce com toda a sua pujança e exuberância e a natureza desperta de repente. O pôr do sol, cheio de cores quentes, é o inverso. A natureza adormece na sua paz também quase de repente. É o melhor momento do dia. Era durante este período que tomávamos banho, punhamos roupa à civil e íamo-nos sentar nas cadeiras de lona no exterior da Messe, a beber um aperitivo e a conversar. Era um ritual.

Era no meio deste ritual que aparecia o sargento do dia com uma praça. O soldado trazia um tabuleiro com prova do rancho dos soldados. Dava-o a provar ao Oficial do dia e ao Comandante. Muitas vezes era melhor e tinha melhor apresentação que o nosso. Era mais um ritual.

Durante os cinco meses que estivemos em Mansoa a nossa vida foi um frenesim, embora tenha sido o único período em que tivemos luz eléctrica. O resto da comissão foi feita à luz do Petromax.

Saíamos quase todos os dias, ora em colunas, ora como escoltas, outras vezes em operações, outras ainda em patrulhamento, emboscadas, ou como protecção à capinagem, eu sei lá, fazíamos de tudo. Na maioria das vezes, a nossa segunda farda não chegava a secar da saída anterior, e lá íamos com a roupa molhadinha colada ao corpo.

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Nota de L.G.

(1) Vd último post, de 5 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXVIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (4): Em Bissau com Spínola

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4876: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (VIII): Estadia em Contuboel e Sonaco com a Otília (JAN-AGO 1966)

Continuação do Diário de Guerra, de Cristovão de Aguiar (VIII)

Contuboel, 12 de Janeiro de 1966

Ontem o nosso batalhão, Sete de Espadas, so­freu dez mortos numa emboscada. Tinha ficado com o meu pelotão na base, para montar a segurança e dar apoio logístico, quando, pouco depois de terem par­tido para uma operação no mato do Caresse, terra-de-ninguém e de muita pancada, se ou­viram grandes rebentamentos na direcção que tinham tomado. Uma hora e pouco mais tarde, chegou uma viatura com os mortos a trouxe-mouxe sobre o es­trado da carroça­ria. Ti­nham morrido ali como tordos, de­pois de os guerrilheiros te­rem lan­çado algumas gra­na­das defensivas para o interior da GMC. Fiquei encar­regado de transportar aquela carne humana para Fa­jon­quito, sede de uma compa­nhia tam­bém pertencente ao nosso bata­lhão.


Fajonquito, 13 de Janeiro de 1966

Enquanto o capelão procedia às exéquias fú­nebres e rezava missa campal por alma dos dez mortos irreconhecíveis, safei-me, re­voltado, para um canto solitário, longe de toda aquela cruel comédia desumana. E pe­guei da esferográfica e do meu caderninho e fui escrevinhando:

O VISIONÁRIO

Rasguem-se as corti­nas do sacrário,
Onde ficou Jesus aprisionado
Tal como há dois mil anos no Cal­vário
Pregado num madeiro, ensanguentado...

Era Sua Pala­vra pão sagrado
E o gentio que escutava o Visionário
De tal arte ficou maravi­lhado
Que O elegeu seu re­volucionário...

Depois, o tirano, opressor do povo,
Julgando apagar esse Sol novo
Mandou matar o vate desordeiro...

Crucificaram-no então no Calvário:
- Está agora a ferros num sacrário,
Não vá Ele tornar-se guerrilheiro...


Bissau, 17 de Janeiro de 1966

Vim ao aeroporto de Bissalanca esperar a Otília, que vem passar uns meses comigo nesta guerra. Se calhar, foi uma loucura da mi­nha parte. Sem dúvida que foi. E egoísmo. Chame-se-lhe o que se quiser, mas, an­tes de morrer, gostava de deixar descendência. Ficámos instalados no Grande Hotel de Bis­sau, que só tem grandeza no nome.


Contuboel, 19 de Janeiro de 1966

Acabámos de chegar de Bissau, eu e minha Mulher. A nossa casa é um espaço vago, quarto e corredor, que me cedeu o Chefe de Posto e que fica contíguo ao edifício. Não há água nem electricidade. Alumiano-nos a petro­max. A água virá todos os dias do quartel, que fica a meia dúzia de pas­sos, para um barril que coloquei na extremidade do corredor oposta à porta de en­trada, onde, com um reposteiro, fiz um pequeno compartimento que vai servir de cozinha. Antes de minha Mulher chegar, arranjei o nosso quarto o melhor que pude: consegui uma cama de casal, pus cortinas nas janelas, cujo pano comprei no comércio do libanês e que um alfaiate indígena depois talhou, acertou e coseu, mandei fazer uma mesa de boa ma­deira africana. Este é que é verdadeiramente o chamado amor e uma ca­bana.


Contuboel, 14 de Fevereiro de 1966

A Otília está grávida, pelo menos tem to­dos os sintomas de uma mulher nesse estado: enjoos, vómitos. Se for mesmo ver­dade, isto significa que, se me for desta para melhor com um qualquer tiro desgo­vernado, já deixo rastro atrás de mim. Um filho engendrado na guerra!


Contuboel, 16 de Março de 1966

Fomos hoje a Fajonquito, povoação a mais de vinte quilómetros de distância, onde também se encontra uma Companhia de Ca­çado­res. A Otília foi comigo, a fim de consultar o médico, meu companheiro da República Corsários das Ilhas, em Coimbra, e muito nosso amigo. A Otília queixa-se das pernas, parecem picadas de mosquitos, mas não são. O Ormonde de Aguiar, assim se chama o meu velho companheiro de Coimbra, disse que se tratava de uma qualquer doença de pele e deu-lhe uns medicamentos para o efeito.


Contuboel, 7 de Abril de 1966

Quando vou para o mato por dois ou três dias, a Otília não tem medo de ficar sozinha em casa. É mesmo uma mulher de armas! Fica bem guardada pelas sentinelas que os cipaios fazem dia e noite ao Posto Ad­ministra­tivo, além de ter o quartel à mão de semear. O medicamento que o Or­monde lhe recei­tou fez muito bom efeito: já não tem nada nas pernas.


Contuboel, 23 de Abril de 1966

Faz hoje um ano que desembarcámos em Bis­sau. Não me esqueci de des­carregar a cruz na casa do calendário. Esta é já a tricen­tésima, sexagésima sexta, se me não engano. Esta­mos já a dobrar o cabo tormentó­rio. A partir de agora, começa o tempo a de­s­cer. É a altura de se principiar a ter muito cuidado com a vida, que a morte gosta de pregar partidas nestas ocasiões lembra­das.


Sonaco, 30 de Julho de 1966

O meu pelotão foi finalmente destacado para aqui, que, no meio deste inferno, é um lugar sofrível. A Otília prefere aqui estar. Temos uma espécie de casa de paredes de adobes e coberta de colmo, mesmo ao lado do quartel, mais fresca do que a de Contuboel. Da porta de trás da casa, dou as minhas ordens ao pessoal da cozinha sobre a ementa do dia. Temos aqui uma pista térrea onde poisa uma Dornier com facilidade. É lá que treino a minha con­dução no jipe que per­tence ao destacamento.


Sonaco, 9 de Agosto de 1966

A Otília fez hoje anos e por isso houve rancho me­lhorado. Dormimos com as janelas das traseiras abertas por via do calor e do peso da humidade. Para evitar que os mosquitos e outra bicheza, aqui aos milhares, mordam a gente, mantemos aceso um repelente do qual se evola uns fuminhos cujo odor intenso os afugenta. O pior são os gatos que vêm ao cheiro da comida e fa­zem, por vezes, uma estreloiçada de me pôr maluco. Ando com os nervos em franja, por isso qualquer barulho, por mais pequeno que seja, põe-me transtornado. Uma noite destas fui acor­dado e apanhei tal susto que peguei logo da espingarda, encostada à parede, à ilharga da cama do meu lado, acordei a Otília, disse-lhe que ia disparar, que se não assustasse, poisei o cotovelo esquerdo na sua já proeminente barriga, apoiei o cano da arma na mão canhota meio em concha, encostei a coronha ao ombro direito, fiz pontaria e dis­parei, uma, duas vezes. Matei um gato e os ou­tros desape­garam-se. A Otília não me disse sequer uma palavra mais azeda e tinha toda a ra­zão para o fazer. Virou-se para o ou­tro lado e principiou logo a dormir.
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Notas de CV:

Cristóvão de Aguiar foi Alf Mil da CCAÇ 800, Contuboel, 1965/67

Vd. último poste da série de 25 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4860: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (VII): Estadia em Contuboel e Dunane (OUT-DEZ 1965)

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Guiné 63/74 - P1945: Blogue-fora-nada: O melhor de ... (1): Nunca contei uma estória de guerra aos meus filhos (Virgínio Briote)

Guiné > Brá > 1965 > Mulheres africanas trabalhando no campo.Imediações do quartel de Brá, onde funcionou o centro de instrução e formação da primeira companhia de comandos da Guiné (criada em 1964 e extinta em 1966). Os velhos comandos (Mário Dias, Virgínio Briote, João Parreira...) , como ainda hoje eles gostam de ser conhecidos. Do Virgínio Briote, nosso novo co-editor, pode dizer-se que, em menos de um ano de coma ndo, hão houve mata na Guiné que ele não tivesse pisado uma ou mais vezes, incluindo Satecuta/Galo Corubal, na minha/nossa tão conhecida região do Xime/Xitole, por onde andou 19 dias, na época das chuvas (!).

Entre outros soldados africanos, o Alf Mil Comando Briote - que foi em rendição individual, nos finais de 1964, para a CCAV 489 (Cuntima, região do Cacheu) e que seis meses depois estava em Brá a fazer o curso de comandos - teve no seu grupo de combate o Marcelino da Mata e o Jamanta (este último viria mais tarde a integrar a 1ª Companhia de Comandos Africanos que eu vi crescer em Fá Madinga).

Foto: © Virgínio Briote (2005). Direitos reservados.

1. Amigos e camaradas: De Abril 2005 a Maio de 2006, publicaram-se 825 (!!!) posts no antigo Blogue-fora-nada, rebaptizado Luís Graça & Camararadas da Guiné > Blogue-fora-nada. Alguns desses posts são de antologia, são escrita de primeira água, são depoimentos, testemunhos e até documentos, inéditos...

Muitos dos nossos amigos e camaradas que chegaram mais recentemente à nossa Tabanca Grande, nunca os leram e têm alguma dificuldade em localizá-los. Até pro que, na época, eu não punha o nome do autor do post a seguir ao título. E a numeração dos posts era em... romano!!!

Em suma, a versão anterior do nosso blogue era menos amigável do que a actual, com menos funcionalidades. Daí eu ter decidido recuperar alguns desses textos, republicando-os no actual blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (que entrou em vigor a partir de Junho de 2006, e até hoje já publicou mais 1100 posts).

O Virgínio Briote, por exemplo, entrou para a nossa tertúlia, ainda em Outubro de 2005 (1). É praticamente do primeiro núcleo de camaradas que apareceu depois do Sousa de Castro, do David Guimarães, do A. Marques Lopes e mais uns tantos. Entrou e soltou a memória, desatou a escrever. Depois retirou-se para um canto da nossa tabanca e criou o seu próprio blogue: foram os filhos que lho ofereceram, confessou-me. Chamou-lhe Tantas Vidas, rebaptizado depois como Guiné, Ir e Voltar - Tantas Vidas.

De Fevereiro de 2006 a Fevereiro de 2007, o Virgínio deu menos notícias. Mas de Outubro de 2005 a Janeiro de 2006, escreveu, para ele e para nós, coisas notáveis. É justo republicar, em parte ou no todo, algum desse algum desse material. Até para os periquitos da tertúlia conhecerem um pouco melhor o nosso novo co-editor (2). E para os velhinhos matarem saudades... (LG).

2. O melhor de... (1): Nunca contei uma estória de guerra aos meus filhos (Virgínio Briote) (3)


Pois, a Guiné! A Guiné faz parte de mim. Entrou-me no sangue aos 21 anos, tenho 62, vive comigo. Percorrem-me sentimentos contraditórios, não devia ser, mas é o que sinto às vezes. Assaltos, pé ante pé, ao nascer do dia, ou ainda de noite, de heli a qualquer hora do dia. Descargas de adrenalina e de tiros, estardalhaço de rockets, granadas, 10 minutos no máximo, retirar a seguir no goss-goss. Depois, o regresso a Bissau, o banho e o sono, o almoço farto no Fonseca. E o desassossego e a dor tantas vezes levados àquelas gentes, um peso que trago comigo, que me curva. Passou-se comigo, não ouvi contar.

Tenho respeito pelas tropas especiais, que fizeram aquilo que lhes pediram. E muito mais pelos soldados, furriéis, sargentos e alferes milicianos que, sem lhes perguntarem nada, os arrancaram ao trabalho e ao estudo. Espalhados pelas Mafras do País, encaixotados nos comboios, nas camaratas, nos beliches ou nos porões sujos e escuros dos Uíges, de G3 na mão pelas matas, savanas, tarrrafos e bolanhas, corações aos saltos, T6 e Fiats G-91 no ar, helis à procura de locais para pousarem, macas com feridos e mortos, os regressos aos abarracamentos, partir para outra, sempre assim, até ao fim dos dois anos. Viram derreter-se 2 anos da vida deles, a fazerem contas aos dias, dentro do arame farpado, entre abrigos, à luz do petromax, sem frescos, à mercê de tudo, da Dornier, das colunas de reabastecimentos, do valente IN.

Alguns nem chegaram a ir ao Cupilom, saíram dos Niassas, meteram-nos em GMCs, Mercedes, Unimogs e, ala que se faz tarde, estrada fora, a caminho de Nhacra, Mansoa, ou Geba abaixo, Buba a aparecer ao longe. Dois ou três dias depois, parecia que estavam em Bissorã, Mansabá, Cacine, há que meses.

Muito tempo, manga de chatice passada, o caminho do regresso, directos para as lanchas, quando deram por eles, nem acreditavam, era o velho Niassa ou Uíge, outra vez. E, quando chegavam a Lisboa, à terra deles, encontravam gente que lhes fazia perguntas:
- Mataste muitos turras, juntaste algum?

Tempos difíceis que a nossa geração viveu e, valha a verdade, tudo tem sido feito para fazer de conta que nada se passou. E, se calhar é melhor assim, foi só um sonho de uma noite, uma noite que durou 13 anos.
E os que viveram aqueles tempos, quando se encontram agora, recordam episódios, pequenas histórias, quase nunca factos da guerra. Devem ter motivos bem fortes para recordarem os episódios marginais e esquecerem histórias que muitos de nós preferia não ter vivido.

Desculpa lá esta lavagem, Luís. Muito raramente abordo estes assuntos, nunca contei um episódio de guerra que fosse aos meus filhos. Quando desembarquei em Lisboa, jurei a mim próprio nunca mais pegar numa arma, nem na Feira Popular. Quase quarenta anos ao arrumar um sótão de uma casa na aldeia, bem lá para o Norte, vi duas malas cheias de pó. Cartas, roupas, facturas, e uma pistola dentro de um estojo. Quebrei a promessa. Peguei-lhe, meti-me a caminho das margens de um rio e lancei-a para o sítio mais fundo.

E pronto, Luís, a minha prosa bélica acaba aqui, por hoje (...).

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd, post de Guiné 63/74 - CCLV: Virgínio Briote, ex-comando da 1ª geração (1965/66)

(2) Vd. post de 11 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1943: Virgínio Briote, novo co-editor do blogue

(3) Vd. post de 23 Outubro 2005 > Guiné 63/74 - CCLVI: As estórias que não contamos aos nossos filhos (Virgínio Briote).

terça-feira, 20 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6193: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69 / Mai 71) (9): Os padres missionários italianos de Bafatá


Coruche > IV Convívio anual da CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) > 27 de Março de 2010 > O ex-Alf Mil Capelão Arsénio Chaves Puim e o ex-Alf Mil Trms Antero Magalhães Pacheco da Silva.



Coruche > IV Convívio anual da CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) > 27 de Março de 2010 > O Antero Magalhães Pacheco da Silva, que vive no Porto e veio acompanhado da esposa.




Coruche > IV Convívio anual da CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) > IV Encontro-convívio > 27 de Março de 2010 > O Furt Mil Mec Auto Joaquim Lourenço Gião Vinagre. Em segundo plano, o camarada, ajudado pela respectiva família, que organizou o convívio. Ao todo, marcaram presença 96 ex-Militares, com 27 totalistas.



Coruche > IV Convívio anual da CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) > Dois camaradas de unidades adidas ao batalhão: o ex-1º Cabo Cripto Gabriel Gonçalves (CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71) e ex-Alf Mil Art Jorge Cabral (Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, 1969/71).



Coruche > IV Convívio anual da CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) > O ex-Alf Mil Médico António Rodrigues Marques Vilar, que veio do Olossato - se não erro - para o BART 2917, em Março de 1971. A seu lado, a esposa. Moram em Aveiro. O Dr. Vilar é um psiquiatra reformado. Deve estar neste momento na Guiné, aonde voltou, pela primeira vez, em 2001, com o David Guimarães e outros camaradas. No almoço, sentei-me à sua frente. A meu lado esquerdo, ficou o o ex-Alf Mil José Alexandre Pereira Braga Gonçalves (recomplemento da CCS, em Janeiro de 1971). Infelizmente não tenho nenhuma foto dele.

Fotos: © Luís Graça (2010). Direitos reservados


1. Mensagem, com data de 16 do corrente, do nosso muito estimado amigo e camarada Arsénio Puim, açoriano de Santa Maria, ex-capelão do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), e com que estive, recentemente, convívio realizado em Coruche (27 de Março de 2010):

Luis:

O nosso encontro em Coruche, que me deixou muito boas recordações, quase não nos proporcionou ocasião para conversarmos. Mas outras ocasiões virão.

Mando um pequeno trabalho sobre a Igreja na Guiné, e que voltarei mais tarde a abordar no que toca aos capelães militares, o qual, como todos os outros, fica ao teu critério.

Cumprimentos à Alice. Um abraço amigo
Arsénio Puim



2. RECORDANDO... IX - OS PADRES MISSIONÁRIOS ITALIANOS DE BAFATÁ (*)
por Arsénio Puim

A Igreja na Guiné, em princípios da década de 70, tinha como autoridade eclesiástica máxima o Perfeito Apostólico (não era Bispo, nem a Guiné era então Diocese, ao contrário do que acontece hoje), com sede em Bissau e dependente directamente do Papa, em Roma.

Também em Bissau, e arredores, viviam os Padres Franciscanos, exercendo ao mesmo tempo o professorado no Liceu. Mais para o interior do território, haviam-se fixado os Padres Missionários Italianos, que tinham a sede em Bafatá e, se não erro, uma pequena extensão em Catió.

Para além destes, havia os capelães militares, dependentes do Vicariato Castrense, em Lisboa, em comissão de serviço temporária, por força da guerra existente, dispersos e isolados pelos quartéis do mato, onde às vezes existiam também minúsculos núcleos de cristãos nativos.

Normalmente, os capelães só encontravam outros colegas padres, para conviver um pouco e conversar sobre os problemas inerentes à sua actividade e difícil experiência eclesiástico militar, quando se deslocavam a Bissau, onde se situava a chefia da Capelania, que, diga-se, estava sempre aberta a todos os capelães do território. Razão, talvez, por que era apelidada de «Vaticano».

A ocasião magna, durante a minha comissão, de encontro dos 18 padres que prestavam assistência religiosa às forças militares estacionadas na Guiné foi a Reunião dos Capelães do CTIG, realizada em Março de 1971 durante três dias, a qual foi repartida por Bissau e Bolama e presidida pelo capelão chefe, Pe. Gamboa.

Para mim, que vivia na zona central da Guiné, proporcionava-se, ainda, a oportunidade, uma vez ou outra, de me deslocar à pequena cidade de Bafatá, trinta quilómetros a leste de Bambadinca, onde se encontravam, além do capelão da unidade local, os Padres Missionários Italianos.

Foi na Casa destes que me «refugiei» algumas vezes, para desanuviar o espírito do clima de guerra, para falar com outros colegas, para retemperar um bocadinho as forças e levar em diante, com a autenticidade que sempre prezei, a missão de padre da Igreja no Exército.

A primeira vez foi em meados de Junho de 1970 quando decorreu ali um encontro dos capelães militares do Sector Leste - Bafatá, Bambadinca, Galomaro, Nova Lamego e Piche – promovido e orientado pelo Capelão Chefe da Guiné.

Foram dois dias preenchidos com diversas reuniões de trabalho, onde os capelães presentes puderam, num ambiente de agradável convívio, analisar e reflectir sobre a sua missão e actividades, naturalmente vistas sob ângulos de opinião diferentes.

A encerrar o encontro teve lugar uma concelebração eucarística de ronco, um tanto ao estilo da Igreja no tempo do Estado Novo, que o Capelão Chefe Gamboa sabia muito bem valorizar, em que estiveram presentes autoridades militares e civis, assim como um bom grupo de chefes religiosos muçulmanos. À cerimónia, a que se pretendeu retirar qualquer conotação política e militar, deu-se o nome de Celebração Eucarística pela Unidade.

Lembro que ainda antes de regressarem às suas Unidades, os capelães foram brindados, pelo Comando Militar de Bafatá, com um longo roteiro pela zona norte, acompanhados dum pequeno pelotão de segurança, visitando os aquartelementos de Cantuboel, Cambaju e Fajonquito, que nos disseram ficar a cerca de 500 metros do Senegal.

Voltei a estar na hospitaleira Casa dos Padres Missionários Italianos, pelo menos, mais duas vezes, por menos tempo. Eram sempre excelentes ocasiões de repouso e de convívio, assim como de troca de opiniões sobre temas então muito actuais e vividos intensamente por muitas pessoas dentro da Igreja, como fascismo e colonialismo, Exército e Igreja, guerra e Guiné, além de outros temas de cariz religioso e eclesiástico.

Pude, assim, conhecer e aquilatar do trabalho que os Padres Missionários Italianos desenvolviam na Guiné, levados pelo seu espírito missionário arejado e contando com algum apoio financeiro do Governo Português. Um trabalho profundo, enraizado e isento, que assentou, essencialmente, na formação de cidadãos da própria Guiné, de forma que o desenvolvimento desta terra se pudesse fazer a partir de dentro, pelos próprios guineenses. Para isso, haviam fundado e dirigiam um Seminário em Bafatá, já então no terceiro ano de existência, e sei que projectavam construir um outro em Bissau, visando a formação de sacerdotes e catequistas nativos, sem os desenraizar do meio nem desafricanizar.

Uma acção que foi reconhecida por quantos tiveram oportunidade e interesse de observar o desempenho da Igreja na Guiné e dela esperavam que assumisse uma acção capaz de semear nesta terra o Evangelho, no seu espírito de justiça, liberdade e progresso.

Amílcar Cabral, numa entrevista dada depois da célebre recepção dos três líderes dos Movimentos africanos pelo Papa Paulo VI em princípios de 1971, e em que faz um forte ataque à Igreja na Guiné por considerar esta estar comprometida com a guerra colonial, não deixou de expressar o seu apreço pelos Padres italianos de Bafatá, assim como pelo Pe. António Grillo, que havia sido expulso na sequência do caso de Samba Silate. (**) Uma imprudência de Amílcar Cabral, a meu ver, por poder dar origem a certos juízos políticos, na verdade infundados.

Não sei o rumo que a grande obra dos Padres Missionários Italianos tomou após a independência do território, mas acredito que a sua eliminação ou cerceamento, a ter acontecido, terá constituído um revés para a acção missionária da Igreja neste país e para o próprio desenvolvimento da Guiné.

Arsénio Puim
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Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 11 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5626: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/Mai 71) (8): Recordações da Belmira, da Manjaca, da Maria, da Safi, do Jamil...
(**) Vd. poste de 11 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2930: Bambadinca, 1963: Terror em Samba Silate e Poindom (Alberto Nascimento, ex-Sold Cond Auto, CCAÇ 84, 1961/63


(...) Sem conseguir precisar o mês, um dia soubemos que a PIDE estava em Bambadinca para deter o padre António Grillo, italiano da Ordem Franciscana, acusado - não sabíamos se por denúncia se por investigação - de colaborar, proteger, e fornecer alimentos a elementos do PAIGC, a partir de Samba Silate.

Este episódio motivou a intervenção militar do Comando de Bafatá com uma força equipada com as já na altura obsoletas auto-metralhadoras e lança-chamas. Essa força foi reforçada em Bambadinca com grande parte dos efectivos aí destacados e seguiu para Samba Silate.

Contar com pormenor o que se passou no decorrer da operação é impossível, já que fui colocado num posto de onde só podia abarcar uma pequena parte da povoação, que ocupava uma área enorme, mas o constante matraquear das auto-metralhadoras e G3 deixavam antever um morticínio. (...).



Vd. também poste de 14 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3059: Memórias dos lugares ( 9): Bambadinca , 1963 (Alberto Nascimento, CCAÇ 84, 1961/63)


(...) Em frente, junto à vedação do quartel, estava o gerador que por economia só funcionava poucas horas depois do anoitecer, após o que tudo passava a funcionar a petróleo. Até a iluminação exterior do quartel era feita com alguns Petromax e vulgares lanternas. Felizmente, a geleira onde se refrescava a Sagres 7dl, só funcionava a petróleo e enquanto este não faltasse, havia cerveja fresca, isto quando havia cerveja...

Continuando na estrada, a seguir ao quartel e com vedações quase encostadas ficava a última construção, a igreja onde oficiou, até à sua detenção, o padre Grillo [, o missionário italiano, acusado pela PIDE de estar ligado ao PAIGC].

Depois a estrada continuava até à bifurcação para a direita e para a esquerda e era nesta zona que existia um cemitério. A estrada que seguia para a direita dava acesso à pista se aterragem.

Bambadinca era assim...Só isto... (...)

sexta-feira, 12 de março de 2010

Guiné 63/74 - P5983: O mundo é pequeno e a nossa Tabanca... é grande (22): As voltas que o mundo dá, graças a um blogue que congrega uma diáspora de combatentes (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Março de 2010:

Queridos amigos,
Entrei no blogue depois de prometer ao Luís Graça que ia escrever toda a minha comissão em folhetim.
Está dito e confirmado na introdução do primeiro volume "Na Terra dos Soncó". Depois nunca mais parei, e ainda bem. Gente que desconhecia, aqui me tem batido à porta.

Foi graças ao blogue que cheguei à fala com o Henrique Matos Francisco, 1.º Comandante do Pel Caç Nat 52. Em Missirá, naqueles idos de Agosto de 1968, os soldados falavam-me de Luís Zagalo Matos, um dos seus heróis, era o seu irã. Escrevi-lhe, pedi-lhe fotografias para as fazer chegar aos soldados de Missirá, mas também aos Soncó e aos Mané.

Com a publicação dos livros, vieram outros contactos. Por exemplo, o João Crisóstomo, alferes da CCaç 1439, estavam no Enxalé quando aqui chegou o Pel Caç Nat 52, fizeram a recruta entre Janeiro e Agosto de 1966, em Bolama, com o Henrique e os furriéis partiram para o Enxalé, ao tempo sede da companhia, que tinha pelotões destacados em Porto Gole e Missirá (Finete era um destacamento com um pelotão de milícias). O João Crisóstomo vive em Nova Iorque, o nosso país tem com ele uma dívida incomensurável (os principais jornais dos EUA, as grandes cadeias de televisão, apoiaram-no na defesa do povo de Timor e na preservação do património de Foz Coa, por exemplo), há uns tempos pediu-me notícias do Zagalo, acabámos por ir os dois visitá-lo na Casa do Artista, onde ele vive muito debilitado, depois de um tremendo AVC. E parti com ele para um encontro da CCaç 1439, a que se juntou algum Pel Caç Nat 52. Este encontro teve lugar em Coruche, no passado Sábado. Não escondi ao João Crisóstomo nem aos presentes que era para mim muito importante reconstituir estes nexos, em A Viagem do Tangomau (um livro que estou a organizar e que se irá centrar na Guiné que mudou a minha vida) esta história do Pel Caç Nat 52 será reconstituída no que me for possível.

O almoço** foi um turbilhão de surpresas. Fiquei ao lado do Jorge Rosales, foi ele quem em Bolama preparou os soldados do Pel Caç Nat 52. Fiquei em frente do João Neto Vaz, um dos furriéis do Pel Caç Nat 52 que ao fim de 20 meses de comissão apanhou uma senhora porrada e foi despachado para Catacunda, na região de Geba (Bafatá), onde foi capturado e metido numa prisão em Conacri, de onde foi libertado em finais de 1970, como é de todos sabido. Conheci também o Cunha que no dia em que pretendia ir a Bafatá tratar dos papéis para o casório, foi ferido gravemente num joelho, durante uma emboscada entre Xime e Amedalai.

A companhia dos madeirenses entrara na minha vida pelos relatos dos soldados, era um dos meus temas preferidos quando andava de noite pelos postos de sentinela, conversava com eles, enquanto olhávamos para o interior da mata, iluminada a petromax. Esta companhia ficou no Enxalé até Abril de 1967, seguir-se-á a CCaç 1661.

Depois, tudo mudou: Porto Gole passou a depender de Mansoa, Enxalé ficou provisoriamente na tutela do Xime, Missirá tornou-se no corpo estranho de Bambadinca, era a garantia de que as embarcações militares e civis podiam passar em Mato de Cão. No final de 1969, a situação alterou-se com o porto do Xime e o início da construção da estrada para Bambadinca. A CCaç 1439 era para mim uma reminiscência, vi o resto das viaturas desfeitas entre Mato de Cão e Missirá. Chegou o momento de conversarmos e de juntarmos as nossas histórias. Do que gostei mais foi exactamente revivermos as nossas experiências, procurando pontes, falando de gentes, de perigos, da nossa ingenuidade, daqueles que partiram.

É o Henrique Matos Francisco que tem obrigação de fazer o relato para o blogue. Limito-me a lembrar aos tertulianos que o meu mundo mudou graças a esta sociedade em rede onde é possível refazer vínculos, renascer estimas, fazer emergir novos afectos.

Junto algumas fotos do encontro.

Um abraço do
Mário



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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 12 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5980: Notas de leitura (77): Morrer de Vagar, de José Martins Garcia, um contista fabuloso (Beja Santos)

(**) Vd. poste de 10 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5969: Convívios (114): 19º Encontro da CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole, Missirá, 1965/67)

Vd. último poste da série de 9 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5957: O mundo é pequeno e o nosso blogue... é grande (21): Não é que o Albino Silva é mesmo o moço da Gandra? (Mário Migueis)