sexta-feira, 16 de dezembro de 2005

Guiné 63/74 - P356: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): II Parte (Mário Dias)

Texto da autoria do Mário Dias, sargento comando (Brá, 1963/66):

OPERAÇÃO TRIDENTE
Ilha do Como – Guiné
De 14 de Janeiro a 24 de Março de 1964

II Parte


3. Acção

Precauções redobradas, chegada a Cauane festivamente saudada pelos guerrilheiros com nutrido fogo de PPSH (1) e de outras armas a partir da mata em frente, distanciada cerca de 200 metros da nossa posição. Felizmente os tiros saíam muito altos e só o som irritante das chicotadas incomodava.

Instalados em abrigos expeditos cavados no chão arenoso, as tropas montavam guarda aquele local estratégico por ficar próximo da mata, um pouco elevado, o que permitia
domínio sobre o terreno circundante. Sob orientação do cmdt. do 8º Dest.Fuz. que aí se encontrava já há 3 dias, foram-nos indicadas as nossas posições. Cavamos abrigos, o que não foi difícil, o terreno era mole, ficando uma equipa em cada abrigo. Sempre em mente o princípio sagrado de nunca se separarem os elementos de uma equipa.

A tabanca de Cauane, bem como as restantes, estava praticamente destruída assim como a casa do comerciante Brandão, ali bem próxima. Meses antes, já a aviação havia actuado na ilha bombardeando e destruindo todas as instalações que pudessem ser proveitosas ao IN. Recordo-me ainda de assistir no QG em Santa Luzia, onde ocasionalmente me encontrava, aos protestos do referido Brandão por lhe terem escavacado tudo quanto possuía no Como.

Mesmo em ruínas, as palhotas de Cauane foram úteis para guardar muito do nosso material e sempre proporcionavam alguma sombra. Junto a uma das casas, foi colocado um tosco mastro, bem alto, onde flutuava orgulhosamente a bandeira nacional. Creio que tal “provocação” irritava os guerrilheiros que para lá disparavam longas rajadas de metralhadora, sensivelmente de hora a hora. Nós, ao fim de algum tempo habituámo-nos ao festival e até já sabíamos que horas eram, sem necessidade de consultar o relógio. Bastava contar as rajadas. As munições que assim gastaram, e foram milhares delas, (nós nem respondíamos) nunca atingiram o pessoal instalado na tabanca de Cauane. Milagre ou falta de pontaria. Ou ambas as coisas.

No dia 20 de Janeiro de 1964, o 8º Dest. Fuz. Esp. saiu para uma incursão na mata entre Cauane e S. Nicolau. Como era de esperar, um numeroso grupo estimado em cerca de 100 guerrilheiros nos quais foram referenciados alguns brancos e caboverdeanos, recebeu-os com nutrido fogo que durou aproximadamente 2 horas. Devido à gravidade da situação, saímos em reforço. A distância não era grande e rapidamente chegamos ao combate que estava mesmo feroz. Os guerrilheiros não paravam o fogo. Escondidos na densa mata, eram alvos difíceis de atingir. Progredindo por lanços, de árvore em árvore ou qualquer pequena elevação de terreno que nos protegesse, fomos tentando a aproximação à mata onde se encontrava o in. Impossível. O terreno até lá era descoberto e as metralhadoras varriam tudo. Perto de mim, um fuzileiro, temerariamente em terreno descoberto, fazia fogo. Quando reparei e lhe gritava para sair dali e se abrigar, só o vi a virar-se de barriga para o ar e ali ficou atingido com um tiro na cabeça. Fiz um disparo com o lança-roquetes (a minha arma, além da indispensável G3) para quebrar o ímpeto do IN e permitir que fosse socorrido. Resultou, e alguns elementos dos fuzileiros foram buscá - lo. Estava morto.

Guiné > Ilha do Como > 1964 >

Na tabanca de Cauane, após a acção descrita. Estou eu, (de óculos) encostado a uma palhota, visivelmente cansado. A meu lado, a comer uma bolacha da ração de combate - não havia mais nada - o 1º cabo fotocine Raimundo que estava destacado pelo QG a fim de fazer a cobertura da operação, e que se juntou ao nosso grupo nunca mais deixando de nos acompanhar.

© Mário Dias (2005)

Nada a fazer. Tivemos que ordenadamente retirar e regressar às nossas posições na tabanca de Cauane. Nesta acção, os fuzileiros sofreram 2 mortos e 3 feridos graves. Dos guerrilheiros não se sabe pois ninguém conseguiu lá chegar e verificar o que entre eles se passou.

O PAIGC estava a opor grande resistência. Foi necessária a ajuda da aviação e artilharia para que aos poucos se fosse tornando possível a nossa progressão para o interior do Como. Recordo algumas noites em que nos era recomendado não acender fogueiras, nem sequer cigarros, pois os P2V5 vinham (à socapa pois eram da NATO) bombardear a mata. As explosões eram tão fortes que o chão onde estávamos deitados estremecia.

Durante o dia actuavam os F86 e T6 bombardeando e metralhando todos os movimentos que detectassem.

Uma noite, não sei se numa atitude provocatória ou se por terem frio, acenderam uma enorme fogueira mesmo na orla da mata à nossa frente. Via-se nitidamente a passagem de silhuetas humanos à sua volta. O cmdt. dos fuzileiros (1º Ten. Alpoim Calvão) chamou o Saco, apontador da instalaza (lança granadas foguete, como a nossa bazuca - aportuguesemos a palavra - mas com algumas diferenças: era de cor cinzenta, metalizada, com um óculo de pontaria mais perfeito e tinha um escudo para protecção do apontador.)

Chegou o Saco - engraçado como os fuzileiros tinham quase todos nomes de guerra pelos quais se chamavam! Era o Régua, o Setúbal, o Pistas, o Sono e outros que de momento já não recordo - e, municiada a arma, colocou-se de joelho em terra fazendo cuidadosa pontaria. Pum … lá vai ela. Segundos depois um tremendo estoiro. Então onde está a fogueira? Desapareceu. A granada acertou bem no meio e o sopro encarregou-se de a apagar. Nunca mais acenderam outra.

Um dos pontos que pretendíamos dominar era a picada que, partindo das imediações da casa Brandão, seguia para Norte em direcção a Cassaca e Cachil. Tarefa difícil pois o inimigo tinha instaladas à entrada da mata metralhadoras no enfiamento da picada. No dia 23 o grupo de comandos reforçado com uma secção da CCAV 488 e uma secção de fuzileiros dirigiu-se ao local para tentar alcançar e destruir as metralhadoras. Escondidos na casa Brandão, fomos progredindo de um e outro lado do ourique. Porém, ao chegarmos junto ao rio que atravessa a bolanha tínhamos que subir para o ourique e passar por umas tábuas que faziam de ponte. Como era de esperar, as metralhadoras entraram em funcionamento. Zás. Tudo a saltar de novo para o desnível do ourique.

E agora? Não podíamos prosseguir na relativa segurança de “encostados ao raio do ourique” porque as margens do pequeno rio e a bolanha que seguia até à mata estavam muito alagadas e eram lodosas. Nova tentativa e novas rajadas. Respondíamos ao fogo mas eles estavam abrigados e escondidos e nós a descoberto. Vantagem deles.

Chamou-se o apoio aéreo que não tardou. Dois F86 metralharam a zona de onde partiam as rajadas. Depois de algumas passagens, foram embora e ficou um T6. Largou as bombas. Subiu e rasou o solo metralhando. Subiu de novo e metralhou. Ao ganhar altura, ouviram-se gritos de júbilo na mata. Virou à esquerda e desapareceu da nossa vista. Pensei: bom, deve ter acabado as munições ou ter pouco combustível e foi-se embora. Vamos lá, que já devem ter ”amochado”. Qual quê? Tudo como dantes. Rajadas e mais rajadas que não deixavam sequer levantar a cabeça. Feita uma rápida avaliação, concluiu-se que daquela forma era impossível. Teríamos que voltar de noite ou madrugada para que não nos vissem e assim ser possível chegar às posições que defendiam à entrada da mata.

Quando estávamos a iniciar o regresso, surge ao nosso encontro o cmdt dos fuzileiros com mais homens do seu destacamento que nos pediu para o acompanharmos pois o avião T6 que nos apoiava tinha sido abatido. Percebi então o porquê dos gritos que os guerrilheiros tinham soltado. Rapidamente chegámos ao local, que não era longe, e deparámos com a avião ainda a fumegar, embora não totalmente ardido. Carbonizado, sim, estava no chão o corpo do infeliz piloto, alferes Pité, que encontrou a morte ao tentar proteger-nos. Ainda hoje me emociono ao lembrar este triste acontecimento. O corpo foi recuperado, o avião destruído com explosivos e nós regressamos a Cauane tentando esquecer.

O pior era a alimentação. 23 dias seguidos a ração de combate. Quem passou por isso poderá imaginar os problemas de saúde que isso causa pois ao fim de algum tempo já estamos enjoados e não conseguimos engolir nada. O corpo ressentia-se do esforço diário e ficámos debilitados. Água também era pouca pois só havia a que vinha de Bissau em barcaças. Mas um dia, o pessoal da minha equipa conseguiu cozinhar. Que luxo!... Juntámos os pacotinhos de canja que vinham nas rações e, com um pouco de arroz que desencantámos numa palhota, fizemos uma bela canja. Maravilha, sopinha de canja bem quentinha. Fomos para o nosso buraco com a preciosa iguaria numa marmita. Não sei já quem foi, mas um comensal mais apressado, com a “fussanga” de meter a colher, entornou a marmita. Sopa espalhada no pano de tenda que, por ser impermeável graças ao muito óleo e sujidade acumulados, reteve a abençoada canja. Pois foi mesmo do pano de tenda que foi comida e saboreada. Há muito tempo que nada me sabia assim tão bem.

Guiné > Ilha do Como > 1964 >

Especialidade gastronómica da ilha do Como. “Canja no pano de tenda”. Fez sucesso. Na foto podem ver-se à esquerda o alferes mil. Godinho, sold. João Firmino, eu (atrás, o meu lança-roquetes) e outro soldado cujo nome já não me recordo.

© Mário Dias (2005)

As acções continuavam e começou a notar-se um certo fraquejar nas hostes do PAIGC, submetidos a um permanente assédio, não só pelos que estavam em Cauane mas também os de Curcô, Cachil e Uncomene sem contar com a aviação e artilharia entretanto instalada na base logística. E foi assim que em 26, de manhã, o grupo de comandos conseguiu entrar na mata junto de Cauane. Passámos pelo local onde, no combate em que participámos em auxílio dos fuzileiros, o inimigo teve a sua força instalada. Sem novidade. Continuámos a internar-nos na mata em direcção a S. Nicolau.

Mais à frente fomos atacados. A nossa reacção foi imediata e provocámos 3 mortos aos guerrilheiros que retiraram. Estava quebrado o mito de que não era possível entrar naquela mata. A partir desse momento, as nossas tropas não mais foram impedidas nas suas iniciativas atacantes.

Nesse dia, à tarde, fomos mandados regressar à Base Logística que passou a ser a nossa “morada” durante o resto da Op Tridente.


4. A praia.

Aqui é que se está bem. Não somos “fogachados”, não precisamos de fazer sentinelas nem vigia durante a noite e, ainda melhor, podemos tomar banho no mar.

Era esta a opinião geral. Para o conforto ser completo faltava-nos material para construir barracas que não tínhamos e improvisar camas na areia da praia. Numa das minhas deambulações de reconhecimento do local, encontrei na mata de palmeiras que bordejava a praia, um enorme acampamento abandonado, pelos vistos à pressa, pois estava repleto de inúmeros daqueles panos que usam na Guiné como vestuário. Lavadinhos, a cheirar a sabão e, espanto!...passados a ferro. Tudo muito bem arrumado, chão varrido, dava gosto andar por ali. Nem sequer faltavam galinhas que lá ficaram, nem tiveram tempo de as levar.


Guiné > Ilha do Como do Como > 1964 - O meu turno de serviço à cozinha

© Mário Dias (2005)

Era mesmo o que eu precisava. Trouxe alguns panos para fazer uma barraca e me servirem de vestuário de "turista". A palha da cobertura das casas de mato, que eram muito baixas, serviu às mil maravilhas para improvisar um belo colchão. Alguns trouxeram mesmo catres para dormir. Quanto às galinhas, foram servindo de alimento para quebrar a monotonia das rações de combate. Mas tudo tem o seu preço. Onde há galinhas e areia, há matacanhas que não tardaram a fazer estragos. Poucos de nós se livraram delas e, diariamente, tínhamos que passar revista aos pés e proceder à sua extracção. A média diária era de 8 ou 10.

A Base Logística onde também funcionava o posto de comando, estava ampliada e melhorada. Pousavam lá os aviões ligeiros (Auster e Dornier) bem como helicópteros desde que a maré não estivesse totalmente cheia. A areia molhada formava uma excelente pista de aterragem. Também já lá estavam duas bocas de fogo de obus 8,8cm, comandadas pelo Alf Mil Carvalinho, exímio tocador de guitarra e igualmente exímio tocador de garrafa de cerveja que nunca abandonava.

Uma tarde, depois de almoço, estava eu a descansar um pouco e ouvi um tiro de obus.
Fui ver. O Alf Carvalinho, de calções, tronco nu, indispensável cerveja na mão, alguns passos atrás das peças ia ordenando ao apontador:
- Pá, levanta um bocadinho… não, foi demais, baixa… um pouco para a direita… está bom. Fogo!

E a granada partiu rumo ao seu destino. Salta de lá o Tenente-coronel Cavaleiro:
- Ó Carvalinho, você ainda me mata algum homem, temos tropas na mata.
- Calma meu Tenente coronel, isto vai ter aonde eu quero . - E continuou:
- Eh pá, baixa um pouco… está bom. Fogo! - E foi assim até disparar 4 granadas. Acercando-me dele perguntei:
- Meu alferes, para onde foram esses tiros? - Mostrando-me a carta indicou:
- Para o cruzamento destes caminhos. - E apontou um cruzamento de um caminho com a picada de Cassaca.

Não é que, alguns dias depois, ao passar pelo referido local, lá estavam, muito próximos uns dos outros, os 4 impactos das granadas?!

5. Os morteiros do Nino

Uma tarde, interrogavam um prisioneiro na tenda de campanha que servia de posto de comando/sala de operações. Perguntavam-lhe:
- Onde está o Nino?
Era um dos objectivos a que a operação se propunha. A captura do Nino era essencial.
Resposta do prisioneiro:
- Foi no chão francês (Guiné Conacri) buscar morteiro.

Gargalhada de um dos oficiais de alta patente presentes:
- Agora… pode lá ser?!.. Estes gajos alguma vez têm capacidade para manobrar um morteiro?

Ainda não tinha decorrido uma semana e já a CCAV 488 instalada em Cauane estava a levar com eles. Era noite e 4 granadas de morteiro caíram com grande estrondo nas imediações da tabanca. Não houve feridos nem estragos. Vim a saber o motivo alguns dias depois quando, ao passar por lá, me mostraram as granadas. Observei e não foi difícil concluir que se tratava de granadas de instrução ou talvez já muito velhas e com perda do poder explosivo. O corpo das granadas estava simplesmente aberto, mas inteiro, sem ter provocado qualquer fragmentação ou estilhaço. Pareciam bananas descascadas. Ainda bem.

Foram as primeiras “morteiradas” na guerra da Guiné. Ainda durante o resto do tempo que durou a Op Tridente, foram referenciados mais alguns ataques de morteiro, sempre sem consequências para as NT.


6. Parece que o pior já passou

A batalha continuava. No dia 28 à meia-noite saímos com o pelotão de paraquedistas em direcção de Cauane para montar emboscadas num poço de água existente na picada Cauane/Cassaca. Passado o ourique de triste memória onde dias antes fora abatido o T6, entramos na mata e nada, nem ao menos um tiro de sentinela a avisar da nossa presença. Progredimos mais e chegados à zona do poço instalámo-nos a aguardar a comparência dos guerrilheiros. Não compareceram para a festa que lhes estava preparada.

Pelas 17 horas de 29 regressámos à base (espera praia, já aí vamos) sem ter havido qualquer contacto nem sinal de actividade do inimigo.

Em 4 de Fevereiro, em mais uma incursão na mata de Cauane, o grupo de comandos ficou emboscado após a retirada das outras forças (CCAV 489). Surpreendemos elementos avançados do IN a quem provocámos 3 feridos. (Não sei se terão morrido mais tarde.)

Boas notícias. Vamos passar a ter uma refeição quente por dia: o almoço. Já não era sem tempo. Como estávamos instalados junto ao 8º Dest de Fuzileiros com quem nos dávamos extraordinariamente bem, tanto no aspecto operacional como no convívio diário, resolvemos também “juntar os trapinhos” na confecção da comida.

À vez, à volta dos caldeiros de campanha, armados em cozinheiros, lá íamos mostrando os nossos dotes. E, acreditem, tudo correu maravilhosamente. E nem sequer faltava marisco para petiscarmos. Quando a maré vazava e não estavamos em operações, era só ir até à linha de baixa-mar onde colhíamos grandes quantidades de combé que por lá abundava. Para quem não conhecer, combé é um bivalve parecido com o berbigão mas muito maior e de casca bastante grossa. Uma delícia. Atendendo à situação, claro.

No dia 6 de Fevereiro, o grupo de comandos com pelotão de paraquedistas, embarcou na LDM (2) ao fim da tarde com destino a Curcô para, a partir desse local atingir Cachida tentando surpreender o In. pela retaguarda. Chegamos a Curcô onde estava instalada a CCAV 489. Aí pernoitámos, aguardando a madrugada para iniciar a progressão.

Talvez o nosso amigo Joaquim Ganhão (3), que lá esteve, se recorde desta nossa passagem.
Madrugada. Antes do dia romper, verificação cuidadosa do armamento, equipamento, munições… os cantis estão cheios? Tudo em ordem?

Partimos, em silêncio como convinha, e embrenhámo-nos na mata. Olhos e ouvidos atentos, mão firme nas armas, prontos a reagir. Tudo vimos com cuidado, explorando indícios e tentando descobrir onde se acoitavam. Trilhos bem pisados pelo uso, mas as poucas palhotas que fomos encontrando estavam abandonadas, algumas recentemente, outras há semanas. Contacto, nenhum. Nem vê-los. De vez em quando soava um tiro isolado, talvez de aviso, e nada mais. Ao fim da manhã atingimos Cachida, que se encontrava abandonada, e derivámos em direcção à picada que liga Cassaca a Cachil.

Desde a manhã que nessa zona da mata de Cachil o 7º Dest de Fuz. estava fixado por um grupo de cerca de 50 guerrilheiros, bem armados e municiados, que os flagelava a partir da orla da mata de Cassaca. Uma secção dos fuz. chegou a estar isolada e cercada cerca de 45 minutos.


Guiné > Ilha do Como > 1964 - Um 'palácio à beira mar'. Um 'turista descontraído'

© Mário Dias (2005)

Conseguimos chegar ao local e detectamos a retaguarda do In. que atacámos causando-lhes baixas. Como a reacção não foi grande, deduzimos - ingenuamente como em breve viríamos a verificar - que se tinham posto em fuga e iniciámos a travessia de uma zona descampada, lisa como um campo de futebol e de capim muito rasteiro, com o intuito de nos juntarmos aos fuzileiros que nos aguardavam do outro lado. Ainda não íamos a meio quando estalou a fuzilaria vinda de um ponto mais a oeste da orla da mata que acabávamos de deixar.

Chão… rebolar…responder ao fogo… procurar alguma abrigo… não há nada, tudo liso como a careca de um careca. Eles não paravam o fogo, nós também não. Mas estávamos a descoberto, alvos fáceis.

O alferes Godinho gritando para o Saraiva:
- Porra, que estamos aqui a fazer? Vamos embora. - E fomos. Em lanços, uma equipa correndo em zigue-zague, as outras cobrindo, a equipa instala-se, outra se levanta e a ultrapassa, instala-se, outra faz o mesmo e assim conseguimos percorrer os 200 metros daquela maldita clareira, debaixo de cerrado fogo, sem qualquer arranhão, juntando-nos aos fuzileiros.

Quando recordo este episódio, lembro-me sempre do logro em que fiz cair um guerrilheiro e que me salvou a vida. Faltando-me alguns metros para atingir a orla da mata onde teria abrigo seguro, vi no chão os impactos de uma rajada mesmo junto aos meus pés. Bom, esta não é à toa, é mesmo apontada para mim. De imediato, nem sei mesmo como me ocorreu tal estratagema, armei-me em artista de cinema quando atingido por disparos e, abrindo os braços, mandei um salto deixando-me cair de costas desamparado. Remédio santo. A rajada que me era dirigida parou. Fiquei no chão alguns instantes, quietinho, e de repente, ala que se faz tarde. Alcancei a segurança da mata onde já estavam quase todos os elementos do grupo. Os restantes não tardaram a juntar-se a nós.

Os paraquedistas tiveram menos sorte. Como vinham atrás de nós, ao ouvir o tiroteio que nos atingia na clareira, resolveram atravessá-la um pouco mais a leste. O resultado foi terem demorado mais tempo permitindo a reorganização do IN que lhes dificultou seriamente a travessia da clareira. Tiveram um morto e um ferido grave.

Juntas todas as tropas, caminhámos até Cachil, onde estava em construção uma espécie de quartel para uma companhia que lá ficaria instalada, ocupando e patrulhando a ilha, uma vez terminada a Op Tridente. Era uma construção sui generis pois não passava de uma enorme paliçada feita com troncos de palmeira a pique para servir de abrigo. Parecia um cenário de filme de índios contra a cavalaria americana.

No rio esperava-nos uma LDM que nos trouxe de volta à base. Oh praia, lá vamos nós.

A 17 de Fevereiro, o grupo de comandos recebeu a missão de bater a mata desde o Norte de Curcô até Cauane. Confirmando a nossa convicção de que os guerrilheiros do PAIGC estavam a ficar enfraquecidos, não houve oposição à nossa penetração na mata que, até há pouco tempo, tinha sido um santuário que não deixavam profanar.

Apenas a cerca de 1 km a Norte de S. Nicolau se ouviram dois disparos de espingarda - código por eles usado para avisar que andava por ali a tropa e se esconderem. Prosseguimos a nossa patrulha em direcção a Cauane onde, sensivelmente no local do nosso primeiro contacto com o IN nesta operação (quando morreram dois fuzileiros), fomos flagelados com alguns tiros de PPSH (3) e Metralhadora, mais com o propósito de nos manter afastados do que nos enfrentar. Reagindo, abatemos um elemento IN. Alcançamos Cauane e daí a praia da Base Logística.

Estávamos de novo “ em casa”.

(Continua)
____

Notas de L. G.

(1) A metralhadora ligeira PPSH era conhecida, no meu tempo, por costureirinha, devido ao seu inconfundível e enervante som, parecido com o de uma máquina de costura, manual, tipo Singer.

(2) LDM= Lancha de Desembarque Média

(3) Vd post de 17 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXVI: Antologia (25): Depoimento sobre a batalha da Ilha do Como . o 1º cabo Ganhão pertencia à CCAV 489, comandada pelo capitão Pato Anselmo.

Guiné 63/74 - P355: Aquelas noites frias de Dezembro (1) (Luís Graça / Humberto Reis)

1. Texto do Luís Graça:

Agradeço ao Zé Neto, que é capitão e eu não sou, a preocupação com o rigor em relação ao calibre das armas. Eu era de armas pesadas de infantaria, pelo que não percebia nada de artilharia... E o pouco que sabia, confesso que esqueci... Para mais, deram-me uma G-3, quando fomos para a guerra... A minha tropa-macaca não tinha canhão sem recuo nem morteiro 80 (81, 82 ?)... Merda, esqueci o calibre do nosso morteiro!... Ficam os tertulianos a saber que em artilharia quando se diz que o obus é de 14, estamos a falar em cm: 14 centímetros, que é já um calibre de respeito!... Em infantaria devia-se usar o mesmo padrão mas não: não se diz morteiro 6 (o que se diz é morteiro 60 mm). Enfim, cada arma tem os seus tiques (... e os seus traques).

Quero também com isto dizer que temos de manter o moral das tropas elevado, mesmo que a linguagem continue a ser de caserna, ordinária... Boa disposição, camaradas, apesar do frio, das intempéries, da seca, do aquecimento global, da crise, da nossa baixa autoestima colectiva, enfim, de mais um ano que não deixa puto de saudades, etc. Sejamos nós, ao menos, os velhos tugas, a manter acesa e viva esta nossa arte de (sobre)viver. Há um milénio: é obra!

A propósito, recordo que nunca rapei tanto frio na Guiné como no final do ano: à noite as temperaturas chegavam aos 15 graus e nem o uísque aqueciam os nossos pobres corações... Quem se lembra destes tempos fodidos, das emboscadas à noite no perímetro de segurança dos aquartelamentos, destacamentos, tabancas ?!... Para não falar, das noites no mato, em operações... Quem quer falar disto, para além do Briote, do Dias, do Parreira, do Lopes e de outros grandes operacionais que temos na tertúlia ? Eu fico para as faltas... De qualquer modo, camaradas, eu acho que todos nós já merecemos... o céu! Um abraço do Luís Graça.

2. Comentário do Humberto Reis:

Eu lembro-me bem, tu também te deves lembrar, tal como todos os que foram operacionais.

A desgraçada da CCAÇ 12, naqueles sectores L1 e L5 (do Enxalé, na margem Norte do rio Geba, até Galomaro e ao Saltinho), era pau para toda a obra.Tinha, em permanência, um pelotão no destacamento da Ponte (estrada Bambadinca-Xime) e tinha que TODAS AS NOITES colocar um outro pelotão nos arredores de Bambadinca a fazer a segurança ao aquartelamento para que "dentro do arame farpado" se pudesse dormir mais descansado.

De manhã, após uma bela noite a alimentar os mosquitos e depois dos Senhores da Guerra já terem feito o seu soninho mais tranquilo, quando o pelotão regressasse estava sujeito a sair para mais uma operação.

Aquando da abertura do novo itinerário Bambadinca-Xime (quando viemos embora em Março de 71, ainda não estava totalmente asfaltado) era exactamente o pelotão que tinha estado toda a noite emboscado que tinha de ir, com mais outro, fazer a segurança ao pessoal civil (era a empresa TECNIL) que estava a trabalhar nesse empreendimento. Só da parte da tarde estes dois pelotões eram substituídos por pelotões do Xime e regressavam então a Bambadinca.

Houve uma altura em que o comando do Batalhão sediado em Bambadinca (tinha a CCS com um Pel Rec, um Pel Sap, um Pel Morteiros, um Pel Daimler, um Pel Intendência e um Destacamento de Engenharia) ainda queria que o pessoal operacional da CCAÇ 12 fizesse serviços dentro do aquartelamento (oficial de dia, sargento de dia, cabo de dia, reforços, etc.).

Claro que eles pagavam HORAS EXTRAORDINÁRIAS, davam SUBSÍDIO DE REFEIÇÃO (em vales da Ticket Restaurante), um mês de férias com SUBSÍDIO, um 13º MÊS e uma mama de fora. Reclamei junto do nosso Capitão Brito (arrisquei levar uma porrada mas não levei por duas razões, nem eu fui malcriado ao ponto de ultrapassar os limites e ele é um bom homem) - Ele lá se convenceu e convenceu também o comando, da injustiça de tal situação e isso acabou logo após alguns dias.

Estórias que ajudam a fazer a História do nosso país, daquele país, daquele povo tão massacrado. Merecem melhor sorte.

Para TODOS UM SANTO NATAL.
Humberto Reis

quinta-feira, 15 de dezembro de 2005

Guiné 63/74 - P354: CCAÇ 2381 (Buba e Empada, 1968/70) (José Teixeira)

Guiné > Empada > CCAÇ 2381 (1968/70) > Pela lei, pela grei

© José Teixeira (2005)

Texto do José Teixeira (ex-1º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381).

A CCAÇ 2381 chegou à Guiné a 6 de Maio de 1968, proveniente de Abrantes.

Seguiu directamente para Ingoré (1), no norte, onde se instalou até meados de Julho, tendo efectuado aí o treino operacional.

Foi deslocada para Aldeia Formosa [ou Quebo] no sul da Guiné (2), onde teve como missão, fazer escoltas de segurança às colunas-auto com mantimentos entre Aldeia Formosa, Buba e Aldeia Formosa, Gandembel, ao mesmo tempo que garantia a auto defesa de Aldeia formosa, Mampatá e Chamarra (3).

Em Janeiro de 1969 seguiu para Buba (4). A sua missão desdobrou-se na protecção ao pelotão de engenharia que procedia aos trabalhos de abertura da nova estrada entre Buba e Aldeia Formosa e os trabalhos de combate à penetração do inimigo na área de defesa local.

Completou a sua missão na Guiné a partir de Maio de 1969 até ao regresso em Maio de 1970 no Sub-sector de Empada (4), por cujo comando foi responsabilizada, tendo mantido dois grupos de combate em Buba até Dezembro do mesmo ano.

Os principais objectivos globais da actividade desenvolvida em teatro de guerra foram:

- Evitar o alastramento da subversão e atrair as populações à defesa comum dos objectivos por que se lutava em nome da Pátria;

- Garantir a protecção necessária às populações; verificar e ajudar na sua auto defesa;

- Escorraçar o inimigo, criando-lhe um clima de insegurança e enfraquecê-lo nas suas capacidades, quer morais, quer operacionais e anímicas;

- Garantir o reabastecimento com segurança e eficiência a Aldeia Formosa, Gamdembel, Mampatá e Chamarra, através de colunas auto e/ou protecção às mesmas;

- Garantir a segurança aos homens e máquinas que dinamizavam o projecto de abertura da nova estrada de Buba para Aldeia Formosa, não permitindo nesta sua acção, que o IN contrariasse o espírito de incrementar melhoramentos no modo de vida das populações, que o governo da colónia (sic) estava a desenvolver.

A CCAÇ 2381 aplicou-se com garra e dinamismo para atingir as missões que lhe foram atribuídas, com o cuidado necessário para regressar completa, como era o seu sonho e compromisso de partida.

Recebeu várias referências honrosas dos comandos a cujas ordens serviu, das quais se salienta o seguinte louvor:

"Louvo a CCAÇ 2381 pela sua actuação no sub-sector de Empada, o qual mantém devidamente controlado pela persistente tenacidade do seu Comandante. E não é de estranhar o valioso contributo que deu à luta por uma GUINÉ MELHOR, no período em que esteve dependente do BCAÇ 2892, uma vez que antes disso, sempre demonstrou nas inúmeras acções em que esteve empenhada, desde o início da sua Comissão na Província, em 6 de Maio de 1968, possuir em alto grau espírito de missão. Tendo actuado no Norte da Guiné e depois na Zona Sul, na maioria dos sub-sectores do “S- 2” e em Gandembel, evidenciou através dos seus valiosos combatente, sacrifício, coragem e muita abnegação em todas as missões em que foi incumbida. Por tudo isto e na hora da sua partida para a Metróple, bem merecem Oficiais, Sargentos e Praças da CCAÇ 2381, serem lembrados como exemplo, aos camaradas que depois deles continuam a luta pela causa comum" (O.S nº 37, de 11 de Fevereiro de 1970, do BCAÇ 2892).

Infelizmente não foi possível cumprir o objectivo principal que se propunham atingir – o de voltarem todos à mãe Pátria. Lamenta-se a morte de dois combatentes em missão e um por acidente, para além de 35 feridos, alguns dos quais tiveram de ser evacuados para Lisboa.

Do seu historial de combate, regista-se:

- 405 emboscadas montadas;

- 93 escoltas a colunas auto com mantimentos ou de construção da estrada de Buba;

- Participação em 479 Patrulhas e em 15 Operações de Guerra;

- Captura de cerca de meia tonelada de diverso material de guerra.

O IN também não deu tréguas:

- A CCAÇ 2381 sofreu 50 ataques a aquartelamentos e 16 emboscadas, dos quais resultaram os mortos e feridos acima mencionados .

“OS MAIORAIS” - totem com que se identificavam os seus homens - durante a Missão na Guiné, tinham como lema “Pela Lei e pela Grei”, o qual reflectia o espírito que os animava – Fazer cumprir a Lei, sem esquecer nunca que os autóctones com quem se cruzavam e que procuravam viver em paz com Portugal, eram pessoas, independentemente da raça ou cor e como tal teriam de ser respeitadas.

Regressou a Lisboa em Maio de 1970 consciente de ter cumprido a missão que lhe tinha sido atribuída.
__________

Notas de L.G.

(1) Ingoré fica a oeste de Barro, na região do Cacheu, junto à fronteira com o Senegal

(2) Aldeia Formosa (ou Quebo) fica a sul do Xitole, na actual região de Tombali, a sudoeste de Buba, perto da fronteira da Guiné-Conacri. (Vd. mapa geral da Guiné, 1961)

(3) Mampatá e Chamarra ficam nas proximnidades de Aldeia Formosa.

(4) Buba fica na região de Quínara.

(5) Empada fica a oeste de Buba, na margem esquerda do Rio Grande de Buba, frente a Bolama.

Guiné 63/74 - P353: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): Parte I (Mário Dias)




Infografia: © Mário Dias / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2005)


1. Texto da autoria do Mário Dias, sargento comando, reformado (Brá, 1963/66):

OPERAÇÃO TRIDENTE
Ilha do Como – Guiné
De 14 de Janeiro a 24 de Março de 1964

I Parte

A designada Ilha do Como é, na realidade, constituída por 3 ilhas: Caiar, Como e Catunco mas que formam na prática um todo, já que a separação entre elas é feita por canais relativamente estreitos e apenas na maré-cheia essa separação é notória.

Na ilha não existia qualquer autoridade administrativa nem força militar pelo que o PAIGC a ocupou (não conquistou) sem qualquer dificuldade em 1963.

 As tabancas existentes são relativamente pequenas e muito dispersas. Possui numerosos arrozais, o que convinha aos guerrilheiros pois aí tinham uma bela fonte de abastecimento, acrescido do factor estratégico da proximidade com a fronteira marítima Sul e o estabelecimento de uma base num local que facilitava a penetração na península de Tombali e daí poderia ir progredindo para Norte.

Não tinha estradas. Apenas existia uma picada que ligava as instalações do comerciante de arroz, Manuel Pinho Brandão (na prática, o dono da ilha) a Cachil. A partir desta localidade o acesso ao continente (Catió) era feito de canoa ou por outra qualquer embarcação. A casa deste comerciante era, se não estou em erro, a única construída de cimento e coberta a telha.

Portugal não exercia, de facto, qualquer espécie de soberania sobre a ilha. Tornava-se imperioso a recuperação do Como.

Guiné > Ilha do Como > Op Tridente (1964) > LDM: Desembarcando tropas

Foto (e legebda) © Mário Dias (2005). Todos os direitos reservados

Foi então planeada pelo Com-Chefe a Operação Tridente na qual foram envolvidos numerosos efectivos, divididos em 4 Agrupamentos.





AGRUPAMENTO A: (Cmdt Major Cav Romeiras)
CCAV 487 (Cap Cidrais)
7º Dest de Fuzileiros Especiais (1º ten R. Pacheco)

AGRUPAMENTO B: (Cmdt Cap Cav Ferreira)
CCVA 488 (Cap Arrabaça)
8º Dest de Fuzileiros Especiais (1º ten Alpoim Calvão)

AGRUPAMENTO C: (Cmdt Cap Cav Cabral)
CCAV 489 (Cap Pato Anselmo)

AGRUPAMNETO D: (Cmdt 1º ten fuz Faria de Carvalho)
2º Dest de Fuzileiros Especiais (1º ten Faria de Carvalho)

AGRUPAMENTO E: (Cmdt Cap Aires)
CCAÇ 557
(Nota: salvo erro, este agrupamento fazia a segurança imediata da Base Logística)

OUTRAS FORÇAS:

1 Grupo de Combate / BCAÇ 600
Grupo de Comandos (20 homens) (Cmdt Alf Saraiva)
1 Pelotão de Paraquedistas
1 Pelotão de Caçadores Fulas
Pelotão de morteiros / BCAÇ 600
2 Bocas de fogo de obus 8,8 do BAC (Cmdt Alf Carvalhinho)
Equipas de Sapadores (distribuídas pelos vários agrupamentos)
Elementos do Serviço de Intendência
73 carregadores indígenas.
Tudo somado eram aproximadamente 1000/1200 pessoas.

Estima-se que o PAIGC tivesse 300 combatentes, incluindo alguns militares da Guiné-Conacri.

Comandante das Forças Terrestres: Ten Cor Cav Fernando Cavaleiro. (Cmdt do BCAV 490)

DA MARINHA:

Fragata Nuno Tristão.
4 lanchas de fiscalização
4 LDP
2 LDM

Havia ainda várias embarcações civis pertencentes aos Serviços de Marinha da província que transportavam víveres, água e demais material necessário.

DA FORÇA AÉREA:

Aviões T6 – Aviões F86 – PV2 e PV2-5 (Apoio de combate)
Helicópteros Alouette (transporte e evacuações)
Aviões Auster e Dornier (transporte e reconhecimento)

DESENROLAR DA ACÇÃO

As linhas que se seguem, não pretendem ser uma exaustiva e maçadora narrativa estilo "Relatório de Operações". Tão pouco pretendo ter a veleidade de tudo conseguir descrever porque não vi o que se passou em todos os locais da ilha. Limito-me a narrar os combates em que participei e de que forma vivi aqueles 68 dias.

Assim, mesmo sem abordar o que aconteceu noutros locais (como, por exemplo, em Cantunco e Curcô onde esteve o Joaquim Ganhão cujo testemunho já foi narrado neste blogue na “Crónica do Soldado 328”) (1), a noção que me ficou da Op Tridente é suficiente para esclarecer as dúvidas e autênticas mentiras que sobre ela têm sido propaladas por diversos autores, alguns deles com acrescidas responsabilidades.
Conto em breve fazer uma intervenção no Fora-nada desmascarando as falsidades que sobre este assunto têm sido escritas.

CRÓNICA DOS BONS E DOS MAUS MOMENTOS DO COMO

1. A caminho

Ao princípio da noite de 14 de Janeiro de 1964, a fragata Nuno Tristão deixava para trás o Ilhéu dos Pássaros e, dirigindo-se para a Ponta Oeste da Ilha de Bolama, rumou a Sul.

A bordo, instalados como era possível, os elementos que formavam o Grupo de Comandos (20 homens) escutavam atentamente as indicações (poucas) que o alferes Saraiva, comandante do grupo, ia debitando. Ninguém sabia o que nos poderia esperar no Como mas a boa disposição reinava e a confiança nas nossas capacidades era grande.

A avaliar pelo aparato que tinha reinado na ponte-cais de Bissau durante o embarque de tantas unidades militares, equipamentos, caixas, caixotes, cunhetes de munições e demais tralha afanosamente encafuada, sem contar com as lanchas de desembarque e alguns navios requisitados para o efeito cheios de pessoal e de material que já haviam zarpado, pessoalmente eu antevia que não seria pêra doce.

Não foi fácil conciliar o sono. A expectativa era grande e grande era também uma certa "raiva" por não nos ser dito exactamente qual a nossa verdadeira missão nem os objectivos definidos o que, para quem não gosta de trabalhar às cegas, constituía sério embaraço.

Sabíamos apenas que íamos desembarcar na Ilha do Como para a sua reocupação. Nem ao menos nos foi dito por quanto tempo se estenderia esta missão pelo que não levávamos connosco o indispensável para uma longa permanência, como acabou por acontecer.

As manobras do "lançar ferro" da fragata acordaram-me. Devido à pouca profundidade do mar, a Nuno Tristão ancorou um pouco longe de terra. Começaram os preparativos da transferência das unidades que fariam parte da 1ª vaga de assalto para as LDM.

Ao nascer do dia 15, surgiram os aviões de ataque ao solo ao mesmo tempo que as peças de bordo e artilharia de Catió bombardeavam os locais de desembarque cobrindo o avanço das tropas que iam ao assalto das praias para instalarem testas de ponte que permitissem a chegada do grosso dos efectivos e instalação da logística.

O Grupo de Comandos não fez parte desta 1ª vaga. Como disse o alferes Saraiva, estávamos guardados para outras missões. Nem fazíamos uma pequena ideia de como elas se viriam a revelar tão difíceis.

Estando, pois, a bordo da Nuno Tristão, encostado à amurada, fui acompanhando as lanchas rumo à ilha, cuja vegetação em que dominavam as palmeiras, se recortava no horizonte não muito distante. Os aviões largavam a sua carga mortífera, os obuses de Catió flagelavam a parte da ilha junto ao canal que a separa do continente. Na linha da costa mandavam as peças da Nuno Tristão e os “picanços” dos aviões metralhando. Julguei-me num cenário do dia D na Normandia. Era idêntico, salvas as devidas proporções.

Quando acabaram os fogos de apoio, começou a ouvir-se o crepitar de rajadas num tiroteio impressionante. Muito ao longe, é certo, mas ouviam-se. De imediato pensei: pronto, já chegaram. Vão conseguir? Haverá muitas baixas? A incerteza do que se passava deixou-me muito mais nervoso do que se lá estivesse a combater. Preferia ter ido com eles.

Suspiro de alívio quando soubemos que tinham conseguido e que o inimigo não tinha oferecido muito resistência retirando-se para o interior da ilha. Era de esperar. O PAIGC, certamente sabedor do que se iria passar, deve ter deixado apenas alguns guerrilheiros junto à praia, só “para chatear”, instalando o grosso do efectivo na densa mata do centro da ilha. As lanchas de desembarque continuaram em sucessivas levas a transportar o pessoal embarcado na fragata para terra, nesse dia e no seguinte.


2 – Fervet opus [locução latina que significa "ferve o trabalho", LG]

 
Finalmente. Chegou a nossa vez. No bojo de uma LDM rumámos a terra. Alcançada, baixada a rampa de desembarque, pisámos a areia do Como. Nada de tiros. O IN, naquele local, já não mandava nada. Populações e guerrilheiros que se encontravam na orla do mar já se haviam refugiado na densa mata do interior. 

Não fora a azáfama da tropa e dos carregadores a amontoar caixas de ração de combate, cunhetes de munições e de granadas, jericãs de plástico com água, barris de vinho, grades de cerveja – que tanto jeito deu para compensar a tremenda falta de água potável naquela ilha - não fora essa azáfama, e julgaria estar numa paradisíaca ilha do Pacífico. Linda praia… local de sonho.

Rajadas, não muito longe, acordaram o meu devaneio. Era em Cauane, disserem, onde se encontrava a CCAV 488 e o 8º DFE na tabanca que era o posto mais avançado e próximo do IN e que viria a ser o local de maior resistência à nossa penetração na mata. Era para lá que iríamos.

Enquanto na base logística, junto ao mar, se montavam as tendas de campanha que serviriam de posto de primeiros socorros, sala de operações, instalações para o comando e outras, se cavavam abrigos à volta do perímetro defensivo, se instalavam postos de vigia, se abriam as indispensáveis latrinas, iniciámos a marcha para Cauane.

Atravessado o palmar que bordejava a linha de costa, encontrámo-nos num terreno bastante arenoso e com pouca vegetação, onde os pés se enterravam exigindo redobrado esforço muscular.

Um pouco mais à frente surgiu um braço de ria, na altura com pouca água por ser baixa-mar, com o indispensável e habitual lodo e tarrafe. Para atravessar, bem no fundo daquela vala, um tronco de árvore já muito gasto pelo uso e que só permitia passagem na maré vazia. Devido a esse inconveniente, mais tarde, juntamente com os fuzileiros, cortámos alguns troncos de palmeira – abundantes nas margens desse e de outros cursos de água – e com eles foi improvisada uma ponte que permitia a passagem a qualquer hora. Mais tarde ainda, essa ponte foi substituída por outra construída por pessoal da Engenharia com tubos de andaime e madeira.

Atravessado sem percalços este obstáculo natural, eis – nos na extensa bolanha que se estende até Cauane e à mata de Cachil mais a Norte. Aí, só era possível andar sobre os estreitos ouriques pelo que lá vamos nós em coluna um por um (a célebre "bicha de pirilau", na gíria militar) nada aconselhável em terrenos descobertos.

(Continua)
__________

Nota de L.G.

(1)Vd. post de 17 de Novembro 2005 > Guiné 63/74 - CCXXVI: Antologia (25): Depoimento sobre a batalha da Ilha do Como

Guiné 63/74 - P352: Comandos: a equipa dos Fantasmas (1964) (João Parreira)


Guiné > 1964 > Brá, Comandos > Equipa Os Fantasmas.

© João Parreira (2005)


Caro Luís Graça,

Junto envio uma foto do Furriel Artur Pereira Pires (ao meio, de bigode), a quem fui substituir, e da sua equipa, os Fantasmas, composta por António Joaquim Vieira Ferreira, Manuel Coito Narciso, José da Rocha Moreira e João Ramos Godinho.

Foram umas das vítimas do rebentamento da mina em 28 de Novembro de 1964 (1).

Um abraço.
JP

João Parreira, ex-furriel miliciano comando (Brá, 1965/66)
______

(1) Vd. post de Virgínio Briote, de 13 de Dezembro 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXV: Brá, SPM 0418 (3): memórias de um comando (Virgínio Briote).

Extracto:

"Novembro de 64, dia 28. Na estrada de Madina do Boé para Contabane, a uma escassa centena de metros do pontão sobre o rio Gobige, os Fantasmas detectaram uma mina anti-carro. Levantaram a mina e simularam o rebentamento. Ficaram emboscados nas proximidades cerca de 2 horas. Viram um grupo IN aproximar-se e afastar-se logo que deram pela presença de mulheres na estrada. Uma hora depois viram um elemento IN a fugir. Afinal, estavam em igualdade de circunstância, todos sabiam da presença uns dos outros.

"No dia seguinte voltou com o grupo ao local. Meteu-se com alguns soldados no Unimog mais pequeno à frente, e encaixou dezasseis militares no Unimog maior atrás. A 1ª viatura passou, a outra, uma dezena de metros atrás, não. Pisou uma mina. Ao mesmo tempo que em cima deles caía uma chuva de balas de armas automáticas, o Unimog incendiou-se e as munições explodiram como foguetes num arraial minhoto. Quase todos os homens foram projectados a arder. 7 mortos logo ali e três feridos graves. Tinham partido 22 de Bissau, regressaram doze. Com o grupo dizimado, poucos dias depois arrancou com os restantes para uma operação".

Guiné 63/74 - P351: Histórias do Como (Mário Dias)

Amigo Luis Graça,

Conforme prometido, está pronta a história do que se passou no Como, tal como eu vi e vivi (1).

Por ser um ficheiro um pouco extenso, vai em anexo e zipado.

A tão longa distância, 42 anos, é natural que algo me tenha escapado O esencial, porém, está aí.

Mas como as memórias da Guiné não são só, felizmente, da guerra, vou em breve enviar um pequeno relato de como era celebrado a Natal no antigamente .

Um grande abraço
Mário Dias
_____

(1) As histórias do Como seguem dentro de momentos ou horas, dependendo do tráfego na blogosfera e da disponibiliddae do bogador... De qualquer modo agradeço ao Mário este testemunho fundamental sobre uma das mais importantes (e pouco conhecidas) batalhas da guerra colonial na Guiné... Fico, por outro lado, à espera da estória de Natal. L.G.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2005

Guiné 63/74 - P350: Tabanca Grande: A doença da sôdade (José Teixeira da CCAÇ 2381, Empada, 1968/70)

Camarada

Sou mais um antigo combatente da Guiné que trouxe a maravilhosa doença da sôdade.
Estive na Guiné como Enfermeiro entre 1968/70,  como cabo enfermeiro na CCAÇ 2381 - Os Maiorais de Empada.

Em Abril deste ano tive a feliciade de voltar às terras por onde passei, com um grupo de amigos entre os quais o Xico Allen (Xico de Empada).

Tenho acompanhado o debate gerado no seu (nosso) Blogue e deparei com um testemunho sobre o drama de Guileje que de algum modo foi o início do fim da guerra.

O autor afirma que gostava de obter algum testemunho por parte do então IN.

No site Guiné Bissau- Contributo, encontrei um texto de um historiador guineese que dá uma perspectiva do outro lado e que com a devia vénia junto (1).

José Teixeira
________

Nora do editor:

(1) Trata-se do texo do nosso amigo e tertuliano Leopoldo Amado (Gadamael, Guidale e Guiledje: G's que decidiram o final do Império colonial). Ainda não publiquei este documento, na secção Antologia, pela simples razão de estar a aguardar uma versão nova, actualizada, que me foi prometida pelo autor. L.G.

Guiné 63/74 - P349: Guileje, terra de fé e de coragem


Guiné> Guileje > Capela existente no tempo da CART 1613 (Junho de 1967/Maio de 1968).

Foto de José Neto, capitão reformado, cedida à AD - Acção para o Desenvolvimento, e enviada à nossa tertúlia pelo Pepito (2005).

Amigos & camaradas:

Chegam-nos novos documentos sobre o mítico aquartelamento de Guileje que, já no meu tempo (1969/71), na zona leste, era cantado pelos nossos soldados, a par de Gadamael... Contavam-se estórias, reais ou imaginárias, de fé e de coragem, dos nossos camaradas que aguentavam a frente sul... É pena terem-se perdido as letras dessas canções e o teor dos boatos e das notícias que nos chegavam, a Bissau, a Bambadinca, a Bafatá.

Guiné-Bissau > Guileje > 2004.
Restos de uma lápide, que pertencia à capela do aquartelamento, e onde se faz referência aos gringos açorianos (CCAÇ 3477, Dez 1971/Dez 1972; ou CCAV 8350, Dez 1972/Mai 1973 ?).

"Santo Cristo dos Milagres
Nesta capelinha oramos
Para sempre sorte dares
Aos Gringos Açorianos"

© Francisco Allen (2005)

O Albano Costa, que esteve no norte, em Guidage, mandou-nos fotos do sul, de Guileje:

"Aqui vão mais umas fotos com a devida autorização do autor, foram tiradas em 2004, aquando de mais uma ida, entre muitas, à Guiné pelo nosso amigo Francisco Allen, espero que sejam úteis para a reconstrução do destacamento".

Guiné > Guileje > 2004 > Restos de granadas de obus 14 cm

© Francisco Allen (2005)

O Francisco Allen é amigo do Albano e, pelo que sei, é fã da Guiné-Bissau. Pertenceu à CCAÇ 2381 (Empada, 1968/70). Publicamos hoje algumas das fotos que ele nos mandou, por intermédio do Albano. Faço votos para que ele aceite a minha proposta para percenter à nossa tertúlia, proposta essa que lhe dirigi através do Albano.

O Pepito, por sua vez, envia-nos "uma foto com uma nova placa que desenterrámos junto à antiga capela", a par de "uma foto do Capitão Zé Neto, com a capela [de Guiledje] ainda inteira"... Recorde-se que a unidade do Zé Neto, na altura, 2ºsargento, era a CART 1613 (Jun 1967/Mai 1968).

Guiné > Guileje > 2005 > Lápide encontrada sob os escombros do antigo aquartelamento, e que pertencia à capelinha. Nela há os seguintes dizeres, gravados:

"A Ti, Deus Único E Senhor
Da Terra, Oferecemos Estas
Gotas De Suor Que Nos
Sobrararam da Luta Pela
Tua Palavra Eterna.
Soldados da C.A.R.T. 1613"

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)

Sobre este famosa lápide acrescenta o Zé Neto, nosso camarada de tertúlia e protagonista deste filme: "A placa da Capela foi feita em cimento forte e não em cobre. A dedicatória é minha e a inscrição em baixo-relevo foi obra do Furriel Miliciano de Transmissões Maurício Mota de Almeida, natural de Fornos de Algodres, mas radicado há muito nos EUA. Este moço veio de propósito a Portugal para estar presente no Almoço/Convívio da CART 1613 que teve lugar em Braga no passado dia 3 de Junho. Aliás é com muito orgulho que acrescento que dos meus 14 "excepcionais Furriéis" compareceram 12 (um falececeu há pouco), portanto só faltou um".

Ao ver estas novas fotos, fico na dúvida sobre quem eram, afinal, os gringos açorianos. A CCAV 8356, a companhia açoriana que lá estava em Maio de 1973, e que o comandante do COP 5, Major Coutinho e Lima, mandou evacuar para Gadamael, também era conhecida por "Piratas de Guileje". E o seu lema, que ficou gravado na pedra, era ironicamente: "Glória com Valor"...

Guiné > Guileje > 2005 > Monumento evocativo da CCAV 8356 (72/74) - "Piratas de Guileje"

© Francisco Allen (2005)

Estes homens, que foram obrigados a retirar de Guileje, sob o feroz cerco dos guerrilheiros do PAIGC, ainda transportam consigo o opróbio do abandono e da derrota...

Como é que eles sobreviveram a isto ? Não sei, um dia gostaria de ouvir o testemunho do valoroso combatente que foi o Casimiro Carvalho, ex-furriel miliciano "ranger", desta unidade, trazido a esta tertúlia pela mão de outro "ranger", o Magalhães Ribeiro (1)...

Também não sei como terão sidos os últimos destes valorosos acorianos, em Gadamael. Sabemos que tiveram 9 mortos e muitos feridos.

O Pepipo já identificou, até agora, muitos sítios, tais como (da esquerda para a direita): (i) abrigo subterrâneo da população; (ii) casa de fotos (?); (iii) paiol; (iv) gerador; (v) posto de sentinela; (vi) casa de sargentos (?) / geral; (vii) messe de sargentos/residência; (viii) messe de oficiais / residência; (ix) posto de socorros; (x) capela; (xi) administração (?); (xii) refeitório de soldados / cozinha


Guiné - Bissau > Guileje > 2005 >

Projecto de reconstrução do antigo aquartelamento (2)


O Pepito diz-me que, se tudo correr bem, estamos todos convidados para ir inauguar o seu projecto de ecoturismo e de museologia daqui a um ano. E se lá formos, todos ou alguns de nós, iremos certamente prestar uma homenagem a todos os combatentes, de um lado e de ouro, que em Guileje foram um exemplo de fé e de coragem: fé e confiança nos valores por que lutavam; coragem e valor nas acções em que estiveram empenhados...
__________

(1) Vd. post de 2 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVIII: No corredor da morte (CCAV 8350, Guileje e Gadamael, 1972/73)

(2) Vd. post de 10 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLV: Projecto Guileje (7): recuperação do quartel

Guiné 63/74 - P348: A Nossa Foto de Natal 2005


Guiné > Guiné > 2005 > Apropriações...
Foto de Carlos Schwrz (Pepito) (2005)

1. Olá, Luís

Há dias falava-te de apropriação da língua portuguesa (1).
Depois de vir ontem de Guiledje, onde tirei esta fotografia, posso-te falar de apropriação pela natureza: uma carcaça de camião com mais de 30 anos, envolvida por uma árvore que entretanto por lá nasceu. Nem que se queira, não se pode tirar o esqueleto de lá....
abraços
pepito

2. Comentário de L.G.
Amigos & Camaradas: É simplesmente fabuloso!... Vejam só!... Já agradeci, mais uma vez, ao Pepito (ou Carlos Schwarz, da AD, do Projecto Guiledje)… Mas ele também está à espera de contributos nossos: quanto mais não seja irmos lá inaugurar o ecoturismo de Guiledje/Cantanhez daqui a dois anos (?) (2).

Vamos fazer um concurso para a melhor legenda para esta foto. O Pepito já deu o mote: Apropriações… Eu acrescentei outra: A Mãe Natureza não perdoa nem desperdiça… Mas também podia ser: O abraço da paz
3. Respostas / mensagens que têm chegado:
João Tunes > "Uma árvore vingou-nos do absurdo ao rir-se da guerra feita ferrugem"

Humberto Reis > "Íntima Cooperação Portugal/Guiné-Bissau"

António Levezinho > Contributo para a legenda da impressionante foto : "Naturalmente fez-se História"... Com um abraço e votos de uma Quadra Feliz.
______________

Notas de L.G.

(1) Vd. post de Pepito, de 6 Dezembro 2005 > Guiné 63/74 - CCCXL: O melhor que Portugal nos deixou foi a língua (Pepito)

(2) "Se correr tudo bem, espero-vos cá daqui a um ano" (manda dizer o Pepito, na volta do correio)

terça-feira, 13 de dezembro de 2005

Guiné 63/74 - P347: Brá, SPM 0418 (3): memórias de um comando (Virgínio Briote)


Guiné > 1966 > Comandos a caminho de Bafatá, junto ao Dakota para operações na região do Xitole. Nessa época, o helicóptero ainda era um luxo...

© Virgínio Briote (2005)

Caro Luís,

A minha memória desses tempos foi passada a escrito com base em diários incompletos e muitas vezes interrompidos. Recorri a relatórios oficiais de operações feitas pelo grupo e a documentos escritos, depoimentos e diários de camaradas de outros grupos. Concluí-a dois meses depois de ter chegado e com a intenção de não voltar a pensar no assunto.

Depois dos episódios de Barro (*) fiquei convencido que a guerra na Guiné ia mesmo ter uma saída, aquele bravo povo ia tornar-se independente.

Mas fiz questão de respeitar o espírito que na altura vigorava entre nós, em Brá. A razão da nossa missão era fazer a guerra com eficácia, procurando trazer para o nosso lado a população que vivia entre os dois fogos.

Seguem mais 3 episódios.
Um abraço,
vb


7. DORNIER COM CHEIRO A COCÓ

Campo de aviação de Cuntima (**). O DO 27 aterrara há pouco numa nuvem de pó. Negros e brancos rodearam a avioneta, apalparam-lhe as asas, fizeram festas na fuselagem, o Magrinho a destacar-se com uma cerveja gelada na mão para o piloto.

Capitão novo, pele muito branca, a escorrer suor, mala do correio, grades de cerveja, caixas de uísque, medicamentos, tudo cá para fora.

Minutos depois, abraços e mais abraços, pista desimpedida, motor a trabalhar, portas fechadas. O Dornier a dar a volta devagar para o topo do campo, a roncar com mais força, na cabeça do Gil a imagem, não sabe como, do touro a raspar as patas, para os forcados. De repente aí vai o aviãosinho, a tremer todo, aos saltinhos, a ganhar velocidade, gás no máximo, campo de futebol fora, manobra apertada a evitar as balizas e as árvores. Não ouvira a salva de palmas mas vira da janela, não foi golo mas quase. E, pronto, adeus Cuntima, direcção de Farim.

Tinham pousado há minutos, a mesma cerimónia mas com mais gente e mais graduada. Um alvoroço em Farim, o Coronel, rodeado do seu estado-maior, a trocar impressões sobre as acções em Canjambari.

Então o alferes já vai para Bissau? Safa-se de boa.

Ouvira-o ainda falar sobre a resistência que a companhia de Jumbembem (**) estava a sofrer, combatia-se duramente na zona, até aí santuário do PAIGC. No caminho da fronteira para o Oio, uma autêntica auto-estrada, para todo o tipo de reabastecimentos. Canjambari morocunda, um km ou nem isso para o interior e Canjambari porto, junto ao rio.

As NT foram muito bem até Canjambari morocunda, para entrar em Canjambari porto (***) é que está mais difícil. Levantam a cabeça para lá, aí vai prémio de morteiro. Às 6 da matina, não precisam de corneteiro para nada, duas morteiradas em cima, o suficiente para abrirem os olhos, ponham-se a pé, tugas preguiçosos, toca a tentar mais uma vez. No final do dia também fazem questão de assinalar.

Esta merda para fim da comissão, estás a ver, o Medalha todo suado.

O avião estava com a carga no limite, o capelão, com um saco de pão fresco em cima das pernas, sentara-se à frente, ao lado do piloto. Atrás, encostado à janela um sargento enfermeiro segurava um frasco de vidro com um líquido qualquer a escorrer às gotas para o braço de um preto, com uma perna toda entrapada. Do outro lado, o Gil com o saco do correio na mão. Tudo OK ? O piloto, tenente Melo, apresentara-se, pelos auscultadores. Que no trajecto para Bissau faria um desvio para a área de Canjambari, a pedido do Coronel, largar os dois sacos às nossas tropas e que, quando levantasse o polegar, e repetira, só quando o polegar estivesse virado para cima, deveriam lançá-los pela janela.

Dornier no ar para Canjambari, fumos aqui e ali a subir das matas, charcos de água a espelharem. O preto ferido, medo estampado nos olhos muito abertos, a farda nova ainda, verde azeitona, seria do PAIGC? O enfermeiro, a fazer ginástica com o frasco e com a cabeça a dizer que sim. O capelão à frente, suor a escorrer, a cara muito branca, mãos amarradas ao saco com pão fresco. O Sol ainda alto. O piloto a falar com a base, olho num lado e noutro. Estavam na zona, iriam baixar.

A planar, quase parado, como um milhafre, a descer lentamente, os olhos deles arregalados para a mata. Onde é que está a nossa malta? Mais uma volta. Estão ali, debaixo daquela árvore, não? O tenente Melo não estava certo.

Desceram mais, até alguns metros acima das copas das árvores, são eles, não são? Os outros não responderam, não paravam de olhar. São eles, não são? Força, abrir janelas, mãos nos sacos, como se já não estivessem, a turbulência a sentir-se.

Nova passagem, agora é mesmo, olhem para a minha mão, polegar para cima janela fora com os sacos, o piloto.

Gil num segundo viu a árvore, viu-os lá em baixo a correr, àquela altura as fardas deles pareceram-lhe iguais à do ferido que ia com eles. Quando o piloto levantou o polegar, hesitou, ficou com o saco do correio na mão, o do pão já tinha saído.

Mesmo mais tarde, tentando rever a sucessão dos acontecimentos, não era capaz de dizer o que sentiu primeiro. Tudo ao mesmo tempo, uma rajada longa, os gritos dentro da avioneta, um ciclone lá dentro, um barulho como uma câmara-de-ar imensa a esvaziar-se, o Dornier a balançar para cima e para baixo, para a esquerda, para a direita…

No voo para Bissau, o guerrilheiro ferido gritou o tempo todo, atingido na mesma perna, mais um tiro, soube-se depois, o DO dançou sempre, a turbulência aumentou e um cheiro a cocó borrou-os a todos.

Na pista, finalmente! De costas no chão, Agfa na mão, os buracos das balas na barriga do Dornier. E uma grande roda escura também, nas calças do capelão.


8. CAPITÃO MANILHA

Grupos em sentido na parada. Porta fechada! A que horas estava marcada a instrução dos grupos? Às 21? E que horas têm? 21h02? Às 21h00, 1 ou 2 minutos depois são outras horas, ou não? Um minuto, meu capitão, desabafa um! Uns bardamerdas, é o que vocês são, os gajos fazem o que querem de vocês!

Não faço parte desta peça, meu capitão, o meu grupo estava pronto às 5 para as nove, protesta-lhe nos olhos outro! O capitão, a fisgá-lo de lado, ainda mamam da mamã, o que me calhou, porra! Já não me lembro de mamar, outra vez o outro.

Manilha pára, vira-se de frente, olha-o de baixo para cima, dispara, ouça lá seu alferesinho de merda, você acha que não sou capaz de o pôr daqui para fora ao murro e pontapé? Vamos, meu capitão, avança o tal, preparado para tudo.

Manilha tira a boina, passa a mão pelo cabelo, três a olharem para o lado, o outro à espera. Esta, suas meninas, esta, martela o capitão, com a mão virada para o tal, é a única, a única resposta que um comando pode dar! Todos à minha frente, 20 flexões para todos, grupos incluídos.

O capitão Manilha, promovido a capitão por distinção, até então o único vivo com a medalha de valor militar em ouro, mais duas cruzes de guerra, tinha metido o chico (1) , estava em Lisboa na Academia Militar. Aproveitara as férias, viera a Bissau dar-lhes instrução operacional, e saíra com eles para o mato durante o curso de comandos para oficiais e sargentos na Guiné.

Foi um dos fundadores dos comandos da Guiné. Tinha estado em Angola, com o alferes Justo dos Camaleões, os irmãos R. Dias, o Mirandela e outros. Depois formou o grupo dos Fantasmas e com ele percorreu a Guiné de lés a lés. Ficou famoso pela forma como encarava a guerra, como se fosse uma brincadeira de garotos. Fazia que retirava, dava às vezes até sinais de fuga descontrolada, como se quisesse animar o IN a mostrar-se confiante. Escondia-se com o grupo, paciente, uma ou duas horas se fosse preciso. E depois, Fantasmas ao ataque! Uma série de êxitos coroavam-no e era objecto de mal disfarçada homenagem, numa altura em que a regra era ver as NT recolhidas a posições defensivas.

Mas nem sempre as coisas correram bem. Tanta intrepidez e desafio também lhe trouxeram problemas.

Novembro de 64, dia 28. Na estrada de Madina do Boé para Contabane, a uma escassa centena de metros do pontão sobre o rio Gobige, os Fantasmas detectaram uma mina anti-carro. Levantaram a mina e simularam o rebentamento. Ficaram emboscados nas proximidades cerca de 2 horas. Viram um grupo IN aproximar-se e afastar-se logo que deram pela presença de mulheres na estrada. Uma hora depois viram um elemento IN a fugir. Afinal, estavam em igualdade de circunstância, todos sabiam da presença uns dos outros.

No dia seguinte voltou com o grupo ao local. Meteu-se com alguns soldados no Unimog mais pequeno à frente, e encaixou dezasseis militares no Unimog maior atrás. A 1ª viatura passou, a outra, uma dezena de metros atrás, não. Pisou uma mina. Ao mesmo tempo que em cima deles caía uma chuva de balas de armas automáticas, o Unimog incendiou-se e as munições explodiram como foguetes num arraial minhoto. Quase todos os homens foram projectados a arder. 7 mortos logo ali e três feridos graves. Tinham partido 22 de Bissau, regressaram doze. Com o grupo dizimado, poucos dias depois arrancou com os restantes para uma operação.

Já quase no final da comissão, em Cameconde, lá para o sul. No diário do furriel Uva, um deles, podia ler-se.

“6 Maio 65. Saímos às 15h00 para a operação 'Ciao'.

"Num Dakota até Cacine e depois em viaturas até Cameconde, onde já se encontrava um pelotão à nossa espera. O Capitão Varela foi connosco.

"Saímos às 19h00 em direcção ao objectivo. Segundo as informações que nos foram fornecidas, a base IN era composta por cerca de 80 homens bem armados, comandados por Pansau Na Ina, chefe militar, adjunto do João Bernardo Vieira, de etnia Papel, mais conhecido pelo 'Comandante Nino'.

"Já na madrugada do dia 7, a poucos kms do objectivo demos indicações ao pelotão para permanecer ali e esperar pelo nosso regresso, com a missão de proteger a nossa retirada ou dar-nos apoio, caso fosse necessário.

"Assim, seguimos silenciosamente até perto do acampamento, situado na mata a sw de Catunco. Apesar de termos feito uma aproximação cuidadosa, fomos detectados por uma sentinela. Tentámos assaltar o acampamento. Mas eles estavam bem preparados, reagiram ao nosso fogo e o tiroteio prolongou-se. Quando o fogo deles abrandou, entrámos por ali dentro e vimos material abandonado durante a fuga.

"8 armas, cunhetes de munições, granadas, petardos, equipamentos, minas, fardas, e muitos documentos, entre os quais um caderno que pertencia a um tal Armindo Pedro Rodrigues, com elementos importantes da Ordem de Batalha do PAIGC.

"Carregados com o nosso material e com o que tínhamos capturado, regressámos para junto do pelotão. Juntámo-lo e começamos a vê-lo em pormenor. Faltava o aparelho de pontaria de um morteiro de 88 (?), até então ainda não apreendido na Guiné!

"O Morais afiançava tê-lo visto lá. O tenente Manilha chamou o Amadu e o Morais e disse-lhes para voltarem ao acampamento. Embora estivéssemos conscientes do perigo, arriscámos, partindo do princípio que o IN se tinha retirado após as baixas sofridas. O Morais perguntou quem é que queria ir com ele e com o Amadu. Ofereci-me bem assim como o capitão Varela, o furriel Matos e mais 7 camarada, 10 no total.

"De novo no interior do acampamento a arder. Vi uma árvore gigante, com umas cavidades enormes. Espreitei para dentro de uma, o Morais para a outra, à procura de material, e o restante pessoal, por ali perto, fazia o mesmo.

Subitamente, rajadas de metralhadora e granadas de bazuca caíram-nos em cima. Uma destas rebentou entre nós. Um pequeno estilhaço partiu a coluna do Morais, que caiu sobre uma fogueira. Eu fui atingido no lado direito das costas, mas na altura nem localizei o ferimento.

"Vi o Morais a morrer quando o olhei de relance. Um vago murmúrio, depois mais nada, um ar sereno no rosto, pareceu-me.

"Deitei-me e reagi ao fogo, mas passado pouco tempo fiquei sem força no braço, a G-3 ficou muito pesada, e depois já nem o gatilho conseguia apertar. Passei a espingarda para o braço esquerdo e fiz fogo, mas julgo que não fui nada eficaz.

"Os outros 8 camaradas, embora ligeiramente, foram todos atingidos. Depois os restantes elementos do Grupo foram lá buscar-nos. Junto do pelotão de apoio, injectaram-me morfina. Tinha perdido muito sangue. Prestaram-me os primeiros socorros em Cacine.

"Fomos evacuados para Bissau. Eu de barriga para baixo, bem atado, com mais uma injecção de morfina, e o Morais, morto, cada um em macas de lona, encaixados no exterior do heli.

"Durante o trajecto, e em duas localidades diferentes, na minha sonolência ouvi rajadas de metralhadora que me pareceram passar rente ao helicóptero. Pareceu-me uma eternidade a viagem até ao hospital de Bissau, onde, depois de me terem operado, fiquei internado.

"8 Maio. O Marcolino foi o primeiro a vir ver-me ao Hospital. O crucifixo que eu trazia ao peito era uma crosta, uma grande cruz de sangue seco. Pedi-lhe que o lavasse.

"9 Maio. Muitos camaradas me visitaram hoje, o major M. Dias, o tenente Manilha, o alferes Rola, os furriéis Matos, o Moita e o Mirandela, claro. Da parte da tarde vieram a D. Beatriz Sá Carneiro, mulher do Comandante Militar e a D. Mariana do MNF.”

O Morais era órfão de pai. No caso dele correu tudo no mesmo sentido. Mal. Não era necessário a presença dele nesta operação. Aliás, já tinha acabado a comissão. Em Brá tentámos persuadi-lo, mais que uma vez, a não ir. Tantas vezes, que diferença vai fazer sair mais uma, insistiu.

Não embarcou com o Batalhão a que pertencia, por ter combinado que esperava que o Ten. Manilha e os furriéis Matos, Moita e Ilídio acabassem a comissão. A estes faltavam-lhes apenas 15 dias. Imaginava o regresso à Metrópole, todos juntos num navio, como se regressassem de um cruzeiro de férias.

Guiné > Cemitério de Bissau > 1965/66 > Os militares portugueses tinham de se quotizar, entre si, para comprar um caixa de chumbo e enviar os seus camarados mortos para a Metrópole... Como foi o caso do furriel milicano comando Morais, morto em combate.

© Virgínio Briote (2005)

O Mirandela recebeu o corpo no Hospital. Foi ele com o M. Dias, o Fabião e o Ilídio que o lavaram, vestiram e o deitaram no caixão. Fizeram uma colecta para a compra do caixão de chumbo. E coincidência, morreu no mesmo dia em que o seu Batalhão desfilava em Lisboa, com a missão cumprida.

Claro que, fosse para onde fosse, o Manilha trazia com ele esses e outros acontecimentos, como se uma auréola o enfeitasse.

Quando o capitão Manilha entrou em Brá apresentaram-lhe os novos que estavam a frequentar o curso e pessoal já bem conhecido dele, o capitão Varela, o sargento M. Dias, os furriéis Mirandela, Moita, Matos, Fabião, o João Uva, o cabo Marcolino, os soldados, Mássimo, Camará, Mamadú... Dos novos conhecia alguns, e aos outros tinha algum tempo à frente para os ver trabalhar no mato e depois veria se lhes entregaria o crachá.

Passava a vida a pô-los em sentido. Uma volta na conversa e lá vinha o Nino (2) à baila. O Nino, estão a olhar para mim? O Nino, que porra, estes gajos são todos surdos? O Nino , ele a insistir e os alferes com falta de entendimento. Sentido, porra! Aqui nos comandos quando se fala no Nino, toda a macacada, vocês também, saltam como uma mola, estejam onde estiverem, não interessa, põem-se a pé! Em sentido, porra!

E foi assim que se fez escola, dali para a frente, sempre que alguém pronunciava o nome do Nino, os outros punham-se em sentido.

Uma vez, em Biambi, na zona do Oio, uma tempestade como não havia na memória deles, tinha partido o grupo em dois, aí pela uma da madrugada, noite negra como só em África quando o céu está todo tapado. Um, sozinho, lá encontrou o trilho depois de andar a tactear o chão. Daqui não saio, vou-me mas é sentar!

A chuva não parava, pareciam pedras grossas, faziam tanto barulho no camuflado que até sentiu medo que o denunciassem. Ainda bem que só tinha as cuecas debaixo, menos peso para carregar. Nada de sinais, nem de trás nem da frente.

Esta é boa, onde é que os gajos se meteram, que…assobiou baixo, a imitar o pássaro que afinaram no curso. Nada de respostas, minutos a passar, chuva em barda. Estou frito, estou mesmo perdido, o coração como um cavalo a galope, até sentia calor, olhava para todo o lado não via nada, nem pirilampos, nada, só ouvia o barulho da água a bater-lhe. E agora, o que faço?

Eles hão-de dar pela minha falta, não me vão deixar aqui. E se não derem? Calma, esperas pelo nascer do dia, viras as costas ao Sol, a corta mato, sempre em frente, até á estrada Mansoa-Bissorã, escondes-te, há-de aparecer uma coluna um dia destes, quase todos os dias passam. Depois é só saltar para a estrada e pronto. E se a guerrilha te vê, o que é que fazes? Minutos a durarem horas, o coração outra vez.

Um pequeno som, pareceu-lhe, serão eles, ou estarei a sonhar? Um assobiar baixinho. É isso, são eles, nunca mais vinham, assobia também, assobios cada vez mais próximos, uma mão, o Mássimo, o Manilha atrás. Então e os outros? O Manilha, danado, a bufar, e os outros? Mássimo à frente a assobiar, dentro do trilho, foram andando para trás, mãos no cinturão do da frente. Encontraram o capitão Varela e o Vidraças, os dois sentados, costas com costas. Nabos, a dormir na forma, ah?

No outro sábado o Manilha encontrou-os todos sentados, tinham acabado de almoçar na messe de Brá. E o programa para hoje, qual é? Um a dizer vou até Bissau espairecer, outro vou mas é dormir com a cama, a correspondência a preocupar o Duque, o outro, sei lá? Ele arranjava um melhor! Que se preparassem. Levou-os para o aeroporto, os motores já quentes do Dakota pronto para descolar.

Foram para leste, Nova Lamego, Canquelifá (****). Chegaram o Sol a ir-se. Esperaram fechados dentro do avião, os motores parados. Abriram-lhes as portas, entraram directos para uma GMC com a lona corrida. Meteram-lhes lá dentro queijo partido aos bocados e pão. O Manilha, gargalhada baixa, a pedir os cantis, para encher de água fresca.

O meu não precisa, está cheio até cima, nem se ouve, mesmo que o abane, diz um. Passa, o Manilha a insistir. Que a marcha ia ser longa, cerca de 20 km, e a água vai ser decisiva. Ouçam bem, só bebem quando eu der sinal, todos a beber ao mesmo tempo.

Carvão negro na cara e nos braços, pareciam manjacos e mandingas. Pôs-se o sol, meteram-se no mato, dois a dois, trilhos fora, quilómetros e quilómetros, a noite toda.

Comandos ao ataque, o Manilha desalmado a gritar, como gostava de começar o dia! Fizeram-se a eles, por ali dentro, as casas de mato com 2 ou 3 gajos que nunca lhes tinham sido apresentados, a pisgarem-se. Depois, um deles passou à história. Da gargalhada. Quando sentiu os projécteis de uma metralhadora pesada inimiga a bater na árvores, até disse para os outros, olha a NT a apoiar (3) ! Os outros a rirem-se, uma força danada dentro deles. No caminho do regresso lembraram-se da genica que sentiram, estamos numa forma do caraças, não estamos?

Nunca souberam donde tinha vindo tanta gana, se calhar tinha sido quando o Manilha, finalmente, autorizou meterem água, devia ter vitaminas. A certa altura do caminho de retirada, começaram a ficar sem forças. Estranharam, nunca lhes tinha acontecido, não acertavam com o trilho, não era só um, eram todos. Menos o Manilha. Alguns paravam, encostavam-se às árvores, queriam sentar-se, os olhos para cima. Quem parar fica para trás, o Manilha lá à frente, na esgalha.

Em Canquelifá, uma cerveja gelada, boca abaixo, duma vez só. Alguns só acordaram com os motores do Dakota e um ou dois nem assim. A caminho do avião, pareciam zombies, em coluna por um, pelo campo fora.

Da outra vez, mandou tapar-lhes os olhos com algodão, fita adesiva e um lenço negro por cima. Só tiram os lenços e o adesivo quando eu mandar! É para ver se adivinham para onde vamos passar o fim-de-semana!

Viaturas pela estrada fora, para onde havia de ser, para o Oio. Quando entraram em Mansoa, pararam. Então, quem é amigo? Para onde vamos então? Toca a tirar os lenços, olhos e ouvidos bem abertos agora! Foram por ali fora até Bissorã. A mesma história do queijo e do pão, uma cerveja para cada um, cantis cheios de água, por aqueles trilhos, a noite toda.

Um cigarro agora é que sabia bem! Pois, também a mim me apetecia estar na praia de Carcavelos, ao sol com a miúda, os ouvidos dele em todo o lado! Fumas no fim do fogo! O dia clareou, estavam no sítio certo, as casas deles em frente. Os guerrilheiros é que faltaram à chamada naquela altura. Não saímos daqui enquanto os gajos não aparecerem, o Manilha a provocá-los.

Vieram mais tarde, quando já não dava muito jeito, mas arranja-se sempre qualquer coisa, que remédio. Um daqueles alferes integrado na equipa do furriel Moita, apanhado num campo de mancarra, pouca coisa para se abrigar, ou estava com pressa de regressar a Bissau, ou tinha visto no cinema uma cena parecida, chateou-se, aqui vou eu, quem quiser que venha. Quis lá saber da parelha e da equipa, meteu-se por aquelas casas de mato dentro. Depois ficou lá dentro sozinho, sem saber bem o que fazer. Os companheiros daquele fim-de-semana encontraram-no a olhar para o ar, para os ramos das árvores a abanarem com as balas. Estes gajos nunca mais aprendem, porra! 20 flexões aí já, o Manilha oportuno como sempre!

Agora sim, podem fazer fogo com o isqueiro, toca a fumar!


9. ESTREIA NO OIO

Final de tarde em Mansoa, o grupo pronto para a estreia. Dentro das Mercedes tapadas com as lonas, aguardaram que o capitão Manilha e o comandante do grupo acertassem os pormenores com o comandante do batalhão. Para matar a espera, meteram-lhes lá dentro pão, queijo, marmelada e cerveja.

As viaturas da coluna para Bissorã já se tinham posto em movimento quando as deles arrancaram rápidas até se chegarem às outras. Andaram uns quilómetros, poucos, até receberem a indicação para se aprontarem para saltar. Teria que ser muito rápido, as viaturas em que iam abrandariam só, as da frente continuariam no sentido de Bissorã.

Internados no mato esperaram o reagrupamento, a noite a fechar-se não lhes prometia tempo seco. Puseram-se em movimento, como lhes ensinaram. O capitão, uma vez ou outra saía do trilho, ficava-se a vê-los passar, surgia-lhes por trás, G3 apontada, era uma vez um comando, assim não vais longe, pá, vai antes para a manutenção.

À frente o Marcolino segurava o guia, apanhado há mais de um mês, rédea curta nos pés, braços esticados nas costas, bem atados com uma corda preta de nylon, lenço preto entre os dentes, que todos os cuidados eram poucos.

A companhia de apoio seguiu atrás do grupo até o trilho bifurcar, emboscou-se aí a aguardar o desenrolar dos acontecimentos. No caso de lhes ser pedido, veriam a melhor maneira de os recolher. Estes deveriam progredir até Biambe, procurar as casas de mato, tentar apanhar uma sentinela, explorar rápido e retirar a seguir. Noite escura, sempre a chover, progressão lenta, paragens e mais paragens, guia a dizer que é lá, aonde, ali já, e nunca mais era.

Dois tiros! Detectados num trilho, mesmo junto à tabanca de Iusse. Responderam à voz do Manilha, atiraram e atiraram-se lá para dentro. 4 casas de mato, ninguém lá dentro!

O Manilha não queria sair da zona, nem a tiro. A primeira operação a seco, nem pensar! Vamos aguentar aqui, dentro da mata, até o dia clarear. Os gajos sabem que nós estamos cá e nós sabemos que eles estão na mata aqui à volta. Vão acabar por se mostrar.

Não foi preciso esperarem que fosse dia. De um momento para o outro, começaram a ser alvejados. Fogo alto, a bater nas copas das árvores. Uns minutos depois, começaram a ser flagelados com fogo de morteiro, do lado de onde tinham vindo. Das matas em redor, flagelavam-nos com tiros de armas automáticas e, para compensar, recebiam morteiradas, do lado da bolanha.

O Manilha ao AN PRC/10 (4), queria saber o que era feito da companhia de apoio, esta não dava sinal. Chegou uma parelha de T6.

Um espectáculo seguido com expectativa e interesse. Pelo AVF (5) o Manilha ficou a saber que era verdade o pressentimento. Da companhia de apoio subiam granadas, viam o fumo atrás, confirmavam os dois pilotos, a trajectória delas quase a pique, o estardalhaço a cair-lhes quase em cima, com a chuva. Estavam bem abrigados, dali não sairiam tão cedo a não ser que os morteiros da tropa amiga se calassem.

A parelha dos T6 tinha sido reforçada com outra, despejavam rockets e rajadas de metralhadora sempre que viam fumos a sair da mata. O fogo IN abrandou e os morteiros da companhia silenciaram-se.

O apoio aéreo ajudou-os, pareceu-lhes mais demorado que o que deveria ser, mas, por fim, retiraram em ordem, com o fogo inimigo, disperso mas mais ajustado, a dar-lhes algum trabalho, obrigando-os a percorrer, curvados, as centenas de metros da bolanha., largamente distanciados uns dos outros.

Respiraram fundo quando alcançaram a mata. Nem bom dia nem boa tarde, passaram pela companhia, deixada para trás como se tivesse lepra, o capitão deles junto ao Manilha, desculpas e explicações.

Que regressassem sozinhos, connosco não, que temos pressa. A esgalhar, no goss-goss (6) como diziam a imitar os indígenas, pelas margens do trilho.
_________

(1) Passar ao quadro permanente

(2) Famoso Chefe da guerrilha, na altura responsável militar da zona sul

(3) “Sábado, 21Ago65, descemos em Nova Lamego, embarcámos os guias e depois fomos para Canquelifá. Daí seguimos para o objectivo.Já dentro do acampamento IN cairam-nos várias rajadas em cima e o Marcolino que devia estar distante de mim pois não dei por isso foi ferido com uma bala nas costas, e eu como estava perto de uma árvore várias lascas bateram-me na cara de raspão. João Uva, do diário”

(4) Rádio normalmente usado para comunicações em terra

(5) Rádio para comunicação terra-ar

(6) Termo indígena, andar depressa

(*) Vd. posts anteripores:
28 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXVIII: Brá, SPM 0418 (1): as minhas memórias de Cuntima (Virgínio Briote)

8 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXLVII: Brá, SPM 0418 (2): Memórias de Colina do Norte (Virgínio Briote)

(**) "Cuntima era uma rua, uma recta de 200 ou 300 metros, a estrada de terra a atravessá-la, entre a saída para Jumbembem e Farim e a entrada da fronteira com o Senegal. Casas de um lado e doutro, pintadas com a cor de muitos sóis em cima, casitas de adobe atrás, da população nativa".

(***) A leste de Farim

(****) Canquelifá: No nordeste da Guiné, junto à fronteira

Guiné 63/74 - P346: Chicorações para o nosso Pai Natal

Mensagens dos nossos amigos e camaradas de tertúlia, a propósito das prendas do nosso Pai Natal:

1. Luís Graça.

O Pai Natal do Humberto Reis fez-me chegar mais umas cartas (militares) da "nossa" Guiné... com alta resolução, de modo a permitir localizar os sítios por onde andámos no mato... No cabaz de Natal vinham as seguintes cartas: Mansoa (que inclui também Bissorã), Cadoca/Gadamael, Guileje, Binta, Bula, Pelundo...

(...) Temos mais mapas disponíveis "on line"... Oferta gentil do nosso camarada Humberto Reis... Faltam ainda os de Guileje e de Binta... O mapa do Pelundo saiu cortado, na digitalização: só aparece a povoação de Có, na parte direita...

Divirtam-se, sobretudo aqueles de vós que aprenderam na tropa a orientar-se só com bússola e mapa... Deixem-me dizer-vos que, apesar dos nossos excelentes mapas (chegámos a ser os melhores cartógrafos do mundo, na épcoa dos Descobrimentos!), nunca vi comandante de operação, no meu tempo, dispensar o guia das milícias...


2. Vitor Junqueira

De facto, a oportunidade de olhar de novo para estes mapas, alguns dos quais se passearam nos meus "acagaçados" bolsos, dobradinhos em avos, com uma grelha (quadrícula) desenhada por cima e protegidos por uma saqueta de plástico transparente... representa para mim um autêntico presente de Natal.

Por uns instantes, revivi como numa espécie de encantamento mágico, uma ligação quase física com um passado distante ao qual dediquei, talvez, os dois dos melhores anos da minha vida. As cartas do Humberto, são viçoso pasto para a minha saudade. E que saudade! Por isso aqui vai, para ele um abraço de gratidão e o pedido de publicação da carta que integra a região de Mansabá, Olossato e Farim, por ser esta a minha principal ZA (onde não conheci guias nem tropas de milícia!).

Para todos os amigos da Tertúlia, um abraço do Vítor Junqueira devidamente guarnecido com votos de Boas Festas.

3. Virgínio Briote:

Obrigado, Luís e Humberto Reis, pelas vistas de locais por onde andei. Cambajo, Iarom, a mata de Sinre, as bolanhas de Benifo, a tabanca de Inchula, Talicó. E Morés, esse lugar que perseguíamos e que nos perseguia como um fantasma.

Acabo de chegar e vejo que os ex-combatentes aparecem agora na imprensa como há uns anos apareciam os ciganos, cabo-verdianos e outras raças de "baixa extracção"...
Um abraço, vb

4. Humberto Reis

(...) Se vocês soubessem o prazer que me dá olhar para aquelas cartas compreendiam o gosto que tenho em as partilhar convosco. Imagino a cara de alguns de vocês a recordarem as picadas e os trilhos que lá estão assinalados e a recuarem 30, 35 e 40 anos atrás. A mim não me faz sentir velho, mas apenas saudoso de alguns tempos bons que passei naquela terra, apesar dos muito maus. Se não fossem esses tempos estaríamos agora aqui a conversar uns com os outros? (...)

5. Rogério Freire:

Um obrigado especial de "Os Falcões" (CART 1525) ao Humberto Reis pela carta de Mansoa/Bissorã que colocou no nosso sapatinho.

A carta vem-nos permitir identificar todos os locais que "visitamos" desde Quenhaque a Morés, passando por Cambajo e Dando, e tantos outros.

Colocamos a carta no nosso site com uma referência e agradecimento ao Humberto.

Esperamos pela vossa visita ao nosso site e com votos de Boas Festas "partimos mantanhas" com todos.

Rogerio Freire

6. Luís Graça:

Pessoalmente confesso que, com estas cartas militares (que temos vindo a disponibilizar no nosso blogue) e com as estórias que vocês têm contado (para não falar do valiosíssimo álbum de fotografias e de outros documentos...), conheço melhor hoje a Guiné de 1969/71 do que naquela época, quando eu lá estava...


7. Carlos Fortunato:

Luis/Humberto:

Excelente carta militar, permite-me poder precisar muito melhor algumas das zonas referidas na região de Bissorã, quer nos textos que tenho escrito no meu site, quer no nosso blogue, vou usá-la para melhorar ambos.

Parabéns, obrigado e bom Natal.

8. João Parreira:

Luís Graça e Humberto Reis,

Quero agradecer a Prenda de Natal que foi enviada pelo Humberto Reis, na forma de mapas da Guiné, e que são umas autênticas relíquias para tantos de nós que palmilhámos aquelas matas, trilhos, tarrafos e bolanhas.

Creio que nenhum dos nossos ex-combatentes que passaram pela Guiné poderá ficar insensível, pois basta simplesmente olhar comodamente para a localização de certas zonas para nos ajudar ainda mais a reviver um passado tão turbulento.

Parabéns.

Guiné 63/74 - P345: O baile dos finalistas do Liceu de Bissau de 1965 (João Parreira)

Guiné > Bissau > Palácio do Governador, na Praça do Império > 1965:

Um palácio que Amílcar Cabral nunca chegaria a habitar... e que foi testemunha silenciosa de uma guerra que também se travava, com palavras, murros e cinturão de comandos, fuzos, paras, tropa-macaca e jovens africanos, simpatizantes do PAIGC. A pretexto da bela Helena ou da entrada, à má fila, num simples baile de finalistas do liceu.

© Virgínio Briote (2005).

Texto do João S.Parreira (ex-furriel miliciano comando, Brá, 1965/66)(1)

Conforme o prometido, passo a descrever a minha participação e os acontecimentos que deram origem à narração do V. Briote em 13/11/05 sobre o baile dos Finalistas da Escola Secundária [Liceu, na altura] realizado em Bissau, no Sábado, em 5 de Junho de 1965 (2).

Na manhã daquele dia para me descontrair tinha ido com alguns camaradas para Quinhamel, uma vez que estava com grandes projectos para aquela noite. Semanas antes tinha conhecido a Helena uma moça cabo-verdeana, que era o que se costuma dizer uma “brasa” e andava todo entusiasmado.

Na véspera do baile, a Helena que era finalista, disse-me que me ia arranjar um convite para assim poder ir com ela .

No próprio dia encontrei-me com ela da parte da tarde e ela disse-me que não tinha conseguido obter um convite, mas que me tinha comprado um bilhete. Assim dei-lhe os 100 pesos correspondentes ao preço do bilhete.

Estava a dançar com ela, já devia ser madrugada quando ouvi um grande borburinho, virei-me e reparei que o motivo era a entrada sem bilhete de vários militares desconhecidos e logo a seguir uma cara conhecida.

A música não parava de tocar e os pares continuavam a dançar. Várias finalistas e familiares encontravam-se sentadas em cadeiras que tinham sido colocadas junto às paredes.

Alguns dos recém-chegados dirigiram-se de imediato a estas finalistas a pedir para dançar, mas não tiveram sorte.

No salão enorme, junto a uma das janelas encontrava-se uma mesa rectangular bastante comprida que dominava todo o salão e que estava totalmente ocupada com africanos e cabo-verdeanos que presumi serem os professores e o Principal da Escola Secundária.

Notava-se que os ocupantes desta mesa ficaram furibundos com a intrusão. O Alf. Godinho, um dos “velhinhos”, foi um dos últimos a entrar, pelo que dirigiu-se logo para essa mesa e foi falar calmamente com um dos que se encontravam sentados no centro da mesa.

Desconheço o teor da conversa, mas o certo, pois eu estava a dançar perto, é que um deles lhe atirou com uma garrafa à cabeça.

De imediato vindo da mesma mesa ouviu-se um deles gritar e logo a seguir outros a fazerem coro: "Se o nosso chefe estivesse aqui, e não em Conacri, nada disto acontecia” (3).

Com esta agressão e com as palavras insultuosas o ambiente ficou desde logo muito tenso.

Com todo este reboliço entraram de rompante 2 ou 3 camaradas que tinham ficado à porta do edifício, já que o porteiro não os tinha deixado entrar.

O Furriel V. Miranda alheio à situação e que na altura andava a passear o seu inseparável whisky, deixou-o ficar no hall de entrada à guarda de um porteiro, e também entrou.

Guiné > Bissau > Fins de Fevereiro de 1965 > O Furriel Miliciano Comando João Parreira... "Esta foto foi tirada numa esplanada em frente ao Hotel Portugal, creio que se chamava Café Universal".

© João Parreira (2005).


O contacto físico em vários pontos do salão, não muito distante da pista de dança, começou já passava das 03h00 e prolongou-se por bastante tempo.

Apesar do que se estava a passar, a música não parava de tocar e parecia que todos os pares queriam estar alheios à situação.

Como não podia deixar de ser, parei de dançar e pedi à Helena para não sair da pista pois ia ajudar os meus camaradas, e depois voltava.

Ela, que foi fantástica, disse-me para não ir pois podia ficar magoado, mas eu tranquilizei-a dizendo-lhe que em Lisboa tinha praticado boxe em clubes e tinha entrado em vários combates públicos.

Assim , por 3 ou 4 vezes, dava um pezinho de dança, atravessava a pista por entre os pares, ia a uma das zonas da pancadaria, envolvia-me como podia no meio de um dos grupos em contenda dava uns bons pares de murros e quando me sentia satisfeito lá voltava novamente para junto da moça para continuar a dançar.

Dado o reboliço que se gerou também entraram no salão vários paraquedistas para darem uma ajuda aos que se encontravam em minoria.

Entretanto alguém deve ter chamado a P.M. que entrou mais tarde e começou logo a tirar os nomes à rapaziada.

Tive mais sorte que o VB e os outros camaradas pois logo que vi a P.M. entrar na nossa direcção apressei-me, sorrateiramente, a atravessar o salão pelo meio dos pares, a fim de ir ter com a Helena (a minha tábua de salvação) que estava a dançar sòzinha e agarrei-me logo a ela, pelo que a P.M. não deve ter percebido que eu também tinha andado no barulho.

Acabado o baile fui levar a Helena a casa, mas depois destes acontecimentos o ambiente não era propício pelo que vi gorados os projectos que tinha idealizado em Quinhamel.

Ao fim e ao cabo, feitas as contas tive sorte a dobrar pois livrei-me de ser punido e como tal de ter que ir passar uns tempos ao mato.

Domingo, 6 de Junho de 1965, às 19h00 dirigi-me com o V.Miranda e alguns fuzileiros para a Praça do Império onde se encontravam vários grupos de africanos em atitudes provocadoras e hostis, para tentarem tirar, talvez, ainda mais dividendos dos acontecimentos daquela madrugada.

Não sei bem como tudo começou, mas um deles apanhou o Miranda distraído e aplicou-lhe um tremendo murro que fez com que ele vacilasse, e depois fugiu.

Corremos atrás dele mas não o apanhámos na rua pois foi refugiar-se no cinema UDIB.
O porteiro, cabo-verdeano, que estava já a correr a porta de lagartas para o proteger não o conseguiu fazer, já que, com a ajuda do meu cinturão foi persuadido a não a fechar, e assim o Miranda entrou e ficou a sós com o seu agressor.

Voltámos para a Praça do Império onde o número de africanos tinha aumentado de uma forma incrível e notavam-se as mesmas atitudes agressivas.

Como estávamos, mais uma vez, em grande desvantagem numérica, e com o intuito de os intimidar e evitar o confronto, mandei pedir a Brá para quem nessa altura estivesse disponível viesse ao nosso encontro.

Passada meia-hora chegou um jeep com o condutor e um Alferes (o único que vinha armado para o que desse e viesse) e logo atrás uma Mercedes com mais pessoal.
Infelizmente a intenção não deu resultado pois ao aperceberem-se da chegada os africanos atiraram-se a nós à tareia usando os punhos e os pés.

Assim cada um de nós estava a ser agredido por 3 ou 4 pelo que, para evitar o pior, decidimos resolver o assunto com a máxima rapidez, e para esse fim usámos os nossos cinturões a torto e a direito, o que teve o condão de os obrigar a fugir. Com a Praça vazia usámos os mesmos veículos e regressámos a Brá.

JP
_____________

Notas de L.G.

(1) vd. post de 3 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74- CCCXXX: Velhos comandos de Brá: Parreira, o últimos dos três mosqueteiros

(2) Post de Virgínio Briote, de 11 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXVII: O 'baile dos comandos' na Associação Comercial

(3) Referência óbvia a Amílcar Cabral, secretário-geral do PAIGC.

(4) Vd. localização da antiga Praça do Império, no mapa (actual) de Bissau.

Guiné 63/74 - P344: O meu primeiro contacto com um leproso (Rui Esteves)

1. Texto do Rui Esteves

Amigo Luís Graça,

Desta vez envio um texto sobre a minha prática como enfermeiro topa-a-tudo na Guiné.

Trabalhei sempre sem médico – médico só havia na sede do Batalhão – e portanto tive sempre que me virar sozinho.

No meio de uma tragédia particular (o meu pai morreu quando estava na Guiné), a minha fuga foi trabalhar muito para não chorar.

Um abraço do

Rui Esteves


O meu primeiro contacto com um leproso

Em Outubro de 1971, vivi um dos piores períodos da minha comissão na Guiné Bissau.

Tinha vindo de férias em Agosto, viajando até à Metrópole, e encontrei o meu pai muito doente: quando cheguei ainda andava pelo seu pé; em 5 de Setembro de 1971, quando fui embora, já estava acamado e eu sabia que não voltaria a vê-lo e que morreria dentro de pouco tempo.

O cancro matou o meu pai a 9 de Outubro e eu recebi a notícia – um telegrama da minha mãe – no dia 11, data do meu 23.º aniversário. O meu pai tinha 48 anos.

Os primeiros tempos foram muito difíceis e a minha fuga foi dedicar-me ainda mais ao trabalho.

Começava bem cedo e, enquanto houvesse gente para tratar, não parava.

Aparecia-me de tudo: a população era a larga maioria, homens, mulheres e crianças com paludismo, com conjuntivite, com sarna, com tuberculose, elefantíase, matacanhas…

À medida que os dias passavam, cada vez me aparecia mais gente: já não eram só os manjacos de Chulame.

Ajudado por um homem de Chulame com quem falava mais facilmente em francês do que em português, atendia toda a gente e ia aprendendo a falar um pouco de crioulo.

(Quinhentos anos de colonização portuguesa e o meu interprete quase não falava português mas desenrascava-se muito bem em francês do tempo que esteve emigrado em Dakar, Senegal. Curiosamente, ele dizia ter estado em Paris mas depois de longas conversas cheguei à conclusão que o Paris dele era, afinal, Dakar.).

Um dia, no meio daquela gente que aguardava a sua vez, vejo um homem alto, de cabelos brancos, apoiado a um pau, olhando para mim.

Nunca tinha visto nada assim: a cara já não tinha o nariz nem os lábios e aqueles olhos olhavam para mim do fundo da caveira em que ele se tinha transformado.
Era um leproso em fase muito avançada da doença (1).

Estremeci, cheio de compaixão por aquele pobre homem e sem saber o que fazer, dei-lhe de tudo um pouco, vitaminas, xaropes fortificantes, o que havia ali à mão que pudesse ajudar.

Nessa tarde fui a Teixeira Pinto (2) falar com um médico a quem pedi orientação para poder ajudar aquela pobre gente.

Não voltei a ver aquele homem: provavelmente desiludi-o e ele desistiu.

Soube que havia mais gente como ele, com lepra e com tuberculose, famílias em que a miséria era tanta que, aos poucos e poucos, todos ficavam contagiados.

Lavadores, 13 de Dezembro de 2005.

Rui Esteves
Ex-furriel enfermeiro miliciano
CCAÇ 3327 (companhia açoriana independente)
Guiné, 1971-1973 (Teixeira Pinto/Cacheu, Bissássema/Tite)
___________

Nota de L.G.

(1) Sobre a lepra ou mal de Hansen, vd. a respectiva entrada na enciclopédia livre Wikipédia

(2) Hoje Canchungo, na região do Cacheu.

Vd. post de 7 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXX: Teixeira Pinto ou Canchungo ?

25 Setembro 2005 > Guiné 63/74 - CCXI: Coisas sobre Canchungo (antiga Teixeira Pinto)

segunda-feira, 12 de dezembro de 2005

Guiné 63/74 - P343: O avô da velhice (S. Domingos e Teixeira Pinto, 1961)

Guiné > Teixeira Pinto > 1961 >

O corneteiro Marques, mano do Américo Marques, nosso camarada de tertúlia.

© Américo Marques (2005)

Já aqui falámos do Américo Marques e do seu mano, mais velho. Ambos estiveram na Guiné: O Américo foi soldado de transmissões, na 3ª CART do BART 6523 (Nova Lamego), entre Junho de 1973 e Setembro de 1974. Ele foi do contingente dos últimos soldados do Império...

Já publicámos a sua foto com a malta de Cansissé a celebrar, com os guerrilheiros do PAIGC, o fim da guerra e a promessa da tão desejada paz (1)...

Guiné > Teixeira Pinto > 1961 > Na época, não havia ainda guerra. E a farda dos expedicionários era a amarelinha...

© Américo Marques (2005)

O outro mano Marques esteve na Guiné entre 1961 e 1963, na região do Cacheu (S. Domingos e Teixeira Pinto). Era corneteiro, mas o Américo não disse a companhia ou o batalhão a que ele pertencia. Fez a a viagem no Ana Mafalda. E pode-se dizer, com propriedade, que ele é o avô da velhice. Na época ainda se usava a farda amarela. Em contraprtida, não ainda guerra. Em homenagem ao nosso avozinho, publicamos aqui duas as fotos dele, dessa época. Depois da peluda, ele emigrou para França, onde viveu cerca de 40 anos!

Como é sabido, a "guerra de libertação" da Guiné só começou, oficialmente para o PAIGC, em 23 de Janeiro de 1963, com o ataque ao aquartelamento de Tite, no sul. Em Julho desse ano é, entretanto, aberta a "frente norte"... Não sei se o mano Marques mais velho ainda chegou a cheirar a pólvora...

De qualquer modo, não deixa de ser irónica a história destes dois irmãos. Pertencentes a duas gerações diferentes, acabam por ser mobilizados para o mesmo território ultramarino, para a mesma guerra: o mais velho em 1961, o mais novo em 1973, doze anos depois… Um está no princípio dos acontecmentos, na 1ª cena do 1º acto; o outro representa a último cena do último acto... Não serão caso único: a guerra colonial tocou quase todas as famílias e algumas delas viram ser mobilizados para o distante Ultramar mais do que um filho... No caso dos manos Marques, só faltou terem estado exactamente do mesmo sítio, para fazerem o pleno!
_______

(1) Vd. post de 12 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXVI: Américo Marques, o último soldado do Império (Cansissé, 1974)