sexta-feira, 17 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4699: Histórias de José Marques Ferreira (3): Um fado no silêncio da madrugada


1. Mensagem de José Marques Ferreira, que foi Soldado Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré 1963/65, com data de 15 de Julho de 2009, com mais uma curiosa e divertida (para o envolvido não o deve ter sido muito) estória passada na sua companhia:


Camaradas;

Ingoré, ambiente de guerra.



Já aqui disse que a minha guerra na Guiné foi mais turismo e pó, que se entranhava nas narinas, na pele, na roupa e em tudo quanto era sítio, do que bombardeamentos, emboscadas (salvo uma “brincadeira” de que não sabemos as origens e que um dia, se se justificar, contarei) e tiros, que, felizmente, nos passaram ao lado. Nem sequer ouvimos tiros (os do IN claro).

Vá-se lá saber porquê. Estávamos lá e não fomos “incomodados”, ao passo que outros camaradas, não podem, absolutamente, dizer o mesmo.

Mas, mesmo assim a Guiné, como por aqui se diz, também foi sentida, vivida, com paixão, pelas coisas boas, porquanto também a nossa companhia, sem tiros, esteve na terreno a ajudar a construir a paz…

Parece conveniente justificar é que as populações – mais uma vez as populações – foram sempre a nossa preocupação, respeitando as suas vidas, os seus modos de viver e as suas necessidades, sem intromissões no que genuinamente lhes pertencia… os seus hábitos, costumes, crenças, etc., etc.

Sempre houve, aquilo que se convencionou chamar, na altura, a acção psico-social.

Isto quer dizer que, aquela gente, necessitava de nós, nos momentos maus porque passaram, e nós necessitávamos dela para o nosso equilíbrio psíquico, isto é, permitir-nos ter sempre presente a abismal diferença entre a guerra e a paz, entre a vida e a morte.

Enfim, desviei-me um pouco da história de hoje. Vamos a ela.

UM FADO NO SILÊNCIO DA MADRUGADA

Aquilo a que se chamava “aquartelamento”, em Ingoré, nem iluminação eléctrica tinha, luz só a dos petromax. Chegou a haver electricidade durante um ou dois meses, até os geradores “pifarem”, de tal modo fatalmente (desconheço os motivos dos “pifos”), que nunca mais tivemos iluminação eléctrica.

Havia segurança montada, sob uns cibes espetados no chão e com os quais se fez uma torre de vigia, não sei para quê, pois um bazucada prostrava aquela treta e o respectivo pessoal num instante (apesar disto dava algum jeito e alguma imagem de segurança).


De acordo com o local havia um esquema de segurança, que incluía um posto de vigia, situado mesmo nas traseiras do edifício, onde dormia o nosso comandante da companhia (façam-me o favor de não serem maliciosos).

Certo dia, o camarada que ali cumpria a seu turno de serviço, às tantas da madrugada (que bonita canção alentejana dava esta cena na madrugada de Ingoré) resolveu, àquela hora imprópria, cantar um fado.

O que eu pensei de imediato, quando me contaram o sucedido, foi que o “desgraçado” recorrera a este subterfúgio, para “camuflar” o alívio de algum sonoro “flato”, que o estaria a incomodar.

O que é certo, é que o “artista” pôs-se a cantar, já não sei que fado, mesmo sem acompanhamento à viola ou à guitarra. Imaginei os gestos, dedilhando a G3, em substituição dos ditos instrumentos. Não sei se foi assim, mas calculo que pouco menos terá sido...

O que eu sei é que a sua voz, melodiosa ou não, acordou o nosso comandante.

Este, não gostou mesmo nada de ouvir cantar o fado àquela hora da matina, pelo que, não esteve com meios ajustes e toca de, na Ordem de Serviço que se seguiu, sentenciar, sem apelo nem agravo, uns dias de detenção para o rapaz (é verdade detenção na Guiné, meus amigos!), como prémio para o tom “afinado” com que acordou o capitão da companhia!

Aqui sim, é caso para dizer: Triste fado, triste sina…

Para todos um abraço,
J.M. Ferreira


Foto: © José Marques Ferreira (2009). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:

Guiné 63/74 - P4698: Depois da guerra, o stresse... da paz (2): Não foi o melhor tempo da minha vida... (João Bonifácio)

1. Através do correio interno da Tabanca Grande, dei conhecimento do primeiro texto que o José Eduardo Oliveira nos enviou, inaugurando uma nova série Depois da guerra... o stresse da paz (*), em que se procura, apesar da ambiguidade do título, dar conta das dificuldades de adaptação à vida civil, depois de três anos de tropa (com dois na Guiné) como aconteceu com muitos de nós (no caso do José Eduardo, foram quatro, de 1962 a 1966)...

Amigos e camaradas: Não é todos os dias que aparece um de nós a dizer, em público, a assumir em público, que a Guiné, a experiência de 'Guerra & Paz' que foi a Guiné, também representou alguns dos melhores dias, semanas, meses e até anos das nossas vidas... Politicamente incorrecto ? No nosso blogue, não conhecemos esse advérbio de modo... Leiam e comentem. LG

No seu primeiro texto, o José Eduardo Oliveira, que foi Fur Mil Enfermeiro, dá-nos conta de que a sua passagem pela Guiné, e em especial por Binta, na região do Cacheu, não teve só aspectos negativos (e traumatizantes), associados à guerra; também teve o outro lado, positivo, o apoio material e psicossocial às populações locais, o convívio, a camaradagem, a solidariedade.... Nesse texto, que não é de modo algum saudosista, ele faz o contraponto do melhor das suas vivências em Binta com o pior do day-after, com as agruras do regresso à normalidade...

2. Comentário do João Bonifácio (ou John Bonifácio) que vive no Canadá. Recorde-se que ele foi Fur Mil SAM (vulgo vagomestre), na CCAÇ 2402 (Có, Mansabá e Olossato, 1968/70) (**)... 

A esta subunidade também pertence o nosso camara Raul Albino, ex-Alf Mil. Foi seu comandante o Cap Inf Mário José Vargas Cardoso. Pertencia ao BCAÇ 2851 (a cuja CCS pertenciam os nossos camaradas António Pimentel, da Figeira da Foz, mas a viver no Porto, e o Hernâni Figueiredo, de Ovar: um abraço especial, para estes dois camaradas do BCAÇ 2851, com quem estive recentemente no nosso IV Encontro, bem como ao João e ao Raul).

Olá, caro Luís:

Em relação às actividades da CCAÇ 675 em Binta, apenas posso louvá-los por tudo o que fizeram pelas populações. Alias, penso que todas as guerras que passaram pela Guiné, fossem do exército, marinha ou força aérea, fizeram o seu melhor para minimizar a dor e a saudade que sentíamos pelos nossos, que nem sabíamos se algum dia seria possível rever de novo.

Fazer statements [declarações] àcerca do facto de "terem sido os melhores dias..." , eu aí já desconfio, pois devido à minha especialização, posso afirmar que a CCAÇ 2402 fez quase tudo o que a CCAÇ 675 fez, durante a nossa estadia no teatro operacional de CÓ e OLOSSATO. Tambem nós fizemos muito, também nós fomos reconhecidos pela chamada accao psicológica, junto das populaçõs.

Também gostavam muito de mim, pois estando a cargo dos comes e bebes, as festas na aldeia não se faziam sem a chamada água de Lisboa, que embora com uma mistura de água e tinto na base dos 50/50, ainda os fazia dançar e cantar até às tantas.

Também porque era eu que ajudava as mães mais necessitadas, quando não davam leite suficiente para alimentar os seus babies [bebés]. Tambem a Companhia ajudou no campo da saúde, e até tínhamos um médico.

Tambem se fizeram casas novas, com a ajuda obrigada dos balantas, que não queriam nada com o trabalho.

Também se deu instrução escolar. Tivemos uma estação de rádio. Enfim, fizemos o que, penso todos fizeram. No meu caso pessoal, eu até fiquei muito feliz, porque assim teria tanto em que ocupar o tempo, que a minha comissão iria passar depressa.

Posso dizer que organizei o meu tempo muito bem, e apenas houve um inconveniente, é que a minha esposa ficou doente e teve de ser internada, o meu filho por razões que nunca se souberam, contraiu um problema no fígado e eu apanhei o paludismo.

Não posso dizer que foi o melhor tempo da minha vida. Não foi e por razões mais que claras. Talvez se eu estivesse na Guiné por minha vontade, então eu poderia dizer ou não do meu agrado. Nas nossas situações, vidas interrompidas em plena subida, famílias deixadas na incerteza, e a nossa propria dúvida de como acabaria. Sim, porque os soldados não faziam ideia nenhuma do que os esperava. Até nós, em certos momentos, não compreendíamos nada acerca desta guerra. Eu, mais ligado ao comando e como graduado mais antigo, estive sempre informado.

Nunca poderei dizer que foi uma estadia em que fomos muito felizes. A noite em que saí de Bissau, ficou lembrada por uma tempestada enorme e que continuou até Cabo Verde. De recordar o carinho do Antonio Sala ao dedicar-nos a cancao de despedida Adeus, Guiné. Fiquei emocionado. A estadia teve os seus altos e baixos, mas nunca poderei afirmar que foram os melhores dias da minha vida.

De qualquer modo, eu agradeco-te, Luis, o envio deste e-mail. Prova, afinal, que cada um de nós escolhe os melhores dias da vida a seu belo prazer e em conta com os seus próprios ideais e sonhos.

Obrigado e um GRANDE ABRAÇO.

João G. Bonifácio
Oshawa, Ontario, Canadá
CCAÇ 2402 Guiné
Ex-Fur Mil SAM

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Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 15 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4690: Depois da guerra, o stresse... da paz (1): Em Binta, vivi uma experiência única (José Eduardo Oliveira)


(**) Vd. poste de 1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1331: Blogoterapia (9): Quando a Pátria não é Mátria para ti (João Bonifácio, Canadá, antigo vagomestre da CCAÇ 2402)

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4697: Os Unidos de Mampatá, por Luís Marcelino, ex-Cap Mil da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74 ) (2): Descuido fatal!




1. Mensagem do Luís Marcelino, membro da nossa Tabanca Grande, que foi capitão miliciano da CART 6250/72 (Mampatá), 1972/74), com data de 14 de Julho.


2. Para total compreensão da história que a seguir vou contar, especialmente para aqueles que nunca lidaram com armas de guerra, e especificamente com dilagramas, convém esclarecer o seguinte:

O Dilagrama M/965 é um conjunto composto por um dispositivo apropriado, para suportar/fixar uma granada de mão defensiva M/63, que, por sua vez, é atracado no cano de uma Espingarda Automática G3.

O dispositivo é disparado/propulsionado à distância - utilizando uma Espingarda Automática G3 -, e um cartucho propulsor apropriado (diferente de todos os outros).

As suas vantagens são:

- Um grande alcance (muito acima do que é conseguido manualmente pelo melhor, e mais forte dos combatentes).

- A consequente diminuição do perigo para as tropas amigas.

- Uma boa eficácia obtida (se o atirador bem o direccionar e colocar na zona ideal de impacto).

- A possibilidade de bater ângulos mortos, sendo possível o seu emprego contra tropas inimigas entrincheiradas e, ou, abrigadas.

3. Mais convém saber que, após o dispositivo ser atracado no cano da G3, e imediatamente antes de se executar o disparo, é necessariamente obrigatório descavilhar a granada (se não se realizar esta operação obviamente a granada é expelida mas não explode), para permitir que a alavanca, que imobiliza a espoleta, salte automaticamente devido à acção de fragmentação do retentor, durante a sua trajectória.

Para mais detalhes, consultem o seguinte sítio:

Camaradas, envio um segundo apontamento da CART 6250 a que atribuí o título:

OS UNIDOS DE MAMPATÁ (2)
Descuido fatal

Na Guiné, como é do conhecimento geral, o número de baixas foi muito elevado, devendo-se, na sua grande maioria, à actividade operacional que era muito intensa e perigosa. Contudo, algumas das baixas deveram-se a negligências e distracções.

Um exemplo destas, é o caso que vou descrever. Como ficou referido no primeiro apontamento, a CART 6250, partiu para a Guiné a 27 de Junho de 1972 e chegou a Bissau nesse mesmo dia, tendo rumado para Bolama afim de fazer o IAO.

Aquela instrução decorreu entre o dia 30 de Junho e 26 de Julho, sob a dependência do BART 6520 que havia chegado também a Bolama, para frequentar o mesmo período de instrução, antes de partir para a sua ZA.

Este período de instrução deu para, por um lado, fazer uma melhor adaptação ao clima e, por outro muito especialmente, para preparar de um modo mais eficaz todos os homens à dureza da missão que a todos esperava.

Entre as áreas de preparação que ali se realizou, a instrução de tiro foi merecedora de um realce particular, por forma a transmitir confiança e rigorosas noções de segurança, a todos os militares, na utilização da principal “ferramenta” que se colocava nas mãos de todos.

Um dos dias de instruções ocorreu em 10 de Julho de 1972. De acordo com o plano estabelecido, a Companhia seguiu para o local de tiro, em marcha, como era hábito.

Estava previsto, para aquele dia, que a instrução era o lançamento de dilagrama.

A instrução era ministrada pelo Oficial de tiro do BART6520.

Uma vez no local, a companhia posicionou-se a cerca de 10 metros, atrás do local onde estava o oficial de tiro, o atirador em exercício e o comandante da companhia. Na frente do local onde se procedia aos lançamentos e os militares estavam estacionados, havia um desnível de terreno e uma bolanha.

Depois do Oficial de tiro ter dado as instruções específicas sobre o tipo de engenho que se ia manusear, os procedimentos que deveriam ser adoptados e uma demonstração das atitudes a tomar, iniciou-se o treino individual.

A determinada altura, chegou a vez do Soldado Mata fazer o seu exercício. Posicionado junto do Oficial de tiro e do Comandante da Companhia, iniciou os procedimentos para o lançamento: introduziu a munição específica para dilagrama na culatra e o dispositivo dilagrama/granada no cano da G3, mas ao retirar a cavilha de segurança da granada, a alavanca desta saltou prematura e acidentalmente, por se ter partido o perno de segurança que deveria reter a alavanca (cuja função era impedia o accionamento da granada antes do lançamento).

Incompreensivelmente, o Alferes tentou repor a cavilha no sítio em vez de lançar a arma, com o dispositivo, para o buraco que havia à sua frente.

Vendo a eminência da explosão, só tive tempo de gritar para que todos se deitassem. No momento em que chegava ao chão, ouvi um estrondo! Naquele mesmo instante vi a meu lado o Oficial e o Soldado mortos. Houve apenas mais uns poucos soldados ligeiramente feridos por estilhaços.

Foram momentos dramáticos os que se viveram ali.

Mesmo assim, foi possível refrear os ânimos. Respeitosamente recolheram-se os corpos para um unimog e procedeu-se à sua escolta por toda a companhia até ao aquartelamento.

De realçar a dignidade com que todos os militares encarara este acontecimento, que mereceu uma referência elogiosa por parte do Comandante Chefe General António de Spínola.

Com cerca de 10 dias sobre a nossa chegada à Guiné e já este grande desaire nos marcava definitivamente.

Não foi fácil gerir no plano psicológico este desaire e demonstrar que aquele equipamento era seguro!

Foi necessária uma acção conjunta de todos, a começar pelos graduados, demonstrando-se que, a serem respeitadas as normas de segurança, nada havia a temer.

Esta terrível situação foi um aviso muito sério, que todos os militares acolheram com muito afinco e que terá servido de lição para todo a comissão.

Com um abraço do,
(Luís Marcelino)
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Nota de M.R.:

(*) Vd. também o anterior poste desta série em:

Guiné 63/74 - P4696: Vindimas e Vindimados (José Brás) (7): Nhala I

1. Mensagem de José Brás (*), ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68, com data de 14 de Julho de 2009:

Companheiro Carlos

Aqui vai mais uma estória a incluir na série “Vindimas e Vindimados

A esta irá seguir-se “Nhala II” e vem do centro de um pequeno tsunami, parte ocasionado pelo que conheces e já esquecemos, e parte gerado neste processo de chamar de novo imagens e emoções difíceis de esquecer mas também difíceis de recordar por dentro.

Um abraço
José Brás


Nhala I

Que porra é esta pessoal
Éh caraças olhem o tamanho dos clarões
É aqui pertinho, pá
A norte da estrada de Buba
É em Nhala, é em Nhala
Não há problema, já estão acostumados.
Gaita, pá, mas aquilo é de mais, rebentam com tudo
Cala a boca piriquito, não estás é habituado
Deixa que já te habituas
Se não lerpares primeiro


Gente jovem, um magote de macho, furriéis, sargentos e praças saíam à pressa do bar comum, e outros de suas casernas, olhavam agitados o topo das árvores que no limite do desmatado, para além da soleira sul da pista, fechavam o espaço físico de Aldeia Formosa e deixavam adivinhar um mundo de medos e fantasmas. Ouviam aquele som novo, telúrico e cavo, que mais lhes parecia sair da terra do que das mãos de homens, negros que fossem e do inimigo.

Quinze dias era o que tínhamos desta trampa, e trampa era, aqui para nós, qualquer coisa que não fosse a asa protectora da mãe; trampa, ainda que fosse Aldeia Formosa, um paraíso como havemos de constatar mais tarde quando elas começarem a morder.

Estes quinze dias haviam passado nas calmas, rancho melhor que no puto, cerveja fresca, sorna, serviços como na tropa de Lisboa, guarda, faxina, na fonte a partir mantenha com as bajudas da aldeia, boas como o milho, de mama rija, e atrevidas, sempre nos risinhos umas com as outras, afastando a mão branca que lhes procurava as carnes, dengosas no modo, ”iiiih pissoal branco, ca põe mão, em mim”, atiçando fogos, levantando pragas contra a mania do Capitão “já sabem, tenham cuidado com bajudas, estão prometidas e os pais contam com as vacas da troca. Nem em sonhos, malta. Não quero problemas sociais aqui”.

Sociais!? Que raio de porra seria essa, problemas sociais?

Problema social era a calada da noite no sanitário, cada um a contas consigo próprio, em auto-gestão à conta das bajudas.

A Buba, apenas uma ida, em coluna, amparados pelos velhinhos das Fox, caminho a butes por causa das minas, trinta quilómetros, mais ou menos, que na altura pareceram cinquenta e agora me parecem dez, carregar tralha do cais para o dorso de unimog's e GMC’s, voltar pelo mesmo caminho, um calor danado, lama de enterrar carros até à pança, descarregar tudo, empurrar, empurrar até a alma sair pela boca, voltar a carregar, quinhentos metros mais à frente tudo ao princípio.

Ainda era noite quando saímos. Picar estrada a passo de caracol, o Sol a sair da copa das árvores, já vermelhão, pintando de vermelho a terra da estrada, espalhando um bafo de humidade quente, o cheiro intenso de África que se irá colar a cada um até ao fim dos seus dias, sendo que uns irão ter dias curtos, ainda que o não saibam, e outros os alongarão por anos e anos, noutras guerras e diferentes, noutras paragens, remoendo passados, trazendo à memória tais cenas como se houvessem corrido em fita de cinema, cada um, personagem, actor, espectador, do seu próprio filme, envolto e encadeado numa certa realidade irreal, crescentemente irreal.

E sede. Sede como ninguém tinha tido na vida. A falta absoluta de líquido no corpo. Sede bruta que nem aceitava os avisos dos mais precavidos e capazes de a suportar, para beberem pouco de cada vez, um gole, molhar a boca, apenas, poupar na água porque a que se encontrava por ali nos charcos, melhor era nem lhe tocarem.

Gente houve que a meio do caminho já havia bebido a sua e a de outros, olhando os cantis alheios com olhos de carneiro mal morto.

Mas pronto, nem trolha tivemos em encontros maldosos, como nos haviam prometido os das Fox antes da saída nas conversas de bar da noite anterior, meio a acagaçar novato, meio a sério.

Sarrafusqueta foi, quinze dias antes, no dia da chegada. Pequena, espécie de boas-vindas, parece que habitual na recepção a branquelas acabadinhos de chegar. Uns nomes feios a mães e esposas gritados em bom português, umas rajadas, a malta a olhar-se uns aos outros, ainda incrédulos, demorados no reagir, com medo até de disparar, mas enfim, dando troco, diriam os das Fox que no risco de se aleijarem a si próprios.

Chegar ao quartel, nesse dia, chuveirada, roupa limpa, primeiro copo pago, imposto à velhice, soldados a saírem para a Aldeia em busca de fêmeas, segundo se consta, que também já esperavam por carne tenra e branca e pelos pesos que sempre haviam de dar jeito para alimentar família e comprar ronco no comerciante Fuad.

Seis dias antes estavam ainda em Lisboa, no Cais do Sodré, no Martim Moniz, no Bolero e nas baiucas todas onde se podia comprar sexo disfarçado de cerveja cara ou de whisky falso pago a preço do bom. Um dia não são dias e ninguém sabia já dos seus, para falar a verdade.

Espantava-me, eu, com a corrida daqueles gajos, desembestados, desacordados de sonos velhos, arrastados pelos que já conheciam a praça. Não me cabia na cabeça tal coisa, é certo, mas sempre nesta mania de tudo tentar entender e perdoar a humano jovem mas já muito lixado pela vida, eu remetia as culpas para um País de costumes estritos, de pecados e infernos, onde, ainda por cima, haviam fechado as casas de putas antigas onde o coito custava barato e estava garantido por inspecção médica e fiscalizações.

Naquela noite de estoiros e clarões, quinze dias após a chegada, foi a primeira vez que o pessoal da 1622 se pôs a si próprio a questão mais ou menos assim: “debaixo daquele fogo? Quem é que aguenta? deve estar o quartel meio destruído. Ainda bem que não me calha a mim”.

Também mais tarde havemos de descobrir que não é bem assim.

O Capitão pira nem precisou de mandar reunir Alferes porque Alferes não faltavam ali no ripanço da messe deles, ouvindo Bach no gira discos trazido do Funchal, acomodado a preceito, pronto, também, para cumprir seu serviço militar nos trópicos, e voltar ao puto, sem traumas, sem febres palúdicas, nem restos de blenorragias.

Dois pelotões! Rápido, porra! Bruno e PG. Imediatamente a dar uma mão àquela gente, montados até Mampatá e à pata depois.

Fox’s à frente, rádio, dois morteiros e duas bazoocas, Mg com o Banharia.

Contacto rádio daqui com Nhala, PRC10, da coluna com o quartel em escuta permanente.

Ala Milhano, ainda que leve mais tempo a executar isto tudo do que a dizê-lo.

Saiu a tropa e mal o havia feito, quinhentos metros, talvez, do quartel de Aldeia, ordem para fazer alto, tudo p’ra trás, acabou a guerra por hoje, informação de Nhala que a mão estendida já não era necessária, que não havia azar, que evitássemos a viagem não fora os gajos haverem montado emboscada ou semeado minas para a eventualidade.

Nada foi aquilo, apenas uma espécie de exercício que o PAIGC nos ofereceu, mais a nós em Aldeia, espectadores do fogo de artifício, que aos de Nhala, habituados que estavam a festas desatas. Ajeitavam almas e corpos para futuros violentos e certos.

E nem falaria disto, não fosse o acaso de querer apresentar-vos Nhala no fito de contar estória mais completa que trago encalhada há muito.

Nhala foi só um posto intermédio, quando íamos a Buba e não queríamos fazer a estrada directa, mais curta, passando perto de Missirá e um pouco antes ainda, entroncamento à esquerda por onde se ia quando o destino era Colibuia ou Cumbijã.

Bolola, logo a seguir, um lugar na carta militar da tropa portuguesa, um lugar no mapa político da Guiné Bissau ainda hoje, provavelmente local de moranças de gentes antes e depois da guerra.

O que era, então, Bulola, pelo menos entre Novembro de mil novecentos e sessenta e seis e Junho de mil novecentos e sessenta e sete?

Que me lembre, nada, se nada era o que encontrávamos no caminho, além de esporádicos e curtos encontros com rajadas, estrondos e vozearia de inimigos que eram e não eram, quando calcorreávamos o caminho de Buba, unimogues e GMC’s, tudo vazio e leve à ida, ajoujados na volta com comes e bebes que abasteceriam a pobre cozinha dos soldados da Companhia durante mais um tempo.

E a messe de sargentos num espaço melhorado em asseio e qualidade de mesa, a messe de oficiais num outro lugar ainda mais recatado, porque nestas coisas de estômagos cada casta tem o seu, nas maneiras de estar à mesa, nas convenções de acesso limitado, no guardanapo de pano, de papel ou costas da mão, copo de vidro, de plástico, púcaro de lata, no gim tónico, umas tapas de queijo antes da refeição, whisky ou conhaque, depois, cadeirão de recosto no fim, tudo respeitando o mais possível hábitos trazidos da mesa da mãe, coisas que em soldados vindos do pastoreio, das hortas, das vindimas, da construção civil, do trabalho de sol-a-sol, não se esperaria, com as excepções devidas à regra geral.

Geral era o refeitório da soldadagem. Rectângulo de alvenaria coberto de folhas de zinco e recoberto por colmo, numa plataforma ligeiramente elevada em relação à inclinação do terreno, três degraus para entrar, mesas corridas, bancos corridos em chão de cimento escuro, prato escasso para a fome de cada um, vinho do barril, baptizado no puto, rebaptizado em Bissau, com um pozinho, dizia-se, para tirar a tesão que pouco jeito dava ali, tempo curto à mesa porque quem pouco sabe depressa o reza, tudo lavado de imediato, a balde e escova rija, faxinagem de escala, duas vezes ao dia o ritual, não falando da refeição da manhã, pequeno-almoço lhe chamavam uns, café da manhã, mata-bicho.

Mampatá era o cruzamento que definia o caminho a seguir. Em frente, directos a Buba, com uma volta larga a Sul, mas a qualquer um sem apoio da carta ou mapa e na falta de referências a olho, dando a ilusão de estrada quase recta.

Ou então, voltando a Norte, por Uane, outra volta larga depois, descendo até Buba, atravessado que fora Nhala, por dentro, uns quilómetros atrás.

Voltemos, então, a Nhala, agora que perdemos tanto tempo às voltinhas a Sul e a Norte, em Buba, em Missirá, em Mampatá, em Uane, em Sare Donhe, se bem que desta nem falámos por se localizar um pouco à esquerda do nosso caminhar, voltemos a Nhala se é de Nhala que quero falar agora porque, se em Nhala comecei este falar, foi porque de Nhala queria fazer centro, hub, como na anglosaxonização (!!!) do falar português, tanta gente diz hoje, hub, querendo dizer de deambulações guerreiras na zona.

Portugal Pequenino e Darsalame eram nomes de tabancas na margem esquerda do Corubal, em linha recta tão perto do Xitole que, emboscados a cerca de dois quilómetros da primeira tabanca, ouvíamos o rio a correr e os motores das viaturas da tropa.

Não mais de quinze dias era o nosso tempo de Guiné, caras ainda enjoadas da travessia no Niassa, marcas do Inverno de Abrantes e Santa Margarida na pele, muitas dúvidas ainda nas cabeças, desconfiadas de que essa coisa da guerra, tirando o troar do ataque na Nhala, era apenas exagero de caçador, nas calmas em Aldeia Formosa com direito a banhos no Saltinho.

Ordem de cima, vá-se lá saber porquê, mandava juntar tropas de Aldeia e de Colibuia para um golpe de mão a Portugal e Darsalme. Coisa fácil, como dizia o Umarú Jaló, jovem mas feito àquelas andanças e permanentemente ansioso por acção. Eram só duas aldeias isoladas de tudo, picada a cortar mata e bolanha a partir de Nhala, coisa de quinze quilómetros.

Coisa fácil seria, apesar do caminho se alongar demais para os nossos hábitos metropolitanos. Seria, se fosse como se previa, sem merdas no caminho, sem encontros malandros, só andar, G3, mantimentos para aguentar a volta de manhã, bornal e o pouco mais que um ou outro acreditava dar jeito, caminho feito de dia, abancar a dois quilómetros do objectivo. Seria, não fora a bailarina que alguém deixara como esquecida, enterrada num chão mole logo atrás de um grosso tronco de árvore decepada por ventos velhos e de haste tripla apontando ao céu.

O João, nativo que fora já elemento do IN e agora vivia no quartel de Aldeia Formosa na sua qualidade dupla de guia de tropa branca e carpinteiro nas horas livres, chegado ao obstáculo, apoiou a mão direita no dorso da árvore, passou a perna esquerda para o outro lado, com a mão esquerda agora também apoiando o movimento, fez força para passar a outra perna.

Morreu ali mesmo, ninho de pássaros de aço, que lhe buscaram o corpo.

O Furriel Bernardes que seguia logo atrás do João, ouviu o estrondo e só descobriu que comera também a sua parte, quando as pernas se dobraram feitas trapo e o deixaram cair enrolado sobre o capim meio podre da picada.

O Alferes Baptista com pê, como sempre dizia a quem calhava apresentar-se, civil ou militar, também levou do mesmo, aliás, carga maior que a do Furriel, ou se menor, mais grave porque lhe tramou bexiga e rim.

Abortar a operação era e foi a solução a tomar, durante a noite o caminho ao contrário, um morto e dois feridos graves no lombo, a confiança abalada, a certeza que o movimento fora detectado, a dúvida se de outro local da mata não sairia alguém a cobrar mais imposto de sangue.

Dia seguinte, reconhecimento ao local, dois pelotões, um de cada Companhia. Sem nada que aparentasse mexidas, um pelotão regressa e outro fica em emboscada na expectativa de romagem à árvore derrubada.

Ficou o pelotão do Ávila e, voluntário na ida, fiquei com ele a experimentar a noite do mato, os ruídos, os cheiros, o sabor do risco, a excitação do novo.

Cada soldado com seu poncho no chão, dormindo à vez, soldado sim, soldado não, naquela correnteza de corpos estiraçados, alerta uns, acordados, alerta outros, mesmo no sono, um olho no burro outro no cigano.

Molhei-me e acordei espantado, duvidoso ainda, um eu racional embaraçado perante o outro eu instinto e descomandado.

Nem houvera sonho! Apenas a memória que navegara por dentro do tempo e do gesto mais fundo guardado em zonas do ser que não me conheço.

Ou, talvez, o sistema nervoso autónomo extravasando das suas funções.

Um orgasmo pleno e perturbador, a meio da noite de um chão duro, a dois passos do objectivo que havia de ser mais tarde, Portugal Pequenino, com o som do Corubal nos ouvidos e os barulhos nocturnos da mata, a mais de quinze quilómetros de Nhala.
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Nota de CV:

(*) Vd. último poste da série de 8 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4658: Vindimas e Vindimados (José Brás) (6): Achamos nós que não nos conhecíamos

Guiné 63/74 - P4695: O Nosso Livro de Visitas (66): Manuel Seixas da CCAÇ 1422/BCAÇ 1858 (K3/Saliquinhedim, 1965/67)

1. Mensagem de Manuel Seixas, ex-combatente da Guiné, pertencente à CCAÇ 1422/BCAÇ 1858, que esteve no K3/Saliquinhedim, (1965/67), com data de 10 de Julho de 2009:

Assunto: Pedido

Meu caro dr. Luis Graça

Vou todos os dias ao seu blogue para ver se há novidades e um já encontrei um companheiro do K3 e falei logo com ele.

Agora o que lhe peço, tivemos um almoço em Almeirim com 11 companheiros. Foi uma alegria depois de 42 anos, mas eu gostava que publicasse no seu blogue este acontecimento, não sei se será possível.

O meu muito obrigado
Manuel Seixas


2. Comentário de CV.

Caro Manuel Seixas.
Quando te dirigires ao nosso e teu Blogue não precisas de tratar o Luís Graça por doutor, já que na nossa Tabanca não fazemos distinções de classes nem dos antigos postos militares. Aqui somos camaradas com um só posto: ex-combatente da Guiné.
Como verdadeiros camaradas tratamo-nos por tu, o que não implica falta de respeito.

Pena que não tenhas mandado mais pormenores acerca do vosso Encontro, tal como data de realização e uma ou outra fotografia para ilustrar o acontecimento.

Ficamos ao teu dispôr para o que precisares de nós e se for essa a tua vontade, gostaríamos de te ter como tertuliano do nosso Blogue. Basta que mandes uma foto do teu tempo de tropa e outra actual, tipo passe de preferência, em formato JPEG, contes um pouco da tua passagem pelo K3, onde fui imensas vezes já que estava em Mansabá.

No meu tempo completámos o alcatroamento da estrada Mansabá/K3, coisa que no teu tempo não havia. Deveria ser uma zona muito perigosa, já que por perto do Bironque havia carreiros muito mal frequentados pela gente do PAIGC que imperava ali por Madina Fula. Afinal tínhamos tão perto o mítico Morés.

Panorâmica do K3/Saliquinhedim

Foto: © Carlos Silva (2008). Direitos reservados
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Maio de 2009

Guiné 63/74 - P4437: O Nosso Livro de Visitas (65): L.J.F. Marcelino, ex-Cap Mil da CART 6250, Mampatá, 1972/74

Guiné 63/74 - P4694: Meu pai, meu velho, meu camarada (6): Ex-Cap Pára João Costa Cordeiro, CCP 123/ BCP 12 (Pedro M. P. Cordeiro / Manuel Rebocho)

Guiné > Região de Tombali > Corredor de Guileje > 26 de Março de 1973 > O Cap Pára João Cordeiro, comandante da CCP 123 / BCP 12, no meio do grupo do Marcelino da Mata. Foi ele que comandou a operação de resgate do Pilav Ten Miguel Pessoa, ejectado sob os céus de Guileje, depois do seu Fiat G-91 ter sido abatido por um Strela, na véspera... (*)

Foto: © Miguel Pessoa (2009). Direitos reservados.

1. Mensagem de Pedro Miguel Pereira Cordeiro, sob a forma de comentário ao P4216 (**):

Caros Senhores

Desde já agradeço a gentileza de todos os que fizeram questão que eu tomasse conhecimento deste poste.

Eu, a minha Mãe e a minha irmã mais velha Patrícia acompanhámos sempre o meu Pai nas 2 comissões que fez, uma em Angola (onde nascemos os dois) e a segunda na Guiné, na qual veio, tal como referido, a falecer.

Por altura do seu falecimento já faltava muito pouco tempo para terminar a sua comissão e, como a minha Mãe estava grávida da minha irmã mais nova e estava a passar muito mal, voltámos pouco tempo antes para a Metrópole.

O seu falecimento foi, e ainda hoje é, um golpe brutal para a nossa família que se fez, aumentou e encurtou sempre em teatro de guerra. Sou pois, também, um filho dessa guerra que vocês vivenciaram de forma tão intensa, cada um à sua maneira.

Frequentei o Colégio Militar onde fui colega de tantos outros filhos de ex-combatentes: Bação Lemos, Brito, Santiago, Veiga, Quintans dos Santos, Alvarenga, só para nomear alguns do meu curso Colegial. Da guerra a maior parte de nós ouvimos histórias em segunda e terceira mão, raras vezes aos nossos Pais (os que ainda os tinham), desbotadas e incertas.

Sempre pensei seguir as pisadas do meu Pai e tornar-me Pára-quedista de carreira. Quis o destino que. no último ano do Colégio, um incidente com um oficial me tivesse mostrado tudo o que a tropa pode ter de mau... resolvi não dar mais um desgosto à minha Mãe e ainda hoje não sei se fiz bem.

O certo é que hoje, homem feito (quase 40 anos), sei muito pouco de meu Pai e menos ainda do Militar que foi. Se os ex-combatentes falam pouco da Guerra, menos falam ainda aos filhos de camaradas falecidos...

Este foi o primeiro testemunho não solicitado e, como tal, imparcial a que tive acesso. Por tal estou profundamente agradecido, afinal é parte da minha história, da história do Avô das minhas filhas!

Alguns de vocês acharão estranho, mas a verdade é que passo pouco tempo sem pensar no meu Pai, a sua ausência é, para mim, muito presente, assim seja com todos os nossos filhos quando nos formos, de preferência que fiquem um pouco mais conscientes dos nossos predicados, defeitos e humanidade. Tal foi-me negado, qualquer acrescento é um tesouro inestimável!

Peço desculpa se me alonguei demais mas para mim a guerra foi anteontem e vai estar presente na minha vida até eu morrer.
Um grande abraço e muito obrigado.

Pedro Miguel Pereira Cordeiro,
filho do Cap Pára João Costa Cordeiro

2. Pronto depoimento, a meu pedido, sobre o Cap Pára João Cordeiro, cmdt da CCP 123 (Bíssalanca, BA 12, 1972/74), por parte do Manuel Rebocho, ex-sargento pára-quedista da CCP 123 (Maio de 1972/Julho de 1974), hoje Sargento-Mor Pára-quedista, na Reserva, e doutorado pela Universidade de Évora em Sociologia da Paz e dos Conflitos (tese de doutoramento: A formação das elites militares portuguesas entre 1900 e 1975) (***).


Meu caro e camarada Luis

Conheci, para o bem e para o mal, muito bem o Capitão Pára-quedista Cordeiro.

Também para o bem e para o mal, o que fui na Guiné deveu-se a ele: primeiro pelo ódio que tínhamos um pelo outro, depois pela cumplicidade a que a guerra nos obrigou, que nos tornou amigos. Fizemos as pazes, assumindo ambos que havíamos cometido um excesso em determinada altura.

Na minha tese de doutoramento dedico-lhe, também para o bem e para o mal, várias páginas.

O Capitão Cordeiro faleceu num salto em pára-quedas, porque o mesmo não abriu. Salto esse que foi efectuado sobre o nosso batalhão, [BCP 12,] em Bissalanca.

Escrever para um filho sobre o comportamento do pai não é, para mim, tarefa fácil.

Tenho recebido vários e-mails de camaradas que me pedem uma cópia da tese, alegando que a mesma lhe terá sido enviada por mail, mas lê-se com dificuldade. Talvez algum amigo do Capitão Cordeiro queira enviar ao Miguel uma das ditas cópias que parece andam a circular.

Mas uma coisa adianto ao Miguel: o ódio que eu tinha pelo seu pai e vice-versa, resultou mais de uma criancice do então 1.º Sargento Pára-Quedista Catarino (comigo há sempre nomes, nunca me peçam que os omita), que lhe foi fazer queixas minhas, de factos que o próprio Catarino tinha criado.

O Capitão Cordeiro foi pouco hábil e criticou-me severamente e eu respondi-lhe à letra, o resto é fácil de imaginar. Os melhores Sargentos colocaram-se do meu lado, alguns Oficiais seguiram-nos e o Comandante mandou calar toda a gente, e arrumou o assunto.

Nenhum tivera razão. Todos nos excedemos e todos perdemos.

Já na Guiné, e por sugestão do Capitão Cordeiro, perante todos os graduados da CCP 123, aceitámos dividir as responsabilidades do que havia acontecido. Para citar as palavras do Capitão Cordeiro, "dividimos a bicicleta ao meio". Pelo que, há 38 anos que eu, ao falar sobre o assunto, assumo que tive 50% de responsabilidades no lamantável incidente, cuja verdadeira responsabilidade foi dum terceiro.

Um abraço

Manuel Rebocho

3. Comentário de L.G.:

Meu caro Pedro: Só temos, para já, dois pequenos comentários sobre o seu pai, enquanto militar. Talvez se arranje mais, no futuro, incluindo postes e fotos. (Vieram de dois antigos camaradas da FAP, o então Pilav Ten Pessoa, o primeiro a ser abatido por um Strela; e o Manuel Rebocho, que era então, em 1973, sargento pára-quedista na subunidade comandada pelo seu pai.).

É o nosso testemunho, solidário... Espero que o ajude a também reorganizar as suas memórias de infância e adolescência, você que estava lá, na Guiné, nesse fatídico dia em que o pára-quedas do seu pai não se abriu... (****).

___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 19 de Março de 2009 Guiné 63/74 - P4051: FAP (18): Kurika da Mata (Miguel Pessoa, ex-Ten Pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74)

Vd. também poste de 14 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4184: FAP (22): Entrega do meu pára-quedas ao Museu dos Pára-quedistas, na Base Escola de Tancos (Miguel Pessoa)

Caro João [Seabra]:

(...) Quanto ao Cap Cordeiro, também me incluo na lista dos que têm por ele grande consideração. Não me posso esquecer que foi o grupo de pára-quedistas que ele comandava quem primeiro chegou ao pé de mim, conjuntamente com o grupo do Marcelino, quando me recuperaram do corredor do Guileje.

"Podes ver uma foto do Cap Cordeiro no post 4051, durante a acção em que fui recuperado. Senti muito a sua morte num estúpido (mas sempre possível) acidente num salto de treino, na Guiné. Um abraço. Miguel Pessoa" (...).



(**) Vd. poste de 19 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4216: Comentários que merecem ser postes (4): Homenagem à memória do Capitão Pára-quedista João Costa Cordeiro (João Seabra)

(***) Vd. postes anteriores desta série:

20 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4059: Meu pai, meu velho, meu camarada (1): Memórias de Cabo Verde, São Vicente, Mindelo, 1941/43 (Luís Graça)

21 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4060: Meu pai, meu velho, meu camarada (2): Militar de carreira, herói da 1ª Grande Guerra, saiu do RAP 2 como eu (David Guimarães)

21 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4062: Meu pai, meu velho, meu camarada (3): No Dia Mundial da Poesia (António Graça de Abreu)

24 de Maio de 2009> Guiné 63/74 - P4407: Meu pai, meu velho, meu camarada (4): Não é um elogio fúnebre que te quero dedicar... (António G. Matos)

26 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4420: Meu pai, meu velho, meu camarada (5): A minha família e o RAP2 (Vila Nova de Gaia) (David Guimarães)

14 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4184: FAP (22): Entrega do meu pára-quedas ao Museu dos Pára-quedistas, na Base Escola de Tancos (Miguel Pessoa)

Caro João:

(...) Quanto ao Cap Cordeiro, também me incluo na lista dos que têm por ele grande consideração. Não me posso esquecer que foi o grupo de pára-quedistas que ele comandava quem primeiro chegou ao pé de mim, conjuntamente com o grupo do Marcelino, quando me recuperaram do corredor do Guileje.

"Podes ver uma foto do Cap Cordeiro no post 4051, durante a acção em que fui recuperado. Senti muito a sua morte num estúpido (mas sempre possível) acidente num salto de treino, na Guiné. Um abraço. Miguel Pessoa" (...).



(****) Vd. postes do Manuel Rebocho:

14 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P877: Nós, os que não fazemos parte da história oficial desta guerra (Manuel Rebocho)"

(...) tomei contacto com o vosso/nosso blogue, através do então Furriel Miliciano José Casimiro Carvalho, da CCAV 8350 (a que abandonou Guileje, em 22 de Maio de 1973), o grande herói de Gadamael Porto, que, não obstante isso, também não faz parte da história oficial da Guerra da Guiné"(...).

28 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P919: Vamos trasladar os restos mortais dos nossos camaradas, enterrados em Guidage, em Maio de 1973 (Manuel Rebocho)

21 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1099: O cemitério militar de Guidaje (Manuel Rebocho, paraquedista)

4 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1150: Carta a Pedro Lauret: A actuação do NRP Orion na evacuação das NT e da população de Guileje, em 1973 (Manuel Rebocho)

5 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1151: Resposta ao Manuel Rebocho: O papel do Orion na batalha de Guileje/Gadamael (Pedro Lauret)

17 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1187: Guidaje: soldado paraquedista Lourenço... deixado para trás (Manuel Rebocho).

22 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1453: Ninguém fica para trás: uma nobre missão do nosso camarada ex-paraquedista Manuel Rebocho

Guiné 63/74 - P4693: Fichas de Unidades (4): História da CCAÇ 594 (José Martins)

1. Esta ficha de unidade resultou de um pedido do nosso Camarada Júlio Pinto, que foi 2º Sarg Mil da CART 769, (Angola, 1967/69), que pertence à nossa Tabanca Grande, para satisfazer uma solicitação de um seu Amigo e Camarada-de-armas da Guiné, através do nosso Blogue.

2. Registamos, mais uma vez, com elevado apreço o nosso melhor agradecimento, pela preciosa ajuda prestada pelo já habitual "colaborador permanente", o José Marcelino Martins... Obrigado!

No dia 13JUL2009, O Júlio Pinto dirigiu um e-mail ao José Martins, com o seguinte teor:

Amigo José Martins, sou um ex-Combatente de Angola e faço parte da Tabanca. Sou Júlio Pinto e tenho reparado que o amigo, tem sido um investigador sobre as Companhias e Batalhões, que andaram pela Guiné. Ora eu tenho um amigo de nome Artur da Costa Rodrigues, que foi 1º cabo da CCAÇ 594 e que foi mobilizado no RI 15, de Abrantes. Tinha como comandante o Cap de Inf Mário Jaime Calderon Rocha.O que eu pedia ao amigo era, se possível, obter a composição da dita Companhia, para esse meu colega tentar localizar alguém, que lhe possa avivar a memória daqueles tempos.Esta Companhia embarcou para a Guiné em 27-11-1963 e regressou a 28-10-65.
Se for possível muito bem. Mas se não for agradeço na mesma.
Um abraço,
Júlio Pinto

O José Martins respondeu assim:

Caro Júlio Pinto,A colaboração que posso dar neste caso, resume-se a enviar alguns elementos sobre a subunidade e o resumo da actividade operacional. Eventualmente poderei referir qual o processo da unidade que se encontra, se existir, no Arquivo Histórico Militar, em Lisboa, pois será nesse processo que existirão os nomes de todos os elementos sobre a CCAÇ 594.
Um abraço,
José Martins

O Júlio Pinto retorquiu:

Qualquer coisa que consigas, para no meu amigo, será muito bom.
Fico a aguardar.
Um abraço,
Júlio Pinto

O José Martins em 14JUL2009, já dispunha de alguma informação que passou a enviar:

Caro Júlio Pinto,
Com um abraço para ti e para o camarada Artur Rodrigues, envio o que posso disponibilizar sobre a CCAÇ 594. Infelizmente não existem elementos disponíveis no Arquivo Histórico Militar, em Lisboa, para consulta mais pormenorizada.
José Martins

Companhia de Caçadores nº 594

A Companhia de Caçadores nº 594 foi mobilizada no Regimento de Infantaria nº 15, em Tomar, tendo embarcado para a Guiné em 27 de Novembro de 1963, desembarcando em 03 de Dezembro de 1963, sob o comando do Capitão de Infantaria Mário Jaime Calderon Cerqueira Rocha.

Permaneceu em Bissau até 20 de Dezembro, data a partir da qual e até 27 desse mês, por fracções, seguiu para Mansabá, assumindo a responsabilidade do subsector em 23 de Dezembro de 1963, substituindo a Companhia de nº 461. Ficou integrada no dispositivo do Batalhão de Caçadores nº 512 e, posteriormente, do Batalhão da Artilharia nº 645.

Realizou operações, entre outras, nas regiões de Uália e Manboncó. No período de Janeiro a Junho de 1964, destacou um pelotão para reforço da guarnição de Farim e, de Junho a Setembro desse ano, reforçou a guarnição de Bigene, recolhendo seguidamente à sua subunidade.

Neste período sofre um ataque na estrada de Farim – Mansabá, sendo ferido em combate ANTÓNIO BARATA FARINHA, soldado nº 2486/63, solteiro, filho de Miguel Farinha e Fe4lismina Barata Farinha, natural do Lugar de Relvas, freguesia de Ermida e concelho da Sertã, de que resulta a sua morte em 4 de Março de 1964, tendo sido inumado na campa nº 727 do Cemitério de Bissau.

Em 12 de Setembro de 1964, foi rendida no subsector de Mansabá pela Companhia de Artilharia nº 642, sendo deslocada para Bissau, integrada no dispositivo do Batalhão de Caçadores nº 600, tendo por missão a segurança e protecção das instalações e populações da área.

Em 9 de Janeiro de 1965 foi substituída pela Companhia de Caçadores nº 557 e deslocada para Buba, para intervenção e reserva do Batalhão de Caçadores nº 513 e, posteriormente, dos Batalhão de Caçadores nº 600 e, mais tarde, do Batalhão de Caçadores nº 1861, tendo tomado parte em operações nas áreas de Bantael Silá e Chinchim Dárin entre outras. No período de 29 de Abril a 3 de Julho de 1965, destaca um pelotão para Nhala.

Temporariamente e em 3 de Julho de 1965, foi deslocada para Aldeia Formosa, para actuar na região do Forreá, onde se manteve até 17 de Agosto de 1965. Sobrepondo com esta diligência em Aldeia Formosa, destacou para Guileje um pelotão, no período de 04 de Julho a 03 de Agosto de 1965, para reforço da guarnição local.


Novamente em Buba, foi rendida, por troca, a 15 de Outubro de 1965 pela Companhia de Caçadores 1438, recolhendo a Bissau, integrando o dispositivo do Batalhão de Caçadores nº 1857, com a missão de segurança e protecção das instalações e populações da área, até ser rendida pela Companhia de Caçadores nº 1488.

Embarcou de regresso à metrópole em 26 de Outubro de 1965.

Foi condecorado com a medalha da Cruz de Guerra de 1ª Classe, o 1º Cabo de Infantaria MANUEL VALENTE DA SILVA, conforme Ordem do Exército nº 15, série III de 1966.

Não tem história da Unidade no Arquivo Histórico Militar.

(José Martins)

Texto: © José Marcelino Martins (2009). Direitos reservados
____________
Notas de M.R.:

(*) Numa pesquisa, pelo Google, sobre a CCAÇ 594, descobri no site “Dos Combatentes da Guerra do Ultramar, Angola – Guiné – Moçambique, do António Pires”, uma mensagem com data de 04/JUN2009, contendo um apelo do Manuel Jóia da Fonseca Mendes, que foi do 1º Pelotão desta Companhia, e cujo telemóvel é 919 926 499.

(**) Vd. outros postes relacionados com a CCAÇ 594 em:


(***) Vd. também o anterior poste desta série em:

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4692: História da CCAÇ 2679 (21): O meu regresso à Guiné, após as férias na Metrópole (José M. Matos Dinis)

1. Mensagem de José M. Matos Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, com data de 10 de Julho de 2009:

Carlos
Aqui vai mais um pedaço de estórias, com a particularidade de se referirem à transferência da Companhia para Bajocunda.
Um abraço tabancal.
José Dinis


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679
O MEU REGRESSO À GUINÉ APÓS AS FÉRIAS NA METRÓPOLE


A viagem de regresso à Guiné aconteceu com normalidade. O avião aterrou em Bissau por entre as cores, castanha da terra de barro quente, e o verde da profusa vegetação que a cobria. Dirigi-me ao Grande Hotel onde novamente me instalei. Queria folgar até chegar à guerra.

No dia seguinte encontrei dois camaradas do Leste, que me referiram haver uma espécie de perseguição à malta do mato para preenchimento de serviços na cidade. Ora, se o interesse em Bissau já era relativo, sentirmo-nos caçados para entrar de serviço era uma forma de desgraça a evitar sobre maneira. Nestes considerandos alguém alvitrou abalarmos para Bafatá. Por mim tudo bem, procuraria alojamento no Esquadrão de Cavalaria e daí chegaria facilmente a Piche. Depois abordámos a questão da ida. Via aérea, segundo eles, seria difícil ou impossível.

Pelo rio até ao Xime também não se afigurava boa solução. Decidimo-nos pelo aluguer de uma avioneta de quatro lugares, piloto incluído, por menos de um conto a cada, piloto excluído, naturalmente.

Entrámos no aparelho e sentei-me na frente, ao lado do piloto. Atrás, os bacanos que me convenceram. Era com curiosidade que sobrevoava o território, com a preponderante verde da vegetação em todos os lugares não alagados. Palmares, floresta e bolanha desfilavam a meus olhos. Os outros passageiros começaram a fumar. Nada de especial. Naquele tempo não constituía preocupação. Falávamos ocasionalmente. O piloto fazia movimentos suaves na manutenção da aeronave segundo a rota. Até que um dos fumadores quis atirar fora a beata, e sem atinar com a melhor maneira de se comportar, abriu a porta para aquele efeito. Essa atitude provocou algum desequilíbrio do avião, e o piloto começou a barafustar. A porta não fechava. Inclinando-se sobre mim, o piloto tentava fechá-la. Sem sucesso. Os três passageiros calados.

Provavelmente algum rezava. Perante o insucesso, o piloto picou o aparelho, novamente inclinado sobre mim, tentava agarrar a forta e fechá-la. Eu via as palmeiras a subirem na minha direcção, e com toda a pressa, pelo que passei a dar-lhe cotoveladas para endireitar a avioneta, aflito, imaginando um desfecho desgraçado. Tarde, muito tarde, à beira de um ataque de nervos, sem saber como proceder sobre o equipamento de maneira a fazer subir o avião, mas a acotovelar o piloto, este fez a manobra necessária para inverter o sentido, de descendente na vertical, para ascendente, coisa que me deixou muito aliviado. No estreito banco de trás, os fumadores permaneciam calados, mas imagino que sentiam o mesmo tefe-tefe que eu.

Lá no alto permanecia o problema da porta aberta e o avião instável.
Esta situação deve ter induzido o piloto à repetição da manobra, pelo que seguiu-se uma descida a pique, enquanto nos ofendia, até que, já perto do solo, logrou fechar a porta malvada, e subiu nos ares com o ar da pessoa mais mal tratada deste mundo.

Sãos e salvos aterrámos em Bafatá. O pessoal mostrava-se consternado. O piloto, então, tomou a iniciativa: pediu a massa e baldou-se com maus modos. Eu pirei-me para o Esquadrão, e a infeliz sociedade desfez-se ali, sob o sol tórrido do Leste.

Em questões de aeronáutica, como em muitas outras, sou um zero absoluto, mas fiquei desconfiado que ele teatralizou, quis acagaçar-nos. E essa foi a minha grande experiência em máquina voadora.

Na cidade fui informado sobre a transferência da Companhia de Piche para Bajocunda, e iniciei o caminho logo na primeira oportunidade.

Afinal não parodiei no regresso à Guiné. No aquartelamento era o caos.

Três Companhias, um Pelotão de Caçadores Nativos - o 65, outro de Artilharia, Este pessoal todo nas instalações antes ocupadas por uma Companhia e o Pelotão de artilheiros. Mas guerra é guerra. No refeitório como na messe havia turnos. O nosso pessoal estava a dormir em tendas de dois panos, e porque era época de chuvas, por vezes era o lagoaçal mal saíam dos colchões estendidos no chão. A mim valeu a experiência anterior e voltei a dormir na enfermaria, em género clandestino. A minha bagagem controlada pelo Zé Tito estava em condições.

Mas deram-me outras notícias desagradáveis.

Quando a 2679 chegou a Piche, os velhinhos aliviaram parte da bagagem do nosso pessoal, de tapa-chamas a artigos pessoais. Agora dera-se o inverso. A Companhia partia e os nossos quiseram ressarcir-se tendo decidido aliviar a bagagem dos piras para reposição dos stocks com que tinham arribado a África. Tão mal o fizeram que houve queixas sobre o gamanço, ainda o pessoal permanecia na localidade.

Erro de previsão, seguramente. Em resultado disso, houve revista às malas dos transmutantes. Aconteceu a chatice com um patife que me envergonha por ser meu homónimo e prestar-se a confusões. Ao abrir a mala, o nabo, tinha o material ainda alheio mesmo à vista, sobre as suas coisas.

Levou uma porrada, claro, provavelmente agravada por ter sido o único a deixar-se apanhar. Badalou-se sobre o assunto, e em Bajocunda já éramos temidos como marginais perigosos.

A segunda notícia desagradável resultou de um acto de guerra desencadeado pelo IN, que foi uma jornada de sorte para as NT.

Um belo dia, o Caco Baldé deslocou-se a Pirada que, entretanto, era elevada à condição de sede do COT-1 com um major a comandar. Talvez por inspiração especial que o ar fronteiriço deve ter provocado, o general mandou tapar as valas de defesa e protecção periférica, com o argumento psicolista de que era necessário desenvolver relações de boa vizinhança e paz.

Em Pirada também havia fartura de tropa. Para além da Companhia local, estavam, pelo menos, dois pelotões de páras, infantes açorianos e o pelotão de artilharia.
Uma noite, ainda cedo, o pessoal distraía-se com a projecção de um filme, quando foi dado o alarme, os turras tinham entrado em Pirada. Felizmente, aquela parte do IN não primou pela oportunidade, nem pela inteligência organizativa para o assalto, nem pela eficácia. Alguns ficaram pelas casas comerciais a consubstanciar roubos de mercadorias diversas, e, incrivelmente, não aconteceu quase nada. Parece até que se perderam uns dos outros movidos pela ganância oportunista. Mas constou-me que um pára feito prisioneiro, caminhava ameaçado pela arma que o turra lhe apontava, até que decidiu inverter a situação, voltou-se repentinamente, tratou mal o turra, e pôs-se ao fresco. Não cheguei a saber se o ComChefe o terá punido por traição à política estabelecida para criar raízes de paz.

Esta companhia de páras manteve-se na região por algum tempo, e com eles estabeleci simpáticas relações. Até me ensinaram a fechar as portas para dormir no mato. O pessoal instalava-se ao longo de um trilho e, a distância prudente, armadilhavam-se os extremos do dormitório. Quem viesse havia de dar sinal.

Recuando ao mês de Julho, a 2679 recebeu o novo capitão, logo epitetado de Trapinhos, em resultado da reunião de dois factores: o ar alucinado e um dos apelidos. Em verdade, mais parecia um desafortunado e amarfanhado centurião das legiões romanas, conforme os bonecos glosados nas aventuras do Asterix, olhar encovado, físico frágil e mal sustentado em ossatura delgada e saliente. Dificilmente parecia oriundo da Academia Militar. Conheci-o no meu regresso de férias em Bajocunda. Tratou-se de uma outra notícia desagradável na medida em que já se lhe referiam em termos depreciativos.

O "Trapinhos"

"A companhia começa então a consciencializar-se da sua difícil missão no sub-sector, não só devido à grande extensão dos seus limites iniciais (territoriais?), como também por ter de dividir as suas forças na protecção às duas auto-defesas da área (Tabassi e Amedalai) e do Destacamento de Copá" - in História da Unidade.

Nestas condições era imperioso um comandante com pulso, determinado e inteligente, face à exposição perante o IN, as populações, as desagradáveis acções de operacionalidade em condições que podiam sugerir favorecimentos, a necessária logística, enfim, com capacidade para harmonizar em condições de dificuldade. Não foi o que veio a acontecer.

Quanto ao Foxtrot, encontrei a malta bem disposta, e confiante demais, talvez por já conhecerem a geografia da zona e quererem mostrar à vontade de veteranos ao novo alferes.

Nota: psicolista, deriva de psicola s.f. termo que resulta da fusão de psicologia e Spinola, que significa uma acção psicológica de sedução ao IN ou às populações locais. Fora disto não tem significado e, naquele âmbito, muitas vezes não tinha sentido.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série, de 26 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4588: História da CCAÇ 2679 (20): Férias na Metrópole em Junho de 1970 (José Manuel M. Dinis)

Guiné 63/74 - P4691: Convívios (154): 5º Encontro / Almoço / Convívio da CCAÇ 1426, Geba, Camamudo, Cantacunda e Banjara, 1965/67 (Fernando Chapouto)


1. Do nosso Camarada Fernando Chapouto, ex-Fur Mil da CCAÇ 1426 (1965/67), Geba, Camamudo, Banjara e Cantacunda, recebemos a seguinte mensagem dando-nos conta da 5ª confraternização anual da sua Companhia:


Realizou-se no passado dia 11 de Julho o 5º. Encontro da minha CCAÇ 1426, que andou por Geba, Camamudo, Cantacunda e Banjara, entre os anos de 1965/67.

O convívio teve lugar na Amieira, perto de Portel, no coração do Alentejo.

Infelizmente a grande maioria dos ex-Combatentes da minha companhia não são muito dados a convívios, por diversos motivos, de que se adivinham alguns.

Uma dessas causas, que é mais comum à maioria dos portugueses, em 2009, e a que ninguém pode ficar indiferente é, sem dúvida nenhuma, a malfadada e nefasta crise que o país atravessa, com todas as vicissitudes e dificuldades que lhe são inerentes, e que muito tem martirizado inúmeras famílias portuguesas.

Assim, fazendo jus ao velho ditado, de inspiração camoniana: “Que os muitos por ser poucos nam temamos”, apenas se apresentaram à chamada final 29 heróis da Companhia, prontos para tudo.

Não desarmamos, nem nos rendemos. Não somos desses. Poucos sim, mas com grandes, lindas e maravilhosas famílias, acreditam?

Foi espantoso verificarmos que 29 guerreiros, conseguiram reunir com os seus familiares um total de 111 (cento e onze) adultos e ainda algumas crianças.

Se duvidam da minha narração anterior, apresento-vos a seguir 4 indesmentíveis provas visuais:

Os guerreiros que se apresentaram à chamada - o 3º em pé da esquerda para a direita é o Fur Mil Vaqueiro, o penúltimo sou eu e o úlitimo é o Alf Albardeiro. De cócoras, o 1º homem do lado esquerdo é o Alf Almeida.

Os familiares dos guerreiros, em grande número, que muito ajudaram à festa e que muita curiosidade mostraram também em conhecerem as nossas histórias.

O Fur Mil Vaqueiro - à esquerda - e o Alf Mil Almeida que eram do mesmo pelotão

Os três organizadores do encontro - à esquerda estou eu, no centro está o 1º Cabo Delgado e o 1º Cabo Mira - do lado direito. Os risos deviam-se ao símbolo do restaurante “O Aficionado”, sob o qual nenhum de nós queria ficar na foto.

Um forte abraço do,
Fernando Chapouto
Fur Mil CCAÇ 1426

Fotos: © Fernando Chapouto (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em: