Blogue coletivo, criado e editado por Luís Graça, com o objetivo de ajudar os antigos combatentes a reconstituir o puzzle da memória da guerra da Guiné (1961/74). Iniciado em 23 Abr 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência desta guerra. Como camaradas que fomos, tratamo-nos por tu, e gostamos de dizer: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande. Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
domingo, 14 de junho de 2009
Guiné 63/74 - P4523: O Nosso IV Encontro Nacional, Ortigosa, Monte Real, 20 de Junho de 2009 (7): Os três magníficos, Carlos, Joaquim e Miguel
1. Ontem, na véspera do fecho (oficial) das inscrições para mais um, histórico, Encontro Nacional da nossa Tabanca Grande, eu mandei um derradeiro apelo ao pessoal da Tabanca Grande, através do correio interno (*):
Amigos e camaradas:
“A vida é curta, a arte é longa, a ocasião fugidia, a experiência enganadora, o julgamento difícil" ...
Não fui eu que disse isso, mas o Hipócrates, o pai fundador da medicina ocidental, cinco séculos antes de Jesus Cristo... Isto aplica-se não apenas à medicina (que é uma arte e uma ciência) mas também ao nosso blogue, que é a parte mais visível, na blogosfera, da nossa Tabanca Grande, uma rede social com mais de 340 membros... Aplica-se à blogoterapia, que praticamos há mais de 4 anos... e de que já temos uma pontinha de orgulho... (O termo é nosso, paga direitos de autor)...
No próximo dia 20 de Junho, vamos ter o nosso IV Encontro Nacional, em Ortigosa, Monte Real, Leiria, num ponto mais ou menos equidistante entre o Norte e o Sul, o Leste e o Oeste... O almoço com o lanche custa 30 balas...
Temos [tínhamos àquela hora] 97 inscritos, o prazo termina na segunda-feira, dia 15, e o Joaquim Mexia Alves vai perder a aposta que fez, de conseguir uma centena de inscritos (formais)... Há, pelo menos, uns quinze camaradas que não podem comparecer, este ano... o que, tudo somado, totalizaria 112.. [Como eu fui mauzinho, Joaquim, ao falar de ti, que és um homem de fé, esperança e caridade... Afinal, enganei-me... Ao abrir hoje, de manhã, o blogue, já havia 105 inscrições, pelo que quem ganha a aposta és tu, e não eu, homem descrente, velho do Restelo].
Tenho esperança, Joaquim, de que vamos ultrapassar a barreira (psicológica) dos 100... A esperança é sempre a última coisa a morrer... Há camaradas que já me manifestaram a vontade de ainda se inscreverem a tempo... Outros prometem aparecer, mais para o fim, só para dar um abraço... Outros, mesmo de férias, vão comparecer (o caso do Álvaro Basto e da Filomena, que estão no Algarve, desde hoje: o Álvaro, como sabem, é o régulo da Tabanca de Matosinhos)...
Eu sei que os tempos estão difíceis, que a crise bate à nossa porta e aos nossos bolsos, que há, nesta época, muitos encontros de veteranos da Guiné, mas mesmo assim NÓS MERECEMOS uma oportunidade... De estarmos juntos, de nos conhecermo-nos pessoalmente, de darmos uns aos outros uma Alfa Bravo do tamanho do rio que quisermos (desde o rio da nossa aldeia ao Cumbijã)...
O nosso blogue fez 4 anos em Abril de 2009... ainda queremos fazer mais coisas, coisas bonitas, que nos surpreendam, a nós próprios e aos outros...
Camarada, amigo... aparece, se puderes... Vamos ficar felizes, por ti, por todos nós...
Obrigado ao Carlos Vinha, ao Joaquim Mexia Alves (que anda a renovar as termas, fundadas pelo seu pai) e ao Miguel Pessoa (que muitos não sabem, foi comandante da base aérea de Monte Real)...
Obrigado a este trio-maravilha a quem compete zelar pela nossa segurança, conforto, bem-estar ... e dieta. Eles são os três magníficos que estão a organizar o nosso IV Encontro...
Um especial obrigado, também, aos organizadores das anteriores edições, Paulo Raposo e Carlos Marques dos Santos (Montemor-O -Novo, 2006), Vitor Junqueira (Pombal, 2007), Joaquim Mexia Alves e Carlos Vinhal (Monte Real, 2008)...
Luís Graça
2. Também escreveu o Carlos Marques dos Santos, um dos nossos sócios-fundadores, membro desta Tabanca Grande, desde os primórdios da criação do nosso blogue:
CAMARIGOS, COMPANHEIROS, CAMARADAS, COMBATENTES, VETERANOS, ~
APELO QUASE FINAL !!!
100 é o miínino de 1.000.000 de visitas.
ESQUEÇAM TUDO e RUMEM A ORTIGOSA - Quinta do Paúl.
O Mexia, o o Blogue merecem e ..... nós precisamos de "conversar".
Até lá e VAMOS TODOS.
CMSantos (Cart 2339, Mansambo, 1968/69)
3. Mensagem do J. Mexia Alves:
Bom dia, Luís, camarigos editores e adjuntos da Operação Ortigosa.
Já lá vão os 100 e ainda hão-de vir mais! Realmente o mérito pertence por inteiro ao Carlos Vinhal e ao Miguel Pessoa que têm trabalhado tudo e feito tudo. Eu tenho-me limitado a acertar pequenas coisas com o restaurante e pensão Santa Rita.
Já só falta uma semana e o tempo passa depressa. Estamos juntos!
Abraço muito amigo do Joaquim Mexia Alves
4. De diversos mails que recebemos de amigos e camaradas que manifestaram o seu pesar por não poderem participar, este ano, no nosso encontro, destaca-se a da jovem Cátia Félix, amiga da viúva do António Ferreira, 1.º Cabo TRMS da CCAÇ 3490, falecido em combate no dia 17 de Abril de 1972, durante uma emboscada no Quirafo.
Olá, amigo Luís e restantes camaradas
Quero que desculpem pela minha ausência, mas não me esqueci de vocês (como se isso fosse possível)...
Õ que se passa é que me encontro em exames da faculdade, que só terminarão em meados Julho. Como já tem vindo a ser habitual, desligo-me um bocado de tudo e de todos e, por isso peço desculpa.
Espero que o vosso encontro seja fantástico e, apesar de não puder estar presente, sei que me levam com vocês num lugar bem especial.
Oportunidades não faltaram para que possa conhecer muitos de vós.
Beijinhos grandes
Cátia
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Nota de L.G.:
(*) Vd. último poste desta série > 8 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4482: O Nosso IV Encontro Nacional, Ortigosa, Monte Real, 20 de Junho de 2009 (6): As inscrições terminam a 15 de Junho (A Organização)
Guiné 63/74 - P4522: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (15): Binar - Sanatório do sono
Assunto: Viagem...
Amigo Vinhal
Mais um capítulo de “Viagem à volta das minhas memórias”, iniciador narrativo de uma nova etapa da CCaç 2791 (FORÇA), que publicarás se julgares.
Aproveito para mandar um abraço e desejar a todos um óptimo dia de convívio na Quinta do Paul, onde não tenho possibilidade de comparecer, com pena.
Um abraço
Luís Faria
Binar – Sanatório do Sono
Com a entrada do mês de Março de 71 , processam-se de novo alterações na CCaç 2791 e aos primeiros dias do mês, a Força é novamente desmembrada, sendo o 3.º GComb sob o comando do Alf Mil Gomes, Furs Mil Almeida e Ferreira, deslocado para Bissum, em reforço da CCaç 2781 (?), por onde ficou até aos primeiros dias de Novembro, altura em que retornou a Bula. Da actividade deste GComb nesse lapso de tempo, pouco sei para além das deficientes condições (comparativamente) de instalação, de patrulhamentos e emboscadas e de umas flagelações ao aquartelamento, sem que felizmente tivessem ocasionado quaisquer problemas graves.
Assim, ficam em Bula o 1.º e 2.º GComb (o 4.º já estava em Teixeira Pinto) entretidos com os afazeres habituais a par de umas incursões em que felizmente não houve ossos para chuchar.
Com a ida do 3.º GComb para Bissum, comecei a sentir a falta do meu amigo e companheiro de suite Fur Mil Almeida, assim como dos seus dotes de músico, dedilhando (?!?) na minha viola, com um só dedo e numa só corda (mi fino) melodias infindáveis e espantosas na procura do tom certo, sem nunca conseguir tirar um som minimamente límpido agradável ao ouvido ! Um verdadeiro atentado à nossa estabilidade emocional !!
Mesmo assim era extraordinariamente melhor, comparando com as horas seguidas de tentativa de execução de melodias, na sanfona de sua propriedade! Com esta, achava que dando ao fole e carregando nuns botões, fazia maravilhas!! E fazia! Fazia com que o pessoal da suite não conseguisse descansar ou dormir e a par de uns impropérios mais ou menos redundantes mas sem efeitos práticos, zarpasse rapidamente de molde a não ficar com o sistema nervoso em franja, quiçá podendo levar alguém ao assassinato ou ao suicídio!!!
E quando queria acompanhar-me, estando eu à viola?? Aí era o fim… quanto mais desafinado… mais amplitude dava ao fole e mais aquilo gemia !! Era exasperante, maquiavélico!! Se os S.I. soubessem, com certeza teria sido usado como tortura para a obtenção de informações IN ?!!
O pior é que ninguém conseguia demovê-lo da busca diária e sistemática da perfeição - na sua auto-aprendizagem sem fim e sem melhorias - da execução melódica, especialmente na sanfona, até que um mau dia… bem, isso é outra estória !!
Dispersão da CCaç 2791 nos primeiros meses de 1971
Mapa: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2009). Direitos reservados
Voltando à 2791, pelos meados do mês, a Companhia a 2 GComb desloca-se para Binar, (à excepção da componente administrativa) onde vai ficar até finais de Maio, aquartelada nas antigas instalações do “Sanatório da Doença do Sono”, perto da CCaç 17. Poucos dias depois foi de novo desmembrada, sendo destacado o 1.º GComb para Pache em trabalho de reordenamentos. Não recordo porque, o Fur Mil Castro (2.º GComb) também foi, ficando ao que lembro somente o Alf Mil Barros e eu com o meu 2.º GComb.
Registado, em termos operacionais, ficou-me uma flagelação a um princípio de noite, com morteiros e RPG, sem consequências, desencadeada da pista de aterragem. Também interviemos em segurança afastada na operação “Rapazes Destemidos” nas matas do Choquemone, onde o pessoal de outros agrupamentos teve contactos vários com o IN.
Durante esta Operação, o pessoal directamente envolvido recebeu a visita surpresa(?) do Gen Spínola. Recordo-me de ver o heli, escoltado pelo canhão, a descer para aterrar e passados uns minutos começar a ouvir rebentamentos e ver o heli a levantar e sair da zona rapidamente. Posteriormente confirmaram-me que o General tinha aterrado e as morteiradas e roquetadas começaram a estoirar, obrigando-o a pôr-se em segurança. Segundo os meus canhenhos aconteceu a 2 de Abril de 1971. Talvez algum camarada saiba algo mais desta Operação que teve direito a visita maior! Porque teria sido?
Binar era uma povoação pequena situada a uma dúzia de quilómetros de Bula, - na estrada (picada) para Bissorã – onde não havia praticamente nada. Foi um mês e meio de descanso operacional em que os dias se sucediam com uns patrulhamento defensivos, de proximidade, serviços ao aquartelamento e umas idas a Bula buscar abastecimentos.
O Almeida e os gemidos da sua sanfona violentada, estavam realmente a fazer falta!! Ao menos daria para passar tempo a chatear à mistura com mais ou menos ameaças de morte da dita, aliadas ao respectivo coro de dixotes enviesados das respostas. Para estas trocas de galhardetes é que serviam também os amigos. Pois… os amigos também têm obrigação de se aturarem, certo?
Mas, como diz o Povo, “não há mal que sempre dure…” e ao fim de uns dias a adaptação à nova realidade acabou por acontecer, pondo os dias e noites de novo a rolar.
A todos um abraço
Luís Faria
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 25 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4413: Estórias avulsas (33): Buracos da vida, ou os dias mal vividos (Luís Faria)
Vd. último poste da série de 16 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4361: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (14): Um mês complicado (3) O osso
Guiné 63/74 - P4521: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/ Mai 71) (1): No RAP 2, V.N. Gaia, onde fez mais de 60 funerais
Foto: © Portojo (2009). Direitos reservados
1. Mensagens de Arsénio Puim, ex-Alf Mil Capelão, CCS/ BART 2917, e que esteve em Bambadinca entre Maio de 1970 e Maio de 1971 (A sua comissão terminou mais cedo, um ano depois de ter chegado a Bambadinca, por decisão do Com-Chefe, ao que se sabe). Vive actualmente em Vila Franca do Campo, Ilha de São Miguel, Região Autónoma dos Açores (RAA). Está reformado como enfermeiro do Serviço Regional de Saúde da RAA (*).
12 de Junho de 2009
Luís Graça
Como te havia dito no email anterior, começo a minha participação no Blogue, em forma de pequenos registos com alguma ordem cronológica e temática, se achares que tem interesse.
Um abraço amigo - Arsénio Puim
1 de Junho de 2009
Luis Graça
Chegado já há alguns dias a Vila Franca do Campo, devo dizer que o prazer que tive de encontrar velhos companheiros da Guiné em Viana e em Lisboa compensou, só por si, a minha deslocação a terras do continente português. E quero agradecer-te todas as atenções e referências que me dedicaste durante a minha estadia em Lisboa.
Como havia dito, tenho em mente participar no documental blogue de Luis Graça, talvez com o registo de alguns factos, à maneira de pequenas crónicas, que eu possa relembrar e que constituam mais uma achega para a nossa história comum na Guiné. Fá-lo-ei, porém, lentamente - sou mesmo muito lento naquilo que faço - e numa fase um pouco mais tardia, em que espero ter maior disponibilidade de tempo.
Recomenda-me com a tua esposa. Um abraço amigo - Arsénio Puim
2. RECORDANDO... I - NO RAP 2, EM VILA NOVA DE GAIA
por Arsénio Puim
Este é o primeiro duma série de pequenos relatos, para este histórico blogue de Luís Graça, respeitantes à minha vivência como alferes capelão do Batalhão 2917, que acompanhei desde a Serra do Pilar até Bambadinca, no centro da Guiné, entre Dezembro de 1969 e Maio de 1970.
É meu propósito essencial rememorar e partilhar com os antigos companheiros do Batalhão, por quem tenho muito apreço, alguns factos e acontecimentos que nos são comuns, sem nunca pretender atacar quem quer que seja.
Depois duma curta preparação na Academia Militar, em Lisboa, - tema a que gostaria de voltar mais tarde – vim parar, em finais de Novembro de 1969, ao RAP 2, na Serra do Pilar, em Gaia, para me juntar ao Batalhão [de Artilharia] 2917, que ali estava a ser mobilizado, com destino à Guiné, e me tinha sido atribuído por sorteio, realizado no final do referido curso de capelães militares.
À distância de 40 anos, e recolhido aqui em terras dos Açores, guardo ainda hoje algumas recordações desta estadia, durante três meses, naquele Regimento de Artilharia Pesada.
Guiné > Região de Tombali > Bedanda > CCAÇ 6 > 1971 > Um das famosas imagens da guerra da Guiné, a saída do obus 14, de noite, tirada com a máquina rente ao chão, pelo então Alf Mil Médico Amaral Bernardo (hoje médico do Hospital de Santo António, Porto, e membro da nossa Tabanca Grande)... A padroeira dos arilheiros era(é) a Santa Bárbara... O dia da Arma de Artilharia festeja-se a 4 de Dezembro (LG)
Foto: © Amaral Bernardo (2007). Direitos reservados.
A minha primeira participação em eventos mais assinaláveis desta comunidade militar do Norte foi a Festa de Santa Bárbara, padroeira das Unidades Militares de Artilharia, realizada no dia 4 de Dezembro com considerável aparato. Uma coisa que me intrigou na altura, e que ainda hoje não sei decifrar, foi esta relação de Santa Bárbara com a Artilharia: será por esta santa, algo mítica, ser invocada como protectora nas trovoadas, e o ribombar dos trovões ter alguma semelhança com o estrondo causado pelas armas pesadas?
Depois veio o Natal. Todo o mundo partira, nessa noite, para as suas terras, e o Quartel, ali sobranceiro ao Douro adormecido e olhando para o Porto entregue aos seus convívios familiares, ficara quase deserto. O pequeno grupo que restava – oficial e sargento do dia, capelão e uns poucos soldados – celebrou também a sua consoada, no bar dos oficiais, onde não faltava apetitosa comida, bom vinho e muita saudade.
Botei a palavra. Neste contexto natalício e de ausência familiar, para mais com a perspectiva da partida próxima para a Guiné e já alguns eflúvios vínicos a actuar (os quais são sempre propícios a gerar inocentes climas de comoção), vivemos alguns momentos de grande sentimentalidade, com algumas lágrimazinhas mesmo a aparecerem ao canto do olho. Lembro com simpatia esta noite, embora não recorde já os convivas.
Foi no final de Fevereiro de 1970 que teve lugar a Comunhão Pascal da Guarnição, presidida pelo «bispo brigadeiro» de Portugal, responsável pelo Vicariato Castrense e a assistência religiosa aos militares do País.
Os Comandantes do Regimento e eu esperámo-lo junto do Mosteiro do Pilar. Saindo dum carro grande do Estado, conduzido por um soldado, D. António percorreu, admirou, reclamou mais dinheiro para aquelas velharias do Mosteiro. Um pouco atrás seguia eu, quando se chegou junto do meu ouvido o capitão-capelão-chefe do Porto, que me segredou:
- Arranje uma batina (sotaina) e apareça com ela amanhã. O D. António ficou danado(Eu tinha estado, no dia anterior, na Comunhão Pascal da Reclusão do Porto, vestido, apenas, com o fato e o cabeção eclesiásticos).
Certamente uma questão bem fútil no contexto da problemática, já então acesa, dos capelães militares e da guerra colonial.
Era o RAP 2, em Gaia, que recebia os soldados de toda a região norte mortos no Ultramar. Várias dezenas de caixões empilhavam-se uns sobre os outros numa grande sacristia, mal iluminada, da igreja do Pilar, que eu atravessava – um pouco de corrida, confesso – quando ia celebrar missa. Não raro, alguns caixões abriam espontaneamente um pequeno orifício por onde vertia um líquido fétido de cor esverdeada, até que os soldadores fossem chamados para obturar a brecha.
Cabia ao capelão do Regimento fazer os funerais, de acordo com uma escala elaborada pelos serviços competentes, acompanhando a urna até à terra natal de cada soldado, que o pároco e a população em peso aguardavam, com grande consternação e incontido choro geral, num sítio próximo da igreja.
Foram mais de 60 funerais que fiz nestes três meses - 2 ou 3 deles apenas as caixas dos ossos - nas mais diversas e recônditas aldeias do norte de Portugal. Um sacrifício dramático da nossa juventude, merecedor de muito respeito e dignidade, mas que não podia deixar de fazer pensar qualquer pessoa.
Arsénio Puim
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Nota de L.G.:
(*) Vd. postes anteriores, rekacionados com o Arsénio Puim:
3 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 – P4455: Estórias cabralianas (50): Alfero, de Lisboa p'ra mim um Fato de Abade (Jorge Cabral)
26 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4416: Memória dos lugares (26): Bambadinca, CCS/BART 2917, 1970/72 (Arsénio Puim, ex-capelão)
25 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4412: Dando a mão à palmatória (20): O Arsénio Puim, capelão do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), só foi expulso em Maio de 1971
25 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4410: Cancioneiro de Bambadinca (4): Romance do Padre Puim (Carlos Rebelo † )
23 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4404: CCS do BART 2917: a emoção do reencontro, 38 anos depois (Arsénio Puim)
19 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4378: Arsénio Puim, o regresso do 'Nosso Capelão' (Benjamim Durães, CCS/BART 2917, Bambadinca, 1970/72)
18 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4372: Convívios (131): CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), com o Arsénio Puim e os filhos do Carlos Rebelo (Benjamim Durães)
17 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1763: Quando a PIDE/DGS levou o Padre Puim, por causa da homília da paz (Bambadinca, 1 de Janeiro de 1971) (Abílio Machado)
Guiné 63/74 - P4519: Destas não reza a História (Manuel Maia) (3): Desertei depois de ter vindo da Guiné
Caro Vinhal,
Junto envio este texto para enquadrares onde entenderes.
MAU GRADO OS 39 MESES DE TROPA, FUI CONSIDERADO DESERTOR...
Encarei o serviço militar como uma inevitabilidade a que não me devia eximir já que não tendo própriamente apetência para herói, também não me via na miseranda pele de refractário, ou, pior ainda, na asquerosa figura de desertor como alguns figurões deste Portugal, a quem alguém chamou amordaçado, mas que eu rotulo de enxovalhado, a carecer duma expurgação de todos esses vampiros, chacais e abutres que lhe sugaram o sangue e esventraram entranhas...
Seria na perspectiva de quem não gosta de fardas, que interiorizei a passagem pelo serviço militar como um acidente de percurso.
Quando assentei praça no RI5 da bela cidade de Bordalo, sabia por amigos que por lá tinham passado, que ou virava chico devorando toda aquela prosápia do conhecimento livresco da arte bélica com as mais estapafúrdicas tácticas, para debitar depois a informação balística e mostrar conhecimento armamentista - de cor e salteado - tendo por objectivo conseguir uma nota de curso muito alta que me pusesse a salvo de uma mobilização individual, ou então, a mais óbvia, e que se enquadrava mais comigo, aceitando, sem violentar em demasia a minha sólida aversão a fardas, que continuaria a ser um civil com aquela obrigatoriedade, por isso, quanto mais cedo, melhor...
O expectável, na altura era ainda de 18 meses (para passar depois a 21, tendo este vosso camarada permanecido exactamente um quarteirão deles...)
Vingou portanto a segunda tese. Assim, como primeira medida para nunca ter a tentação de consultar uma que fosse das obras de cariz bélico que me forneceram logo à chegada, amarrei-as bem com corda e coloquei (aquele, para mim, indesejável conhecimento armamentistista, táctico, balístico...) bem fechadinho dentro do armário, não fosse perder-se alguma...
Devo dizer-vos, sem pejo nenhum, que já passava muito mais de mês da minha presença em terras de Malhoa, quando pressionado por camaradas temerosos por qualquer porrada que pudesse apanhar, acabei por fim defazer a primeira continência.
Até aí conseguira sempre esquivar-me a esse acto de que não gostava.
Veio Tavira - C.I.S.M.I. - num quartel (antigo convento) em obras, implicando que uma boa parte dos instruendos pudesse ter autorização de pernoitar fora.
Alugámos um quarto (mais propriamente a sala de jantar de uma casa modesta onde os proprietários plantaram quatro camas, encavalitadas duas a duas,(oriundas, da tropa, mas com uma operação de maquillage numa repintura branco hospitalar...) tendo ainda direito a tratamento da roupa (estávamos impossibilitados de ir a casa de fim de semana, que ali acontecia só ao sábado de manhã.
Paralelamente, e como éramos quatro, as hipóteses de casamento para a neta perdida iam ganhando algum alento, sendo que a moça quando pressentia algum de nós no quarto, arranjava sempre uma justificação qualquer para ter alguma coisa que fazer ali, trazendo roupa engomada... desculpe que vinha fazer a cama... fazendo alarde de uns decotes generosos...
Nenhum de nós casou na parada, mas era comum acontecer e o Comandante da Unidade no discurso de boas-vindas alertava para o facto...
O Algarve dessa altura já tinha muito turismo, com os reduzidos biquinis das inglesas e holandesas, a fazerem arregalar a vista ao militar...
De lá rumei a terras de Viriato largando a diagonal vermelha dos ombros por troca com as também vermelhas de Cabo Miliciano (mais uma invenção portuguesa como o nónio do Pedro Nunes ou a quilha das caravelas p´ra vencer o Atlântico em substituição da chata do mais calmo Mediterrâneo até aí conhecida) NENHUM EXÉRCITO DO MUNDO tinha ou teve Cabos Milicianos...
No RI 14 tive um episódio digno de figurar no anedotário nacional ou como sketch de um filme cómico...
Era usual o Sargento da Guarda (profissional) desenfiar-se para ir dormir a casa com a família (nada de mais justo, afinal a guerra daqui era de brincar...). No seu lugar ficava depois da formatura de recolher um dos Cabos Milicianos de serviço com Sargento de Dia à Unidade.
Um dia estava este vosso camarada a dormir ferrado, já de madrugada num catre igual aos da cadeia, ali ao lado, quando disparou o alarme numa barulheira infernal...
Foi um espectáculo verdadeiramente circense com tudo quanto era gente a correr para os locais de defesa, como se porventura o inimigo estivesse ali, para tomar as terras de Viriato...
Sem saber exactamente o que fazer, deambulei por ali a ver no que davam as modas, até que após um bom pedaço de tempo, de telefonemas para a Casa da Guarda a que eu ou um dos Cabos RD que ali estavam, íamos pondo água na fervura sobre a invasão...
Não se via inimigo nenhum, há muito que os espanhóis haviam perdido a ideia expansionista, os ciganos de então não se atreviam (já não diria o mesmo agora, quer sejam ciganos ou outros quaisquer... não, não é xenofobia...) portanto a guerra não era concerteza nem mesmo que a do Solnado se tratasse...)
Entretanto clareou, e os ânimos serenaram...
Ensaio não fôra, portanto o Comandante, um homem carregado de dragonas nos braços do casacão preto cheio de bordados que víamos às vezes quando requeria um grupo de recrutas para lhe varejarem e colherem a azeitona da sua propriedade na zona, usando naturalmente a mão de obra gratuita os carros e combustível da tropa (isto não é para aqui chamado...) o Comandante chamou aqui esta vosso camarada ao seu gabinete e disparou:
- Que estás aqui a fazer? Chamei o Sargento da Guarda!
Enchendo-me de brios do alto das minhas vermelhas divisas, numa posição de sentido que faria invejar qualquer profissional, especialmente os que faziam gala na cagança (era este nome que davam àquela sequência toda de bater com os calcanhares um no outro para gerar uma sonora pancada, fechar os punhos lateralmente, atirar com o peito para fora, qual galo de Barcelos no acto da cantoria...) e numa voz tronituante respondi:
- Saiba Vossa Excelência, meu Comandante que quem se encontra de serviço como Sargento da Guarda desde o toque de recolher até à alvorada sou eu próprio, Cabo Miliciano 08865271, hoje também Sargento de Dia à Unidade da 2.ª Companhia de Instrução.
- Mas... para quem não gostava de fardas, desenrascaste-te bem - dirão os mais afoitos...
O homem gostou.
Pôs-me à vontade, expliquei-lhe que não havia sido o autor do aviso de guerra e o electricista do quartel haveria de explicar-lhe que se tratara de um curto circuito...
Vai daí, o comandante acabou com todo aquele mise-en-scène, e acabaria por dar uma porrada ao Sargento...
De Viseu haveria de rumar para a cálida planície alentejana (como vêm fiz uma autêntica volta a Portugal nesse meu mourejar interno antes do embarque para a Guiné).
Ao invés de ir de combóio, como acontecera aquando da viagem para Viseu que demorara desde Pedras-Rubras, 14horas (sim leram bem catorze horas, tive de fazer dois transbordos e esperar umas horas em cada um deles, para cobrir cento e poucos quilómetros na linha da Beira Baixa), aproveitei e fui no carro do Barbosa de Ermesinde que acabaria por ir para o Biambe, e com o Maia de Coimbra, que iria para Encheia, onde permaneceria pouco mais de sete meses até à evacuação para Lisboa motivada pelo tiro que apanhou de ricochete na cabeça).
(Envio-vos daqui um abraço pois estou certo que seguis esta nossa tabanca)
Pois essa Yeborah mourisca, de que tanto gosto, recebeu-nos no RI16, outro antigo convento (para quem não professa nenhuma religião parece uma espécie de perseguição...) e dali haveríamos, Batalhão formado, de rumar à nossa Guiné.
Aqui, passadas as passas (não do Algarve pois as de Tavira, como vos disse, até nem foram nada más, antes pelo contrário, mas... as africanas, como todos vós mais ou menos passastes, com períodos em Bissum/Naga, Cafal Balanta (naquele belo edificio que tive oportunidade de vos mostrar no poste 4481), Cafine, ali ao perto, escassos 2 km, mas vivendo em tendas (como se na praia nos encontrássemos, dando assim à comissão uma vivência de férias...), para finalmente me quedar por Fatim, destacamento do Dugal, perto de N´Hacra.
Regressado, ao fim de uns dias (aqui vem finalmente a razão do título do escrito...) dei entrada no Hospital Militar do Porto com problemas estomacais sérios.
Fui visto pelo Dr. Barbosa Leão (já vos explico porque fixei este nome...) que me haveria de internar.
-Tenha paciência doutor, mas internar, nem pensar. Farto de tropa estou eu. Moro aqui perto, Pedras-Rubras, posso deslocar-me facilmente.
-Sendo assim, terá de preencher um formulário de pedido de pernoita fora. Por mim não ponho obstáculos.
Entretanto após diagnóstico haveria de me receitar dois medicamentos que não poderiam ser tomados isoladamente (presumo que um deles, porventura deveria ser uma espécie de protector para o estômago...).
Desloquei-me à farmácia, mas só havia um que trouxe, ficando depois de ir ligando para saber quando chegaria.
Óbviamente, desandei, e de quando em vez lá ligava, mas a resposta era sempre a mesma, terá de aguardar...
A consulta desse médico era às quartas. Ainda fui a uma outra para tentar tomar uma beberragem que permitisse a detecção da extensão do problema via Raio-X (ou outro qualquer...), mas não consegui porque vomitava de imediato.
A solução passava por ir aguentando até à chegada do medicamento.
O tempo rolou, e uma bela quinta-feira, estando a 100 kms de distância em casa de familiares, recebo um telefonema muito preocupado da minha mãe a dizer-me que haviam ligado do hospital considerando-me desertor.
-Apresenta-te hoje ou amanhã, dissera, aflita...
-Não se preocupe! Eles não me prendem!
Segunda-feira, este vosso camarada, por volta das dez da madrugada, deu entrada no HMR 1 do Porto.
Dirigi-me à enfermaria, perguntei ao Sargento de serviço o que se passava comigo para me ameaçarem daquela forma...
Quando se apercebeu que era eu, o sargento disse-me:
- Estás f..... pá!
- F.... porquê meu primeiro?
- Por onde tens andado? Já por várias vezes todo o mundo pergunta por ti e ninguém te conhece. Se calhar vais de cana...
-Isso é que era bom! Não se preocupe Primeiro, porque eles p´ra guerra não me mandam mais, pois faço-lhes um manguito...
-Vê lá se atrranjas um pijama.
-Um quê?
-Um pijama, pá. Estás internado tens de andar de pijama e apresentar-te assim...
-Não me lixe, meu Primeiro, não me lixe... Nem que a vaca tussa, eu não vou falar com o Comandante de pijama.
Arranjei umas calças, por sinal curtas e apertadas, uma camisa, uma boina, e... já ia.
Diz-me o sargento:
- E as divisas? - Eu dava tanta importância àquilo que até me esquecia do seu uso...
Arranjei umas de um Furriel internado, coloquei-as, e de novo o Sargento me chamou a atenção:
- Olha lá, olha lá pá, o Furriel agora tem as divisas ao contrário. São com o bico para cima.
- Ou me aceitam de bico p´ra baixo, ou nada feito.
E assim foi. Bati à porta do gabinete do Comandante e acto contínuo acompanhando um simples dá licença, entrei... boina na mão para não ter de fazer saudação militar, pudera eu sentia-me civil...
- Quem és tu?
Lá me apresentei e disse:
- Andam para aí a chamar-me desertor...
- E és. Já estás desenfiado há mais de quinze dias.
- Isso é que era bom! Eu falei com o Dr. Barbosa Leão e ele disse que podia dormir em casa.
- Não assinei nenhum pedido.
- Na altura quando quis fazer o pedido, não havia ninguém na secretaria e como tinha mais que fazer...
- Onde estiveste?
- Vim da Guiné.
- Pronto, pronto, vai à tua vida e trata lá disso.
Eu que não suporto desertores fui-o considerado um dia!
Um abraço a toda a tabanca
Manuel Maia
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 8 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4481: Os bu...rakos em que vivemos (12): Cafal Balanta contribui para o desenvolvimento nacional (Manuel Maia)
Vd. último poste da série de 25 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4414: Destas não reza a História (Manuel Maia) (2): Quem matou Inesa?