domingo, 10 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5625: Memória dos lugares (67): Mais notícias da Cart 2410 (3) (Luís Guerreiro)



1. O nosso Camarada Luís Guerreiro, ex-Fur Mil do 4.º Gr Comb da CART 2410 e mais tarde do Pel Caç Nat 65, Ganturé, 1968/70, e que desde 1971 reside em Montreal, no Canadá, enviou-nos mais uma mensagem acompanhada de magníficas fotos de Guileje e Gadamael:


Camaradas,


Hoje trago-vos mais notícias da CArt 2410 e do tempo passado em Guileje.Muito se tem dito sobre Guileje, por isso não vou comentar nada sobre a retirada embora tenha a minha opinião formada.


Durante a nossa estadia tivemos 44 ataques (do mais pequeno ao maior), tendo estado várias horas debaixo de fogo.


Era normal, nessas flagelações, serem referenciados cerca de 300 rebentamentos.Não tivemos baixas nestes ataques e a nossa moral esteve sempre em alta.


Penso que o tempo lá passado foi bastante positivo.Nas saídas e nas colunas, que se fizeram de Gadamael para Guileje, neste período, nunca houve contacto com o inimigo, salvo algumas minas que foram detectadas e levantadas.


Envio algumas fotos, uma delas (especialmente para o amigo Pepito) mostrando as garrafas no arame farpado.Para a próxima vou falar um pouco do Pel Caç Nat 65.



01- Vista aérea de Guileje (Janeiro/70)



Um abraço,
Luis Guerreiro
Fur Mil da CART 2410 e Pel Caç Nat 65

Fotos e legendas: © Luís Guerreiro (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

26 de Dezembro de 2009 >
Guiné 63/74 - P5541: Memória dos lugares (61): Mais notícias da Cart 2410 (2) (Luís Guerreiro)


02 - Construção das casernas abrigo (Julho/69)



03 - Uma das casernas abrigo já terminada (Novembro/69)



04 - Outra caserna abrigo (Novembro/69)



05 – O sistema de valas (Novembro/69)



06 – Os efeitos de um ataque



07 - Ataque em 11 Setembro/69 (tabanca atingida)



08 - Abrigo atingido em 11 Setembro/69 (dois mortos e um ferido grave, ambos assalariados nativos da engenharia)



09 - Coluna de Gadamael: Alf. Mil. Jerónimo, Fur. Mil Mourato e eu (Agosto/69)



10 - Uma mina levantada na coluna de Gadamael



11 - Chegada da coluna a Guileje na época das chuvas, terreno difícil (Agosto/69)



12 - Chegada da coluna a Guileje na época das chuvas, terreno díficil (Agosto/69)



13 - Uma das peças 11.4 cm



14 - O reabastecimento de água era garantido por um grupo de combate (duas secções faziam a protecção e uma enchia os bidões)

15 - A terceira secção do quarto grupo de combate


16 - A equipa de furriéis (Cart.2410 – Pel Caç 51- Pel Art - Engenharia)


17 - Cortando o capim (vêm-se perfeitamente algumas garrafas presas no arame)



18 - Mais garrafas presas no arame



19 – A messe dos sargentos



20 – O bar dos sargentos



21 - Cerimónia do fanado

Guiné 63/74 – P5623: PAIGC: A metralhadora ligeira Dectyarev RDP (Salvador Nogueira/Luís Dias)





1. No poste P5583, editado em 3 de Janeiro de 2010, o nosso Camarada Luís Graça legendou assim a seguinte foto do Fernando Costa:





Aldeia Formosa > CCS/BCAÇ 4513 (1973/74) > Agosto de 1974 > No dia da entrega do aquartelamento ao PAIGC... O Fernando Costa (*), entre dois guerrilheiros, posando para a fotografia com uma metralhadora ligeira que me parece ser uma PSSH, mais conhecida por "costureirinha"... (LG).
Foto: © Fernando Costa (2009). Direitos reservados.

2. Atentos ao desenrolar da vida do blogue estão, felizmente, muitos Amigos e Camaradas, como é o caso de Salvador Nogueira que, face ao texto da legenda, em 6 de Janeiro, adicionou um comentário no dito poste a esclarecer o seguinte:

“('Degtiarôv' é a pronúncia do nome russo, visto que se escreve com ë (iô) porém, o trema é modernamente apagado na grafia impressa.

Lá na Guiné, toda a gente dizia 'Degtiarév' e bem, e toda a gente passava a usá-la em vez da merda-da-HK, e bem, assim que lhe deitava a mão mas numa perspectiva de presúria, não de reconhecimento da 'qualidade inimiga'.)

SNogueira

Metralhadora ligeira Dectyarev RDP (Foto Wikipédia, Enciclopédia livre )

3. Também o nosso Camarada Luís Dias, postou um comentário, no mesmo dia, acrescentando mais alguns pormenores interessantes sobre a arma em questão:

Caro Fernando Costa,

O S. Nogueira tem razão a arma é um met. lig. Dectyarev RDP, que só fazia fogo automático e era uma belíssima arma. No entanto discordo do que ele diz que a HK-21 era uma m... !

De facto, com fita de elos desintegráveis era uma máquina, mas com a fita normal encravava muito. Além de que, em termos de balística a munição 7,62 mm Nato era mais equilibrada no fogo automático do que a 7,62 mm M43 soviética, usado na RDP.

Um abraço,
Luís Dias

2 Met. lig. Dectyarev RDP capturadas na ZO de Mansoa em 1972
(Foto: © Augusto Borges (2009). Direitos reservados.)

4. Ainda em 6 de Janeiro, o Salvador Nogueira complementava a sua intervenção inicial, assim:

Caro Luís Dias,

A sua opinião terá fundamento, mas parece-me que a questão balística só se colocaria em termos do 'poder da arma', em precisão, em distâncias longas ou com ventos fortes; ou, então, em tiros de caça com armas de repetição, que não era o caso das metralhadoras ligeiras Degtyarev e HK21, no quadro da nossa acção na Guiné.

O projéctil 7.62 x 54 mm, da HK, tem mais massa (149 g) o que, visto do uso que dele fazíamos, se torna imperceptível relativamente ao 7.62 x 39 mm, 123 g) da RPD; é um preciosismo balístico que não nos afectava.

O que nos afectava e fazia a diferença entre as duas armas era o peso da HK, cerca de 8 kg vs. os cerca de 7 kg com empunhamento mais equilibrado da RPD na qual, apenas como factor de conforto adicional, a reacção ao disparo, o "recuo", parecia mais linear.

O tambor-carregador da RPD garantia, por sua vez, melhor preservação das condições de transporte e uso das fitas de munições, obviando maus funcionamentos. Além disto, a RPD também parecia! Mais leve, embora lhe faltasse o factor de 'confiança induzida' que o ruído da HK proporcionava.

SNogueira

Guiné 63/74 - P5622: Notas de leitura (52): Os Anos da Guerra, de João de Melo (6): J. M. Garcia, S. M. Ferreira e Cristóvão de Aguiar (Beja Santos)

1.Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Janeiro de 2010:

Queridos amigos,
Já devorei a antologia de João de Melo.
Espero começar agora toda a obra do Armor Pires da Mota.
E ficam para ler algumas das obras-primas de Teixeira da Mota, livros raros que depois serão oferecidos ao blogue.

Saúde para todos,
Mário


OS ANOS DA GUERRA:
ALGUNS OLHARES SOBRE A LITERATURA DA GUERRA DA GUINÉ (6)


Beja Santos

Recordatória

Em “Os Anos da Guerra”, o escritor João de Melo procedeu a um levantamento da literatura da Guerra Colonial, referente a obras publicadas nos anos 60, 70, 80 e 90. Ele próprio refere que se trata de uma escolha arbitrária, por definição tem carácter subjectivo, refere mesmo nomes como o de Cristóvão de Aguiar, que não foi incluído na antologia (no final do texto, far-se-á uma chamada para o seu livro “Braço Tatuado”, cuja primeira versão surgiu em 1985). A série de textos que dedicámos aos escritores relacionados com a Guiné finda hoje com referências a José Martins Garcia e Sérgio Matos Ferreira. Não hesito em colocar o nome de José Martins Garcia como referência incontornável da literatura de guerra, sobretudo dos anos 70, pela sua originalidade, veia dramática e satírica. Sérgio Matos Ferreira é a voz do combatente que assistiu à independência da Guiné.


As suspeitas de um bravo capitão

“No começo da guerra, em 1963, ordens e contra-ordens haviam produzido em Catió desusados movimentos de ida e volta. Um estratega iluminado decidira-se pela ocupação minuciosa das redondezas, fragmentando o batalhão, dispersando as companhias, fragmentando companhias, dispersando os pelotões, fragmentando pelotões, dispersando as secções. O resultado fora desastroso, pois todas as ligações se mostravam extremamente complicadas, tanto por via rádio, como por via terrestre ou marítima, sucedendo-se às minas as emboscadas e às emboscadas as flagelações, com abundantes morteiradas alta noite. Confirmada a inoperância do iluminado estratega, logo lhe sucedeu um comandante de ideias diametralmente opostas, o qual, para demonstrar que a união faz a força, mandou recolher a Catió, com armas e bagagens, o batalhão que o antecessor havia disseminado. Assim se concentraram momentaneamente na vilória quatro companhias, sem muita estratégia e com escassíssima logística, à espera do reabastecimento europeu, via Bissau... Para aboletar todo este pessoal belicoso, o quartel expandiu-se pelo povoado. Os militares ocuparem tudo o que possuísse tecto, desde casas meio arruinadas até às moradias de comerciantes que, alertados pelos primeiros rumores do invencível terrorismo, rapidamente se haviam transferido para regiões de mais densa população, nomeadamente Bissau e Bafatá”

“Foi quando chegou a Catió, em escala para Bissau, o doente capitão Lourenço, ex-comandante efectivo da companhia do Cachil. As suas faces chupadas não excluíam de forma alguma a hipótese de doença ruim. Magro, alto, louro, arrastando uma tosse que parecia humilhá-lo, batia os tacões e ruminava lembranças épicas quando encarava aquela “tropa fandanga”, aqueles soldados mal enjorcados, sempre de chinelos e sem barrete, desaprumados, gingões, clandestinos jogadores de montinho e lerpa.

O comandante Galvão apressou-se a enviar para Bissau o hóspede impertinente, “para ele se curar”. Do Cachil não vinham nem bons ventos nem bons hóspedes, nem sequer boas notícias. A última irregularidade cometida por essas bandas rezava da alquimia operada no interior de um barril, cujo conteúdo vínico se revelara água, diante dos olhos crédulos e incrédulos. O comandante Galvão abominava as pequenas trapaças tão frequentes na carreira que escolhera. E, por pensar em reabastecimentos, fez-lhe espécie, pela primeira vez, o facto de o capitão Clemente, oficial de cavalaria, se ter enconchado na manutenção, superintendendo na batata, no vinho, no arroz, no bacalhau, como se fosse um desses da administração, um “padeiro”. Relacionando este absurdo com a filiação do Clemente, bateu com a palma da mão na testa e encontrou: “A cunha!” E ainda por cima o fulaninho, anafado e untuoso, botava pequenos discursos nacionalistas...

O capitão Clemente empalideceu quando soube da decisão do tenente-coronel Galvão: mandá-lo para o Cachil, na qualidade de comandante interino da companhia, encarregando-o, ao mesmo tempo, muito honrosamente, de apurar a verdade acerca da transformação do vinho em água, alquimia tanto mais escandalosa quanto invertia a regra dos Evangelhos”.

José Martins Garcia, em “Morrer devagar”, 1979


Vlatinessência

“Sob a hélice gigante dos indefinidos dias, sob o trovão enorme da estação chuvosa, sentindo de longe em longe um rodopio na memória, Pierre Avince dormiu uma inteira eternidade. Mais tarde recordaria os vultos esbranquiçados dos enfermeiros, as seringas cheias de líquido vermelho ou branco, os boiões de várias drageias, as injecções apercebidas por uma irritante sensação de calor espalhando-se da garganta até às unhas dos pés.

Um dia abriu os olhos e verificou que estava cercado por vários mortos. A bátega caía rija contra a vidraça mas, sobreponde-se ao rumor da chuva, a hélice do helicóptero remoinhava. Saltou para o jipe, entrou no túmulo, ouviu uma explosão. Todos mortos, sob a hélice de um helicóptero. Sem inferno, sem purgatório, sem paraíso, balelas inventadas pelos feiticeiros de todo o mundo.

Alguns anos depois, diante da página em branco, lembrar-se-ia da falsidade até da morte, da radical incompatibilidade entre ausência e consciência. E inventaria a palavra VLATINESSÊNCIA, a qual, por deficiência do significado, em breve lhe parecia um produto de beleza, ou seja, a cultura ao serviço da mutilação”

José Martins Garcia, em “Lugar de Massacre”, 1975

José Martins Garcia
Nasceu na Ilha do Pico em 1941 e faleceu em Ponta Delgada em 2002. Licenciou-se Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa, onde leccionou entre 1971 e 1977. Cumpriu o serviço militar na Guiné entre 1966 e 1968, experiência que se projectara literariamente nas suas primeiras obras como “Katafaraum é uma nação” e “Lugar de massacre”, na década de 70. Trata-se de uma experiência que, como escreveu Urbano Bettencourt, acabará por pontuar, sob variadas formas e indiferentes circunstâncias a sua obra literária. Entre 1969 e 1971 foi leitor de Português na Universidade Católica de Pais e 1979 rumaria para os EUA como professor da Brown University, em Providence. Na Universidade dos Açores introduziu a cadeira de Literatura e Cultura Açorianas e doutorou-se com uma tese sobre Fernando Pessoa. A sua obra é muito eclética, abarca o ensaísmo, a poesia, o romance, o conto e a crítica jornalística.


Os anjos da guerrilha

“Num murmurejar crescente, a população deu aviso de entrada dessas palmeiras gigantes com óleo castigado por luas de guerrilha. Vinham esplendidamente erguidos, enfiados no camuflado do tempo, imensa pedra com dentes de luta. Dos lábios rebentavam nuvens brancas, claras, cheias de determinação – Ah, esse dia com sabor a entrega, com sabor a princípio, com um gosto inesquecível. Ah, meu país, meu ventre – e na parada gulosa de surpresas lá estávamos, sempre na espera, encavalitados de sobrolho desassossegado, barulhento, e numa calma enfurecida o silêncio baixou, espetou expectativa em todos os militares e povo. O momento grave, solene, e os homens do PAIGC perfilados, erectos, e os discursos a ferrarem na carne realidade, bela como o sol que nos ensurdecia de fogo e sede e liberdade, e um tenente-coronel a abarrotar de gordura estoirou a abertura da cerimónia com um dó dorido a patinar suor numa cara encarniçada, balofa...”

“A bandeira arpoada num falo direito, rijo, dedilhava palavras surdas auxiliada por um sorriso fraco de vento, que acordado em sobressaltos estrebuchava soluços de pano bicolor, murcho, à espera da estocada final. Num berro sem esforço, o clarim tocou firme e um pulsar de cascata segredou no sangue que o colonialismo se dissolvia, o sopro final de metal continuou pleno de satisfação, vibrando nas lâminas quentes do dia o tom do sentido, e sentimos na mais escondida célula que a salada da guerra se fechava na caixa da memória. A bandeira escorregava lentamente pelo fio da história em pequenas convulsões, hesitando, agarrando-se em jeito de lapa à madeira inchada e sem resistência poisou suavemente numas mãos esburacadas, ansiosas por remendar essa prisão de mato com a sombra do seu país... Agora África subiu sem dificuldade pelo poste, de braços abertos, hélice de espigas doiradas a cuspirem sementes, catana vigorosa de carne a cortar o último nó do cordão umbilical.
És independente, meu nervo. Guiné de todos”

Sérgio Matos Ferreira, em “O descascar da pele”, 1982

Sérgio Matos Ferreira foi mobilizado para a Guiné em 1973, com o posto de furriel miliciano e a especialidade de artilharia de campanha. Esteve em Dara, e depois em Buruntuma até Setembro de 1974, tendo assistido e participado na entrega do território ao PAIGC.


Cristóvão de Aguiar, convém não esquecer

Cristóvão de Aguiar acaba de reeditar em nova versão “Braço Tatuado” que apareceu inicialmente no livro Ciclone de Setembro, editado em 1985 (“Braço Tatuado, Retalhos da Guerra Colonial, por Cristóvão de Aguiar, Publicações Dom Quixote, 2008).

É hoje apreciável o número de títulos disponíveis, só da responsabilidade de escritores, sobre a sua experiência na Guerra Colonial. Basta referir os primeiros livros de Lobo Antunes, alguma poesia e prosa de Manuel Alegre, romances de Lídia Jorge e João de Melo, contos e novelas de Álvaro Guerra, o teatro de Fernando Dacosta e quanto aos escritores africanos Luandino Vieira e Pepetela.

Continua por dar resposta a esta questão cultura indispensável: durante treze anos, a Guerra Colonial envolveu centenas de milhares de militares e afectou directamente milhões de civis. A que se deve, a despeito de um número já considerável de testemunhos, incluindo os de recorte literário, o silêncio desses protagonistas? Há quem procure justificar a falta de estantes cheias de títulos sobre a Guerra Colonial devido ao facto dos diferentes heroísmos não se poderem traduzir numa voz colectiva, isto é, o que se passou em três frentes de combate teve diferentes identidades e resultados militares díspares. Além disso, tendo a Guerra Colonial terminado com o 25 de Abril e a independência das colónias, terá parecido a muitos protagonistas que os seus testemunhos estavam deslocados, precisavam da temperança de um silêncio entre gerações para não serem tomados como pura nostalgia ou ressabiamento ideológico. Acresce, com a má sorte que tem vindo a acontecer na vida das ex-colónias, num sofrimento que passa pela fome, guerras civis, destruição e corrupção económicas, e se saldam na degradação das condições de vida, parece haver pouco espaço para voltar aos cenários de horror desses conflitos armados ou cantar a voz da liberdade que acompanhou a independência desses povos.

Seja qual for a resposta consistente que se vier a dar a esta questão cultural incómoda (que por ora ninguém parece querer afoitar-se a responder), os protagonistas passam o papel os seus testemunhos.

Cristóvão de Aguiar combateu na Guiné entre 1965-1967.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5617: Notas de leitura (51): Os Anos da Guerra, de João de Melo (5): Carta número... e, Uma granada sob o coração (Beja Santos)

Guiné 63/74 – P5621: Histórias do Eduardo Campos (5): CCAÇ 4540, 1972/74 - Somos um caso sério, Cadique/Cantanhez (Parte 5): Destino Nhacra


1. O nosso camarada Eduardo Ferreira Campos, ex-1º Cabo Trms da CCAÇ 4540, Cumeré, Bigene, Cadique, Cufar e Nhacra, 1972/74, enviou-nos a 5ª fracção da história da sua Companhia, em 9 de Janeiro de 2010:

CAÇ 4540 – 72/74
"SOMOS UM CASO SÉRIO"

PARTE 5

CADIQUE/CANTANHEZ

Com um nome de guerra tão pomposo, a minha Companhia teria de ter direito a um desertor.

De vez em quando chegavam a Cadique, camaradas vindos de outras paragens, era um “prémio” que as suas chefias militares lhes davam, por eventuais comportamentos menos felizes.

Um deles (cujo nome não interessa mencionar), saía e regressava do aquartelamento quando lhe apetecia e, por vezes, até trazia uma arma ou algumas granadas.

O capitão começou a ficar preocupado com tal comportamento e tratou de o enviar para Cufar, onde esteve uns dias no COP 4 e foi interrogado.

Depois de apanhar umas bofetadas e algo mais, para falar do seu estranho comportamento, voltou para Cadique, porque aí é que era o local apropriado para “despachar” os meninos maus.

O nosso camarada não aguentou a pressão (penso eu) e, no dia seguinte, disse adeus a Cadique, e desapareceu, levando a sua arma, ao encontro do inimigo.

Após o 25 de Abril, voltei a ter notícias do referido camarada (creio que no Jornal República), através de uma sua entrevista, dizendo que se encontrava, nessa altura, na Suécia.

Note-se que eu tenho em meu poder um manuscrito retirado de uma entrevista, que o mesmo deu á rádio de Brazzaville, em que fazia referência à sua fuga e pelos locais por onde tinha passado, e, como já se vinha tornando moda, impregnada de exagerados rasgos de determinado tipo de propaganda política, pouco abonatório para nós, ex-Combatentes. De quem veio tais afirmações, também não seria de esperar outra coisa.

Por falar em fugas, a guerra em que todos nós participamos tinha coisas espantosas, a ver um caso:

De vez em quando apanhávamos um homem africano “suspeito”. Se fosse velho ainda se safava, mas se fosse jovem era logo apelidado de turra e era enviado para Bissau. Andava por lá uns tempos, regressava de novo com ar satisfeito e um rádio nas mãos e era incorporado nas milícias. Davam-lhe uma farda e uma arma e, passados uns dias, o homem desaparecia no meio do mato. Espantoso não é?

Em 20/06/73, desembarcou em Cadique a CCS/BCaç 4514 e, a partir dessa data, iria constituir ali a sede do seu batalhão e dar continuidade aos trabalhos já iniciados e desenvolvidos pelas anteriores unidades na zona.

Não sei se houve acordo entre os “senhores da guerra”, mas em 19/07/73, arranjou-se tempo para organizar uma grande festa em Cadique.

Se fosse hoje, eu diria que iriam decorrer ali, em breve, eleições, já que foram feitas várias inaugurações: o Posto Sanitário, a Escola, o Monumento de Homenagem aos Reordenamentos do Cantanhez e foram descerradas duas Lápides de Homenagem ao Comandante Araújo e Sá e aos mortos do Cantanhez. Também se aproveitou a festa, para inaugurar duas ruas a que se deu os nomes do 1º e 2º chefes da POP de Cadique Imbitina, Banan, Nadum e Nanqueca Nandefa.

Tudo me leva a crer, que nosso amigo e Camarada António Carvalho (da CArt 6250, Mampatá), andou por lá perto e foi mesmo nessas bandas que aprendeu a fazer as suas brilhantes campanhas eleitorais (?).

Esteve presente o Comandante do CAOP 1, o Coronel Pára-quedista Curado Leitão. Quem sabe se o nosso amigo António Graça Abreu também lá esteve?

E a paróquia de Cadique estava representada pelo Comandante do Batalhão 4514, Tenente-coronel Sousa Teles, muitos militares, inúmeros população e muito provavelmente, misturados na multidão, vários guerrilheiros do PAIGC.

O almoço nesse dia foi mesmo de “ronco” e ainda deu tempo para “estragar” uma bola de futebol, num desafio a rigor entre a CCS do BCaç 4514 e da CCaç 4540.

A 22/07/73: Desembarcou em Cadique a 1º Companhia do BCaç 4514, que veio substituir a CCaç 4540.

Quase um mês depois, mais precisamente em 17/08/73, a CCaç 4540 disse adeus a Cadique, a bordo mais uma vez, da LDG Bombarda, tendo chegado a Bissau no dia seguinte e sendo conduzida para o D.A., em Brá, onde ficou instalada.

Nessa altura já não me encontrava em Cadique, pois tinha sido chamado para uma “missão” já programada há algum tempo (35 dias de férias na Metrópole). Apanhei um helicóptero (coisa rara nessa altura) e voei para Bissau.

Neste preciso momento, tentei imaginar o que teria sentido na despedida de Cadique, conjuntamente com a minha Companhia, e, a única coisa que me ocorria, nessa data, era pensar: “A merd. do barco nunca mais sai daqui.”

Se fosse hoje, creio bem sério, pensaria: “Foi com certa nostalgia e saudade que deixei para trás aquelas paragens, que, com sacrifício sem conta, ajudei a desenvolver e prosperar ficando ligado para sempre a Cadique.”

Depois de ter gozado as merecidas férias, regressei a Bissau em 31/08/73 e, quando entrei nos Adidos, deparei com muitas viaturas na parada prontas para saírem. Foi nessa altura que tomei conhecimento que a minha Companhia se encontrava ali, ao ver camaradas meus em cima das mencionadas viaturas.

Na recruta, o aspirante do meu pelotão, dizia com alguma frequência que existiam duas formas de ultrapassar os obstáculos que a vida militar nos opunha:

Primeira: Tentar passar o mais despercebido possível daquilo que nos rodeava, não dando nas vistas;

Segunda: Nunca se armar em herói, já que os cemitérios estavam cheios deles.

Eu, ao entrar nos Adidos, quando tomei conhecimento que o pessoal e as viaturas, que eu vira momentos antes, iriam escoltar uma coluna que se deslocaria de Bissau para Farim, cometi precisamente o primeiro erro “não passar despercebido”, e reconheço que terei cometido uma imprevidência, “mandando umas bocas foleiras”.

O nosso capitão ao ver quem era o “artista” das “bocas” (que mais parecia desfilar numa passerelle, para trás e para a frente), deve ter pensado lá para ele: “Tens a mania que és fino, então toma lá”, pois virou-se para mim e disse:

- Ó Campos larga o saco e sobe para cima de uma viatura!

- Eu meu Capitão? – perguntei.

- Não a tua prima.

- Mas eu nem sequer tenho uma arma – exclamei.

- Nem precisas, os turras sabendo que vais na coluna não nos atacam. Logo não precisas de arma nenhuma!

E lá fomos até Farim. A partir de Mansoa vi imensos vestígios arrepiantes e desagradáveis de emboscadas, ainda por cima sob uma chuva copiosa, durante toda a viagem de ida e de volta, que jamais esquecerei.

Nesse tempo, quase todas as colunas que faziam esse percurso, eram surpreendidas com emboscadas, das quais, infelizmente, resultaram muitas mortes de Camaradas nossos. Alguns dos corpos ainda se encontravam nos Adidos a aguardar embarque de regresso ao Continente.

O capitão teve razão, ia na coluna um militar que “impunha muito respeito” ao IN e de facto não aconteceu nada em toda o percurso e devo acrescentar, que, em quase vinte quatro meses de Guiné, nunca tive distribuída uma arma e nem um tiro disparei. É verdade, nem aos pombos!

No entanto fui ferido várias vezes e também tive o meu momento de glória.

Os ferimentos (várias escoriações), foram fruto das “aterragens” mal feitas nas valas. Umas vezes mal calculadas e outras porque entrava de bruços, cabeça, etc.

Por favor não se riam porque muitos de vós também as fizeram.

Quanto ao acto de grande de heroísmo, tudo se passou durante um ataque do PAIGC, com armas ligeiras ao nosso aquartelamento. O meu camarada de serviço foi para o abrigo, não tendo levado o rádio como lhe competia e nada nem ninguém o demoveu, para o ir buscar.

Eu, com uma calma que não me era habitual, saí do abrigo e fui buscar o rádio, regressando ao brigo com toda a calma deste mundo. A justificação para tal feito, só a encontro num bom copo de whisky que emborcara momentos antes.

Para surpresa minha, não surgiu nenhuma proposta para o prémio Governador ou mesmo um simples louvor. Senti-me deveras injustiçado pela atitude das minhas chefias militares.

Em 08/09/73, saímos do Depósito de Adidos, com destino a Nhacra, onde iríamos substituir a CCaç 3477 – “Os Gringos de Guileje”.

A partir de 19/09/73, a Companhia passou a ter á sua responsabilidade o sector de Nhacra, sob as ordens do COP 8, instalado no local.

Meus amigos, para mim e para a minha Companhia a guerra tinha terminado, iria ter cerca de um ano de férias e ainda foram remuneradas.

Duas notas finais:

- Aproveito para saudar, todos os ex-Combatentes e, em particular, os Açorianos, pois foram muitos os que por passaram na Guiné. Encontrei-os em Bigene, Cufar e Nhacra.

- Em primeira mão e em exclusivo, informo o pessoal tertuliano, que fruto de mexer em papéis antigos e de dizer umas ”asneiritas” no blogue, sobre a minha Companhia, não resisti à nostalgia que se tem vindo a apoderar de mim e, em Abril próximo, vou retornar à Guiné.


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cacine > Cadique > Junho de 2007 > Pedras que falam da CCAÇ 4540 - Somos um Caso Sério -que esteve aqui, em Cadique, em pleno coração do Cantanhez, na margem esquerda do Rio Cumbijã, de 12 de Dezembro de 1972 a 17 de Agosto de 1973. Foto: Pepito / AD - Acção para o Desenvolvimento (2007). Direitos reservados.

Um abraço Amigo,
Eduardo Campos
1º Cabo Telegrafista da CCaç 4540

Fotos 31, 32 e 33: © Eduardo Campos (2009). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


sábado, 9 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5620: Agenda cultural (53): Lançamento do romance O Ninho, de autoria de Alexandra Almeida Reis (Vasco da Gama)

1. Mensagem do nosso camarada e amigo Vasco da Gama, com data de 9 de Janeiro de 2009:

Camaradas e Amigos,
Vou pregar uma pequena partida ao nosso camarada e amigo Manuel Reis, membro conhecido do nosso Blog e homem solidário em todas as ocasiões, com a conivência do nosso Comandante Luís Graça e do nortenho, mas mouro de trabalho, Carlos Vinhal, se essas boas almas estiverem para me aturar. Mas, como é por uma boa causa, até o Pira de Mansoa vai dar uma pequena ajuda, por isso atrevo-me à partida/pedido.

A filha do nosso Manuel, enquanto miúda, acompanhou os seus pais onde a profissão de ambos – professores do Ensino Secundário – os levava, passando por vários locais entre os quais Lamego e Aveiro.

Terminado o périplo sob a asa dos papás rumou a Coimbra para tirar a sua licenciatura em medicina e mais tarde ao Porto, onde se especializou em medicina interna, sendo hoje médica no hospital de Santa Maria da Feira.

A Dra. Alexandra Reis, além de médica, é também escritora e vai lançar no próximo dia 16 de Janeiro em Esmoriz, no Restaurante-Bar Capitão Gancho, cerca das 17 horas, o seu primeiro romance intitulado ”O NINHO”, que é um somatório de histórias recheadas de acontecimentos inesperados e que envolve várias gerações, tal como vai começando a acontecer com o nosso ninho - o Luís Graça e Camaradas da Guiné.


Aqui deixo um fac-simile da capa do livro para abrir o apetite aos nossos tabanqueiros na sua aquisição, deixando também um pedido ao Manuel para que, logo que lhe seja possível, envie um convite formal da apresentação do NINHO da Dra. Alexandra Reis.

Formalizado que seja o convite, por lá aparecerão alguns de nós. Aos que não vão poder estar que lhes seja indicada a melhor forma de aquisição do livro.

Do meu Buarcos lindo, um abraço para todo o pessoal.
Vasco A.R. da Gama


2. Comentário de CV:

É sempre com prazer que damos notícias das actividades culturais, e outras, dos filhos dos nossos camaradas. Como é sabido e assumido, qualquer filho de um camarada é como se fosse filho do colectivo deste Blogue.

Em momentos como estes de alegria para os babados progenitores, o resto da Tertúlia sente que um dos seus filhos está a fazer algo que ambicionou e pelo qual lutou.

Esperando novas e mais concretas notícias sobre o lançamento de "O Ninho", desejamos desde já à escritora Alexandra Reis o maior êxito, neste que julgamos ser o seu primeiro romance, assim como na sua carreira como médica.

Aos papás os nossos parabéns.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5582: Agenda cultural (52): 4.º Encontro do 2.º Ciclo de Colóquios-debates "Fim do Império-olhares civis", dia 19 de Janeiro em Oeiras

Guiné 63/74 - P5619: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (1): A tasca do Maximiano em dia de bife

1. Mensagem do nosso camarada Rogério Cardoso (ex-Fur Mil, CART 643/BART 645, Bissorã, 1964/66), com data de 8 de Janeiro de 2010, contendo a primeira nota solta da sua CompanhIa:


A TASCA DO MAXIMIANO

As tropas actuais podem ter dificuldade em acreditarem nestas histórias, tão bem equipadas e alimentadas que são actualmente, mas quem andou como nós, no duro, sabe que são verdadeiras, eles concerteza não estariam dispostos a passar situações como a que vou contar.

A D. Maria, esposa do senhor Maximiano tinha dificuldade em alimentar a sargentada da Cart 643 e mais alguns que iam sempre aparecendo. Ela recebia géneros da Manutenção Militar no valor de vinte e sete escudos/dia/homem e em troca dava refeições confeccionadas com alguns frescos, como carne, etc..

A casinha só tinha duas pequenas salas e a malta comia à vez. A sala principal dava para a cozinha(?), tudo a lenha, chão de terra batida, louça de alumínio e ferro da cor dos naturais, mosquitos, formigas de asa, borboletas e por vezes, à noite, uns morcegos pendurados no tecto de palha, também tendo direito à refeição. Claro que isto para nós não é novidade nenhuma, mas quem não passou por estas situações também gosta de saber. Aconselho os voluntários dos Líbanos, Afeganistãos e outros que tais a meditarem nisto.

Eu e o João Graça estávamos encostados à ombreira da porta da chamada cozinha, o menu era composto por bifes fritos que estavam a ser confeccionados. Entretanto uma ajudante da D. Maria tinha uma criança nua a gatinhar no chão de terra. Por qualquer razão fisiológica, o bébé começou a desintegrar-se abundantemente, e nós com um apetite devorador a ver a cena. Então a mãe limpou diversas vezes o menino com a mão, que por sua vez limpou a um pano da cozinha. Claro o seu trabalho de por os bifes no tabuleiro para ir à mesa continuou.

Os colegas que não assistiram à cena comentaram: - É pá vocês hoje estão com fastio?

Rogerio Cardoso

Furriéis Guerreiro (Falecido), Sousa, Graça, Rogério e ?
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 4 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5588: Álbum fotográfico de Rogério Cardoso (3): Relembrando locais e camaradas da CART 643/BART 645

Guiné 63/74 - P5618: Bibliografia de uma guerra (54): 30 anos de guerra colonial (José Brás)

1. Mensagem do nosso camarada José Brás (ex-Fur Mil da CCAÇ 1622 (Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68, autor do romance "Vindimas no Capim", Prémio de Revelação de Ficção de 1986, da Associação Portuguesa de Escritores e do Instituto Português do Livro e da Leitura), com data de 7 de Janeiro de 2010:

Carlos
Tu que me disseste ainda agora que queres mais coisas minhas e me apanhas na ressaca do fim de "Lugares de Passagem" e da sua revisão e "guerra" para possível edição, envio-te aqui um texto antigo, mas acho que nunca velho, editado como introdução de uma brochura com "bibliografia sobre a guerra colonial", por mim organizada para complementar uma "mesa redonda" e uma exposição que também organizei na Fundação Gulbenkian, a pedido do Dr. Afonso de Albuquerque, por ocasião do "I.º Encontro Nacional Sobre Stress Traumático".

Junto ainda cópia da capa brochura aludida, da autoria de José Brito, meu colega da TAP e excelente pintor, a partir de um trabalho de Malangatana.


30 ANOS DE GUERRA COLONIAL

Mais de vinte anos passaram sobre o fim da "Guerra Colonial", mais de trinta sobre o seu início, e perder-nos-íamos nos séculos para encontrar o primeiro gesto de resistência armada dos povos das ex-colónias contra a presença dos portugueses.

Como alguém já disse, ao contrário da versão histórica que nos cercou anos a fio, nos cinco séculos de dominação portuguesa em parcelas de África, nunca se viveram mais de cinco anos seguidos sem actos de rebeldia organizada, muitas vezes extravasando os limites da etnia, algumas mesmo promovendo alianças vastíssimas, juntando interesses étnicos e tribais em manobras de diplomacia e de guerra que nos espantam hoje e que deixavam os representantes do reino e as forças de ocupação de cabeça à roda para entender tais impulsos de protesto e de libertação.

Na história do desenvolvimento da humanidade, colonialismo é, entretanto e em rigor, um fenómeno mais recente e de limites sociais, económicos e políticos precisos. Por isso nos atemos neste documento apenas ao período e aos acontecimentos que tiveram início em Luanda a 4 de Fevereiro de 1961 e que, trágica e rapidamente ecoaram por todo o norte daquela antiga colónia, se alargaram a Moçambique e à Guiné e cujas marcas, trinta e quatro anos passados sobre o seu início material, se reconhecem ainda com grande expressão nas sociedades dos cinco Países envolvidos (não esquecendo Cabo Verde), algumas visíveis nas mutilações físicas dos actores presentes no "campo de batalha", outras menos disponíveis à vista desarmada mas não menos perturbadoras e fundas na consciência, nos medos e nas euforias de cada um dos que voltaram aparentemente ilesos, outras mesmo colectivas, persistentes e marcantes no presente social e político, e, provavelmente, agentes com algum peso na definição de futuros.
Falar de tais marcas não é tarefa fácil para ninguém, excepto num quadro de mercadorização de todos os objectos, incluindo os mais insuspeitos e íntimos de um homem ou de um povo. Neste caso, como acontece em Países onde a ideologia do mercado se instalou já como forma única de relacionar os homens, é uma verdadeira indústria que se instala e desenvolve, especialmente no cinema e na televisão, disponibilizando por preços acessíveis como qualquer produto de consumo, as mil vertentes da dor, da exaltação nacionalista ou dos dramas e traumas individuais e colectivos de todo um povo, banalizando-os e fazendo a catarse indispensável da garantia da aceitação de qualquer outra futura aventura de guerra.
Destas marcas, sabemos que é difícil falar. Sabemos, contudo, que também é difícil calar.
Falemos, então, por mais difícil que nos seja. De nós. Das marcas que em nós persistem.
Como fizeram e ficarão fazendo por muito tempo os que desta lista constam.

Falemos!
Lisboa, 25 de Outubro de 1995

José Brás
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 16 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5477: Blogoterapia (137): Palavra de honra que não consigo entender (José Brás)

Vd. último poste da série de 20 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4845: Bibliografia de uma guerra (53): Dois livros: “Memórias de um guerreiro colonial” e "Trauma" (Belarmino Sardinha)

Guiné 63/74 - P5617: Notas de leitura (51): Os Anos da Guerra, de João de Melo (5): Carta número... e, Uma granada sob o coração (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Janeiro de 2010:

Queridos amigos,
Telefonei ontem ao escritor Armor Pires da Mota que me prometeu emprestar todos os seus livros relacionados com a Guerra da Guiné. A sua obra, tal como a de Álvaro Guerra e José Martins Garcia, ocupam, em minha opinião, um lugar cimeiro em tudo o que se escreveu, “do lado de cá”, entre os anos 60 e 80. São companheiros de grande nível literário, de que nos temos que orgulhar.
Conviria que também relançássemos um olhar sobre escritores que defenderam a Guerra Colonial, por imperativos ideológicos.
Impressiona-me como os escritores de primeira água possam estar obliterados.
Valerá a pena darmos todos uma opinião sobre o assunto.

Um abraço do
Mário


OS ANOS DA GUERRA:
ALGUNS OLHARES SOBRE A LITERATURA DA GUERRA DA GUINÉ (5)


Beja Santos

Recordatória

Entrámos na recta final dos textos compilados pelo escritor João de Melo, na sua antologia referente à literatura da Guerra Colonial, e no que toca ao teatro de operações da Guiné. Importa recordar que estes textos prendem-se com obras publicadas ou inéditas ao nível dos anos 80 e 90. Conviria, no caso de se encontrarem gritantes lacunas, que fizéssemos chegar ao autor informações sobre outros livros publicados e que não vêm referenciados em “Os Anos da Guerra”. Mas uma antologia é mesmo isto: uma escolha arbitrária, um olhar pessoas perante um oceano de palavras impressas ou de que o autor teve conhecimento, quando são textos inéditos. O importante é o levantamento de tudo quanto conhecemos, publicado ou por publicar. Para que os historiadores, amanhã, não nos censurem pelo alheamento.


Carta número cento e dezassete

“O comandante chegou contrafeito, lavado, perfumado, preparado para a festa de anos de um dos filhos do administrador da povoação. E esperou que o longo comboio cinzento de viaturas, regressado pela tropa de segurança à estrada, ondulasse como um farruscado bichinho-da-seda de ficção ao passar pela porta de armas. Do jipe que comandava a força escorregou sem convicção para a sala de operações o capitão responsável, irresponsável para as patentes acima, popular entre os soldados pelas longas horas de conversa, pelo cuidado na resolução de problemas pessoais aqui e acolá e pelo medo na hora da verdade”.

“Em duas horas e meia os restos do camião ficaram atrelados ao pronto-socorro. O capitão refugiou-se no carro de combate mais à mão e daí mandou levantar a segurança, cabeça mascarada pela portinhola pequena da vigia. Os mecânicos voltaram ao coio de guindastes e o oficial da oficina moldou-se a um dos guarda-lamas, arma apontada sem jeito a impor às tripas um coração decente.

Lentamente, o rebocador chegou ao alcatrão guiado pelo chefe dos sapadores, alguns metros à frente, a carpir pelos poros em peque o rabo é o mais difícil de esfolar.
A coluna refez-se, agora o monstro adiante, vítima de farsa a ser abocanhada sem sucesso por outro desventrado, logo ao seguir ao carro de combate do reconhecimento. Movimento marcado pela cabeça, cortejo de passeio de fim-de-semana no rio do desespero. Dançavam sombras em chacota, fugidias nas bermas, quando os holofotes dos carros de combate devassavam a desfazer-se em preces e desculpas os renques desalinhados, e as danças mais rígidas e a música mais estranha provocavam um toque arrependido a tempo no nervo do indicador.”

José Luís Farinha, “De camuflado no peito e na cabeça”, 1978

Uma granada sob o coração

“Os soldados de guarda disparavam para o mato às cegas, sem verem ou ouvirem o que quer que fosse, um alvo ou uma ameaça, porque mais ou menos por ali se tinham sumido os dois rapazes que, possessos de súbita violência, se haviam atirado numa corrida doida até desaparecerem nos desconhecidos, inexistentes, mas familiares caminhos da floresta mãe da vida, da liberdade, da justiça e de tudo o que os homens da floresta sabem, de tudo o que aprenderam com cada árvore, flor, erva, rio, charco, réptil, ave, insecto, cada ser vivo que bebe na terra o segredo de viver, subsistir, iguais no instinto de matar, na inevitabilidade de ser morto. Vimos se sumiram no imenso mar verde das suas indubitáveis origens.

Tornou a colocar a granada ao peito num dos muitos gestos difíceis, imprecisos, que a todos foram necessários para ajustar equipamentos e pegar em armas, à pressa, flutuando a custo no ar denso, com um esbracejar de náufragos, extenuados, corpos-soldados-de-chumbo que eram homens e o sabiam na carne, só o sabiam na carne. Sugeriram-lhe que deitasse fogo à aldeia antes de se ir embora e ele recusou porque a sua guerra não era a mesma em que se estava a debater, a sua ainda não tinha começado, seria uma guerra de ganhar ou perder e não aquela, se bem que duvidasse que essa outra guerra alguma vez chegasse.”

“Foi logo a seguir. Caiu em cima deles a surpresa, uma chuva de ferro, estampidos e silvos de ar vergastado e quedas e ramos partidos e pragas e explosões e o gargalhar fantasmagórico das rajadas matadoras e o homem ao lado dele com o sangue no ventre e nas mãos que disse «Ai, mãe!» e morreu.

Atrás da sua árvore levou a mão ao bolso e tirou-a, a reluzente granada com quem os seus dedos andavam calhados de amor e vício, puxou a argola amarela num repente de furor e ficou um momento a mira-la, a cavilha apenas presa pelos dedos brancos de força enquanto, desfocado, o cadáver do ventre sangrento o olhava fixa e friamente; jogou-se para a luz, para lá do escudo eleito, e atirou-a para de onde vinha a morte sonora e invisível que semeava surpresas de sangue.”

Álvaro de Guerra, “O disfarce”, 1979


Falta-nos agora José Martins Garcia, um escritor fundamental dos anos 70, que deixou registos de valor indiscutível sobre a sua experiência na Guiné. Ele e Sérgio Matos Ferreira irão pôr termo a esta viagem antológica em que tivemos como bordão as escolhas do escritor João de Melo
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5611: Notas de leitura (50): Os Anos da Guerra, de João de Melo (4): O Tempo em Uane e O Bando Armado (Beja Santos)