terça-feira, 18 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4831: (Ex)citações (40): Resposta a um comentário de Mário Fitas (António J. Pereira da Costa)

1. Resposta de A.J. Pereira da Costa, Coronel, ex-comandante da CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74, ao comentário feito por Mário Fitas ao seu poste P4813 (*):


Olá Camarada

Se o Homem, com a barriga vazia não pensa – dizia o meu professor de Filosofia – o bloguista, ainda por cima atabancado e em férias, não lê e também não escreve. Daí a escassez de comentários às minhas bocas. Portanto, obrigado pelas tuas.

Ora vamos passar à análise e a reflectir, com pouca força, porque com esforço já custa um bocado!

Como a História recente (e passada) tem provado, a conquista de uma Bandeira marca o começo da individualização de um povo organizado em país e a sua diferença relativamente aos que lhe estão próximos. Lembremo-nos dos Estados Unidos da América, das independências do Séc. XIX, no continente americano e não só, e, mais recentemente, das recém-constituídas repúblicas europeias. Isto para não falar das independências envergonhadas – as autonomias… Para trás ficam situações como a da Escócia, do País de Gales, da(s) Irlanda(s), e da Córsega. É melhor não continuarmos senão a confusão é enorme…

Em África também foi assim. Tudo começa no campo da Sociologia – uma parte (maior ou menor) da população de uma dada área revolta-se contra as autoridades e tem êxito graças às condições do momento: estratégicas, políticas, culturais e ideológicas – estas que normalmente já vêm de trás – económicas etc. e mais etc. Claro que as sublevações, quando não há condições favoráveis ou não ocorrem (Cabo Verde) ou são cilindradas (S. Tomé). Cada caso é um caso, mas há linhas gerais e é bom que frise que raramente uma independência resulta de uma guerra, país contra país.

No nosso tempo sabemos como foi e a tua expressão “Os anos 60, a Africanidade e a Guerra Fria” diz tudo. Este caldo político-ideológico que conhecemos, por termos vivido nele e sob ele, já está estudado e hoje só temos que aceitar que foi assim. Claro que não há aqui ficção nenhuma. A Guiné-Conakri, o Senegal, a OUA, a Suécia e os seus milhões e a necessidade de se afirmar ao respectivo povo como uma grandessíssima defensora dos direitos humanos e Bloco de Leste, por si ou por interposta pessoa, e até Cuba (também para resolver problemas internos). Podia ter sido de outra maneira? É pouco provável. A conjuntura era demasiado pressionante e a nossa capacidade para nos opormos à sua acção era baixa. Estávamos como os marinheiros, quando uma tempestade forte vem. A melhor atitude teria sido: calma, confiança nas capacidades e procedimentos e aceitação das características do fenómeno, navegando à vista. Não é bem o caso de “se não os podes vencer, junta-te a eles”, mas antes e a raciocinar de um modo tauromáquico (peço desculpa): se para pegar um touro de caras são necessários oito e nós não somos tantos, é melhor irmos de cernelha, porque são só necessários dois e não há choques de frente… que são sempre de evitar.

As imagens podem parecer pobres, mas sugerem bem o que penso…

As análises que faço terminam sempre na independência. Tudo o que sucedeu depois é História do País, quer se trate da luta pelo Poder, conflitos étnicos interiores ou interterritoriais para acesso e desfrute das boas áreas, ou outras questões que decorrem da vida dos países independentes, dentro dos seus espaços geoestratégicos. Daí que a sucessão dos presidentes não seja, para mim, um ponto de análise, aqui neste espaço, que suponho mais virado para a nossa (de nós) História. Claro que podemos analisar o que sucedeu depois ou mesmo o que está agora a suceder, mas até corremos o risco de sermos acusados de interferência nos assuntos internos do País…

Não falemos, por isso, do golpe "Nino" e contra o Nino, do golpe do Luís Cabral e de todos os outros ocorridos.

Quanto ao número de beligerantes, continuo a afirmar que só havia dois beligerantes. Claro que só no terreno é que era assim. Havia mais. Quem não se lembra de a nossa acção ser apresentada como uma cruzada anticomunista, sendo nós a primeira linha da civilização cristã e ocidental? O que era isso é que ninguém explicava. Até nós próprios, sem o sabermos, éramos beligerantes a combater noutra(s) frente(s) e sem armas. Quem mais poderia representar a Guiné senão o PAIGC? Considero imoral que, depois de tanto sacrifício, ainda se fosse dar uma oportunidade de se manifestar a outras forças. Não vejo bem quais, e estou seguro de que só poderiam ser arrivistas. Onde estariam elas durante a luta? Mas isto é a minha opinião que vale o que vale.

Quanto à variedade de nacionalidades, fui confrontado com ela, logo em 1968, quando encontrei um elemento da 3.ª de Comandos que era gambiano e para quem a guerra era uma espécie de trabalho nas obras públicas (sic). Quando a guerra acabasse ia para casa e arranjava outro emprego. É assim em todas as guerras e em todo o lado, vida em Paz incluída. Quantos de nós já encontrámos um português isolado, perfeitamente inserido na vivência de um lugar do mundo que ninguém esperou que pudesse existir? Essa multinacionalidade não é, do meu ponto de vista algo, que valha a pena considerar.

No que respeita aos cabo-verdianos, chamava a atenção para os esforços que fizemos para os separar e isolar dos guineenses, durante a guerra, porque sabíamos que ali existia uma fissura. Recentemente, nos CD do Joaquim Furtado (2.ª série), surgiu um guineense antigo combatente, que revelou que, até ao começo da guerra, os guineenses só podiam ter a 4.ª classe, por não existir liceu na Guiné, enquanto os cabo-verdianos, nas suas ilhas, podiam facilmente chegar ao 5.º ano e, como se viu, e continuar… Por isso, a malha administrativa da Guiné apoiava-se em funcionários cabo-verdianos, controlando largas populações de guineenses com o apoio de cipaios recrutados entre gente da terra. É um dos resultados da acção civilizadora dos portugueses. Se não estou em erro, o Liceu Honório Barreto foi inaugurado no tempo do general Schulz, o que pode dar uma ideia da dificuldade de acesso ao conhecimento, por parte dos naturais da Guiné. Voltando à faceta sociológica do problema relembro a independência de Cabo Verde feita sem um tiro e por simples cisão do Partido… Podem dizer que foi obtida à boleia dos factos. Não sou dessa opinião e acho que foi merecida, quer na luta (onde ela era possível) quer na acção política oportuna e eficaz.

Os que levaram o tiro na nuca e aqueles a quem as mãos foram amputadas, tinham, como é lógico, direito a essa Bandeira. Se eram vencidos de uma Guerra Civil ou colaboracionistas (o que distinguirá um colaboracionista dedicado de uma simples lavadeira?) eram guineenses, de facto, e tinham direito à respectiva bandeira. Se não eram deveriam ter sido enviados para a pátria que alguma vez disseram ser sua. Sabemos que estiveram para vir. Pelo menos os mais envolvidos com a acção das FA portuguesas (ou seriam nacionais?). Mas se não vieram logo, deveriam ter sido enviados mais tarde, como soldados esquecidos no cais… Contudo, a História é escrita e feita pelos vencedores: o PAIGC, neste caso. Ao longo da minha experiência fui detectando alguns que se sentiam desanimados com a marcha dos acontecimentos. Outros interrogar-se-iam, em segredo, como é que aquilo iria acabar e talvez começassem a sentir-se num beco sem saída. As coisas precipitaram-se como talvez não fosse difícil de prever, se bem atentássemos no desenrolar do dia-a-dia. As saídas encontradas foram as habituais que já tinham sido encontradas noutras situações: França, Bélgica, Extremo-Oriente, Vietname, etc.

A dupla nacionalidade é um fenómeno meramente administrativo e que, normalmente, não tem que ver com amores pátrios e até tem sempre o seu quê fraude. É uma espécie de deixa ver o que é que isto dá e, conforme for a música, assim eu danço. Não faltam exemplos, mesmo em Portugal, de utilização (bastante) fraudulenta da dupla nacionalidade… Sendo assim, porque será que qualquer de nós não pode optar por uma dupla nacionalidade qualquer? Será que posso ser Luso-Caimonês? Dava-me jeito por causa dos offshores… Sempre se ganha algum… Ou Luso-Papuano? Era bom por causa das praias.

Caro camarada

Lerei "Ficheiros Secretos da Descolonização de Angola", embora não me sinta à vontade para apreciar factos numa região que não conheço e cuja situação, no âmbito da tal conjuntura de que falámos acima, é complexíssima. O perigosíssimo partido comunista, pró-soviético, anti-democrático e anti-ocidental, continua paulatinamente no poder, agora com o apoio de todos os países democráticos. Talvez porque fazê-lo cair seria pior… A guerra civil com o Savimbi demonstrou-o para quem tivesse dúvidas… A Paz, mesmo imperfeita, não é opcional é imperativa.

O número de retornados, no que respeita à Guiné, é mínimo. Não consigo propor uma melhor solução para o problema dos retornados do que a que foi posta em prática, embora, a partir de certo momento da evolução da guerra, fosse de prever um desenlace e o consequente ruir das suas esperanças. A guerra não podia durar sempre e o fim dela iria ser dramático. Havia a possibilidade de ligação à Metrópole. Na maioria dos países esta solução não pôde e não pode ser posta em prática, em situações de grave crise social, como era o caso. Ao fim de pouco tempo, estavam integrados na sociedade e hoje nem damos por eles. Dentro de meia geração não existem. Com todos os sobressaltos e invalidada a solução de ficarem no país que acabava de nascer, creio que foi a melhor solução. Contudo, a existência de retornados levanta a questão da multirracialidade do Portugal de então. Existia, de facto ou estávamos perante um equívoco promovido pela Administração?

Só o caso dos abandonados, que acima falei, me dá que pensar e, mesmo assim, só no caso que conheço. Sei que esteve preparada a sua saída e tenho conhecimento que quase todos desistiram. Porquê? Não sei.

Quanto ao Cumbijã… procurei no mapa da Guiné e lá encontrei o tal regato saltitantemente alegre que tomaste como medida do teu abraço. É comprido, de facto. Mas que é isso comparado com magnificência do Cacine? Aquilo é que é um RIO!... É mais largo que o Tejo em frente da Torre de Belém. Aquilo é que se pode tomar como medida para uma abraço. Ora toma lá. E como é grande, podes distribui-lo pelos teus…

António Costa
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 11 de Agosto de 2009 >
Guiné 63/74 - P4813: (Ex)citações (37): Resposta a J. Mexia Alves (A.J. Pereira da Costa)

Comentário de Mário Fitas a que se refere o Coronel Pereira da Costa:

Bom artigo para análise!
Que fazer?
Reflectir!
Mas para não alongar uns pequenos pontos:

A conquista de uma Bandeira!Os anos 60, a Africanidade e a Guerra Fria.
Não era única a do PAIGC! Veja-se o que aconteceu após o golpe "Nino".
Só havia dois beligerantes!Portugal e a Guiné (representada pelo PAIGC)Oh sr. Coronel, vamos lá por os pontos nos "iis":Portugal incluia Cabo-Verdianos, Guineenses e até Sírios que existiram na mílicia do João Bacar Jaló oficial do Exército Português galardoado com a Torre Espada.
Voltamos ao principio, os que levaram o tiro na nuca e aos que as mãos foram amputadas, não tinham direito a essa Bandeira?Guiné (representada pelo PAIGC) por pouco tempo como vimos. Mas... e qué de os outros?É ficção? Guiné Conakri, Senegal, OUA, Suécia e os seus milhões e já me esquecia Cuba! Mas esses não estiveram lá.

Caro camarada é repetido mas volto ao assunto:É imperioso ler "Ficheiros Secretos da Descolonização de Angola" de Leonor Figueiredo.Depois da leitura só peço uma infíma comparação com os "Retornados e os Abandonados" dá que pensar lá isso dá.

Só uma questão quantos Portugueses há com dulpa nacionalidade e Guineenses com dupla nacionalidade incluindo a Portuguesa.

São os que são presenteados com duas bandeiras!?
Como sempre o velho abraço do tamanho do Cumbijã,
Mário Fitas
Qua Ago 12, 11:27:00 PM


Vd. último poste da série de 15 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4824: (Ex)citações (39): "Ainda estás pouco lixado, pá?"

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4830: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (9): “Um Furriel desenrascado”


1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/65), enviou-nos a sua 9ª estória, que faz parte do seu livro "Golpes de Mao's - Memórias de Guerra", que mais uma vez muito agradecemos, com data de 06 de Agosto de 2009, a que deu o seguinte título:


Um Furriel desenrascado

É de todos os tempos, de todas as Unidades Militares, e até de todos os romances à base de conflitos bélicos ou passados em meios militares, uma figura, uma personagem típica, que em todas as circunstâncias, por mais difíceis que elas sejam, consegue «desenrascar-se» e arranjar para si e para os seus «compinchas», o melhor lugar, a melhor parte de um petisco ou a melhor parte de «alguma coisa» que um mortal comum nunca consegue ter antes deles.

Ora, como não podia deixar de ser, a «675» também tem entre os seus elementos esta personagem, que pediria meças, por exemplo, àquele cabo Kowalski, que a pena conhecida do célebre Hans Hellmut Kirst criou e deu vida no «08/15 – A Caserna», embora este seja apenas «desenrascado» e não brigão como o cabo alemão, frequentemente metido em complicações por isso mesmo.

É transmontano, «duro», infatigável, leal e amigo do seu amigo, como é apanágio das gentes daquelas regiões altas e pedregosas do nosso Portugal, um bom combatente, um excelente chefe de secção, estimado pelos seus homens, pelos seus camaradas e pelos seus superiores, caçador, cozinheiro de bons petiscos, excelente «garfo» que todos os dias consegue ter no seu prato, mesmo quando na Companhia há só feijão ou conservas, por falta de géneros, uma perdiz, um pato ou uma lebre, e uma cerveja ou um copo de vinho gelado quando todos os outros o não conseguiram.


Chama-se Luís Correia da Cruz Moreira, este Furriel «desenrascado» que como não podia deixar de ser tinha o melhor lugar na camarata onde dorme com os seus camaradas, uma secretária por sua conta para escrever à família (enquanto os outros o fazem às vezes apenas em cima de um caixote...) e outras comodidades que o seu «engenho e arte» conseguiram.

São inúmeras as histórias dos seus «desenrascanços» mas vamos só contar uma que, por decorrer em ambiente difícil, revela melhor o seu espírito e as «qualidades» que temos vindo a referir.

No meio do mato, no decorrer de uma operação que fez estar instalado o seu grupo de combate durante uma semana frente a Farim, na margem do Rio Cacheu que dava acesso ao “K 3”, para manter uma «testa de ponte», ele conseguiu «desenrascar» das outras «forças» que cooperavam na acção, os mantimentos necessários para melhorar a sua alimentação e a dos seus camaradas, fazendo alguns petiscos de sabor divinal, atendendo às circunstâncias difíceis em que todos se encontravam.

Até da dispensa do navio de guerra, que apoiava a operação, ele conseguiu Nescafé, e só não tiveram pudim em plena «guerra» porque isso até parecia mal e mais tarde quando o contassem ninguém acreditaria...

Mas se lá está mais tempo era capaz de ter conseguido por intermédio dos «T6», que por vezes davam apoio aéreo às operações, uns camarões vindos directa e expressamente de Bissau. É que o que ele não conseguir ninguém mais o conseguirá...

Também era possuidor de um sentido de humor muito especial e algumas das suas partidas ficaram para a história.

Vamos relatar só uma que conhecemos particularmente bem pois fomos o “otário” de serviço...

Já tínhamos uns largos meses de mato e já se faziam contas de “diminuir” em relação à data de regresso.

Por causa da minha mania das escritas deitei-me uma noite particularmente tarde.

Quando cheguei ao meu “quarto particular”, que partilhava com o nosso 1º. Santos e o Furriel Cravino, já toda a gente dormia.

No “quarto” ao lado, onde estavam hospedados mais uns 3 ou 4 furriéis, pareceu-me ouvir uns “cochichos”mas não liguei. Estava cheio de sono.

Com o clima tropical não se usava muita roupa para dormir e rapidamente levantei o mosquiteiro para me estender... vestido só com o relógio!

Engano meu...

Mal levantei o mosquiteiro sai-me uma galinha do interior, situação de todo inesperada que me fez desequilibrar e gritar a meio da noite:

Mas que merda é esta!?

Tive que acordar os meus companheiros de quarto e com a ajuda de uma “pilha” percebi que, até onde a minha vista alcançava, os lençóis estavam todos borrados. Incrivelmente cagados e mal cheirosos!

Comecei a coçar a cabeça e a perguntar a mim mesmo como é que o raio da galinha tinha ido parar dentro do mosquiteiro!

Entretanto já tinha uma quantidade de “sacanas” perto de mim que gozavam “o prato” e que, entre gargalhadas, “lamentavam a sorte do Oliveira”.

De facto, em tantos meses de mato, nunca tinha acontecido a ninguém uma daquelas...

E agora como é que eu safo? Onde é que vou dormir?

Eis se não quando aparece o Moreira com dois lençóis lavados.

Ajudou-me a tirar os ”borrados” – a galinha já tinha sido corrida a pontapés – e fez-me a cama de lavado.

Gajo porreiro.

Deitei-me e... pensava eu que ia dormir.

Mas... poucos minutos depois... tinha comichão por todo o lado e cada vez que me virava parecia-me que estava a ser comido vivo...

Mas que merda é esta (parte dois)!?

Com o auxílio da pilha lá investiguei o interior do mosquiteiro e pareceu-me ver milhares de minúsculos “pontos negros”!

Mas que merda é esta (parte três)!?

Os “pontos negros” deslocavam-se e afinal eram piolhos!

Está claro que tive de me levantar... sem saber muito bem o que havia de fazer.

Mais uma vez apareceu por perto o Moreira para dar uma “mão”.

Ajudou-me a desmontar o “cenário” para... sacudir o material.

Mosquiteiro e... lençóis lavados!

Informaram-me entretanto os mirones que os piolhos eram da galinha.

Grande consolação.

Lá aumentei a minha cultura geral e -depois de mais uma vez agradecer ao Moreira - esfreguei-me todo com álcool e tentei dormir.

O que foi... mentira.

Ainda tentei contar carneiros a saltar mas... só dava piolhos.

Por espantoso que pareça nunca me passou pela cabeça que toda aquela “cena” tivesse sido montada.

Meses depois, já a bordo do “Uíge”, quando regressávamos a Lisboa é que soube que a galinha”tinha aterrado” dentro do meu mosquiteiro graças a uma mão malandra.

A mão do Moreira, está claro.

Grande sacana.

Ainda hoje acho incrivelmente engraçada toda a “estória” que, julgo eu, terá ultrapassado o enredo inicial, pois a caganeira da galinha (e os piolhos) não deviam estar previstos no guião primitivo, o que motivou as “ajudas suplementares” de que fui alvo daquela noite engalinhada!

Luís Moreira o tipo acabado de “um bom malandro”...


Quarenta e tal anos depois... o Luís Moreira está na mesma... ou quase!

Depois de algumas voltas na vida ficou-se pelo Porto.

É empresário individual e trabalha que se farta na área dos... presuntos.

Passa muito do seu tempo a viajar.

Não pára e só não dorme na sua carrinha porque tem que ir de vez em quando a casa para ver a mulher e... os netos...

Obviamente que continua desenrascado e com uma “lata” que só visto.

A “estória” que se segue passou-se já há algum tempo (mas como os eventuais ilícitos criminais podem ainda não ter prescrito...) é relatada sem nomes nem indicação de locais...

O nosso Moreira levanta-se normalmente cedo e vai para a estrada quando às vezes o sol ainda não se levantou.

Dirigia-se a Espanha com a carrinha carregada de presuntos.

O livro das guias de remessa seguia, como de costume, no porta-luvas.

A posteriori conta o Moreira que, antes de sair do seu armazém, tinha mesmo pensado em preencher as respectivas guia mas...era ainda tão cedo que... não deu!

Já perto da fronteira foi mandado parar por uma brigada de trânsito. A continência da ordem e o pedido habitual.

– Os seus documentos, por favor.

O Moreira nem lhes deu tempo para dizer mais nada.

– Oh Senhor Guarda. Hoje você e o seu colega deviam jogar no totoloto ou comprar lotaria. Mas que pontaria com que vocês estão. Hoje vocês ganhavam o “Euro milhões”. É incrível.

Não vão acreditar mas levo a carrinha carregada de presuntos, tenho aqui o livro das guias de remessa e com a pressa saí de casa sem as preencher.

– É formidável. Deviam jogar no totobola, na lotaria... eu sei lá Vocês estão cá com uma pontaria.

E... repetia-se, repetindo os argumentos da sorte e do jogo até à exaustão.

Não se calava e os guardas olhavam um para o outro... sem palavras. Que “freguês” para começar o dia!

Num dos intervalos do “arrazoado” do Moreira um dos guardas pediu-lhe para se calar.

– Preencha lá as guias e siga.

Poucos dias depois estavam os três a almoçar algures na zona do Porto Alto.

A atitude pedagógica dos guardas granjeou dois novos amigos para o Moreira. Que ainda hoje se mantêm!

E se não ganharam o “Euromilhões” ganharam um amigo especial.

Luís Moreira além de “um bom malandro”... é também um amigo para a vida e para a morte.

A “família da 675” faz-lhe essa justiça.

Um abraço,
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675


Fotos: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.

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Nota de M.R.:

Vd. último poste da série em:

Guiné 63/74 - P4829: Parabéns a você (18): José Manuel Moreira Cancela da CCAÇ 2382 (Os Editores)

Hoje, dia 17 de Agosto de 2009, está de parabéns o nosso camarada José Cancela que se apresentou à Tabanca Grande Janeiro deste ano.

José Cancela, ex-Soldado AM da CCAÇ 2382, Bula, Buba, Aldeia Formosa, Contabane, Mampatá e Chamarra, 1968/70.


Escrevia assim o nosso camarada na sua mensagem de 28 de Janeiro de 2009 (*):

Caros camaradas editores Luís, Vinhal e Briote

Antes de mais passo a apresentar-me:
Sou o José Manuel Moreira Cancela, fui Soldado A.M. da CCaç 2382 e sou ex-camarada do tertuliano Manuel Traquina

Estive emigrado entre 1970 e 2003 e, em todo esse tempo, e por muito que procurasse, nunca consegui encontrar qualquer camarada de armas, até que um dia recebo um telefonema de Coimbra, do meu amigo Fausto, Enfermeiro, que conseguiu encontrar-me em 2006, através da lista telefonica, tão simples quanto isso.

Claro que fiquei feliz e muito emocionado e logo no ano a seguir fui à minha primeira concentração da nossa Companhia, que se realizou em Coimbra.

Não sei descrever a alegria que senti ao ver aquela malta com quem convivi durante dois anos. Claro que tive de me apresentar, pois à parte o Fausto com quem me tinha encontrado depois do telefonema, não reconheci ninguém, trinta e oito anos mudam-nos, e de que maneira.

Fica-me em especial recordação, aquele abraço do meu amigo Vieira, que me ia partindo todo. Ele ao ver que me apertou demais, volveu-me o seguinte, com aquele sotaque à moda do Porto que eu adoro:

- Desculpa lá, carago, é da imoçom.

Depois de um lauto almoço, fomos revivendo tudo que de bom e de mau passámos na Guiné e recordando as terras por onde palmilhámos. Foram elas: BISSAU, BULA, BUBA, ALDEIA FORMOSA, CONTABANE, MAMPATÁ e CHAMARRA e, em cada uma destas, há uma história para contar, mas fica para a próxima.

Caros editores, desculpem se isto não vai conforme, mas eu sou ainda muito periquito nisto.

Um abraço grande como o mundo, para todos os ex-combatentes e em especial os da Guiné
J.M.M. Cancela


A Tertúlia deseja ao camarada José Cancela um dia de aniversário pleno de saúde e felicidade junto dos seus familiares e amigos. Este dia há-de comemorar-se durante muitos anos e deste lado estaremos aqui nós para lembrá-lo.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 9 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3857: Tabanca Grande (113): José Manuel Moreira Cancela, ex-Soldado AM da CCAÇ 2382 (Guiné, 1968/70)

Vd. último poste da série de 10 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4805: Parabéns a você (17): Alberto Nascimento da CCAÇ 84 e Tomás Carneiro da CCAÇ 4745 (Os Editores)

domingo, 16 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4828: Estórias do Mário Pinto (Mário Gualter Rodrigues Pinto) (11): "Filhos de um deus menor"

1. O nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, que foi Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os morcegos de Mampatá", Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71, enviou-nos a seguinte mensagem:

Camaradas,

Entre o meu espólio de memórias escritas encontrei mais este texto, que, com pequenos acertos, apesar de já ter uns anitos, ainda mantém INFELIZMENTE plena actualidade:

"FILHOS DE UM DEUS MENOR"

Em anos já passados, da minha juventude, nem todos os mancebos desta nossa Pátria, tinham o tratamento igual e imparcial, como deveria ser apanágio de uma sociedade correcta e fraterna para todos os cidadãos.

Dividiam-se os mancebos em classes distintas: Ricos e Remediados ou Pobres.

Os Ricos eram todos aqueles protegidos por “cunhas” (algumas delas por suborno), falsos atestados de incapacidades físicas, fraudulentas prorrogações de prazos, simulados amparos de família e outros “esquemas” engenhosos, iam ficando nas fileiras de trás ou em nenhuma delas.

Os Remediados ou Pobres eram todos os menos favorecidos, que eram chamados a formar nos quartéis, como SOLDADOS deste PAÍS, vindos das diversas aldeias, vilas e cidades, deste cantinho plantado à beira mar e lá iam, passados uns tantos meses, para a frente combater (directa ou indirectamente), dois e mais anos, em nome de um Império Colonial, já sem qualquer sentido, nem jeito, no conceito europeu de então.

O colonialismo era um tipo de política amorfa, condenada à muito tempo, por todos os restantes países Europeus, tendo sido Portugal, como bem sabeis, o último a abandonar as suas colónias, de que tão orgulhosamente se mantinha só e alguém proferia, com fervor, na época.

Mas às custas de quem?

Nas colónias em África, nas frentes de combate, só encontrávamos “os filhos de um deus menor”. Mancebos retirados ao seu habitat natural, alguns sem educação escolar básica sequer, aos quais, na sua maioria para não dizer totalidade, injectavam uma deficiente e inadequada instrução militar.

Valia-lhes, lá longe onde o sol queima mais, a esses HOMENS a grandeza da sua alma, invulgar poder de adaptação, sobrevivência e combatividade, espírito de sacrifício e generosidade pessoal, atributos estes que ajudavam a ultrapassar, com maior ou menor dificuldade, os tremendos obstáculos encontrados nos seus caminhos e calvários, dando lições e exemplos inigualáveis, nestas matérias, ao resto do mundo.

Os resultados são do conhecimento geral da população, milhares faleceram por lá e muitos outros milhares ficaram, permanentemente, deficientes física e psiquicamente.

Quando esta Nação deles precisou, disseram presente (a bem ou a mal). Quando deixaram de ser necessários, esta mesma Nação marginalizou-os! Tornaram-se incómodos, proscritos e abandonados.

E continua a marginalizar!

Foram então muitas vezes, durante os seus períodos de tropa, massacrados, espezinhados, ultrajados, esfrangalhados, feridos, estropiados, mortos… e após o seu término nestes últimos 35 anos, continuam INCRÍVEL e INADMISSIVELMENTE proscritos desta sua própria Pátria, pelos vários governos e demais políticos.

Temos vindo a ver, saber, de inúmeros casos de Camaradas nossos, que têm perecido no meio da maior penúria, abandonados às suas tristes sortes, debilitados e desamparados e, não fossem algumas organizações e instituições não governamentais de veteranos e outras de carácter benemérito, para acudir com alguma assistência primária à sua sobrevivência, a muitos outros, o DRAMA seria VERGONHOSA E ESCANDALOSAMENTE maior.

Continuam assim esquecidos os “filhos de um deus menor”, que mostraram inequivocamente, além das qualidades já referidas, a sua raça, humanidade, coragem e solidariedade invulgares, perante uma fraca e desprezível Sociedade que deles se alheou, constituindo hoje uma geração cansada e gasta pelas vicissitudes da vida.

ATÉ QUANDO A MARGINALIZAÇÃO A QUE SOMOS VOTADOS?!

Resta-nos crer com fé no futuro e firmeza nesta crença de que, um dia, surgirá uma nova geração, sóbria, justa e solidária, que ao conhecer os nossos feitos (em nome de, e por, Portugal), nos reconhecerá o devido e merecido valor e, quem sabe, ainda surja a tempo de auxiliar os necessitados que, eventualmente, ainda possam estar por aí… vivos.

Nunca se esqueçam os verdadeiros e leais portugueses (felizmente ainda há bastantes), que estamos a falar de ex- CAMARADAS-DE-ARMAS nossos.. ex-COMBATENTES DO ULTRAMAR… de PORTUGAL.

Um abraço
Mário Pinto
Fur Mil At Art

Imagem: © Magalhães Ribeiro (2009). Direitos reservados
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

Guiné 63/74 - P4827: Gavetas da Memória (Carlos Adrião Geraldes) (2): A jibóia

1. Segunda história da série "Gavetas da Memória" de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Bissau, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66



Gavetas da Memória

A Jibóia


Ainda não há muito tempo, principalmente em dias de feira, era frequente aparecerem, pela cidade, vendedores ambulantes da famosa banha da cobra.

Munidos de uma modestíssima mala de cartão que arrumavam num canto do pequeno recinto que escolhiam para palco da sua actuação, aqueles verdadeiros mestres da arte da oratória, iniciavam quase sempre o discurso, por uma alusão a um qualquer acontecimento trivial, uma pequena observação, uma pilhéria ou até um simples piropo, algo que num repente prendesse a atenção dos passantes.

Então o nosso homem, quando se sentia observado, começava a palestra científica sobre as virtudes de um remédio milagroso de que só ele era portador e que, num gesto de pura abnegação e amor ao próximo, sentia ser sua a missão de não deixar de o proporcionar àqueles que o quisessem conhecer, desvendando um antigo segredo esquecido pela ciência moderna, mas que nas profundezas mais longínquas das matas mais obscuras da selva africana, a sua gordura era, desde os tempos mais remotos, aproveitada para a confecção de um extraordinário medicamento que tinha o maior poder curativo de que há memória em todo o mundo: a famosa banha da cobra ou mais precisamente: da jibóia, esse animal que por alguma razão era tão falado na Bíblia, simbolizando a ciência do Universo.

Ali mesmo, naquela maleta, dizia ele em tom dramático, tinha uma, bem grande, para mostrar ao excelentíssimo público, para que todos a pudessem ver e certificarem-se como era um animal manso, inofensivo, infelizmente alvo de tantas superstições e perseguições, mas que a mais moderna investigação científica provara ser uma fonte inesgotável de benefícios para o homem.

Entretanto, quando estava mesmo na eminência de abrir a dita mala, lembrava-se de qualquer outra coisa importante de que se tinha esquecido, ou fingia distrair-se com um aparte do público ou com a chegada de mais um transeunte, que não tinha obviamente ouvido a sua demonstração, e recomeçava novamente o discurso desde o início, adiando sempre Sine Die o momento da dita revelação, em que finalmente veríamos o tão impressionante e famoso bicho. Deixando a mala sempre por abrir, aumentava assim, muito habilmente, a tensão que se criava entre os já inúmeros espectadores ansiosos por verem a famosa jibóia e engrossando também o número de possíveis compradores, claro está.

Escusado será dizer que em nenhuma ocasião cheguei a ver a tal jibóia, se é que ela alguma vez existiu de facto. Apenas me foi dado vislumbrar as latinhas do maravilhoso unguento que ele rapidamente fazia correr de mão em mão pela assistência, acabando sempre por haver bastantes compradores, proporcionando-lhe um bom negócio mais uma vez. Era uma simples pomada à base de vaselina e menta, que refrescava a pele e deva uma sensação de alívio em quase todas as situações. Idêntica à que hoje se pode encontrar nas lojas dos chineses, com o pomposo título de pomada feita de pó de dente ou garra, sei lá, de tigre.

Dantes, era tudo tão fácil, tão simples e tão ingénuo… tal como ainda agora, não será?

Mesquita de Paúnca

Foto: © Carlos Geraldes (2009). Direitos reservados


Mas foi em África, numa manhã de sol intenso, em plena estação seca, que finalmente vi uma verdadeira jibóia. Felizmente já estava morta, ali esticada a meus pés, onde um grupo de destemidos rapazes da aldeia a tinha colocado como se de uma oferenda para a minha pessoa se tratasse.

Surpreso sem saber o que responder naquela situação, tentei perceber o que se tinha passado. Conforme relataram, naquela manhã, quando desbastavam o capim que invadia os campos perto das palhotas, notaram uma agitação estranha nuns cabritos presos ali perto. Deram logo o alarme, pois a experiência dizia-lhes que certamente andava ali cobra por perto. Batendo o capinzal ficaram espavoridos com o tamanho da bicha. Tinha quase três metros de comprimento.

Mas decididos a acabar com tamanha ameaça, munidos de paus e pedras, rodearam-na por rodos os lados e acabaram por matá-la. Depois como não sabiam o que fazer, resolveram que o melhor seria levá-la ao “alfero” para ele a esfolar e ficar com a pele.

- Esfolá-la, eu?

- Sim, sim! - diziam eles todos orgulhosos da façanha.

- O nosso alfero é que sabe! O nosso alfero tem manga de ronco! O nosso alfero tem faca di mato! - diziam apontando repetidamente para uma pequena faca de escuteiro comprada na Metrópole e que, estupidamente, ainda trazia à cinta, enfiada numa bainha de couro. Não me servia para nada, nem para descascar uma manga, pois nunca a tinha afiado como devia ser. Apenas a usava para me ornamentar, para ter ronco, à laia de um qualquer Tarzan de pacotilha, mas que pelos vistos impressionava verdadeiramente os meus súbditos, naquele aldeamento perdido no meio de uma África, longe de figurar nos meus mais adolescentes sonhos de aventuras.

- Bem, pensei eu, que hei-de fazer? - e olhava para todos os lados à espera de encontrar uma solução que me libertasse daquele embaraço. Mas os soldados e os furriéis que já se tinham juntado à nossa volta curiosos com a novidade, sorriam de malandros na expectativa de verem como eu me iria desenrascar daquela situação inesperada e encolhiam os ombros como se não houvesse mais nada a fazer senão satisfazer aquela pretensão dos valentes nativos que além de uma boa recompensa esperavam também ver o que alfero iria fazer com a oferta deles.

- Não posso dar parte de fraco, tenho que fazer das tripas coração… - pensava eu angustiado.

E pela primeira vez, vencendo uma repulsa congénita e o natural receio que todos nós herdámos dos nossos ancestrais antepassados, desde que fomos expulsos do Paraíso, pus a mão numa cobra, numa verdadeira jibóia, animal de dimensões monstruosas, capaz talvez de engolir um boi.

Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66), Os Lassas > "Foto que me foi concedida pelo Manuel Brita, condutor das Fox, e que esteve em Cufar no tempo do António Graça de Abreu" [1973/74].

Foto (e legenda): © Mário Fitas (2008). Direitos reservados.


Enquanto os mais valentes lhe seguravam na cabeça, comecei então o trabalho de tentar remover a pele ao animal. Foi uma trabalheira danada. O que me valeu é que pelos vistos ali ninguém entendia muito do assunto e a minha notória inexperiência nem foi assim muito evidente.

Até os próprios negros, sempre ingenuamente impressionáveis, comentaram a coragem do nosso alfero que, de faca de mato na mão, enfrentou o inimigo sem qualquer hesitação!

Ao fim de um bom par de horas, lá conseguimos tirar a pele ao bicho, mas de modo tão tosco que, mesmo tendo ficado em salmoura uns poucos de meses, acabou por se estragar e não serviu para nada. Nem para um par de sapatos deu.

E ainda bem, pois dizem que a pele de cobra dá azar.

Só Deus sabe o nojo provocado pelo cheiro que aquela carnificina me deixou nas mãos que, mesmo depois de as esfregar bem esfregadas com sabonete Lifebuoy de alcatrão, ainda assim mantiveram aquele fedor por longo tempo. Felizmente as jibóias não apareceram mais por aquele lugarejo, onde definitivamente não eram bem-vindas, livrando-me também do repugnante cargo de esfolador que, certamente, me estaria destinado dali para a frente.

Mas porque é que me foram escolher a mim? Não haveria na aldeia nenhum nativo que soubesse fazer tal coisa com muito melhor destreza?

Não, o que certamente se passou foi que, simplesmente quiseram honrar-me com o privilégio de ser eu a despojar o bicho da sua pele, um bem de certo modo precioso, como sinónimo de poder, de autoridade. Era importante para eles que eu desse valor à sua oferta e eu mesmo tratasse de preparar o arranque da pele, o que eu, mesmo muito atabalhoadamente consegui fazer, sem dar a entender que tal coisa me repugnava e me era completamente estranha. Fiquei com a impressão que deve ter sido também a primeira vez que lhes foi dado contemplar um branco, um chefe da tropa, a fazer tal trabalho.
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Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 9 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4804: Gavetas da Memória (Carlos Adrião Geraldes) (1): "Os Elefantes"

Guiné 63/74 - P4826: Memórias de outros tempos (2): As épocas das chuvas (Jorge Teixeira/Portojo, ex-Fur Mil do Pelotão de Canhões S/R 2054,Catió, 1968/70)


1. Mensagem de Jorge Teixeira (Portojo), ex-Fur Mil do Pelotão de Canhões S/R 2054, Catió, 1968/70, com data de 29 de Julho de 2009:


A época das Chuvas


Apanhei duas inteirinhas, mas provavelmente como toda a malta.

Oficialmente, ela deveria começar em meados de Maio e ir até meados de Novembro.

Eram um horror em várias razões. Quando atravessávamos as bolanhas, a parte superior ao fim de 4 ou 5 homens as terem passado, os restantes para se equilibrarem naquele lodo passavam tormentos, especialmente à noite. E quantos demos o trambolhão para dentro de água, que em alguns casos poderiam ser fatais, por afogamento. Sei do que falo.

Um dia, na minha primeira época, perguntei ao ainda ten. João Bacar Jaló, como era possível chover tanto. Se era costume aquela chuva toda. Disse-me ele, estamos ainda em seca. Precisamos de muita mais. Claro que mesmo habituado à chuva do Porto, aquilo parecia-me o dilúvio. Dias seguidos de chuva...
Normalmente antes da chuva começar a cair, chegavam os sons daquelas trovoadas terríveis. Nunca sabíamos se elas vinham dos céus ou da terra.
Na segunda época, no primeiro dia de chuva, que por acaso foi à noite, o meu amigo, companheiro de quarto e sargento do Pelotão Daimler 2045 -de que não me lembro o nome - correu para o descoberto a receber a chuva com todo o carinho e aos berros, que era para fazer bem à "lica". Se bem se lembram, alguns de nós criávamos no corpo uns borbulhas, que depois davam em manchas que nunca saíram do cabedal, -sei do que falo - e que eram pior que mordidela de mosquito ou daquelas baga-baga que apanhávamos quando roçávamos algum arbusto, pois coçávamo-nos até fazer sangue. Ele era achacado a essa doença da pele e recebeu a informação que com as chuvas a coisa passaria.
Acompanhei-o mas com um receio. Fui-me dirigindo para o meu posto de defesa, pois estava a cair uma trovoada daquelas lindas. Acreditem que na unidade quase ninguém deu fé. Pudera, eram Piras com apenas 3 meses de Guiné...Era o seu baptismo de chuvas e ainda não distinguiam as trovoadas umas das outras...
Também nos extasiávamos com as maravilhas da natureza. Quando acontecia estarmos no meio de uma bolanha e víamos ao longe o remoinho do tornado, a quantidade de relâmpagos e raios que apareciam de todas as direcções, uma luminosidade que deslumbrava, o barulho ensurdecedor das trovoadas que se vinham aproximando. E pior que tudo, tentar que o pessoal não corresse para se abrigar na mata mais próxima. Ufa, e quando ela começava a cair, 2 minutos depois estafamos piores que bacalhau demolhado. Porque esse precisava de pelo menos 3 dias e uma rezas de molho, não para dessalgar mas sim para que se ficasse pelo menos mole para se poder desfiar. Porque em posta ninguém o conseguia comer.
Um abraço,
Jorge Teixeira/Portojo
Fur Mil At Art
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

18 de Abril de 2009  > Guiné 63/74 - P4206: Memórias de outros tempos (1): Fur Mil Aguinaldo Pinheiro, o morto-vivo do BART 1913 (Jorge Teixeira - Portojo)

sábado, 15 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4825: Fichas de unidade (4): História do CART 6251/73 (José Martins)

1. O nosso Camarada-de-armas Aníbal Amaral da CART 6251/73, Cumeré e Mansabá (1974), dirigiu ao Luís Graça o seguinte apelo em 30JUL2009:

Caro Luís Graça,

Recorro ao camarada (deixe-me tratá-lo assim), para lhe pedir o que agora, e não me questione porquê, começa a ser importante para mim. Rever camaradas da minha Companhia, confraternizar e reviver os momentos que passamos juntos naquela terra, que embora pobre quando comparada com Angola ou Moçambique, tinha algo de mágico que não podemos esquecer.

Tenho agora 56 anos e há já alguns meses que tento encontrar os meus camaradas de Companhia.

Até hoje todos os esforços foram em vão.

Frequentei na recruta o CSM nas Caldas da Rainha, tirei a especialidade de transmissões de Infantaria, em Tavira, e em Abril de 1974 embarquei no Niassa integrado na Cart 6251/73, saídos da RAP V. N. Gaia. Foi noticiada a nossa saída de Lisboa, no Niassa, por causa do engenho que explodiu a bordo aquando da partida. Chegamos a Bissau a 15/04/74. Depois de algumas semanas no Cumeré, fomos para Mansabá, substituir uma Companhia de Caçadores que agora não recordo, mas que tenho presente tinha já ultrapassado o tempo dito “normal” de comissão.

Até regressarmos, em Outubro 1974 de novo no Niassa, entregamos inúmeros aquartelamentos às tropas do PAIGC.

Na procura dos meus camaradas, já me indicaram a Cart 6251 mas de 72 – Os Galos de Catió. Mas não era essa a minha Companhia. Se bem recordo, Catió era de facto o nosso destino, mas quando chegamos a Bissau, Catió já estava nas mãos do IN.

O meu nº. mecanográfico era 028313/73. Se me puder fornecer alguma sugestão para tentar chegar à fala com camaradas desta m/Companhia, fico-lhe muito grato. Adorava puder rever aquela malta.

Aníbal Amaral
Ex-Furriel Mil. de Transmissões de Infantaria,
E-mail: anibalamaral1952@gmail.com

2. Como já vem sendo habitual nestas solicitações, o nosso primeiro passo para tentar ajudar este nosso Camarada, foi solicitar ao José Martins - nosso prestável e eficaz “municiador” de Fichas das Unidades -, os dados que forem possíveis reunir, sobre a CART 6251/73, de modo a que outros elementos desta companhia, possam, ao eventualmente lerem este poste, desde logo, identifiquem-se com a mesma e poderem contactar o Aníbal Amaral.

3. Breve apresentação do nosso Camarada José Martins:

(ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5 - Os Gatos Pretos -, Canjadude, 1968/70)
Matéria consultada para a sua pesquisa:
Resenha Histórica Militar das Campanhas de Africa
Volume 7º - Tomo II – Fichas das Unidades.

4. Agradecendo, desde já, a sua amigável e prestável colaboração ao José Martins, que, em casos anteriores muito tem ajudado a obter bons resultados, apresentamos seguir os resultados da sua melhor pesquisa, devidamente adaptada e condensada:

Companhia de Artilharia nº 6251/73

A Companhia de Artilharia nº 6251/73 foi mobilizada no Regimento de Artilharia Pesada nº 2, na Serra do Pilar, em Vila nova de Gaia.

Em 11 de Abril de 1974 embarca em Lisboa, rumo à Guiné, chegando a Bissau em 17 desse mesmo mês.

Foi para o Centro de Instrução Militar, em Cumeré, onde iniciou a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional a 21 de Abril de 1974. A instrução é interrompida, tendo a subunidade seguido para Mansabá, assumindo a responsabilidade do subsector substituindo a Companhia de Artilharia nº 3567, passando a integrar o dispositivo de manobra do Batalhão de Caçadores nº 4610/72 e posteriormente do Batalhão de Cavalaria nº 8320/73.

Depois de efectuar a entrega do aquartelamento de Mansabá ao PAIGC, em 03 de Setembro de 1974, esteve temporariamente em Nhacra, donde seguiu para o subsector de Safim, onde rendeu em 10 de Setembro de 1974 a Companhia de Cavalaria nº 8355/73, ficando integrada no dispositivo do COMBIS – Comando de Bissau, deslocando forças para o destacamento de Capunga.

Procede à entrega, ao PAIGC, do aquartelamento de Safim em 12 de Setembro de 1974, recolhendo a subunidade a Capunga, que entrega em 27 de Setembro de 1974, ficando a aguardar embarque até 03 de Outubro de 1974, data em que regressa.

© José Marcelino Martins – 13 de Maio de 2009

Um abraço,
José Martins

5. Resta-nos aguardar que o pessoal desta CART, ao tomar conhecimento desta mensagem contacte o Aníbal Amaral, para o e-mail indicado, ou recorra à nossa sempre disponível ajuda.
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Notas de M.R.:

Vd. último poste da série em:

Guiné 63/74 - P4824: (Ex)citações (39): "Ainda estás pouco lixado, pá?"

1. Mensagem de J. Mexia Alves (*), ex-Alf Mil da CART 3492 (Xitole / Ponte dos Fulas), Pel Caç Nat 52 (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), com data de 14 de Agosto de 2009:

Caros camarigos editores

Aqui vai um textozinho assim como que de Verão, que os meus camarigos farão o favor de julgar da pertinência de publicação.

Como sempre agradeço que me acusem a recepção do mesmo.

Um abraço camarigo do
Joaquim Mexia Alves


As práticas do tipo: “Ainda estás pouco lixado, pá”!

Algures aqui na Tabanca, li recentemente um texto que me fez lembrar uma prática em voga na Guiné e que eu sempre considerei um erro, mas que era infelizmente muito usada por vários comandantes.

Consistia essa dita prática, quase como se fosse uma NEP, em mandar o pessoal mais difícil, mais punido, mais insurrecto, para os sítios mais difíceis e complicados, os chamados buracos.

Assim, aqueles que esses comandantes não conseguiam ou não queriam disciplinar nas suas Companhias ou sedes de Batalhão, enviavam-nos para os que já sofriam as estopinhas em lugares isolados e degradados, como um castigo, que acabava muitas vezes por castigar os que já estavam castigados pelas condições em que viviam.

Isso aconteceu-me no Mato Cão uma ou duas vezes, por exemplo.

Ou seja, não chegava um gajo já estar nas piores condições, mas ainda se mandavam para lá os problemas difíceis de tratar, assim como se aqueles destacamentos ou quartéis fossem uma colónia penitenciária.

Lembro-me que assim que chegaram ao Mato Cão, tive com os insurrectos, uma conversa franca e objectiva, com umas ameaças a preceito, e acabei por não ter mais problemas.

Mas a verdade, quer queiramos quer não, é que o castigo que era dado a esse pessoal, acabava muitas vezes por se transformar em dores de cabeça para aqueles que já as tinham que chegassem.

E os senhores comandantes ficavam mais descansadinhos nos seus sítios, e os outros… que se lixassem!!!
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 5 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4781: Também quero homenagear os nossos picadores (J. Mexia Alves)

Vd. último poste da série de 11 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4813: (Ex)citações (38): Resposta a J. Mexia Alves (A.J. Pereira da Costa)