domingo, 12 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P509: O desastre do Cheche: a verdade a que os mortos e os vivos têm direito (Rui Felício, CCAÇ 2405)

Texto do Rui Felício (ex-alf mil da CCAÇ 2405, Galomaro, 1968/70):


1. Comentário a propósito do post escrito pelo camarada José Martins sobre o desastre na travessia do Rio Corubal em 6 de Fevereiro de 1969 (1)

Preâmbulo

Acabei de ler um texto escrito pelo camarada José Martins onde relata a sua experiência na zona de Madina do Boé.

Embora tenha reconhecido que não assistiu directamente ao que se passou no célebre e lamentável desastre do Cheche, ocorrido no fatídico dia 6 de Fevereiro de 1969, o José Martins conheceu bem o local e a região e desenvolveu a sua descrição socorrendo-se de relatos e documentos alusivos ao sucedido.

E nota-se pelo seu relato que sofreu muito, e que ainda hoje sente as marcas do desastre, passados 37 anos sobre a sua ocorrência.

Ninguém, bem formado e sensível, poderia nunca, de resto, ficar indiferente a semelhante tragédia, ainda que, como o narrador José Martins, não tenha dela sido testemunha ocular.

Imagine-se então a ferida profunda que aquele desastre deixou a quem, como eu e muitos outros, foi não só testemunha ocular mas também, e principalmente, interveniente e vítima do colapso da artesanal jangada que servia de transporte aos militares e equipamentos que participaram na complexa, perigosa e cansativa operação de resgate da Companhia de Caçadores que se evacuou do célebre aquartelamento de Madina do Boé.

Desastre onde pereceram, segundo as estatísticas oficiais, 47 militares, onze dos quais, do pelotão que eu comandava… Permito-me destacar dois deles pelas relações especiais de amizade e de confiança que neles depositava, sem esquecer obviamente a dor causada pela morte de todos os outros:

(i) um, o furriel Gregório Rebelo, açoriano de sotaque cerrado e quase ininteligível que assumia as funções, embora não protocolares, de meu substituto em todas as circunstâncias, no comando do pelotão, e que mantinha a orgânica disciplinar e operacional da pequena unidade militar.

(ii) o outro, o soldado Octávio Barreira, transmontano de gema, homem rude, de uma só palavra, de têmpera sã, de antes quebrar que torcer, mas capaz de morrer para salvar a vida do seu amigo, e a quem eu atribuira as funções, também não protocolares, de meu guarda-costas.

Quem passou pela guerra colonial sabe que a escolha do guarda-costas recaía invariavelmente no soldado em que o alferes depositava maior confiança e amizade.

Aliás, como também é sabido, a designação de guarda-costas não tem a mínima conotação com a ideia que na vida civil se faz de alguém com este titulo ou funções.

O guarda-costas era, acima de tudo, o soldado às ordens, o confidente, o amigo…. E muito menos, ou quase nada, o protector da integridade fisica do alferes, ao contrário do que se possa pensar.

A perda destes treze homens, que recordo com saudade e dor, sempre que a memória da Guiné me vem à lambrança, e que ajudei a formar para a guerra, em Abrantes e Santa Margarida, após oito meses de convivência próxima nas diversas tabancas onde o pelotão esteve destacado, foi um choque tremendo, inolvidável, cuja lembrança ainda hoje me faz arrepiar a alma e assomar as lágrimas.


Sobre o desastre do Corubal

Feito o preâmbulo, entro de imediato no motivo que me levou a servir-me do espaço disponibilizado pelo camarada Luis Graça a quem, sem o conhecer pessoalmente, desde já transmito o meu aplauso pela feliz e dinâmica iniciativa da criação deste blogue.

É que é importante que seja a nossa geração, aquela que interveio, por obrigação ou por convicção ou por ambas as coisas, na guerra da Guiné, que tem que dar testemunho o mais exacto possível daquilo que por lá se passou.

Se assim não fôr, corremos o risco de a história ser deturpada, porque feita com base em documentos ou relatos nem sempre seguros, nem sempre fiéis…

É por isso que, correndo o risco de desencadear alguma polémica, que não pretendo, achei que devia esclarecer alguns pontos do relato feito pelo José Martins a que atrás aludi.

Deduz-se daquele relato, publicado no blogue, que o desastre teria acontecido essencialmente devido a três factores:

(i) Os militares descomprimiram e tentaram encher os cantis com água do rio, o que terá provocado, depreende-se, o desiquilíbrio da estabilidade da jangada;

(ii) Teria sido ouvido um som abafado, semelhante a uma morteirada, que teria provocado agitação entre os militares e, em consequência, desiquilibrado a jangada;

(iii) Que, após o acidente, a água do Rio Corubal terá tomado um tom avermelhado, querendo com isso dizer-se que os crocodilos que habitavam as águas do rio, teriam consumado a morte dos militares que cairam à água.

A versão dos acontecimentos, veiculada pelo José Martins, assenta, como já se disse, em relatos e documentos sobre os factos, dado que este camarada, como ele próprio confirma, não assistiu ao que se passou. Mas, não obstante a presumível credibilidade das fontes a que recorreu, posso garantir que não foi exactamente assim que as coisas se passaram.

E digo isto com a mais profunda convicção e a mais inabalável certeza de alguém que estava na jangada, caiu à água, nadou durante uns cinco minutos e a ela retornou após a mesma se ter de novo equilibrado.

São factos que não se apagarão jamais da minha memória, por mais anos que viva, e apesar de não estar de posse de documentos que os comprovem...


2. O fime da SIC sobre o desasrtre do Rio Corubal

O mais curioso é que no filme, da autoria de José Saraiva, realizado por Manuel Tomás, que foi visto há uns anos atrás, por muitos milhares de portugueses através da sua transmissão pela SIC e pela distribuição de um vídeo feita na mesma altura pelo Diário de Notícias, são apresentadas aquelas mesmas razões como causas imediatas do desastre.

Já nessa altura contestei as conclusões do filme, e fi-lo por escrito e em reunião pessoal com o Director de Informação da SIC, Dr. Alcides Vieira, estando presente o realizador Manuel Tomás, que dirigiu a realização do filme.

Refiro que a carta entregue na SIC foi subscrita não só por mim mas por dezenas de ex-militares da CCAÇ 2405, que, por coincidência nessa mesma altura, no almoço de confraternização anual, a leram e assinaram.

A contestação dos factos descritos no filme foi feita nessa reunião na SIC, com a prévia concordância do Comandante da Operação, Brigadeiro Hélio Felgas, e estando presentes, além de mim próprio, o Capitão Miliciano José Miguel Novais Jerónimo e o Alferes Miliciano Paulo Enes Lage Raposo.

E ela foi por nós solicitada à SIC em virtude do impacto que a exibição do filme teve nos ex-militares que a ele assistiram e que tinham estado presentes na jangada naquele dia do desastre.
Com efeito, no próprio dia da exibição do filme comecei a receber telefonemas de antigos camaradas, um tanto decepcionados e alguns até revoltados, pela inexactidão dos pormenores que ali eram descritos.

Todos nós três, presentes na dita reunião, participámos na operação de evacuação de Madina do Boé, e todos estavamos presentes no local do acidente no Cheche naquele dia 6 de Fevereiro de 1969.

O Capitão Jerónimo, comandante da CCAÇ 2405, e eu próprio, estávamos na jangada no momento do acidente, onde se encontrava também o Alferes Miliciano Jorge Rijo, oficial da CCAÇ 2405, com o seu pelotão.

O Alferes Miliciano Paulo Raposo, também oficial da CCAÇ 2405, já tinha feito a travessia do rio na viagem anterior, e encontrava-se na margem norte do Corubal com o seu pelotão, observando a tragédia.

Na referida reunião da SIC, o realizador Manuel Tomás argumentou que o filme fora realizado com fundamento em entrevistas e em documentos oficiais militares a que tinha tido acesso, pelo que considerava o filme suficientemente documentado.

E disse que esses documentos atestavam as razões acima referidas, isto é, que a jangada se virou porque, no essencial, teria havido disparos de morteiro que, supostamente vindos do IN, teriam criado o pânico nos militares, os quais, ao agitarem-se, teriam provocado o desiquilíbrio da jangada.

Perante a irredutível posição da SIC em manter a versão veiculada pelo filme, nada mais nos restou do que desistirmos do pedido que lhe fizémos para que fosse proporcionado esclarecimento público sobre as conclusões desse filme.

Foi dito, nessa reunião, ao Dr. Alcides Vieira e ao Sr. Manuel Tomás que, por muito credíveis que pudessem parecer os documentos militares em que fundamentaram a versão filmada, nenhum deles jamais desmentiria ou apagaria da minha memória e dos meus camaradas o que realmente se passou.

Mais importante que os documentos preparados no silêncio dos gabinetes militares, sabe-se lá com que inconfessados motivos, era a indesmentível memória daqueles que tinham sido protagonistas e vítimas do desastre.

É com o mesmo espírito de esclarecimento da verdade dos factos que volto hoje ao assunto, desta vez no ambiente mais acolhedor de um blogue criado e gerido por alguém como o Luis Graça que, tendo estado na Guiné, sabe melhor que ninguém que não queremos honrarias, distinções ou protagonismo público.

Queremos tão só que a história seja o mais verdadeira e exacta possivel... Esse é o legado que queremos deixar aos vindouros, para que jamais seja ignorado o sacrificio de uma geração inteira, retirada à sua despreocupada juventude para fazer uma guerra em longínquas terras, em nome dos seus deveres e obrigações para com a sua Pátria.


3. A verdade do que sucedeu

Mas então, o que se passou realmente naquela manhã de 6 de Fevereiro [de 1969]?

A CCAÇ 2405, comandada pelo Cap Mil Inf Novais Jerónimo, integrava a coluna militar que tinha partido na manhã do dia anterior de Madina do Boé, rumo ao Cheche, e tinha como missão escoltar a Companhia de Caçadores [1790] evacuada daquele aquartelamento e que era comandada pelo Cap Inf Aparício (que, após o 25 de Abril, veio a assumir a função de Comandante Geral da PSP de Lisboa).

Ao fim desse dia a coluna chegou às imediações do rio Corubal, junto ao local de cambança para o Cheche. E durante toda a noite a jangada fez contínuas viagens transportando pessoal de apoio e, sobretudo, equipamentos militares e de transporte.

Ao amanhecer, as viagens de transporte entre as duas margens continuaram consecutivamente, até que chegou o momento em que na margem sul do rio Corubal já só restavam quatro grupos de combate, todos eles comandados pelos respectivos alferes, bem como os capitães Aparício e Novais Jerónimo. Além destes, encontrava-se o 2º Comandante da Operação [Mabecos Bravios], um major cujo nome já não recordo.

Segundo a rotina estabelecida e as instruções recebidas pelo responsável pela condução da travessia (Alf Mil Diniz), esperávamos na margem do rio que este responsável mandasse entrar metade do pessoal ainda ali estacionado, ou seja, dois dos quatro pelotões acima referidos.

É que a jangada, segundo bem explicou o alferes Diniz, tinha uma lotação de segurança de um máximo de 60 homens (2 pelotões). E o alferes Diniz assim fez, à semelhança do que tinha já feito dezenas de vezes ao longo da noite, zelando para que a carga da jangada não excedesse os limites de segurança estabelecidos.

Mandou entrar o meu pelotão e o do Alferes Rijo, ficando na margem para a viagem seguinte, os dois pelotões da Companhia do Capitão Aparício. Subitamente porém, assisti a uma conversa entre o 2º Comandante da Operação e o Alferes Diniz, em que este foi intimado pelo referido 2º Comandante a mandar embarcar os dois pelotões restantes, dado que não se podia atrasar mais a operação.

Apesar dos argumentos do Alf Diniz, tentando que em vez dos 4 pelotões embarcassem apenas dois, prevaleceu a autoridade da patente militar mais alta e assim acabaram por embarcar os 4 pelotões, para a derradeira viagem da jangada...

E foi de facto a sua derradeira e trágica viagem... Ainda não estavam percorridos 10 metros e já a jangada submergia e, de seguida, se virava projectando para a água quantos nela seguiam... E não me recordo de ter ouvido qualquer disparo de morteiro, antes do desastre... E não me lembro de ter detectado antes qualquer sinal de pânico entre os soldados... Aliás, a sua experiência operacional no teatro de guerra era já apreciável e não entrariam em pânico por um simples disparo de morteiro que estou seguro que não existiu.

Houve alguns disparos de morteiro, é verdade, mas após o desastre e feitos pelas NT, no intuito de prevenir qualquer aproveitamento do IN que eventualmente estivesse emboscado nas imediações.

Exceptuando os militares que infelizmente pereceram afogados no Corubal, passados poucos minutos, todos restantes retornavam à jangada que, pouco depois, se reequilibrou e retomou a sua viagem para a margem norte do rio. E eu fui um deles... Depois de me ter libertado da espingarda, das cartucheiras, das botas e das granadas, cujo peso me puxava inexoravelmente para o fundo...

Em nenhum momento descortinei qualquer tipo de pânico quando regressei à jangada e, talvez nervosos ainda do desastre, todos sorriamos e aceitávamos o banho forçado como uma dádiva divina depois de vários dias de sede e calor.

Ninguém se apercebeu de nenhum camarada em aflição ou pedindo socorro. Ninguém sequer sonhou que a tragédia tivesse atingido as proporções que tomou. Só na margem norte do rio, quando mandei formar o meu pelotão e o vi reduzido a quase metade é que tive consciência da desgraça que tinha acontecido.

E foi então que, algo descontrolado, me dirigi à margem do rio que engolira os meus soldados na esperança de ainda ver alguém... Mas a tragédia estava consumada de forma silenciosa, definitiva e rápida.

Em resumo e concluindo:

(i) O desastre do Cheche ficou a dever-se, em minha opinião, ao excesso de peso entrado na jangada.

(ii) E ela é corroborada por todos aqueles que, como eu, viajavam na jangada e que em conversas a seguir ao desastre manifestaram a mesma opinião.

(iii) Note-se que a mesma jangada tinha já feito dezenas de travessias sob as ordens directas do Alf Diniz sem nunca se ter detectado qualquer problema.

(iv) Esse problema surgiu de forma trágica na última travessia, ou seja, naquela em que o responsável Alf Diniz não pôde efectivamente proceder segundo o que estava estabelecido, deixando entrar na jangada o dobro da sua capacidade, por ordem do 2º Comandante da Operação a que, pela natureza da hierarquia militar, não poderia opor-se.

(v) Mas fê-lo, e disso dei testemunho no âmbito do inquérito que se seguiu, advertindo previamente o seu superior hierárquico para o facto de estar a infringir as determinações que tinha sobre a forma de fazer a travessia do rio e da lotação definida para a embarcação.

(vi) E estou convencido que a rapidez do desaparecimento das vítimas nas águas calmas, escuras e profundas do Corubal, se ficou a dever ao facto de todos transportarem consigo pesado equipamento de guerra que lhes tolheu os movimentos e os conduziu para o fundo do rio, de forma tão rápida, com a agravante de que a maior parte deles não sabia nadar.

(vii) Finalmente, não posso deixar de fazer referência ao que o José Martins diz ter ouvido de "alguém que esteve no centro do acontecimento" de que as águas tomaram um tom avermelhado.

(viii) Sei da existência de crocodilos naquele troço do rio Corubal.

(ix) Sei que alguns dos corpos de soldados encontrados dias mais tarde, apresentavam sinais de terem sido dilacerados por crocodilos.

(x) Mas sei também que as águas, naquele dia, e após o acidente, apenas apresentavam o tom natural verde escuro de um rio calmo e profundo e tenho dúvidas que os crocodilos tivessem estado presentes naqueles momentos, com o ruído de helicópteros sobrevoando as águas a baixa altitude, na tentativa de encontrar e socorrer algum soldado em dificuldades.

(xi) Não devemos dramatizar mais o que só por si já foi suficientemente dramático (2)...


4. Breves dados sobre a CCAÇ 2405

Composição da CCAÇ 2405

A CCAÇ 2405, à data dos acontecimentos, tinha a sua sede em Galomaro (3).

Comandante: Cap. Mil. José Miguel Novais Jerónimo

1º Grupo de Combate – Alf Mil Jorge Lopes Maia Rijo
2º Grupo de Combate – Alf Mil Vitor Fernando Franco David
3º Grupo de Combate – Alf Mil Rui Manuel da Silva Felício
4º Grupo de Combate – Alf Mil Paulo Enes Lage Raposo

O 2º Grupo de Combate, comandado pelo Alf Mil Vitor David, não integrou a Companhia na operação de evacuação de Madina do Boé, ficando na sede da Companhia em Galomaro, onde porém a acompanhou através dos meios rádio.

As baixas resultantes do desastre do Cheche, foram sofridas pelos 1º e 3º Grupos de Combate, que viajavam na jangada na altura do acidente.

Rui Felício
(Ex-alf mil inf CCAÇ 2405
_________

Notas de L.G.

(1) Vd. post do José Martins > 6 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - D: Madina do Boé, 37 anos depois

(2) Vd os posts anteriores sobre este tópico:

17 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIX: Antologia (7): Os bravos de Madina do Boé (CCAÇ 1790)
"Apresentação do livro de Gustavo Pimenta, sairómeM - Guerra Colonial (Palimage Editores, 1999), no Porto, Cooperativa Árvore, em 10 de Dezembro de 1999. Autor do texto: José Manuel Saraiva, jornalista do Expresso" (...)

2 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXIII: O desastre do Cheche, na retirada de Madina ...

"Este documento, que me chegou às mãos através do Humberto Reis, relata aa dramática operação em que participou a CCAÇ 2405, sedeada em Galomaro, e pertencente ao BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), operação essa que tinha em vista operação essa que tinha em vista retirar as NT da posição insustentável de Madina do Boé, cercada pelo PAIGC"...

8 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXX: A retirada de Madina do Boé (José Martins)

"O mês de Fevereiro de 1969 tivera inicio há poucos dias quando passou, no aquartelamento de Canjadude, uma coluna cuja missão era retirar a Companhia de Caçadores nº 1790 do seu destacamento de Madina do Boé. Paralelamente a guarnição do posto do Cheche, pertencente à Companhia de Caçadores nº 5, também retiraria e juntar-se-ia à nossa companhia em Canjadude" (...)

8 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXXI: Comentário de Afonso Sousa ao texto sobre a retirada de Madina do Boé

"Emociona este seu testemunho. Eu só faço uma pequena ideia do sofrimento de todos vocês, naquele momento trágico, nas horas e nos dias seguintes - em terras de solidão, em paragens dos confins da Guiné" (...).

(3) Em Fevereiro de 1969, a CCAÇ 2405 era a unidade de quadrícula de Galomaro, pertencendo ao Sector L1, e estando afecta por isso ao comando do BCAÇ 2852, sediado em Bambadinca.

Guiné 63/74 - P508: Tabanca Grande: Paulo Raposo e Rui Felício, dois novos camaradas (CCAÇ 2405, Galomaro, 1968/70)

Recebi notícias de mais dois camaradas da CCAÇ 2405 (Galomaro, 1968/70):

(i) em primeiro lugar, do Paulo Raposo, que nos diz ter sido alferes de infantaria do BCAÇ 2852, CCAÇ 2405 (Guiné Ago 1968 a Maio de 1970). Paulo Laje Raposo, de seu nome completo, acrescenta: "fiz no ano passado os meus primeiros 60 anos. Estivemos em Mansoa em intervenção (fomos ao Morés), Galomaro e Dulombi (fomos evacuar Madina do Boé e percorrer o Fiofioli). Manga de porrada". Não perdeu a sua jovialidade, mandando-nos uma animação com um chimpazé a perguntar: "Corpo di bó?"... Deduzo destas palavras de boas-vindas que o Paulo queira entrar para a nossa tertúlia. Julgo que ele já saiba as regras: duas fotos (uma do tempo da guerra e outra mais actual), acompanhada de uma pequena apresentação ou de um pequena estória da vida militar... Naturalmente que o Paulo é bem vindo!

(ii) Temos depois outra mensagem de outro camarada da CCAÇ 2405, já aqui apresentado anteriormente, o Rui Felício, juntamente com o Victor David. Foi-me enviada ontem à noite:

"Caro Luis Graça,

"Passei o dia de hoje em Coimbra almoçando com o Vitor David a quem me ligam laços profundos de amizade e camaradagem.

"Falámos do blogue cuja utilidade é inquestionável e que tanto mais se valorizará quanto os contributos para o esclarecimento das coisas que se passaram na Guiné se multipliquem.

"Foi um dia agradabilíssimo na companhia, à beira do Mondego, da mulher e da filha do Vitor David, ambas simpatiquíssimas, e do meu próprio filho que me acompanhou de Lisboa até Coimbra onde estuda.

"O Vitor David incentivou-me a enviar-te o texto que escrevi e que lhe dei a ler sobre o desastre do Corubal, pedindo-te que decidas sobre se o mesmo deve ou não ser divulgado no teu blogue.

"Espero vir a conhecer-te pessoalmente em breve... Pelos elogios do Vitor David a teu respeito, fiquei ansioso por esse momento se proporcionar.

"Um abraço

Rui Felício (ex- Alf Mil Inf CCAÇ 2405)

Rui: O teu post merece prioridade elevada. Vou publicá-lo logo a seguir. LG

sábado, 11 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P507: Estórias do Zé Teixeira (3): O Conceição ou o morrer de morte macaca (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

Guiné-Bissau > Empada > 2005 > As antigas retretes do aquartelamento da CCAÇ 2381 ( Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70). Aqui morreu o Conceição.
© José Teixeira (2006)


O Conceição

O Conceição era uma camarada de Lisboa, que tanto quanto eu sabia, não tinha pais e vivia com a avó. Era um moço muito alegre e passava o dia a cantar.

Já perto do fim da comissão, em Empada (está na parte do diário que não enviei para o blogue), estava na retrete ... e a cantar. Não ouviu as saídas de morteiro que nos foram enviadas do cimo da pista e controladas via rádio por alguém lá dentro ou junto ao arame farpado. Uma das primeiras rebentou no telhado da retrete e projetou-o para trás, esmagando parte da nuca contra a parede.

Eu, logo após o ataque, dei uma volta pelo quartel. Fiquei assustado, pois cairam várias lá dentro e gritava de contente. Não havia aparentemente feridos e muito menos mortos. Nesse momento, o Furriel Pedro (actualmente muito doente, com um derrame celebral) grita-me:
- Teixeira vem aqui ! - Fiquei horrorizado com o que vi. Mais uma vez chorei de raiva.
Mas a cena não ficou por aqui.

Trouxemos o cadáver para a enfermaria e logo se juntou um grupo de camaradas disposto a fazer uma noite de velada. Alguns rezavam o terço, outros choravam, outros falavam de tudo e de nada.

Como tivemos dois feridos da população, dos quais uma mulher com vários estilhaços nas espadaúdas ancas, até população civil ali estava.

Alta madrugada, eles voltaram de novo e toda a gente fugiu para o buraco abrigo que tinhamos aberto ao lado da enfermaria. A mulher ferida, essa ficou por não poder andar, mas algum tempo depois lá apareceu, rastejando.

Findo este segundo ataque voltamos para o velório... Com a precicipação da fuga para o abrigo, alguém tinha arrastado um dos bancos onde estava a maca com o cadáver do Conceição, ficando este com o corpo todo inclinado.
- Desgraçado, mesmo depois de morto não tens descanso ! - comentou alguém.

As lágrimas de dor e de revolta correram por várias faces dos camaradas presentes. Foi uma noite para esquecer e agora voltar a relembrar.

© José Teixeira (2006)

Guiné 63/74 - P506: O IN emboscado a caminho de Dulombi (CCAÇ 2405, Galomaro, Julho de 1969)

Guiné > Bafatá > Espectacular vista aérea da bela Bafatá colonial, segunda cidade da província e principal centro militar da zona leste.

Até Julho de 1969, Galomaro fazia parte do Sector L1 (BCAÇ 2852, Bambadinca). Em Agosto de 1969, a zona de acção (ZA) da CCAÇ 2405 passou a constituir o COP 7, criando-se em Outubro seguinte o Sector L5, sob a responsabilidadew do BCAÇ 2851 e formado pelas ZA das CCAÇ 2405 (Galomaro) e 2406 (Saltinho).

Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

© Humberto Reis (2006)


Pouco ou nada se tem aqui falado do subsector de Galomaro que, em 1968/70, era guarnecido pela CCAÇ 2405, a sacrificada companhia que viu morrer 17 dos seus melhores elementos na travessia do Rio Corubal, em 6 de Fevereiro de 1969, em Cheche, na retirada de Madina do Boé (Op Mabecos Bravios).

A essa companhia pertenciam os nossos amigos e camaradas Victor David e Rui Felício. O primeiro já entrou para a nossa tertúlia (1). O segundo mandou-me há dias (9 de Fevereiro) a seguinte mensagem:

"Meu Caro Luis Graça,

"Por indicação do meu amigo de juventude e mais tarde camarada de armas na CCAÇ 2405, Victor David, tive conhecimento e acesso ao excelente blogue que criaste sobre a nossa passagem por terras da Guiné.

"Transmitirei aos meus conhecidos e amigos a existência do blogue e procurarei colaborar nele se tal for possivel, levando ao conhecimento de todos alguns episódios marcantes das nossas vidas, relativamente à nossa estadia na bela e martirizada terra da Guiné.

"Até breve e um abraço

"Rui M. S. Felício (ex-alferes miliciano, CCAÇ 2405, Galomaro, 1968/69)"

Em homenagem aos dois novos tertulianos, passo a transcrever o relatório (texto digitalizado e revisto por mim) da Op Ginja Verde [o adjectivo está pouco legível] em que o Rui Felício participou, como comandante de um dos grupos de combate... Infelizmente ainda não temos on line o mapa de Padada. Em todo o caso, os pontos principais aqui referidos (Galomaro, Dulombi, Mondajane, Paiai Numba...) podem ser facilmente localizados no mapa geral da Guiné e nos mapas locais.

Fonte: História do BCAÇ 2852 (Guiné, 1968/70): Bambadinca: BCAÇ 2852. 1970. Cap II. 93-95. Documento policopiado, classificado como reservado. (Cópia em papel facultada pelo Humberto Reis, meu ex-camarada da CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).


Op Ginja Verde

Iniciada às 16h00 de 13 de Julho de 1969 com a duração de dois dias para fazer uma batida cuidadosa à região de Paiai Numba, procurando detectar vestígios IN, aniquilá-lo e destruir meios de vida se os houvesse.

Composição e articulação das Forças:

Cmdt – Cap Mil Jerónimo – Cmdt da CCAÇ 2405
Cmdt do 1º Gr Combate / CCAÇ 2405 – Alf Mil Rijo
Cmdt 3º Gr Comb CCAÇ / 2405 - Alf Mil Felício
Cmdt 4º Gr Comb CART / 2520 (2) – Alf Mil Oliveira

Desenrolar da acção:

As NT iniciaram o movimento a 13 [de Julho de 1969], às 16h00, deslocando-se até Mondajane. Reiniciaram o movimento apeado por volta das 4h00 do dia 14.

Saiu o movimento apeado de Mondajane na direcção leste, patrulhando sempre a margem esquerda do Rio Queuel. A progressão era feita a TT [todo o terreno], mas apesar disso era relativamonte fácil por se nos deparar uma mata pouco densa.

Cerca das 7h00 foi atingido o Rio Cantor, que seguimos na direcção norte. Entretanto a progressão tornava-se cada vez mais difícil, quer pela ausência de trilhos quer pelo terreno que se nos ia deparando mais arborizado à medida que se caminhava para norte.

A progressão continuou sem novidade tendo-se atingido o Rio Sinhandi cerca das 11h00, onde parei cerca de meia hora para descansar. Prosseguiu-se depois ao longo da margem direita do Rio Nhancam cujo curso segui por saber que este me conduziria à tabanca de Paiai Numbá.

A cerca de 1 Km desta tabanca, onde cheguei por volta das 13h00, tomei a direcção sudeste e patrulhei a área adjacente à tabanca do Vendu Jangala.

Até a este momento não foram detectados quaisquer vestígios IN nem a existência de quaisquer trilhos que não estivessem marcados na carta. Reiniciei o movimento, desta vez na direcção nordeste caminhando paralelamente ao itinerário Dulombi – Paiai Lemini – Paiai Numba e a cerca de 2 Kms para o lado esquerdo.

0 terreno apresentava-se de difícil progressão pela ausência de acidentes geográficos bem referenciados, e por ter de se atravessar uma mata densíssima. A navegação foi sempre feita por carta e bússula já que os guias nativos diziam não saber orientar-se pela inexistência de trilhos. Atingimos o itinerário Dulombi-Paiai às 16h00 em PADADA 2F4 onde mandei fazer um alto para fazer descansar a tropa.

A testa da coluna encontrava-se junto ao itinerário e o resto da força estava embrenhada na mata em sentido oblíquo ao da estrada. Comecei a montar o dispositivo de defesa mas só tive tempo de colocar dois grupos de sentinelas avançadas, um de cada lado da estrada. Às 16h05, um desses grupos de sentinelas detectou um grupo IN quo se aproximava pelo itinerário em direcção ao Dulombi. As referidas sentinelas abriram fogo de espingarda automática, logo seguido pelo fogo de alguns elementos da minha tropa que se encontravam junto a estrada. Aos primeiros tiros dois elementos IN que vinham à frente caíram enquanto os restantes se embrenhavam apressadamente na mata em posição frontal às nossas forças e debaixo de fogo de dilagrama, armas automáticas e granadas de mão.

Desencadeou-se forte tiroteio com consumo indiscriminado de munições por parte do IN, que utilisava lança-rockets, morteiro 60, metralhadora ligeira e grande quantidade de armas automáticas. Ao fim de cerca de 10 minutos de tiroteio o IN conseguiu com um tiro de lança-rockets atingir alguns elementos das NT com vários estilhaços, tendo dois deles ficado gravemente feridos.

Tentei comunicar com o posto de rádio de Mondajane mas o operador de transmissões informou-me que o aparelho de rádio CHP-1 se encontrava inoperacional por ter sido atingido pelo mesmo rocket. Quase simultaneamente um dos nossos apontadores de LGFog aniquilou con um tiro certeiro um elemento IN que se encontrava em cima da uma árvore a fazer fogo preciso sobre nós. 0 fogo continuou de parte a parte, tendo o IN tentado o envolvimento mas a reacção pronta das NT impediu-o.

0 IN, com o efectivo que estimo em cerca de 60 elementos entre carregadores e combatentes, acabou por retirar na direcção sudoeste, sob o nosso fogo de morteiro e de LGFog. Não me foi possível efectuar una batida ao local da emboscada, senão no dia seguinte, porque no final da refrega constatei que o IN nos tinha causado um ferido muito grave (que veio a falecer pouco depois) mais dois feridos graves e três ligeiros que ocupavam imediatamente um grupo de combate para os transportar e auxiliar.

Todo estes factores, aliados ao facto de nos encontrarmos ainda a uma distância de 6 quilómetros de Dulombi e de o patrulhamento ter extenuado a tropa, obrigaram-me a ter de desistir da batida ao local, em benefício da evacuação [- que por heli se mostrou] impossível por o único nosso meio de transmissão a longa distância se encontrar inoperacional. Além disso, as NT por terem estado cerca de 35 minutos debaixo de fogo intenso consumiram quase todas as munições. Portanto, achei inconveniente sujeitar-me a novo contacto organizando a batida.

O IN pareceu-me excepcionalnente bem municiado. 0 que me fez crer que o seu objectivo era ir atacar o Dulombi se não tivesse tido o contacto connosco.
__________

Notas de L.G. :

(1) Vd post de 8 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DIV: CCAÇ 2405 (Galomaro e Dulombi, 1968/70)

(2) CART 2520 (1968/70): estava sediada no Xime.

Guiné 63/74 - P505: Os ajustes de contas do PAIGC: o caso do Candé de Quebo (Zé Teixeira)

Guiné-Bissau > Quebo > Novembro de 2000 > Fotografia de grupo de ex-combatentes portugueses e de militares do Exército da República da Guiné-Bissau.

© Albano M. Costa (2005)


Texto do José Teixeira:

Ao ler a história do Seni Candé, veio-me à memória outro Candé. Este com uma história bem mais triste.

Possivelmente alguns dos tertulianos conheceram-no em Quebo (Nova Lamego). Trata-se do Candé, Chefe do Pelotão de Comandos Africanos aí sediados (1).

A sua coragem e tenacidade livraram-me algumas vezes de apuros, nomeadamente na coluna de transporte dos obuses 14 mm de Buba para Quebo, pela picada de Cumbijã, e posteriormente noutra coluna pela mesma picada em que esteve a minha Companhia envolvida,estrada essa que foi fechada ao trânsito de militares a partir dessa altura.

Candé era um homem que face ao perigo arrancava com o seus homens, de peito aberto, ao encontro do IN, pondo-o em fuga.

"Os senhores do poder", no pós 25 de Abril, não souberam ou não quiseram assumir as responsabilidades que este País tinha assumido para com aquela gente.

Este homem e tantos outros consideravam-se filhos de Portugal, assim se afirmavam e acreditavam. Lutaram por esta Pátria, convictos que estavam do lado certo. Foram traídos e abandonados.

O Candé foi preso e levado para a sua terra natal, segundo me contou o Mudé Embalo de Chamarra (2), cuja história já conhecem. Aí foi convocado um Conselho do Povo e de seguida foi feito um julgamento sumário dos "traidores à Pátria".

Guiné > Aldeia Formosa (Quebo) > 1968 > o 1º Cabo Enfermeiro Teixeira junto a um obus 14 (ou 140 mm). 
© José Teixeira (2005)

Para mobilizar a população foi desenvolvida uma campanha de informação junto das Tabancas, dizendo que iam ser visitados pelo Homem grande de Bissau (Luís Cabral), o que era falso: apenas pretendiam juntar a população para lhe demonstrarem quem mandava e como mandava.

Sem defesa possível, e com o ambiente bem instrumentalizado pela juventude do PAIGC, o Candé foi condenado à morte, através de um prego espetado na cabeça.
Morte lenta e dolorosa. Horrível.

Envergonhem-se os governantes da Guiné, saídos vitoriosos da Guerra pela sua emancipação, por não saberem, não quererem ou, mais grave ainda, darem cobertura a possivelmente milhares de situações como esta do Candé. Não souberam compreender, perdoar e aceitar os irmãos, filhos do mesmo chão, irmãos na mesma fé, que em resultado de uma educação, desinformação e/ou aliciamento, se colocaram do outro lado, convictos que era esse o caminho certo, quantas vezes em situação de irmãos contra irmãos, filhos contra pais, maridos contra mulher e vice versa.

Camaradas e amigos tertulianos: os crimes cometidos em nome do meus País, por tantos de nós, também eles instrumentalizados pelos senhores do poder de então, de que era dever sagrado de lutar pela Pátria multirracial, continuou depois, por omissão de quem tinha o dever sagrado de defender estes filhos da mesma Pátria, tal como lhes tinha sido ensinado.

Zé Teixeira
__________

Notas de L.G.

(1) Possívelmente o Teixeira quer-se a referir a um Pelotão de Caçadores Nativos ou a um Pelotão de Milícias. Vd. post de 1 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXI: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (2): Buba/Aldeia Formosa, Julho de 1968

Posteriormente, ele mandou-me uma mensagem a confirmar "que era mesmo um grupo de combate de Comandos Africanos".

(2) Vd pots de 9 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXIII: Estórias do Zé Teixeira (1): Dôtor, Bô ka lembra di mim ?

Guiné 63/74 - P504: Memórias de Guileje (Zé Neto, 1967/68) (7): Francesinho e Cavaco, o belo e o monstro


Guiné > Guileje > CCÇ > 1967 > CART 1613 > Ao centro, a permanente alegria do Francesinho. 
© José Neto (2006)


VII parte das memórias do primeiro-sargento da Companhia de Artilharia nº 1613 (Guileje, 1967/68), o então 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (e hoje, capitão reformado).

O Zé, que é o patriarca da nossa tertúlia, quis partillhar connosco uma parte "muito significativa" das memórias da sua vida militar. Enviou-nos "trinta e três páginas retiradas (e ampliadas) das 265 que fui escrevendo ao correr da pena para responder a milhentas perguntas que o meu neto Afonso, um jovem de 17 anos, que pensava que o avô materno andou em África só a matar pretos enquanto que o paterno, médico branco de Angola, matava leões sentado numa esplanada de Nova Lisboa (Huambo). Coisas de família"... Obrigado, Zé! As tuas memórias de Guileje são também as memórias das nossas vidas.. em Mansambo, no Xime ou em Guidaje!


O Francesinho (1)

Com pouco mais de metro e meio de altura, franzino, quase imberbe, era um poço de força, energia e boa disposição que a todos espantava.

Geralmente, quando o pessoal regressava das duras caminhadas pelas matas e bolanhas vinha estafado e atirava-se para cima do catre para descansar. Essa não era a prática do Francesinho. Tomava um duche, ficava como novo e, com a sua concertina algo desafinada, espalhava alegria por toda a tabanca e arredores.

Era emigrante em França, para onde foi com os pais ainda criança e pela nossa Lei não estava sujeito ao serviço militar, mas quando atingiu a idade própria veio apresentar-se e foi incorporado.

Constava nos seus documentos que era analfabeto e agricultor e, no entanto, falava correctamente francês e era operário especializado da indústria metalomecânica.

O mais surpreendente, se é que o Francesinho não fosse ele uma permanente surpresa, era a correcção com que falava português com a pronúncia e os ditos da sua região, as terras do Basto.
A sua única preocupação era a de que, quando acabasse a tropa, as nossas autoridades lhe passassem um papel para apresentar no birú da fábrica onde trabalhava, justificando que esteve ao serviço da sua Pátria.

Desgraçadamente não foi preciso o papel, mas julgo que o tal birú (bureau) da fábrica decerto deu por falta do portuguesinho, alegre e diligente, nascido na freguesia de Ribas, concelho de Celorico de Basto e falecido heroicamente em combate na Guiné Portuguesa.

As últimas mãos que afagaram aquele rosto de menino, antes de se soldar a urna de chumbo que o trouxe de volta, foram as do Capitão Corvacho e a minha. Não é vergonha dizer que não contivemos as lágrimas que nos correram pela cara abaixo.


O Cavaco

No final do ano [1967], eu, o Furriel Martins e o 1º Cabo Santos do Cabo fomos chamados a Bissau para depor no julgamento do Soldado Cavaco (2).

O Tribunal Militar funcionou nas salas do tribunal civil e, em duas sessões, ficou tudo resolvido.

O Cavaco deu-se como culpado e o seu defensor, um tenente miliciano de Administração Militar que era advogado, apenas se deu ao trabalho de procurar provar atenuantes para reduzir a pena.

Tanto eu como o Furriel e o Cabo respondemos apenas às perguntas que nos foram formuladas. O Tenente, a certa altura, perguntou-me qual era a minha opinião sobre o comportamento do réu, anterior aos factos.

Gerou-se uma pequena quezília processual entre o promotor e o advogado que acabou com o Juiz Auditor (civil) a intrometer-se e declarar que aquele Tribunal tinha a obrigação de conhecer o carácter do réu e, naquele momento, ninguém mais conhecedor do que o depoente (eu) podia responder a perguntas que levassem a fazer um juízo acertado.

Fiquei sob o fogo cerrado, ora de um, ora de outro, com respostas curtas, quase sim e não. O coronel Presidente acabou por me interpelar dizendo-me que, por palavras minhas, classificasse a qualidade de soldado do réu. Respondi com convicção:
-Um excelente e infeliz soldado.

A pena foi de vinte e três anos de prisão maior, a cumprir em estabelecimento penal adequado na Metrópole.

Nunca mais o vi, mas tive notícias de que o rapaz não cumpriu nem metade da pena.
__________

(1) Vd. posts anteriores:

8 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto)(6): dos Lordes e das bestas

3 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto)(5): ecumenismo e festa do fanado

23 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXIII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto)(4): os azares dos sargentos

21 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (3): Dauda, o Viegas

13 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXLVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (2): Ordem de marcha

10 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXXVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (1): Prelúdio(s)

(2) O Soldado Condutor Auto Rodas José Manuel Vieira Cavaco abateu a tiro o primeiro comandante da companhia, Alferes de Artilharia, graduado em Capitão, Fausto Manteigas da Fonseca Ferraz, na noite de 24 para 25 de Dezembro de 1966 (Natal), no aquartelamento de S. João [, frente a Bolama,]onde a unidade se encontrava em treino operacional.

Guiné 63/74 - P503: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (14): De que lado estaria Deus ? (Agosto de 1969)

Guiné-Bissau > Buba > Tabanca de Lisboa > Antigos guerrilheiros do PAIGC, hoje perfeitamente integrados na comunidade local.
© José Teixeira (2006)


XIV Parte de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).


Buba, 4 de Agosto de 1969

Ao comemorar o 6º aniversário da implantação do terrorismo na Guiné (1), o Sr. Amílcar Cabral queria fazer um grande festival em toda a Guiné. Ameaçou fazer uma grande surpresa, nomeadamente em Buba. Afinal limitou-se a vir cá às 17.45 h e fazer uma pequena serenata de canhão s/r, morteiro 120 e costureirinhas. Apenas uma granada rebentou dentro do Quartel,causando danos ligeiros. De noite ouviram-se rebentamentos por todo o lado. Empada parece que também foi atacada. Nhala, sofreu três ataques: à uma da manhã, às dez e novamente à noite. Mampatá também sofreu a visita do IN.

Buba, 7 de Agosto de 1969

Guiné-Bissau > Empada > 2005 > Um minúsculo abrigo no quarto dos furriéis. 
 © José Teixeira (2006)

As colunas de abastecimento a Aldeia Formosa e povoações limítrofes continuam a dar que falar. Ontem, seguiu mais uma e ao chegar ao Pontão de Uane, uma mina anticarro rebentou debaixo da 14ª viatura, projectando os seus ocupantes a grande altura, pois a viatura seguia sem carga. Três mortes instantâneas, todas de africanos e nove feridos graves, entre os quais dois colegas meus. Foi este o resultado.

Eu não fui esperar a coluna porque estou com baixa médica. Sinto-me muito fraco e abatido psicologicamente.
Ainda não sei quando regresso a Empada, talvez, lá para o fim do mês.

Dá que pensar porque é que a viatura atingida foi a 14ª, portanto já no meio da coluna que seguia o trilho das outras treze anteriores, carregadas e bem pesadas.

Guiné-Bissau > Empada > 2005 > "Aqui morreu o Conceição"
© José Teixeira (2006)


Buba, 9 de Agosto de 1969

Estou doente, sem forças, as pernas parece que não podem com o corpo. O apetite é pouco. Fui ao médico que, além de me receitar medicamentos reconstituintes, deu-me dispensa por uns dias.

Estou sozinho em Buba com metade da Companhia. Insisti desde sempre que não aguentava a carga e que devia ser chamado outro enfermeiro de Empada. Fui-me abaixo das canetas e estão a sair Enfermeiros da Companhia 2382 com os meus companheiros, o que nunca devia acontecer e está-se a gerar um mal estar, entre colegas e amigos, desnecessário. Segunda Feira termina a minha dispensa, mas eu ainda não me sinto bem. Vejamos que me vai dizer o médico.


Buba, 13 de Agosto de 1969

Está por cá o Padre Manuel Capitão, Coordenador dos capelães na Guiné, grande amigo, e que encontrei há tempos em Bissau, quando regressei da Metrópele de férias. Desde alguns dias que anda de visita ao Sector. Hoje foi acompanhar a coluna para Aldeia Formosa até Nhala e regressou no Héli que foi fazer uma evacuação de um ferido na sequência de um contacto com o IN.

A minha saúde continua abalada, felizmente com tendência para melhorar. Ontem, devido a uma grande caminhada de patrulhamento com o fim de preparar o terreno para a Coluna de hoje, não aguentei e os meus colegas tiveram de me transportar, até ao quartel. Depois de descansar fiquei melhor. Hoje sinto-me bem e tenho a esperança que em breve ficarei no lugar.

Quando estive com o Padre Capitão em Bissau, tentei aprofundar esta e outras questões sobre a assistência religiosa em tempo de guerra e a posição da Igreja Portuguesa colaboracionista com o poder político que manda matar em nome dos princípios cristãos, e a actuação dos capelães, passiva e nada evangélica, para não desagradar aos Comandantes, aos fazedores da guerra.

Eu já sentia dentro de mim a revolta. De que lado estaria Deus? Com os Portugueses que teimavam em dominar um povo pelas armas ou com esse povo que queria seguir o seu destino, ou não estaria com ninguém e apenas apelava aos homens para darem as mãos para construirem um País novo? Qual devia ser a missão do Sacerdote ? Como falar ao Soldado que tinha deixado forçadamente a sua família, o seu emprego para matar ou ser morto?

Nesse encontro pôs-me fora do gabinete, mas em Buba, ele que nunca tinha saído de Bissau, e quis vir ver como as coisas se passavam no terreno, deu-me razão. Chorou por não poder fazer nada. Sentia-se amarrado. O Sistema Militar condicionava-o e os Capelães que os Bispos lhe mandavam, na sua maioria eram sacerdotes com problemas e nada preparados para este tipo de missões.


Buba, 16 de Agosto de 1969

Mais 24 toneladas de material apanhado ao IN no Norte, perto de Ingoré (2). As nossas tropas destruiram cinco destacamentos do IN, entre os quais Canchungo, Mâmpatas e Sane, todos perto de Ingorei, por onde andei nos primeiros três meses de guerra. O IN fugiu e os nossos tiveram 6 feridos. Parece que o exército senegalês auxiliou a fuga a pretexto de assistência médica.
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Notas de L.G.:

(1) Referência ao 1º taque do PAIGC a um aquartelamento português (Tite) em 1963 ? Não foi em Agosto (4), sim em 23 de Janeiro (efeméride que é apontada, em geral, como a do início da luta armada na Guiné

(2) Ingoré: no norte, junto à fronteira com o Senegal, na estrada entre Sedengal e Bigene. Pertence à actual região do Cacheu.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P502: Tantas Vidas, o blogue do nosso camarada Virgínio Briote

1. Temos mais um camarada nosso que se tornou bloguista: o Virgínio Briote, o VB (ex-alferes miliciano comando, Brá, 1965/67).

É com muita satisfação (e até com uma pontinha de orgulho por ter sabido seguir as pisadas de outros bloguistas e tertulianos como eu, o João Tunes, o Jorge Neto... ) que vejo o nosso VB a dar os primeiros passos na pilotagem do seu próprio blogue... A gente já sabia que ele tinha o bichinho da escrita. A blogosfera é um outro passo a seguir, lógico e natural... Sentimo-nos honrados por ele ter andado também connosco, nestes últimos meses...

O VB escreveu-me a comentar o "excelente o trabalho feito pelo Jorge Neto. Enviei-lhe uma pequena mensagem a agradecer o trabalho. Acho que estou demasiado sensível, fiquei com os olhos húmidos".

Por outro lado, comunicou-me que o blogue foi uma surpresa e uma prenda dos filhos: que ternura!... O blogue chama-se Tantas Vidas. "Estou a aproveitar o espaço para treinar, relato pequenas histórias do dia a dia e vou publicar algumas partes dos meus dias na Guiné".

Desde 6 de Fevereiro, o italiano (sic) já lá pôs uma meia dúzia de boas estórias na categoria Guiné. Tem outra secção (ou categoria) chamada Contos Curtos, altamente promissora (Que estória, de primeira água, a do Inácio, militante delicado!)...

O nosso VB, um andarilho do mundo, promete: talento, sensibilidade, fino trato, sentido de humor, capacidade de efabulação, matéria-prima, mundo percorrido, vidas vividas... nada lhe falta. Tivemos aqui o privilégio de publicar algumas peças dele, que são de antologia... Espero que ele continue a aparecer por aqui, quanto mais não seja em patrulha... de nomadização.

Boa saúde, boa navegação, camarada! E que o teu belo exemplo contagie outros amnigos e camaradas. Por que viver e escrever... é preciso!

PS - Adorei o post 1. O Caminho para lá: deliciosa descrição da viagem até Guiné, no Alfredo da Silva, com as peripécias do Capitão Matos e do Alferes Gil no Funchal, no Mindelo, em Bissau... Cinco estrelas, VB!


2. Outro bloguista, mas este veterano, é o irrequieto, o fabuloso, o contundente, o dramático João Tunes. 

A sua Água Lisa já vai em 5ª edição. É um apaixonado da vida, do cinema, da sua terra, é um cidadão do mundo, crítico, mas solidário e generoso... Mais dinamarquês do que os dinamarqueses e mais alegre que o Alegre... O seu humor é corrosivo, zurzindo a estupidez e o delírios dos poderosos. É um trabalhador infatigável, e um camarada de grande coração. Não esconde o seu coração é verenelho e que bate do lado esquerdo. É inimigo declarado do dogmatismo e do fundamentalismo. Tem o grão de loucura q.b. que nos garante a sua sanidade mental. É também uma espécie em vias de extinção. Tal como todos nós.

Aqui fica o post que ele escreveu, sinalizando a entrado do novo cibernauta, o VB, no domínio da blogosfera.

Título do post, de 9 de Fevereiro de 2006: E Amílcar de nós tão perto, não foi ?. Aqui se transcreve, com a devida vénia (neste caso, continência!) e em homenagem aos dois bloguistas, o periquito e o velhinho:

"Ora bem, camarada. Sabes que desde que apareceram os teus primeiros textos no blogue comandado por Sexa o Furriel Doutor Luís, sou apreciador da tua escrita, a que ajuda o facto de partilhar a substância da tua visão do mundo e, sobretudo, a forma de olhares a memória, uma memória em que tantos entrámos e por lá ficámos, parados, lixados sempre, a olhar um absurdo, o nosso absurdo comum (o daqueles a quem, putos como todos os putos, casaram à força com uma G3). Fiquei emocionado, defeito da idade (é isso, um gajo quando entra na velhice, torna-se incontinente, emociona-se com facilidade e até chora quase por dá aquela palha) ao ler-te neste teu novo projecto de partilha. É que tu escreves, pensando e sentindo a escrita. E ... bem, muito bem! E se, como dizes, ainda estás a fazer o treino, o que não escreverás quando entrares em combate! Obrigado pelo teu aviso (já te linkei).



Guiné > A famosa foto do líder do PAIGG, de pé, numa canoa, atravessando um rio... Fonte: Origem desconhecida. Reproduzida no Água Lisa(5), blogue do João Tunes.

"Envaidece-me saber que aprecias o Água Lisa. O meu blogue já vai para dois anos e meio e a saturação nota-se. Agora só vou pingando, mais com resmungos de velho impaciente que outra coisa. E não poucas vezes, entorno para a intolerância ou, de outra forma dizendo, para o absoluto. E vou-me apercebendo de como, sem quase dar por isso, vou cristalizando vícios moralistas que tanto me irritavam nos velhos do tempo em que eu era jovem e me faltava a paciência para os aturar. Mas se o tempo não anda para trás nem dá pulos e avança, que seja como é. 

"Olha, ainda vou teimando, enquanto a rebeldia de espírito não tiver direito a uma pá de cal e uma coroa de flores. E, por vezes, fico-me com a sensação que a nossa sociedade caminha para o autismo, o deixa andar, o demissionismo cidadão, a censura e a auto-censura, democraticamente regredindo-se, e eu mais me vou convencendo que, se os velhos rebeldes se calam, a malta nova ainda tem a tentação de deixar tudo andar para trás e experimentarem, outra vez, a falta de liberdade para depois reconstruírem a aventura e os riscos de a voltarem a conquistar. Pensamentos enfeitados de pesadelos que são uma completa basófia, concedo.

"O melhor para ti, camarada e amigo. João Tunes".

Guiné 63/74 - P501: A sanha revolucionária e os meus Jagudis (A. Marques Lopes)


Texto do A. Marques Lopes, ex-alferes miliciano atirador de infantaria (CCAÇ 1690, Geba; CCAÇ 3, Barro, 1967/69), hoje coronel, DFA, reformado.

Foto > Guiné > Barro > 1968 > CCAÇ 3 > O Grupo de Combate do Marques Lopes, Os Jagudis, fazendo uma pausa no mato. Eram quase todos de origem balanta, por escolha do seu comandante. Havia um cabo, fula, e três furriéis brancos.

© A. Marques Lopes (2005)


A propósito do que o amigo Mário Dias diz sobre "a sanha revolucionária dos que, a seguir ao 25 de Abril de 1974, consideravam como bestas criminosas todos os que tinham combatido ao lado de Portugal - militares portugueses incluídos" (1), permitam-me que possa discordar desta ideia com alguns laivos de generalização.

E lembrar que os principais intervenientes (assim como outros que não estiveram, por várias razões, na primeira linha) da revolução foram combatentes activos na guerra e, referindo-me expressamente aos que estiveram na Guiné, conheciam bem e estimavam os combatentes africanos que lutaram ao lado dos portugueses.

Se o Mário Dias se refere a alguns grupelhos ultras então existentes, com alguns dos seus antigos elementos agora em posições na vida governativa e partidária, e até em altas instâncias internacionais, pode ter razão quanto à sanha revolucionária mas não que eles tenham decidido alguma coisa, nos idos tempos da revolução, sobre o futuro dos ex-combatentes.

Lembro que as independências, nomeadamente a da Guiné, a reconhecida por Portugal [em 10 de Setembro de 1974], se deram na fase acesa do período revolucionário. A velocidade e a complexidade dos problemas então existentes ter-se-ão presentado com mais urgência aos, então, responsáveis. Mas lamento e concordo que foi errado não ter tido também a preocupação para com a sorte dos combatentes africanos.

E digo isto porque sei que alguns dos meus Jagudis de Barro também foram fuzilados após a independência da Guiné, o que, obviamente, me entristeceu muito. Mas peço ao Mário Dias que não pense que foi a sanha revolucionária. Foi, sim, a falta de preocupação, havia outras... que não é desculpa, nem justificação, estou de acordo. Aliás, é o que pensam os actuais governantes relativamente aos ex-combatentes.

Quanto aos fuzilamentos no Cumeré, num encontro que tive com ele há alguns anos, o Luís Cabral garantiu-me que não foi ele o responsável mas sim o Nino Vieira, por iniciativa própria, como Ministro da Defesa de então. E, porque o conheço como pessoa, acredito que o Luís Cabral não tomaria uma decisão dessas, assim como não a tomaria, penso eu, o Amilcar Cabral, se fosse vivo na altura.

Lembro que a vingança dos vencedores de uma guerra de libertação (ou assim considerada) para com os que estiveram do lado do inimigo sempre deu em situações dessas. Os partisans franceses mataram muitos colaboracionistas após a libertação, os franquistas mataram muitos republicanos após a sua vitória, os vietcongs mataram muitos sulistas após a saída dos americanos... Claro que, porque os conheci e vivi com eles, gostava que isso não tivesse sucedido aos meus Jagudis. Lamento e fiquei triste.

A propósito, esteve há pouco tempo em Portugal um jornalista guineense que eu conheço, o António Nhaga, que é correspondente em Bissau do Diário de Notícias. Disse-me ele que um tio dele foi soldado da CCAÇ 3, a companhia onde estiveram os Jagudis. Após a independência fugiu para o Senegal, por lá esteve uns anos, mas está agora em Bissau. Quando lá for proximamente vou-me encontrar com ele.

Abraços
A. Marques Lopes
____

Nota de L.G.

(1) Vd. post de hoje, Guiné 63/74 - DXV: Uma dívida que Portugal nunca pagou aos seus soldados africanos (Mário Dias)

Guiné 63/74 - P500: Cufar, a Bissalanca do Sul (Moura Ferreira)

Luís

Há um lapso no último post, Guiné 63/74 - 499: O Seni Candé da minha CCAÇ 6 (Moura Ferreira)... Trata-se da indicação relativa à localização de Cufar.

De facto, aquele a que me tenho sempre referido é Cufar Novo, a nordeste de Catió, mas que sempre foi conhecido apenas como Cufar (Há, de facto, outro, na região de Mansia).

Este aquatelamento foi ali iniciado em Fevereiro de 1965 pela CCAÇ 763, do Cap Costa Campos e dos Alferes Miguel e Avilez (de quem me lembro). Quase todos os dias recebia flagelações a partir da mata de Camaiupa, onde se manteve até Nov/66, quando foi substituída pela minha CCAÇ 1621.

Foi sempre, pelo menos durante os anos em que ali estive, a Base Aérea do Sul. Era uma alternativa a Bissalanca, quando se processavam grandes operações no Sul da Guiné. Havia ali sempre grande movimentação de aeronaves, incluindo Dakotas, Paraquedistas e Comandos.

No meu tempo tive ali como visita, que nunca esquecerei, a 3ª Companhia de Comandos, do Cap Alves Cardoso. Penso que foi a única a quem foi permitido pelo Ministro do Exército usar boina camuflada.

A pista de aviação tinha cerca de 800m, começava junto aos abrigos e terminava na mata.

Em determinada altura (finais de 66) recordo-me que um Fiat pilotado por um Sarg Ajudante Piloto, de que não me recordo o nome, mas de quem guardo a imagem da lividez do rosto e da testa perlada de gotas de suor frio, quando saiu do cockpit, ao parar o Caça, junto ao arame farpado, com o motor parado.

Foi-nos dito que aquela façanha de um Fiat, naquelas condições, baixar em uma pista daquela dimensão e de terra batida, não plana mas em lomba, apenas poderia ter sido efectuada por aquele militar.

Mas perguntarão por que carga de água teria ali baixado o Fiat? Eu explico. Nessa altura a Mata do Cantanhez era um Santuário do Turras, onde sabiamos haver todas as estruturas desde as de ensino, às médicas e outras (abrigos muito bem construídos e talvez antiaéreas). Por essa razão, era habitual e frequente, por vezes diariamente, efectuarem-se bombardeamentos aéreos nessa zona. Nós em Cufar ficávamos a ver o espetáculo do outro lado do Rio Cumbidjã, que como poderão verificar no mapa era absolutamente possível.

Ora numa dessas operações de bombardeamento aconteceu o motor do Fiat a que me referi, parou à vertical do Cantanhez. Aquele avião ao que me é dado saber parece que a cair é uma pedra, mas o tal Sarg. Ajudante, consegui trazê-lo, se assim se pode dizer, a planar até à pista, quando deveria regressar a Bissau. E fê-lo nos limites, pois ainda rapou as copas das árvores, no inicio da pista com o trem de aterragem.

Claro que para sair dali a aeronave teve que ser desmanchada e levado às peças para ser remontado em Bissau. Esta situação ainda permitiu que alguns de nós, incluindo eu, fossem desenfiados até à Capital fazer uma visitinha à 5ª Rep. para saber novidades.

No meio disto tudo ainda nos rimos e não só de alegria pelo desfecho da ocorrência, mas também pelo facto de como estávamos sem receber correio há muito tempo (seguramente 2 semanas, o que já era uma eternidade) quando o pessoal viu o Fiat a baixar todos correram ao seu encontro gritando de satisfação e para dar conhecimento aos mais distraídos de que Vem aí o correio

Espero ter esclarecido e ao mesmo tempo contribuído com uma estória para o nosso convívio.

Um abraço.
Hugo Moura Ferreira

Guiné 63/74 - P499: O Seni Candé da minha CCAÇ 6 (Moura Ferreira)

1. Texto do Hugo Moura Ferreira (ex-alf mil inf, CCAÇ 1621 e CCAÇ 6, Cufar e Bendanda, 1966/68):

Caros Luís, Jorge e José Neto:

Mas que recordações em catadupa que vocês fizeram chegar à minha memória! De tal forma foram fortes que me tornaram os olhos húmidos.

Sabem... Eu estive na CCAÇ 6, de Julho de 1967 a Julho de 1968, e algumas daquelas pessoas de quem o Seni fala, também são dos meus conhecimentos, nomeadamente o Cap Silva. Era o Gastão, no meu tempo. Esteve ali a fazer o tirocínio como Alferes, depois de sair da Academia Militar e voltou mais tarde a comandar a CCAÇ 6, como Capitão.

Pela minha parte tenho que reconhecer que não me lembro do Seni, pois certamente nessa altura ainda não era do meu Grupo de Combate, que era o 2º.

Mas fiz com toda a certeza operações com ele, nomeadamente a Nhai e a Cabolol, numa altura que o Cantanhez, do outro lado do Cumbidjã, ainda era um santuário.

Ao verificar os meus canhenhos encontrei informação acerca dele, visto que tenho a listagem de todo o pessoal que fez parte da Companhia até finais de 1968 e penso que ele, antes de ser integrado na tropa territorial, onde, pelo que afirma o Jorge Neto, tinha o nº 397/65, era o 1º cabo 106/65, do Pelotão de Mílicia nº 143, adido à CCAÇ 6, por motivos operacionais, comandado pelo Alferes de 2ª Linha Tala Biú Djaló que, se não tivesse morrido em combate em Conacri, como furriel dos Comandos Africanos, hoje seria o Régulo do Cantanhez.

Quanto ao que ele afirma sobre os fuzilamentos, não sei se sabem que daquela companhia cerca de 50% do pessoal, infelizmente, terminou os seus dias dessa forma inglória. Que o digam alguns pilotos de helis, da nossa Força Aérea, que depois de terminada a guerra transportavam os elementos do PAIGC (desconhecendo, mas desconfiando) para esse fim, mas que eram aconselhados a não ouvir nada e a desconhecer tais factos.

Infelizmente são consequências do tal abandono que os iluminados de cá e desses tempos votaram aqueles que tinham optado por nos ajudar na convicção de que a razão estaria do nosso lado.

Mas, como achega, colocando a questão de forma particular ao José Neto que desta matéria certamente saberá mais que nós, milicianos, gostaria de perguntar uma coisa e justificar porque é que o faço.

Assim, sendo o Seni Candé um deficiente das forças armadas, cuja incapacidade foi adquirida antes do 25 de Abril de 1974, não lhe teria sido atribuída uma pensão? Não me parece normal que o não tivesse sido. E será que, a ter-lhe sido atribuída essa pensão, ela não teria em determinada fase sido remetida para a Guiné-Bissau a fim de ser entregue ao interessado, e não ter chegado ao seu destino?

É que eu tenho um amigo, que foi meu soldado em Cufar (ou Cufar Novo, a Nordeste de Catió] quando na CCAÇ 1621 (Nov 1966 / Jun 1967), antes de ir para Bedanda, que em 1968, tendo sido ferido por uma A/P e ficado sem uma perna, seguiu para a Alemanha e depois para Lisboa, onde se manteve algum tempo. Nessa altura foi-lhe atribuída a esse camarada (cujo nome não interessa para o caso) uma pensão por incapacidade.

Quando se deu o 25 de Abril, ele deixou de receber a referida pensão porque, ao que veio a saber posteriormente, ela era remetida pelo Governo português, como tantas outras, através das vias oficiais, destinadas aos interessados, mas sendo recebidas em Bissau nunca lhes foram entregues.

A partir dessa altura passei eu a ser o seu procurador e depositar a pensão aqui, na CGD [Caixa Geral de Depósitos]. Em 1977, optou pela nacionalidade portuguesa e actualmente passa por cá uns tempos e na Guiné os necessários para organizar e gerir os seus negócios principais, mas continua a receber aqui na CGD, regularmente, as suas pensões.

Por tudo isto não poderíamos nós por cá tentar saber algo mais acerca da possibilidade do Seni ainda vir a receber algo e se, na realidade, alguma vez lhe foi atribuída a pensão?

Se me disserem onde dirigir, disponibilizarei tempo e certamente tentarei saber algo mais. Possivelmente o Jorge Neto terá mais informação acerca do moço.

Claro que fazer isto apenas a um de tantos necessitados não iria resolver muito, mas ao Seni de certeza resolveria.

Que acham? Mãos à obra? Ou este pensamento é uma utopia?

Um abraço.
Moura Ferreira


2. Comentário do Jorge Neto:

Caro Moura Ferreira e restantes tertulianos,

O Seni contou-me um pouco mais do que aquilo que está no Blogue. De facto ele recebeu uma pensão durante uns anos. Não me recordo se até 1985!!!... Mesmo estando "refugiado" na Gâmbia, parece que era a mulher que a ia receber à embaixada ou à administração em Catió... Sinceramente não me recordo. Daqui para a frente não sei mais nada. Terá perdido a pensão? Nunca mais a reclamou? Sei que essa mulher entretanto morreu. Isso terá tido influência?

(...) Isso agora também não importa. Importa antes ajudá-lo, pois está com 11 filhos e tenciona ter mais (como ele diz, "enquanto a espingarda atirar"). O mais novo tem 18 meses e o mais velho 30 e tal. Nem todos estudam porque o dinheiro não chega!

As recordações e os documentos do Moura Ferreira poderão ser úteis caso seja difícil encontrar registos do Seni (que em Portugal, segundo ele, foi registado como Suni Candé ou Sani Candé) nos arquivos das FA. O Seni contou-me que a mãe lhe queimou todos os documentos após a independência e ele agora não tem como provar que foi combatente.

Pela minha parte posso ver quais os próximos passos a dar junto do adido militar da embaixada de Portugal em Bissau. Vamos a ver o que ele me aconselha. Vou entregar-lhe as gravações e explicar-lhe o problema (...).


3. Resposta do Moura Ferreira:

Caro Jorge Neto e demais camaradas:

Obrigado pela resposta pronta. Depreendo que vamos então tentar saber mais sobre o Seni. Fico a aguardar mais alguns elementos e instruções.

Para já vou dar uma volta pelo Arquivo do Exército, em Chelas, onde estão os processos individuais, mas tenho sérias dúvidas porque no Arquivo Histórico-Militar, em Santa Apolónia, no que se refere à CCAÇ 6, apenas ali encontrei um processo relativo a 1973 e 1974. Mas irei tentar outra vez (...).

Guiné 63/74 - P498: Uma dívida que Portugal nunca pagou aos seus soldados africanos (Mário Dias)


Guiné > CCAÇ 12 > 1970 > Travessia de uma bolanha durante uma operação na ZA do Xitole... A CCAÇ 12 era uma companhia de quadros metropolitanos, de rendição individual, e de soldados do recrutamento local, de origem étnica maioritariamente fula (e, geograficamente, da actual região de Bafatá). Não sabemos o que terá acontecido a muitos deles a seguir à independência do território.
© Humberto Reis(2006)


Ainda sobre o pungente caso do Seni Candé, que pela quarta vez estive a escutar é, na verdade, uma vergonha para Portugal que existam situações destas. E existem. E são muitas.

Poder-se-á desculpar a sanha revolucionária dos que, a seguir ao 25 de Abril de 1974, consideravam como bestas criminosas todos os que tinham combatido ao lado de Portugal - militares portugueses incluídos - ao ponto de praticamente os entregarem à fúria vingativa PAIGC (Neste caso). Não nos esqueçamos dos comandos africanos abandonados à sua sorte (apesar das promessas do Brigadeiro Fabião) e fuzilados no Cumeré por ordem de Luis Cabral.

Mas passados tantos anos, assente a poeira do tempo que nos deveria deixar ver os acontecimentos sem qualquer espírito ideológico nem desejos de infundadas vinganças, é de lamentar que por parte dos governantes não exista vontade de reparar tantas injustiças.

Pior ainda: quando surge alguém a tentar remediar o mal cometido, e mantido ao longo destes mais dos 30 anos que já passaram, logo surgem as vozes do costume a chamar fascista, saudosista e quejandas expressões, e tudo fazem para que esta vergonha nacional não seja reparada.

Pelo que me toca, embora a solução não esteja nas minhas mãos, nunca deixarei de a denunciar sempre que a oportunidade surge, como é ocaso presente.

Um abraço
Mário Dias
(ex-sargento comando, Brá, 1963/66)

Guiné 63/74 - P497: A CCAV 3420, do Salgueiro Maia e do José Afonso: presente!

Texto do José Afonso, natural do Fundão, ex-furriel miliciano da CCAV 3420 (1971/73):

Amigo:

Ainda há pouco me comecei a iniciar na Net e, logo de início, a minha preferência foi precisamente procurar algo sobre guerra colonial, em especial sobre a Guiné...

Tive o prazer de verificar haver muita coisa sobre essa antiga província e, porque sou um devorador de tudo quanto à Guiné diga respeito, desde livros, revistas ou publicações editadas por jornais diários, tanto em fascículos como publicações semanais, à gravação de todos ou quase todos os programas de televisão em cassete passando pela a compra de muitos livros, uma cassete gravada em 73 na Guiné (com um pouco do programa das Forças Armadas, o PIFAS, um noticiário do PAIGC, um noticiário nosso e a gravação de um ronco) até um LP distribuído no Natal de 1971 pelo Movimento Nacional Feminino (cassetes e LP com gravação má)... tudo isso me faz recordar pela positiva mesmo os maus momentos passados.

Talvez até porque pertenci a uma companhia de cavalaria, comandada pelo saudoso Salgueiro Maia, e de termos estado sempre em zonas de combate - Bula, Mansoa, Farim, Binta, Guidage -, tivemos a sorte de ter apenas 2 feridos graves e 3 ou 4 ligeiros.

Fomos nós, a CCAV 3420, os Progressistas ( nome que os altos comandos militares não queriam deixar passar por ser ousado de mais antes do nossa ida para a Guiné).

Estavamos com a comissão terminada e a aguardar regresso à Metrópole - e porque fomos sempre considerados uma companhia boa em combate-, quando tvémos que ir romper o cerco a Guidage com uma companhia de infantaria e a 38ª de comandos.

Foi realmente uma fase de angústia e revolta mas, com o saber e o óptimo condutor de homens que tínhamos, conseguimos ultrapassar tudo.

Vais desculpar-me o tratamento por tu. Alonguei-me em demasia quando o que pretendia era apenas saber como entrar no blogue. E também confirmar a indicaçao do dia do almoço anual da companhia que, desde que faleceu Salgueiro Maia, sou eu a organizar... Anualmente desde há uns 5 anos, para que não morra o elo que nos ligou uns aos outros ao longo de 27 ou 28 meses de Guiné.

O amigo Albano Costa teve a gentileza de te enviar (e já está no blogue) um trabalho que fiz sobre a zona de Guidage na altura em que nós lá fomos parar, sabendo que a situação era má mas não tanto. E porque foi a companhoia dele que foi para Guidage quando a situação ja estava mais calma, foi essa a razão de entrar em contacto com ele.

Amigo, as minhas desculpas por este texto. Por vezes esquecemo-nos do tempo quando falamos desse tempo da nossa juventude onde maus e bons momentos estão quase todos metidos no mesmo saco e onde as dificuldades nos levaram a criar as melhores amizades.

Um abraço...
José Afonso

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P496: Estórias do Zé Teixeira (2): Dôtor, Bô ka lembra di mim? (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

Guiuné-Bissau > Empada > 2005 > O Zé Teixeira reencontra o seu antigo ajudante fermero, Braima. 
© José Teixeira (2006)


Dôtor, Bô ka lembra di mim?

Passados largos anos, após o regresso da guerra, recebi um telefonema do Dr. Azevedo Franco, meu querido amigo, médico, que fez grande parte da sua comissão em Buba. Tinha-lhe aparecido no Hospital o Mudé Embaló e não tinha soluções de futuro para o puto.

O Mudé tinha-se iniciado, como ajudante de fermero, com onze/doze anos, na Chamarra, com o meu colega de Companhia, Jorge Catarino que lá se encontrava integrado no seu pelotão. Na minha curta passagem por Chamarra ( cerca de dois meses) (1), pude apreciar o jeito, a capacidade de aprender do miúdo. Era muito esperto, educado, sempre disponível e cativante na forma de estar.

Dois dias depois do meu regresso a Buba, apareceu-me na enfermaria logo de manhã. Tinha-se metido a caminho pelo mato. Catarino e Teixeira eram os seus ídolos e queria ser fermero.

Criou amizades com os outros enfermeiros e com o médico, e por lá continuou quando abalámos para Empada.

Chegada a independência, foi para Bissau. Estudou até ao 2º ciclo, mas o seu sonho era vir para Portugal, e estar com os seus amigos.

Começou por dar explicações. Assim ganhou algum dinheiro para a passagem de avião. Comprou um cheque em USD que escondeu na sobrecapa de um livro que sempre o acompanhava e desembarcou em Lisboa.

O seu destino era o Porto, pois sabia que o Dr. Azevedo Franco morava no Porto. Meteu-se no comboio e chegou a Campanhã. Logo começou a perguntar pelo Dr. Azevedo Franco, até que alguém teve a feliz ideia de lhe indicar o Hospital de S. João. Deste para o de Santo António e por último o de Rodrigues Semide, até que . . .
- Dôtor, Bô ká na lembra di mim ? Sou o Mudé qui firma na Buba...
- E agora que vamos fazer com o puto ? - dizia-me o doutor...

Tentei empregá-lo num escritório pois dizia-me que sabia escrever à máquina. Tinha trabalhado num escritório em Bissau. Puro engano, levou mais de uma hora a escrever meia dúzia de letras.

Guiné-Bissau > Empada > 2005 > A antiga enfermaria do Zé Teixeira.
© José Teixeira (2006)

Alguém conseguiu empregá-lo em Lisboa numa clínica, como auxiliar, mas . . . julgava-se enfermeiro e não estava para fazer os trabalhos próprios da função, muito menos limpezas. Desenrascou-se sozinho e desapareceu.

Passados dois/três anos reapareceu com novo problema. A mãe tinha sido mortalmente atropelada em Bissau, um irmão tinha morrido na guerra colonial e o outro, o Sáculo, que eu conheci, pisou uma A/P [mina antipessoal]. Então este enviou-lhe uma mensagem para ir ao avião buscar uma encomenda. Ele foi e a encomenda era ... a Djubae, a sua irmã com 6 anos.

Conseguiu-se que esta entrasse num colégio em Lisboa. Ela fez o 12 º ano e hoje se alguém, na margem sul do Tejo, tiver o azar de receber ordem de paragem por uma agente da Brigada de Trânsito de cor negra, pode saudá-la com O corpo di Bô ? ou o Ná pinda, pois é a nossa Djubae, agora com um nome europeu, creio que Carla ou Conceição.

O Mudé Embaló perdeu-se algures entre Portugal e a Holanda e nem a família que localizei em Sinchã Sambel ( Saltinho) sabe do seu paradeiro.

Quanto à Djubae, essa, já lá voltou, toda orgulhosa. Ela tem otoridade em Portugal.

Zé Teixeira
(ex-1º cabo enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).
 __________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 19 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXI: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (8): Chamarra, Janeiro de 1969

Guiné 63/74 - P495: Memórias do antigamente (Mário Dias) (1): Um cabaço de leite


Guiné-Bissau > Bissau, capital do país. Planta da cidade, pós-independência. (Vd. mapa ampliado na página sobre sobre Bafatá e Bissau)

© A. Marques Lopes (2005)


Começamos hoje a dar ínicío à publicação das memórias do Mário Dias relativamente à sua experiência na Guiné, como civil, na década de 1950. O Mário foi depois sargento comando durante a guerra (Brá, 1963/66).


Um cabaço de leite

Naqueles longínquos anos da década de 50 (do século passado) cheguei à Guiné ainda adolescente. Como qualquer pessoa nessa fase da vida, também o apelo da magia africana me enfeitiçava. Trazia a cabeça cheia com as descrições fantasiosas sobre África:
- Cuidado com os leões. Há bichos perigosos por todos os lados. Os pretos são muito maus. Ainda há antropófagos. É tudo selva inóspita.

Depressa verifiquei quão erradas eram as atoardas que um pouco por todo o lado pretendiam caracterizar aquelas terras. Encontrei um povo afável, uma terra linda, linda, linda como não imaginava pudesse existir. Foi amor à primeira vista!

Bissau era uma cidade pequena mas onde apetecia viver. Desfeito no meu espírito o mito de leões a rondar as casas, de selvagens canibais e de outras intimidantes tragédias, parti à descoberta da terra.

Guiado pelos amigos que rapidamente fiz, onde se incluíam naturais da Guiné, iniciei-me no convívio com os guineenses. Terminado o trabalho diário, lá íamos nós, avenida da República acima, praça do Império, - vira aí à esquerda, pá - direitos ao Alto do Crim. À nossa esquerda iam ficando os que se entretinham a treinar futebol no então chamado estádio Sarmento Rodrigues (1). Os mais esclarecidos informavam:
- Hoje é a UDIB. Estás a ver as camisolas com aquela risca verde larga, ao meio da camisola branca? É o equipamento deles. O Benfica tem camisolas iguais ao de Lisboa e o Sporting também.

Mais ao fundo, os mais afortunados jogavam ténis e nos campos ao lado praticava-se basquetebol e hóquei em patins. E a alegre comitiva prosseguia rua fora até alcançar o intrincado labirinto de ruas bordejadas por casas e moranças. À sombra de frondosas árvores, os habitantes repousavam as fadigas do dia conversando ou simplesmente meditando - sabe-se lá - talvez na dureza da vida que nem para todos era fácil. E, conforme avançávamos, íamos lançando à esquerda e à direita:
- Bôs tarde, bu ´stá bom ? qui noba di corpo? - Rostos afáveis e sorridentes nos respondiam, cabeças respeitosamente se descobriam. Uma ou outra mulher, atarefadas à volta dos potes de ferro onde se cozinhava a bianda, convidavam:
- Branco, bim nó cúmi.
- Obrigado, pa Deus djudábo. (Deus te ajude). - E neste doce deambular, o dia ia chegando ao fim. Quando as garças rompiam o céu direitas ao Ilhéu dos Pássaros onde pernoitavam pousadas nos frondosos poilões, sabíamos que eram horas do regresso. O crepúsculo era rápido e a noite calma caía sobre a terra tudo envolvendo no seu misterioso manto.

Estes passeios exploratórios eram muito frequentes e assim fiquei a conhecer, Gambeafa, Cupelon (2), Chão de Papel, Santa Luzia, Bandim, e mais bairros à volta de Bissau (3). Surgiu, porém, uma actividade em que me iniciaram e conquistou a minha preferência: a venatória. Nada de leões ou outras feras. Nem gazelas ou outros antílopes, que essas exigiam armas de maior calibre que não tínhamos nem autorizavam - devido a sermos menores - e só se encontravam em zonas já mais afastadas da cidade. Simplesmente rolas ou os saborosíssimos pombos verdes que abundavam por todo o lado e caçávamos com as pequenas espingardas de cartuchos de 9 mm conhecidas por flauberts.

Aos poucos fui-me tornando, ou julguei ser, um perito. Já me sentia na pele dos caçadores de feras africanas que povoavam os meus sonhos nos verdes anos. E foi assim que um belo dia, resolvi que estava na hora de me aventurar sozinho. Pensei, pensei, e decidi.

Num belo domingo, ainda o dia não tinha despontado, sorrateiramente peguei na flaubert e, pé ante pé para não acordar ninguém, saí da cidade caminhando para os lados de Bór. Antevendo a fartura de rolas e pombos verdes com que iria surpreender o meu pai e irmãos estuguei o passo. O local onde, com os meus amigos, anteriormente tinha visto e caçado muitas, ainda ficava longe. Quando finalmente lá cheguei, delas, nem sombras. Que desilusão! Fugiram? Naquela altura ainda não sabia que as aves, só de manhã muito cedo e ao fim do dia, ali se encontravam para passar a noite. Durante o resto do dia deambulavam por bolanhas ou por onde houvesse cereais e outras sementes.

Decidido a não voltar de mãos a abanar, continuei campo fora, olhar fixo nas árvores, ouvidos tentando escutar o arrulhar das aves. A manhã escoava-se. Nada. Raios dos pássaros, por onde andariam? À desilusão, sobrepunha-se a minha vontade de conseguir uma frutuosa caçada; doutra maneira iria ser alvo de gozo. E pensando no fracasso, dizia com os meus botões que o melhor seria não contar a ninguém tal desaire. Continuei o caminho e andei, andei, andei… o sol queimava, como é sua obrigação. Não sei se instintivamente, porque o calor era muito, ou por pensar que no meio do arvoredo seriam maiores as possibilidades de encontrar os fugidios pombos, fui-me internando no bosque, que depois já era mata, e depois floresta cerrada. Como era de esperar, às tantas já não sabia onde estava nem para onde me dirigir. Estava perdido. A tarde avançava e o estômago reclamava pois apenas tinha comido o pequeno-almoço que, embora substancial, à boa maneira africana, não era suficiente para tantas horas de jejum. Não entrei em pânico pois sabia que nada de mal me aconteceria e, além disso, o prazer da caça dominava o meu pensamento.

Finalmente alcancei uma clareira. Ah!... que bom. Aqui talvez conseguisse, pelo menos, um par de rolas. Olhando atentamente uma árvore, para ela me dirigi sempre olhando para a ramagem. E tão atento ia, que nem reparei num tronco partido atravessado no meu caminho. Deu-se o inevitável: tropecei e estendi-me ao comprido no chão cheio de carvão e cinzas do capim recentemente queimado. Fiquei todo enfarruscado; cara, braços e pernas, além de alguns pequenos arranhões.

Continuando a andar, algum tempo depois escutei vozes. Para lá me dirigi sabendo que me indicariam o caminho para alcançar a estrada que me conduziria a Bissau. Deparei com uma morança, debaixo de duas frondosas mangueiras à sombra das quais um homem sentado chupava fumaças do cachimbo. A ele me dirigi e, mal me viu, reparando ma minha figura, soltou um divertido:
- Có, có, có… éh, brancozinho, kuma qui bu fungli sim? (Como é que está assim enfarruscado?). - Contei-lhe, num incipiente crioulo que na altura ainda pouco dominava, a minha odisseia. A cada peripécia ria, bem disposto mas sempre com uma suave compreensão no semblante. Quando terminei e lhe pedi se me podia indicar o caminho que me levasse a alcançar a estrada, disse: Espera. E voltando a cabeça em direcção à palhota chamou. Surgiu uma mulher a quem deu algumas indicações na língua papel que era a sua. Nada percebi mas de imediato soube de que se tratava. A mulher pegou num pequeno cabaço e com ele se dirigiu a uma vaca que se encontrava ali perto e diligentemente a ordenhou. Regressou com o cabaço cheio de leite que, sorridente, me estendeu dizendo:
- Bibi. - Bebi, senti-me reconfortado e agradeci. Visivelmente satisfeito por me ver mais animado, o homem levantou-se e guiou-me até à estrada que, afinal, até nem era longe dali; simplesmente eu, na minha ainda pouca experiência de orientação e no entusiasmo de encontrar os pombos verdes ou as rolas, tinha andado às voltas sem me aperceber.

Enquanto caminhava de regresso a Bissau, fui meditando na afabilidade e simpatia daquela gente da Guiné que nesse dia me tinha sido revelada e se viria a confirmar durante os 14 anos que por lá vivi. Como tudo, afinal, era tão diferente do que corria entre os europeus como sendo a "selvajaria" dos africanos!

Algum tempo depois, logo que um colega de trabalho se disponibilizou a levar-me no carro dele até à morança do meu salvador, fui agradecer-lhe. Levei um garrafão de vinho, bebida que sabia muito apreciarem. Deixámos o carro na estrada, junto do caminho que nos conduzia, a pé, até à casa. Fomos recebidos com evidentes sinais de alegria pelo homem, que continuava a chupar o cachimbo. Oferta entregue, os cumprimentos do costume, as habituais mantenhas, e já nos dispúnhamos a regressar quando ele disse:
- Espera.- E mais uma vez chamou a mulher e deu as suas instruções na língua papel. (ficámos a zero).

A mulher torneou a casa e surgiu com uma galinha que de imediato degolou, depenou, temperou e pôs a assar nas brasas de uma fogueira. Não demorou muito a ficar pronta, tostadinha e apetitosa. Com o nosso hospedeiro foi por nós prontamente devorada, com lamber dos dedos e tudo, acompanhada de alguns copos do vinho que lhe havia trazido. Foram momentos de confraternização e são convívio que demonstra bem como dois povos tão diferentes, ao contrário do que propalavam os que denunciavam atrocidades dos colonos e incompatibilidades ou hostilidade por parte dos nativos, afinal, entendiam-se bem.

Assim era antes da guerra, assim continuou apesar dela ou por causa dela, e assim continua sendo.

© Mário Dias (2006)
___________

Notas de L.G.

(1) Oficial da marinha, governador Geral da Guiné, entre 1945 e 1949.

(2) Pilão, para os tugas do meu tempo...

(3) Vd planta de Bissau.

Guiné 63/74 - P494: Mansambo em 1973 (Sousa de Castro, CART 3494)

Em Abril de 1973, segundo informações do Sousa de Castro, a CART 3493 foi para o Cotumba, e a companhia dele, que estava aquartelada no Xime, a CART 3494 , foi para Mansambo. Ambas petenciam ao BART 3873 (1972/1974), sediado em Bambadinca. Publicam-se duas fotos dessa época.

Guiné > Mansambo > 1973 > O Sousa de Castro mais um camarada da CART 3494, junto ao monumento da CART 2339 - Os Viriatos (1968/69).
© Sousa de Castro (2006)

Guiné > Mansambo > 1973 > O Sousa de Castro junto ao oráculo da Virgem, mandado erigir pela CART 2714 (1970/72), pertencente ao BART 2917 (Bambadinca, 1970/1972). Em baixo pode ler-se: "Senhora, protegei-nos".

© Sousa de Castro (2006)

Guiné 63/74 - P493: O abandono do Seni Candé (Zé Neto)

1. A triste sorte do Seni Candé e de tantos outros combatentes africanos que estiveram do nosso lado e que foram literalmente abandonados por nós, já mereceu alguns comentários dos membros da nossa tertúlia.

O Mário Dias enviou-me as suas memórias da Guiné dos anos cinquenta, para futura publicação, com uma curta nota: "Ainda mal refeito dos arrepios que a história do Seni Candé me causou"... Mais frontal e directo, foi o nosso Zé Neto. Aqui vai o testemunho dele. LG

2. Texto do Zé Neto:

Luis:

Estou arrepiado. O trabalho do meu homónimo Jorge Neto trouxe à minha velha cabeça um turbilhão de pensamentos, sem excluir o sentimento de raiva. Raiva por sentir que a minha voz já não tem a força dos tempos em que estava no activo. Tive muitos amargos de boca, mas também alguns sucessos. E sabes porquê?

Quando acabei o meu curso de Águeda e depois duma esporádica passagem pelo QG/RML, fui colocado no DGA, na Calçada da Ajuda, como tesoureiro da 4ª Companhia, a companhia dos evacuados com mais de quatrocentos doentes, feridos e estropiados. (E alguns sargentos e oficiais do QP evacuados profissionais que me metiam nojo).

Eu fazia os pagamentos à boca do cofre e, mensalmente em dias concertados, ia pagar ao Alcoitão, HMP (Estrela), Anexo do HMP (Rua de Artilharia 1), ADFA (Lumiar) e HMDIC (Infecto contagiosas de Belém). De 1973 a 1977(ano em que fui para a Guarda Fiscal) lidei com a parte mais horrenda e suja das nossas campanhas de África. O que eu passei, mais os/as funcionários/as civis que me acompanhavam com a papelada!!!

Sabes o que é assistir a um furriel enfermeiro a maltratar um desgraçado dum catanguês que, em Angola, combateu ao nosso lado e e ficou com a cabeça escaqueirada, perdendo um olho, numa acção de combate? Apresentei uma participação contra esse estafermo, mas naquela época de bagunçada ninguém punia niguém.

Quantas mães, quantas esposas, quantas namoradas tiveram a satisfação de rever os seus entes queridos em parte devido a esses valentes africanos? Lado certo, lado errado, isso é outra conversa.

O Seni Candé é uma das muitas vítimas que os fervores e delírios do PREC abandonaram deliberadamente, repito, deliberadamente, à sua sorte. Não posso mais.

Desculpa.
Um abraço do Zé Neto

3. O Sousa de Castro acaba de me enviar uma curta mensagem: "São 6.30horas, estou a ouvir o Candé. É um poço de memória e então aquela do Periquito vai no mato faz-me lembrar as tainadas, acabavamos sempre com esta canção, ainda hoje nos nossos convívios cantamos sempre Periquito vai no mato, olé, lé, lé / Que a velhice vai pra Bissau, olé, lé, lé...