sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5889: Estórias cabralianas (58): O Dia do Patacão e a Dívida do Alfero (Jorge Cabral)

1. Mensagem do Jorge Cabral, membro sénior, senador ou Homem Grande da nossa Tabanca Grande (isto quer dizer que já vem da I Série do blogue, pelo menos desde 2005...):

Caros Amigos,

Um País endividado? ... É porque não conheceram o 'meu' Missirá.

Aí vai 'estória'. Até breve

Abraços Grandes

Jorge Cabral



2. Estórias cabralianas (59) > O Dia do Patacão e a Dívida do Alfero
por Jorge Cabral


Tenho a certeza que os primeiros cabelos brancos do Alfero lhe nasceram nos dias do Patacão.

No final de cada mês, deslocava-se a Bambadinca (**) a fim de levantar o dinheiro para pagar os ordenados aos Militares do Pelotão e aos Milícias. Era o dia do Patacão, ansiado por todos e ainda mais pela multidão de credores, que desde manhã acorria ao Quartel. Usurários, Pré-Sogros e Sogros, Batoteiros Profissionais, Dgilas, Alcoviteiros, Fanatecas, Músicos… havia sempre alguém à espera que o Alfero liquidasse as dívidas dos seus homens. Todos devedores, incluindo o Alfero, que prometera pagar,  em prestações suaves, a conta do Fontória (***), onde em férias, numa noite, oferecera de beber a todos e terminara na Esquadra da Praça da Alegria.

Chegado a Missirá, já o seu braço direito Branquinho, montara a mesa, na qual amontoara papéis e mais papéis, que titulavam débitos da cantina, do arroz, de adiantamentos, de empréstimos…

E logo começava a cerimónia que obedecia a uma ordem hierárquica ascendente. Em primeiro lugar, recebiam os Milícias, depois os Soldados, em seguida os Cabos, por fim os Furriéis e em último sempre o Alfero.

As discussões por parte dos credores externos eram acaloradas e às vezes chegavam mesmo a vias de facto. No meio da algazarra, e com muitas reclamações, lá se ia pagando o que restava a cada um.

Porém e quase sempre, quando finalmente cabia a vez do Alfero receber, já se tinha acabado o Patacão. Paciência, pensava ele. Que se lixe o Fontória.

... O narrador confessa que se tinha esquecido desta dívida e que foi o Blogue a recordá-lo. Há um mês, de novo Alfero, porque isto de ser Alfero é vitalício, resolveu liquidá-la, apresentando-se no Cabaret. Dirigiu-se ao Porteiro. Informou tratar-se de uma dívida de Janeiro de 1971. Ele chamou um Segurança. Repetiu o seu propósito. Veio o Gerente. Insistiu. Trataram-no como um tonto. Exaltou-se. Disparatou. Juntaram-se pessoas. Chegou a PSP

Velho e honesto Alfero. Como há 40 anos, lá foi parar à Esquadra da Praça da Alegria.

Jorge Cabral

3. Comentário de L.G.:

Tenho um (in)confidência a fazer: o livro de estórias do nosso alfero vai tem editor e patrocínios, o que quer dizer que vamos ter ronco, festa de lançamento, (re)encontros felizes, salgadinhos, sumos e Portos de honra... No Fontória, no Maxime, num cabaré de Lisboa!!! Para já, o alfero já me pediu para escrever o prefácio, coisa que vou fazer com todo o gosto, gozo  e esmero... O autor está a dar os retoques finais da sua selecção das 50 melhores estórias cabralianas...

Isto não quer dizer que o alfero arrumou as botas, tirou os mezinhos do corpo, e lançou ao Geba a chave do baú das memórias trágico-burlescas da sua passagem por Fá Mandinga, Missirá, Bambadinca e outras terras exóticas da Guiné, e muito menos a caneta de ouro com que ele escreve as estórias cabralianas...

Isto quer apenas dizer que o nosso alfero não quis decepcionar os/as seus/suas muitos/as admiradores/as que de há muito lhe vinham pedindo o livrinho, autografado, do Humor Negro & Branco em Tempo de Guerra... Que isto de e-books ainda não é a mesma coisa...

Parabéns, Jorge! Ah, e no dia 28 de Maio próximo, lá estarei na tua Universidade Lusófona, no teu mestrado de criminologia (****), às 18h, para a charla sobre... a violência da  guerra que nos acompanha no pós-guerra até à hora da nossa morte, amen!...  A ti, não poderia dizer que não, mesmo enterrado até ao pescoço no tarrafo da vidinha do dia-a-dia que está bera...

___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 22 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5522: Estórias cabralianas (57): As duas comissões do Alfero... ou a sua dolce vita em Bissau, segundo a Avó Maria e a Menina Júlia (Jorge Cabral)

(**) Sede do BART 2917 (1970/72), a que estava adido o Pel Caç Nat 63 (Fá Mandinga e Missirá, 1969/71), de que o Alf il Art Jorge Cabral foi comandante.

(***) Famoso cabaré da Praça da Alegria, Lisboa...

Vd. poste de 5 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3025: Os nossos regressos (7): Perdido, com um sentimento de orfandade, pelos Ritz Club, Fontória, Maxime, Nina... (Jorge Cabral)

(...) Queria voltar de barco, ciente que precisava de pôr a cabeça em ordem. Mas não, vim de avião. Numa anterior colaboração, relatei a chegada – o ralhete do Pai, e a tristeza da Mãe.



Em Lisboa procurei os antigos Amigos. Uns haviam fugido, outros faziam perigosas “comissões” no Museu Militar, no Ministério do Exército, no Quartel General… Queriam eles lá saber da Guiné ou da Guerra…

Por mim sentia-me perdido, invadido por um sentimento de orfandade… Então desanuviei… estagiando entre copos e carinhosas damas, que até compreendiam a angústia do combatente.


Ritz-Clube, Fontória, Maxime, Nina, Cantinho dos Artistas… Cá, como lá, em Roma, fui sempre Romano.


Estágio concluído com distinção, acabei por assentar. (...)

(****)  É amorosa, competente e oportuníssima a tua secretária, veja-se o mail que me mandou e que eu tive em conta na edição deste poste. Reparo, por outro lado, que contrariamente a muito boa gente da nossa Ágora (leia-se: Praça Pública) ainda não estás, meu caro Jorge, com o temível Alzheimer, doença que não havia na Guiné do nosso tempo (pelo menos, na zona leste por andámos)... Posso garantir que ainda conheces o RDM e és capaz de contar todos os postos da hierarquia militar de soldado básico a general de quatro estrelas, e do cabo à ré... Pormenor de não somenos importància: um Cabo é um Cabo e escreve-se sempre em caixa alta...

Exmos. Professor,

Pede-me o Professor Jorge Cabral que envie este e-mail para que proceda a uma pequena alteração. Onde se lê cabos com letra minúscula, deverá ler-se Caboos.

Sem mais de momento
Melhores Cumprimentos

Instituto de Criminologia
Sec Pedagógico
Petrouska Ribeiro

instituto.criminologia@ulusofona.pt
Grupo Lusófona
Tel.: 217 515 500 Ext.: 2383 / Móvel.: 962 534 503

Petrouska:  Para a próxima deixa lá,no caixote do lixo do computador, a palavra Excelência... Faz-me imaginar, não sem um arrepio pela espinha acima, os discursos dos gatos pingados que terei de gramar no dia do meu funeral...

Guiné 63/74 - P5888: Notas de leitura (71): Além do Bojador, romance de estreia de Manuel Fialho (I) (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Fevereiro de 2010:

Queridos amigos,
Aqui vai o primeiro texto referente ao romance de Manuel Fialho.

Lanço a todos o seguinte apelo: quem tiver os romances “A Lebre” ou “Capitão Nemo e Eu”, de Álvaro Guerra, peço a caridade de mos emprestar, já agora gostava de fazer o repertório do Álvaro Guerra escritor/combatente da Guiné por completo.

Um abraço do
Mário


Além do Bojador (I)

Beja Santos

“Além do Bojador”, é o romance de estreia de Manuel Fialho, um engenheiro mecânico de Moura que por vezes trabalha a sul do Cabo Bojador. Subintitula esta ficção com o dizer: “Na guerra colonial da Guiné, a história pré-colonial da África Ocidental”. É um livro longo, generoso, onde os objectivos didácticos não são iludidos. O narrador é um franciscano (Frei Miguel) que vai aparecer como capelão na região de Farim, aí por 1970. Vem de Assis, Itália, onde vive em recolhimento na sua ordem religiosa. Depois de passar uns dias na companhia de seu pai, que vive em Cacela Velha, no Algarve, embarca num paquete com os seus livros e músicas, vai tomando conhecimento da unidade militar onde o inseriram. É uma narrativa serena, minuciosa, como se o autor tivesse o propósito de contar tudo a leigos, a começar pela organização de um batalhão. Inclusivamente se forja a apresentação do teatro de operações: “Farim ficava a sul, numa ponta do nosso território, junto ao Cacheu, um daqueles caudalosos rios da Guiné. Para nordeste havia uma estrada em direcção a Cuntima e ao Senegal, que passava por Jumbembem. Daqui saía outra estrada em direcção a sudeste, até Canjambari, onde se encontrava uma companhia independente. E de Farim mais duas estradas: uma para o noroeste, para Dungal, também muito perto da fronteira com o Senegal, mas esta, aparentemente, estaria intransitável, e ainda outra para sudoeste em direcção a Binta, aonde se poderia também chegar através do rio Cacheu. A partir daí, continuando para noroeste e atravessando com dificuldade a bolanha, ou a zona alagada do Cufeu, Binta ligava-se por estrada a Guidage, mesmo em cima da fronteira com o Senegal, mas defendida por pessoal de outra companhia. Estas duas pequenas povoações – Binta e Guidage – pertenciam ao sector operacional vizinho do nosso. A sul de Farim, na outra margem do Cacheu, que se atravessava por uma balsa, ficava a pequena tabanca de Saliquinhedim. Talvez pela dificuldade do nome, esta tabanca era mais conhecida por K3, porque se situava apenas a três quilómetros do rio, de onde emergia a nova estrada, agora em construção, que depois se bifurcava em duas, uma para o Olossato e a outra para Mansabá, ambas fazendo a ligação de Farim a Bissau, após a travessia do Cacheu por essa balsa e que, eventualmente, ficaria pronta durante a nossa comissão”. Se imaginarmos esta conversa num esboço improvisado no bar de oficiais de um paquete, temos um conjunto de alferes candidatos à Academia Militar. Aos poucos, vamos ficando a saber o que é um oficial de transmissões, um sapador, um administrativo, o alferes da manutenção até o médico exprime o que vai fazer. Os alferes operacionais falam de pistas de aviação e locais para os helicópteros aterrarem, dissertam sobre os corredores de passagem dos guerrilheiros. Um capelão à cautela, depois de tomar conhecimento da guerra que o esperava foi fazer as suas orações na capela: “Depois de rezar fiquei ali sentado, reflectindo sobre aquela juventude tão generosa que interrompia os seus estudos e se via coagida a participar numa guerra que nada tinha a ver com ela... a nossa juventude parecia não ter alternativa. Apenas uma minoria, mais propensa a tomar outra consciência política, opondo-se frontalmente a um regime autocrático, onde não faltava uma feroz polícia política, é que resolver a seguir os caminhos da emigração, desertando...”.

E assim se chega a Bissau, daqui o batalhão parte por LDG para Farim. Junto do Cacheu, Frei Miguel vê com assombro aquele pequeno forte que lhe recorda uma história que começou no século XV e XVI, discorre sobre os acontecimentos da região até ao início da luta armada (quem nada sabia sobre a história da Guiné fica com duas páginas de síntese). O franciscano fixa o percurso da lancha, regista pormenores do tarrafo, descreve a paisagem e depois Farim, povoação que percorrer demoradamente. O comandante vai dando ordens, lança advertências: “Os nossos alferes tenham muito cuidado ao receber as viaturas, os rádios e, acima de tudo, as ferramentas. De modo algum descentralizem essas conferências. Confiram muito bem, pessoalmente, todas as listas de material e vejam se está tudo lá, e, principalmente, em que estado de uso. Só, então, passem essa responsabilidade para o sargento mecânico e para os furriéis. E, sobretudo, não dêem qualquer hipótese de essas ferramentas puderam voltar às mãos anteriores. Não seria nada inteligente da nossa parte assistir, por exemplo, à contagem do mesmo alicate por duas, três ou mais vezes...”

Frei Miguel vai fazer obras na Capela de Farim, depois começa a viajar, acompanha as colunas, o seu zelo religioso é infatigável. Descreve as suas viagens, como é que se desatola uma GMC, embevece com um recital de guitarra clássica, aos poucos adapta-se à rotina. É aqui que surge o fascínio inter-religioso e inter-cultural: vai até à tabanca, conhece um homem grande, de nome Malan, será o princípio de uma relação que o leva a estudar e a descrever a história pré-colonial e a afeiçoar-se por Binta (aliás, Fátima, o nome da filha do Profeta). É uma larga divagação histórica, a epopeia do império Mandinga vem ao de cima.

A guerra manifesta-se em toda a sua pujança: flagelações, morteiradas, emboscadas, minas anti-carro e minas anti-pessoal. Nos intervalos dos seus trabalhos de capelão, Frei Miguel conta às crianças a história grandiosa desse mundo que precedeu a colonização. É nisto que ele vai sentir um sentimento diferente por Binta, uma forte atracção, isto na altura em que fala do apogeu do povo Songhai de Tombuctu e do império do Mali. Os Mandingas de Farim estão orgulhosos. Frei Miguel entra num derriço por Binta: “Aqueles olhos sorriam como se fossem de uma menina que tivesse cometido alguma travessura. O seu rosto tinha o mesmo ar de intensa frescura, com o cabelo ainda por secar, após o banho da tarde. Eu não me cansava de admirar a sua figura tão esbelta e tão linda, ali à minha frente. Usava o mesmo tipo de corpete muito reduzido e todo aberto nas costas, uma saia comprida de um outro tecido estampado, que a fazia ainda mais alta e realçava a sua extrema elegância”.

Frei Miguel vive a tentação, repete infinitamente as suas orações, até à exaustão, vestido no seu hábito franciscano. O impensável acontecera, o mundo de um jovem capelão de 27 anos entrara na deriva.

Este livro de Manuel Fialho é de 2008, Edição 100 Luz.


(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5877: Notas de leitura (70): Os Sinos de Bafatá, de Joaquim Ribeiro Simões (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P5887: Os Unidos de Mampatá, por Luís Marcelino, ex-Cap Mil da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74 ) (4): Actividades desenvolvidas

1. Mensagem de Luís Marcelino (ex-Cap Mil, CMDT da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74), com data de 7 de Fevereiro de 2010:

Caríssimos editores e amigos,
Junto envio um apontamento mais da CART 6250
Um abraço


OS UNIDOS DE MAMPATÁ (4)

Olá Luís, demais editores e amigos tertulianos.

Neste início de ano de 2010, desejo a toda a família da Tabanca Grande muitas alegrias e profícuas realizações.

Após um longo período de ausência venho aqui, uma vez mais, trazer outro apontamento do dia a dia da CART 6250 de Mampatá, relatando sinteticamente algumas das actividades desenvolvidas.


ACTIVIDADES DESENVOLVIDAS

Como é sabido, a actividade em campanha não se esgotava nos patrulhamentos e demais trabalhos de caris operacional.

Sendo aquela a actividade principal, outras tarefas preenchiam o nosso tempo, tornando-o mais agradável, motivante e interessante.
Assim, o tempo extra-operacional era dedicado ao desporto, actividades recreativo-culturais, concursos de trabalhos manuais festivais...

Enfim, várias iniciativas que visavam preencher o tempo com vista a tornar mais suave a ausência das famílias e desanuviar a tensão do dia a dia da actividade operacional, sempre muito exigente e stressante.

Mas o apoio à população era também uma preocupação sempre presente que se manifestava de diversas formas: fornecimento de transporte, apoio sanitário, apoio alimentar, e sobretudo apoio na cultura/educação, através do ensino pré-primário e primário.

Quando chegámos já havia uma escola onde era ministrado o ensino primário.
Porque a existente já era insuficiente para as necessidades daquela povoação, por ordens superiores, iniciámos ainda em 1972, ano da nossa chegada, a construção de uma nova escola, que concluímos no ano seguinte.

Escola já existente

A nova Escola

Frequentaram a escola durante os anos de 72/73 e 73/74, 221 crianças, na pré-primária, 1.ª, 2.ª, 3.ª e 4.ª classes.
Fizeram o exame da 4.ª classe 16 crianças.

Afecto a esta actividade esteve sempre o Furriel Simões, que deixou de ser um operacional do 1.º GCOMB para passar a ser conhecido pelo Senhor Professor, que ensinava e coordenava toda a actividade escolar.
É claro que esta actividade também muito contribuiu para o óptimo relacionamento existente entre os militares da Companhia e toda a população que ali vivia.

Também os adultos foram objecto da nossa atenção através das escolas regimentais que se destinavam aos militares;

No aquartelamento, que, como já referi em anterior apontamento, era uma tabanca, onde moravam lado a lado os militares e a população, nas mesmas moranças, estavam a Companhia, um Pelotão de Africanos e uma Companhia de Milícias.

Frequentaram as aulas regimentais 25 militares africanos no ano 72/73, na 3.ª e 4.ª classes e 26 no ano 73/74.
Juntamente com militares da Companhia, fizeram exame da 4.ª classe 28 militares.

Professor Simões com seus alunos

A Companhia dispunha de uma equipa de obras muito dinâmica. Além da escola já referida, o edifício de Comando, balneários e outras, concretizou um sonho muito antigo da população: construiu um pequeno edifício no centro da Tabanca a que se denominou MESQUITA, onde a população passou a poder fazer as suas orações e actos de culto.

Festividade religiosa. Ao fundo a Mesquita

Estou certo que a nossa presença em Mampatá não foi em vão. As obras falam por si e os destinatários poderão testemunhar esta realidade que também serviram para acentuar e alimentar o espírito de coesão e amizade que a todos unia e que fazia jus ao nosso lema e que ainda hoje é uma realidade, traduzido nos encontros que anualmente realizamos expressando sempre uma alegria transbordante.

Festividade muçulmana em Mampatá
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Nota de CV:

16 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4964: Os Unidos de Mampatá, por Luís Marcelino, ex-Cap Mil da CART 6250 (Mampatá, 1972/74 ) (3): Onde mora o perigo

Guiné 63/74 – P5886: Histórias do Eduardo Campos (11): CCAÇ 4540, 1972/74 - Somos um caso sério (Parte 11): Nhacra 6/Final



1. O nosso camarada Eduardo Ferreira Campos, ex-1º Cabo Trms da CCAÇ 4540, Cumeré, Bigene, Cadique, Cufar e Nhacra, 1972/74, dando continuidade às suas memórias da Companhia em Nhacra, iniciadas nos postes P5711, P5729, P5796, P5812 e P5869:enviou-nos a 11ª fracção e mais alguns documentos históricos do seu arquivo pessoal:


CCAÇ 4540 – 72/74

"SOMOS UM CASO SÉRIO"

NHACRA 6

Os dias passavam e, com as noticias que chegavam de Lisboa, a ansiedade do regresso cada vez se acentuada mais. Afinal a guerra tinha mesmo acabado e continuava a sentir-se uma certa anarquia entre as forças militares. Os meus presságios não eram os melhores, mas acabou por ser só “fumaça” minha, como disse mais tarde o Almirante.

Um torneio de futebol de salão surgiu então em boa altura, criando nova diversão e distracção, que passava pela discussão clubista, as críticas sobre as arbitragens, os golos marcados e sofridos, os “frangos” dos guarda-redes, etc., servindo, em parte, para que nos abstraíssemos durante alguns dias, do total “deserto” de acção e movimentação, que agora nos rodeava.

EQUIPA STORNOS CAMPEÕES. De pé, esquerda para a direita: Sequeira, Mendes e Barros. Em baixo, da esquerda para a direita: Silva, Eu e Saraiva

O “Jornal” continuava a trazer problemas, com saneamentos e demissões à mistura, seria a aprendizagem da democracia a funcionar?

A 16 de Agosto de 1974, fomos substituídos pela C CAÇ 4945/73, ficando nós, a partir dessa data, a aguardar transporte para o regresso a casa.

O pessoal da Companhia, começava a não disfarçar o que lhe ia na alma e, houve até quem quisesse ir para Bissau, criando alguns distúrbios, fruto de vários boatos e rumores, de que estariam a embarcar de regresso à Metrópole, tropas com menos tempo de permanência de Guiné, que nós.

A 23 de Agosto, já era difícil segurar os militares no quartel e foi que então que saímos do Cumeré, acompanhados de militares de outras unidades e marchamos sobre Bissau, sendo barrados por um cordão de segurança humano em Safim.

Alguém do Comando Chefe se deslocou a Safim, e, nas negociações efectuadas ali, no local, foi-nos prometido que o Uíge, que nesse momento se encontrava no cais de Pijiguiti, em Bissau, a carregar material de guerra, passados dois dias permitiria que embarcássemos nós também.

Às primeiras horas do dia 25 de Agosto/74, finalmente deu-se o nosso regresso, a bordo do Uíge, tendo o mesmo chegado a Lisboa em 30 de Agosto.

A poucos dias de completar 24 Meses de Guiné, e em pleno mar alto, assisti a algo que jamais poderia imaginar ver algum dia, depois de tudo o que tinha passado na Guiné.

Não sei porque razão, mas fiz a viagem toda numa cabine do navio, enquanto os meus companheiros o fizeram no porão.

Por curiosidade, um dia desloquei-me ao porão e que os meus olhos viram e o nariz sentiu, jamais me abandonou até aos dias de hoje. As condições de transporte daqueles camaradas era simplesmente, inumana, indigna e até incoerente com o tempo da nossa era, em que tanto se apregoava a civilização.

O pessoal (praças), que vinha no barco já tinham algumas bases de aprendizagem sobre o que era ser “revolucionário”, e, vai daí, como não tinham acesso ao bar de oficias e sargentos toca a ocupá-lo.

O Comandante do Uíge, que os devia ter no sítio, ordenou que se a malta não abandonasse de imediato o bar desviaria o navio para Cabo Verde. Só assim foi reposta a legalidade hierárquica “copofónica” de imediato.

Se a memória não me atraiçoa o navio passou pelo Funchal, onde desembarcou uma Companhia de Madeirenses, retomando de novo a via marítima para Lisboa.

Já em pleno rio Tejo, os militares receberam instruções que teriam de ir à Amadora entregar o fardamento. Não gostando do que ouviram, alguns começaram a deitar os sacos ao rio. Foi-nos pedido para “aguentar”, e, mais tarde, as novas ordens foram para que deixássemos tudo a bordo.

Terão os SUV nascido na Guiné?

Anexo a seguir alguns documentos com história, que estavam guardados no meu baú das recordações, entre os quais um pequeno livro que nos foi distribuído pelo Estado Maior do Exército, intitulado Missão na Guiné. Recordam-se?




Livro que nos foi distribuído pelo Estado Maior do Exército, intitulado Missão na Guiné.





















Um abraço Amigo,
Eduardo Campos
1º Cabo Telegrafista da CCAÇ 4540

Fotos e documentos: © Eduardo Campos (2009). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

Guiné 63/74 - P5885: Parabéns a você (82): João Carlos Silva, ex-Cabo Especialista da FAP, BA6 (Montijo, 1979/82) (Editores)

1. É com muito prazer e alguma inveja que, hoje dia 26 de Fevereiro de 2010, prestamos homenagem ao nosso camarada e amigo João Carlos Silva (ex-Cabo Especialista da FAP, BA6-Montijo, 1979/82) que está de parabéns.

Este misto de prazer e inveja, primeiro, tem a ver com a alegria que todos sentimos quando um camarada festeja o seu aniversário, logo desconta mais um ano aos que lhe faltam calcorrear até à meta, os 100. Em segundo lugar, não nos movendo nada de pessoal contra o João, sentimos já alguma nostalgia da ternura dos nossos 40 e tal anos. Que saudade... que inveja...


Muito a sério caro amigo João Carlos, estes teus camaradas um pouco menos novos, desejam-te uma longa vida, feliz e com saúde junto daqueles que são o motivo e o orgulho da tua vida.

Que este dia, em especial, seja passado com alegria junto dos teus familares e amigos, e que esta data seja festejada para além da existência terrestre destes teus amigos e camaradas mais velhotes, já que chegarão aos 100 muito primeiro do que tu.



2. Passou algum tempo desde que João Carlos Silva nos escreveu para nos envaidecer com as suas palavras de incentivo e admiração. Vamos lembrar:

Em primeiro lugar apresento-me, sou o João Carlos Silva “alfacinha” de gema pois nasci na “velha” rua da Palma (sabem aquele Fado “…ai Mouraria da velha rua da Palma…”, pois é essa mesmo) e vivi 24 anos na Freguesia dos Anjos. Actualmente (há quase outros tantos) resido no concelho de Almada (sempre com Lisboa à vista…, ou quase). Militarmente falando, servi na Força Aérea Portuguesa de 1979 a 1982, como cabo Especialista MMA na BA6, na esquadra 301 onde operavam os FIAT G-91 (esquadra criada em 1978, antes disso e desde Agosto de 1974 era a esquadra 62 com as aeronaves vindas do Ultramar e da BA5, in Historial da Esquadra 301). Resumidamente, comecei na Manutenção (como era da praxe) tendo posteriormente trabalhado sempre na Linha da Frente. Faço parte da tertúlia da linha da frente do blog Especialistas da BA 12 do companheiro Victor Barata, pelas razões que expresso nesta mensagem e porque ele (e restantes companheiros) me acolheu nesse espaço de forma generosa.

Porquê esta minha “atabalhoada” mensagem ? Bom, por várias razões. A principal, como se vocês precisassem com quase 1 milhão de visitantes desde Abril de 2005, será porque quero partilhar convosco o que pode sentir (por isso a objectividade não será o forte deste texto) alguém que não esteve na Guerra Colonial por via da idade.

Como é que chegamos aqui ?

Bem, eu lembro-me bem de quando “miúdo” pensar, com bastante receio, que em breve seria a minha vez de avançar para África no cumprimento de um dever que afectava toda uma geração de jovens portugueses (e também de jovens guineenses, só agora tenho essa percepção, o vosso blog também tem essa virtude). Para este sentimento muito contribuiu a comissão do meu primo Victor Condeço (membro da vossa Tabanca Grande) por terras da Guiné, mais concretamente em Catió, e especialmente quando o fomos esperar ao cais da Rocha Conde de Óbidos em Alcântara. Além disso, tenho vagas memórias das preocupações porque passava a família.

Adicionalmente, tenho um outro parente, por parte da minha mulher, que serviu na Marinha e teve 2 comissões na Guiné, operando nas lanchas naqueles perigosos rios. Mais recentemente, constatei que dois antigos colegas meus de trabalho fazem parte da Tabanca Grande, o Raul Albino e o António Matos (Garcia de Matos). Provavelmente não se lembrarão de mim, mas, eu como mais “moderno”, lembro-me deles.

Depois, porque tenho vindo a absorver toda a informação e especialmente nos últimos dias me chamaram especial atenção algumas mensagens. Por exemplo, o complexo tema de Guiledje, como podem existir visões tão distintas sobre os mesmos acontecimentos, as mensagens do António Martins de Matos e a resposta de Nuno Rubim na mensagem 3811, a mensagem 3816 do Miguel Pessoa, que muito bem dizes em comentário “Na América já estavas no cinema…em Portugal, nem sequer te (re)conhecem…”, a mensagem 3820 do Joaquim Mexia Alves, com a qual eu concordo bastante, e a mensagem 3824 do Virgínio Briote (comentário à mensagem 3820 do Mexia Alves).

Bom, eu leio tudo isto e fico preso a estes relatos que muitos dos mais jovens simplesmente ignoram ou não fazem ideia porque parece que foi considerado tabú (ver mensagem 3824 do Virgínio Briote).

É notável o número de visitantes que a vossa Tabanca Grande tem tido, reflexo significativo da importância que tem este assunto da Guerra Colonial e da possibilidade de os protagonistas expressarem a sua visão e os seus sentimentos.

É de louvar os contributos na primeira pessoa e a dedicação dos Editores do blog que permitem que todas estas mensagens cheguem a todos nós e que possam ficar registadas para que os vindouros venham a conhecer, assimilar e respeitar o passado. Não é possível criar uma identidade sem considerar o passado.

De certeza que já receberam, refiro-me a malta mais “moderna”, inúmeras manifestações de respeito e admiração pela missão cumprida no meio de todos estes sacrifícios físicos e psicológicos, no entanto, nesta sociedade actual em que muitos fazem gala em “rotular”, rebaixar ou tentar anular, os parceiros do lado sem sequer se darem ao trabalho de os conhecer (profissionalmente ou pessoalmente) apenas por um alegado espírito de competitividade aplicado superficialmente e sem nexo e que não sei aonde nos vai levar (parece que não está a dar resultado), faço questão de transmitir de forma muito clara o meu respeito e admiração por todos os ex-combatentes e às respectivas famílias que tanto sofreram.


Estas foram as suas impressões em Fevereiro de 2009. É da nossa responsabilidade não o desiludir.


3. Deixo agora estas fotos que temos em arquivo:

João Carlos Silva enquanto Cabo Especialista da FAP

João Carlos Silva aos comandos de um Fiat G91

João Carlos Silva na Base Aérea da OTA

João Carlos Silva, Especialista da Força Aérea Portuguesa, esteve presente no nosso IV Encontro acompanhado de seu tio Alberto Bártolo, à direita da foto, que é Reformado da Marinha de Guerra Portuguesa e que conhece muito bem os rios da Guiné.
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Notas de CV:

Vd. postes de João Carlos Silva de:

5 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3844: FAP (5): Reflexões sobre o Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (João Carlos Silva)
e
22 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3923: Tabanca Grande (122): João Carlos Silva, ex-Cabo Especialista da Força Aérea Portuguesa (1979/82)

Vd. último poste da série de 25 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5880: Parabéns a você (81): Gumerzindo Silva, ex-Soldado Condutor da CART 3331, Cuntima, 1970/72 (Editores)

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5884: O Nosso Livro de Visitas (83A): José Henriques, ex-Fur Mil da CART 2340

José Henriques (ex-Fur Mil da CART 2340) deixou, no dia 22 de Fevereiro de 2010, este comentário no poste 5819*:

Caro Camarada Luis.
Fiz parte da CART 2340 que esteve na Guiné de 1968769 e de que era Comandante o Camarada Joaquim Lúcio Ferreira Neto**.

Sempre que os meus afazeres o permitem, venho ao v/blog ler ( e relembrar)os tempos passados na Guiné como combatente. Foram bons? alguns... Foram maus? Já passaram...

Mas o que me traz aqui agora é o seguinte: indica-me por favor como devo proceder para poder a ter a honra de passar a ser membro da vossa tertúlia.

Um forte abraço para todos os "tertulianos" do ex-Fur Mil
José Henriques


Comentário de CV

Caro José Henriques, foi pena não teres deixado o teu endereço para te podermos contactar.

Assim, se leres este poste ficarás a saber como aderires à nossa Tabanca Grande para poderes contar as tuas histórias enquanto combatente na Guiné.

Referes o teu Comandante, ex-Cap Mil Ferreira Neto, que eu conheço do meu tempo de aluno da Escola Secundária e ele professor.

O professor Neto, como faço questão de o tratar, tem alguns postes e fotografias da vossa CART publicados no Blogue que poderás facilmente encontrar através do marcador "CART 2340".

Voltando a ti, claro que estamos desde já à tua espera. Manda-nos uma foto antiga e outra actual (tipo passe em formato JPEG) uma pequena (ou grande) história relacionada contigo ou com a CART 2340, e a acompanhar fotografias (com legendas) para a ilustrar.

No lado esquerdo da nossa página encontarás os nossos 10+10 mandamentos, bastante fáceis de cumprir. Se os leres ficarás a saber como nos conduzimos e os nossos objectivos enquanto tertulianos.

Deverás enviar os teus trabalhos para o endereço oficial do Blogue luis.graca.prof@gmail.com.

Entretanto, recebe um abraço da tertúlia.
Carlos Vinhal
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 15 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5819: O 6º aniversário do nosso Blogue (3): No início de Maio de 2006, tínhamos 100 tertulianos, 735 postes publicados e 3 mil páginas visitadas por mês (Luís Graça)

(**) Vd. poste de 14 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2046: Tabanca Grande (31): Apresenta-se Joaquim Lúcio Ferreira Neto, ex-Cap Mil (CART 2340, Canjambari, Jumbembem, Nhacra, 1968/69)

Vd. último poste da série de 3 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5757: O Nosso Livro de Visitas (82): "Projecto de Documentário sobre Bafatá" (Silas Tiny)

Guiné 63/74 - P5883: Biliografia de uma guerra (55): Lançamento, previsto para fins de Março, do livro do Amadu Djaló, Guineense, Comando, Português: 1º Volume: Comandos Africanos, 1964-1974 (Virgínio Briote)


Projecto de capa do livro do Amadu Djaló, membro da nossa Tabanca Grande (*), já entretanto alterado... Finalmente, e depois de um longo calvário, chegam ao fim os árduos trabalhos da escrita, reescrita e edição da história de vida do Amadu que teve, no Virgínio Briote, mais do que copy desk, um revisor de texto, um amigo, um camarada, um confidente, um cúmplice, um advogado de defesa e um verdadeiro defensor dos seus interesses, editoriais, morais  e materiais.

O nosso blogue vai associar-se ao lançamento do livro do Amadu, cuja data ainda não está marcada, mas estima-se que possa ser em finais de Março próximo. Em preparação, está um 2º volume, com as aventuras e desventuras do Amadu a seguir à independência da Guiné e até à sua fuga para Portugal. "Ainda mais interessante do que o 1º volume" - assegura-me o Virgínio que já tem cerca de 100 páginas escritas.

Dada a frágil condição do Amadu (em termos de saúde e autonomia, física e financeira), o Virgínio tem conseguido pô-lo a falar para o gravador. E de futuro vai ter que ir à casa da filha, na Amadora, onde o Amadu vive, numa subcave sombria.

Na edição do 1º volume, que ficará a cargo da Associação de Comandos, está-se na fase final de revisão de provas tipográficas. O Virgínio refere a excelente colaboração de dois camaradas nossos, o Carlos Silva e o Manuel Lema Santos. (LG)


1. Mensagem do nosso querido amigo, camarada e co-editor Virgínio Briote

Assunto: Amadu Djaló, Guineense, Comando, Português

Caros Camaradas,


Envio-vos em anexo o projecto do livro do Amadu Djaló [, na foto, à esquerda, com o Virgínio Briote, na Quinta do Paul, Ortigosa, 20 de Junho de 2009, por ocasião do nosso IV Encontro Nacional]. 

As peripécias têm sido muitas, as dificuldades são muito mais do que esperava. Todos querem ganhar com o livro e, para mim, é ponto assente que quem deve ganhar o grosso é o Amadu e o remanescente deve limitar-se a cobrir as despesas com a edição. As editoras, embora achem o livro interessante, querem ficar com a fatia de leão e nenhuma delas vai além dos 7% para o Amadu, o que dá uma miséria.

Por isso, teve que ser a Associação de Comandos a assumir a edição. Contamos ter o livro cá fora nos fins de Março.

Um abraço do
v-briote
___________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 16 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4359: Tabanca Grande (143): Amadu Bailo Djaló, Alferes Comando Graduado, incorporado no Exército Português em 1962 (Virgínio Briote)

Sobre o Amadu Djaló temos 17 referências no nosso blogue. Vd. também os postes de:


10 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4934: João Bacar Djaló. O testemunho de Abdulai Djaló Cula. (V. Briote)

25 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4575: IV Encontro Nacional do Nosso Blogue (14): Gostei muito, nunca vou esquecer (Amadu Djaló / Virgínio Biote)

15 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4529: Em 6 Março de 66, o filme da primeira operação helitransportada no CTIG (Amadu Djaló / V. Briote)

11 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4505: A Tabanca Grande no 10 de Junho (8): O descanso do guerreiro - Amadu Bailu Djaló (João Carlos Silva)

Guiné 63/74 - P5882: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (22): Ida à Guiné, a pé

1. Mensagem de Fernando Gouveia, (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), com data de 21 de Fevereiro de 2010:

Caro Carlos:
Costumo ser mais ou menos regular no envio das minhas estorietas.
Desta vez atrasei-me muito. Tenho razões para isso. Sou uma pessoa que quando tenho uma preocupação, paro tudo o resto para resolvê-la. A “estória” de hoje explicará tudo.

Antes porém, quero dedicar esta “estória” ao sexto aniversário do Blog.

Não direi que, desde há um ano, quando descobri o Blog, a minha vida tenha mudado 180 graus, mas 20 ou 30, isso mudou.

No aniversário do Luís Graça referi o que já no primeiro email, lhe havia escrito em relação ao Blog: -“Já tenho que ler até ao fim da vida”.

Durante quarenta anos nada me fez mexer nas memórias da Guiné. PARA ISSO FOI PRECISO O BLOG, QUAL CAVILHA, DE UM FORNILHO REPLETO DE RECORDAÇÕES MULTICOLORIDAS.

Um abraço a todos os Bloguistas.
Fernando Gouveia

P.S. – E por falar em memórias da Guiné, aproveito para referir que a minha exposição “Memórias Paralelas da Guerra Colonial – Guiné 1968-70” (agora com mais fotos e horário alargado) vai mudar, no dia 26FEV10 para a galeria do Instituto das Artes e Ciências - Fundação Dr. Luís Araújo, na Praça Carlos Alberto, no Porto (quase em frente à Ordem do Carmo), onde se manterá até ao dia 12MAR10.


Um olhar e um sorriso (da actual exposição)

Consertando as redes (da próxima exposição)
Fotos e legendas: © Fernando Gouveia (2009). Direitos reservados.


A GUERRA VISTA DE BAFATÁ - 22

Ida à Guiné, a pé


Como todos sabem, há muita gente que por várias razões costuma ir a pé a Fátima. Pois bem, a mim tem-me andado a passar pela cabeça, “como que ir à Guiné a pé ou melhor dizendo, de carro”. Tudo na sequência das conversas que tenho mantido com os camaradas dos almoços na Tabanca de Matosinhos.

Por várias vezes lá se aflorou o assunto. O camarada Pimentel tem-me andado a azucrinar a mente no sentido de ir com eles, de carro, no fim de Fevereiro. O Rego diz-me que também vai, apesar de não se sentir a cem por cento. O João Rocha, não indo, foi-me dizendo que da vez anterior foi, apesar dos seus problemas de saúde.

Verdadeiramente estou entre a espada e a parede. A desculpa, e não é desculpa, que sempre lhes tenho dado para não ir, é o estado deplorável da minha coluna. Apesar de aguentar perfeitamente umas centenas de quilómetros nas nossas estradas e umas dezenas, aos saltos, nos caminhos do “meu” Nordeste Transmontano, cinco mil quilómetros sempre é outra coisa.

Também já se pôs a hipótese de ir e vir de avião, juntando-me ao grupo lá na Guiné, mas não é bem a mesma coisa. A viagem África afora, seria a viagem da vida de uma pessoa.

Sei que não se irá encontrar o território como o deixei, embora agora em paz. Por força do desenvolvimento global, aquelas gentes aspiram hoje a algo que o “global” não lhe pode dar. As pessoas aproximaram-se dos “grandes centros” e aí a miséria prolifera tal como cá.

Pese tudo isso, fui lá muito feliz,  como diria o outro…Tive lá sorte e mais sorte. Foi lá que eu e a minha mulher tivemos a nossa primeira casa, na tabanca de Rocha. Foi lá, na zona comercial, que comprámos a réplica em plástico da nossa filha Joana, que não chegámos a ter (só dois rapazes). Toda aquela gente afável, muita da qual se considerava portuguesa como nós, foi votada, fruto das circunstâncias, ao abandono por parte dos portugueses. Agora parece assistir-se a um vaga de fundo solidária. Espero que não seja tarde demais.

Mas voltando atrás, quero referir que estou a escrever estas linhas depois de ir ao médico tentar mostrar uns exames ao estado dos meus ossos, exame esse que já tinha em meu poder há algum tempo. As conversas em Matosinhos apressaram a necessidade de tirar as dúvidas mas aconteceu que o médico não me atendeu e estou a entender isso como mais um sinal no sentido de protelar a decisão.

Pois bem, podem crer que neste momento para mim ir à Guiné, de carro, me parece tão arriscado como qualquer outra pessoa ir a pé.

Passaram-se uns dias, o médico deu-me luz verde, mas ao mudar uns móveis em casa tive uma crise de coluna. Foi a gota de água. Lá se foi por água abaixo a viagem da minha vida. Resolvi que iria, mas agora de avião. Parto no dia 3 de Março para me encontrar com o grupo que vai de carro e que deve chegar à Guiné no mesmo dia.

Há dias, um camarada escrevia no Blog que estava emocionado com a sua próxima ida à Guiné. Não quero ser monopolista, mas se a minha emoção não for muito maior, será pelo menos igual.

Ir a Roma e não ver o Papa é como para mim ir à Guiné e não ir a Bafatá. Claro que irei. O Chico Allen já me disse que até posso ir e vir no mesmo dia num “toca-toca”. Ir a Madina Xaquili, à minha guerra, seria ouro sobre azul. Lá se verá dessa possibilidade.

Já tenho a mala feita.
A emoção é muita

Até à vinda,  camaradas
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5705: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (21): As diversas formas do medo

Guiné 67/74 - P5881: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (6): Tinha prometido a mim mesma não voltar mais àquela terra onde passei dez anos que mudaram a minha vida, e onde assisti ao início de uma guerra



Guiné-Bissau > Arquipélago dos Bijagós > Ilha de Bubaque > 12 de Dezembro de 2009 > Mulheres locais. Fotos do médico e músico João Graça

Fotos: © João Graça (2009). Direitos reservados


1. Pré-publicação de excertos do próximo livro do nosso amigo e camarada Mário Beja Santos, Mulher Grande. Trata-se da  sexta e última parte  do Capº III (*):


Mulher Grande > A Guiné em chamas ou o “Tubabo Tiló”
por Mário Beja Santos


[III. 6] Décimo quarto solilóquio

A Benedita está emocionalmente exausta. Conversámos ao pormenor sobre aquele mês em Bissau, quando vieram de S. Domingos. O sofrimento do Albano contagiou-a., está dilacerada. O Albano, profeticamente, vai emitindo opiniões pessimistas sobre o futuro da Guiné. Uma noite, tendo voltado a beber, chorou amargamente, terá proferido um longo e atabalhoado monólogo, rememorou toda a sua existência nos diferentes lugares onde trabalhou, como se habituou à solidão, como se entusiasmou pela etnografia e antropologia, a fazer inquéritos, a saber escutar as populações nativas.

Sim, o seu amor era verdadeiro, pelas gentes e pela terra. A Benedita ouvia-o em silêncio, como se estivesse a ouvir uma lição sobre o amor à Pátria, o Albano falou de Gil Eanes, Rio do Ouro, Nuno Tristão, Álvaro Fernandes, conhecia as viagens e as descobertas, os fracassos da construção de fortes, as etapas da missionação, as dificuldades no estabelecimento das populações em os “Rios da Guiné do Cabo-Verde”. Chorava a fazer o seu testamento, era uma ladainha de um bêbedo que não perdeu a clarividência e falava dos lançados, dos grumetes, de Honório Pereira Barreto, um dos seus ídolos, como ídolos para ele tinham sido Sarmento Rodrigues e António Carreira. Falou nas glórias de Cacheu, na sua admiração pelos Felupes, Banhuns e Manjacos, no seu relativo desprezo pela população dita civilizada, a oração fúnebre estendeu-se a Bolama e à exaltação dos rios e rias, de repente tudo se tornou numa declaração de amor conjugal, o Albano falava das alegrias da vida a dois, o que tinham vivido em conjunto desde Bissorã a S. Domingos.

Atónita (palavra usada pela própria Benedita), ela escutara tudo sem uma só interrupção, parecia que o Albano estava a apresentar um longuíssimo livro onde cabia a geografia, a história, as obras públicas, o combate à doença, a organização dos serviços da administração, o comércio e as pescas, as riquezas do subsolo, a diversidade cultural.

Anos depois, a Benedita pensou seriamente que se tratara de um discurso de despedida, aquele funcionário colonial que se dedicara com tanto zelo à sua missão quando regressou a Portugal fez todo o possível por pôr uma pedra sobre o assunto, calara toda a sua melancolia, afundando-se em longos silêncios, donde saía dirigindo-se à mulher, perguntando-lhe: «Benedita, recorda-se daquela viagem...”, havia então um retorno àquele tempo passado, depois tudo se imobilizava, a conversa mudava de tom, regressava-se à aspereza dos novos tempos, o Albano, adoentado, atirou-se a tudo, vendeu rações, fez contabilidade, por último trabalhou na D. Eva.

São nessas viagens da memória que eu sinto, nos farrapos da memória e nas entrelinhas, a culpa da Benedita que só se apercebeu muito tarde que o Albano regressara da Guiné para um exílio, ela começou a catapultar os seus sonhos enquanto o Albano mudava de personalidade. Nesses momentos de culpa, e ouvi as suas confissões sentidas, nesses momentos, a voz, sempre quente e rouca, passava a ser um fio quase inaudível, as mãos batiam na mesa como se batesse em si própria, em autoflagelação.

Ela terminava sempre essas declarações de culpa: “Comigo foi diferente, arrumei definitivamente a Guiné a um canto, não estava disposta a ser motivo de troça dos outros, ouviam-me como se eu estivesse a contar histórias da Carochinha, a Guiné ficou reduzida à escultura, à panaria, aos desenhos e gravuras à nossa volta, aos livros, às visitas dos estudiosos que continuaram a procurar-nos.

Não me esqueço do que ela me disse um dia: «Com a guerra, a partir de 1963, fechei os olhos àquela tragédia, era o Albano que me dava conta do que se passava, lia os comunicados, eu não comentava nada, não queria reabrir feridas, bastava-me a saudade de amigos queridos, como o Omaia, o Trintão, o Ocante, os amigos de Bissau, Varela e Ziguinchor. Aprendi muito com a morte do meu pai, irei aprender mais com a doença do Albano, as trágicas revelações e a hecatombe da D. Eva. Quando perdemos afectos muito grandes, devemos tirar a lição e prosseguir sem rancores nem azedumes. Olhe para as minhas mãos, olhe para as minhas pernas, recordo-lhe as minhas doenças, temos que continuar, temos que ter um projecto até ao último dia de vida, vir da Guiné como vim ensinou-me que a vida deve continuar, nem que tenhamos que andar de rastos”.

Mais recordações da Benedita (décimo quarto trabalho de casa)

Coisa curiosa, é a primeira vez desde que vim da Guiné que sou capaz de reconstituir a minha vida como militar à força em S. Domingos. Fizemos uma messe lá em casa, para militares e civis, sentávamo-nos, o Albano e eu, um capitão, um tenente e um alferes, mais dois secretários. Os outros alferes comiam na casa da alfândega, onde tínhamos estado a tratar dos feridos na noite do ataque. Chocava-me o facto de o capitão não ficar à noite em S. Domingos, ia todos os dias dormir a Bula, senti uma vontade enorme de lhe perguntar se um oficial, ainda por cima o comandante daquela tropa, devia desaparecer ao fim da tarde. Mas refreei-me, sabia que ia arranjar uma discussão que traria amargos de boca ao Albano, tínhamos que estar juntos, a tropa e nós, o espectro da guerra era inevitável.

O Mário pediu-me que coligisse todas as recordações deste tempo. Estou admirada com as coisas que recordo daquele tempo tão incómodo, a nossa vida devassada por aquela atmosfera de quartel. Uma vez entrei na cozinha para ver se tudo estava a correr bem. Vi o maqueiro a lavar as seringas no lava-loiça depois de ter vacinado os soldados, lavava as seringas descuidadamente, espirrava tudo para cima da carne já confeccionada. Não tínhamos carne há 8 dias, não tínhamos outro almoço, calei-me, não sei como dei comigo a comer aquela carne sem nenhum protesto, mas com o estômago às voltas. Felizmente, ninguém morreu.

No outro dia, a mexer numa gaveta, encontrei uma fotografia do Natal de 61. Comovi-me muito. Com os alunos da escola, preparei enfeites, fizemos festões de papel, arranjou-se um altar, decorou-se com musgo, trouxe as minhas figurinhas do presépio. Esperámos pelo padre toda a tarde, ninguém arredou pé, ele acabou por aparecer já passava das 8 horas, não estava em condições de celebrar missa. Digo com a maior das mágoas, naquela terra havia poucos padres de qualidade. Enquanto cristã, a minha decepção foi imensa.

Pois nessa noite de Natal comemos os três sozinhos, o Albano, o secretário e eu, lá fora sentia-se que havia muito ruído na zona do aquartelamento, o Albano foi ver, regressou preocupado, estava tudo a embebedar-se. O Albano decidiu que não era aconselhável ir para a cama, ninguém estava em condições de combater. Foi assim que passámos a noite de Natal. Só consegui conciliar o sono ao amanhecer. No dia de Natal os alferes vieram pedir desculpa. Não acho graça nenhuma a estas recordações, sinto-me bastante humilhada com esta experiência.

O adeus à Guiné

Estávamos a viver tempos muito confusos. A PIDE começava a prender gente que tinha trabalhado com o Albano, eram prisões arbitrárias, ninguém sabia a origem das denúncias, o Albano protestava, os agentes da PIDE recusavam-se a dar explicações. Com as relações cortadas entre o Senegal e Portugal, não podíamos ver os nossos amigos franceses. Mas Hugues Lemaire pediu autorização às autoridades de Ziguinchor para nos visitar em S. Domingos. Veio com Joseph Chrétien, um farmacêutico, trouxeram lembranças de todos, foi um dia memorável. Anunciaram que em Ziguinchor as coisas estavam mais calmas, mas sabia-se que havia campos de treino para preparar mais guerrilheiros.

Nunca mais esqueço a história que nos contou o Joseph Chrétien. O guarda da alfândega tinha 4 mulheres e muitos filhos e tinha uma dívida muito grande na farmácia. O Chrétien falou com ele: “Queres que te perdoe a conta? Então deixa-me passar a fronteira para eu ir ver os meus amigos de S. Domingos”. O guarda aceitou a proposta. O Chrétien encheu o carro com comida francesa e trouxe-nos um carregamento muito valioso. Não se esqueceu até das revistas que eu gostava, Hugues Lemaire trazia livros e chocolates. Recebi tudo, reprimi a emoção. Depois desta visita seguiram-se outras. As notícias que chegavam do Senegal eram preocupantes quanto ao prelúdio da guerra mas, por outro lado, os amigos de Ziguinchor diziam-nos que Senghor e os outros políticos de Dakar queriam chegar a um entendimento com Salazar.

Quero voltar aos acontecimentos do Natal de 61. O Movimento Nacional Feminino enviou para cada um dos militares um pacote de cigarros, uma caixa de fósforos, uma bisnaga pequena de pasta Couraça, uma escova de dentes, também pequena, uma garrafinha de vinho do Porto, um pacote de bolachas e jornais, muitos jornais. Também recebi uma destas lembranças, nunca tinha tido tantos jornais ao mesmo tempo. Não vamos perder muito mais tempo com o que se passou naquele Natal, digo só para si que os soldados se embebedaram, cantaram as cantigas mais obscenas até caírem de cansaço. Não quero falar em nomes, fui obrigada a conviver com aquela tropa, jurei a mim própria que nunca mais voltaria a fazer serviço militar...

Em Bissau, em Janeiro, os médicos disseram ao Albano que ele tinha tendência para formar cálculo renal, recomendaram-lhe que viesse até às termas. Como se fosse hoje, lembro-me do serão que fizemos em casa da Ivone Leal, nessa noite. Pela primeira vez, e sem qualquer hesitação, o Albano mostrou intenção de abandonar definitivamente a administração colonial. Ainda lhe perguntei porque é que não havíamos de pensar em Cabo Verde ou S. Tomé e Príncipe. Ele foi muito claro: “Vim para a Guiné à procura de profissão, ganhei-lhe devoção. É um amor que não se troca de ânimo leve. Prefiro fechar o livro”.

Tínhamos pouco dinheiro, aquele mês em Bissau arrastou-se, foi um tempo lodoso. Seja como for, com as malas feitas, todas as noites andámos de casa em casa, em jantares de despedida. O louvor dado pelo Governador encheu o Albano de orgulho. Os colegas ofereceram-lhe uma salva de prata, está ali exposta na sala de jantar.

E, em Julho de 1962, partimos. Eu não estava triste, mas senti perfeitamente a grande mágoa do Albano, o modo como ele arrumava no coração e na bagagem as lembranças dos colegas e dos amigos, as fotografias que então tirou, as visitas ao Centro de Estudos da Guiné Portuguesa e ao Museu, mesmo ao lado. Acompanhei-o numa dessas visitas, ele parou junto de uma escultura, falou-me dela, mais à frente vimos os instrumentos de caça dos Felupes. Sem esconder a emoção, ele falou-me de Bolor, Bunhaque e Bufá, povoações que ele gostava de frequentar para estudar arquitectura e o tipo de habitação Felupe, fora nessas tabancas que comprara aqueles arcos e azagaias. Vi-lhe os olhos marejados de lágrimas, disse-me baixinho: “Sei que não voltarei mais à terra dos Felupes, e tenho pena”.


Guiné > Ilha de Pecixe > Vaqueiras manjacas > Postal ilustrado (pormenor) > Série de postais ilustrados do tempo da Guiné Portuguesa > S/d nem editor ... Colecção de postais do nosso amigo e camarada José Casimiro Carvalho (ex-Fur Mil Op Esp, CCAV 8350, Guileje, Cacine, Gadamael e Paunca, 1973/74)...

Os postais, acho que ele os coleccionava para mandar, com muitas ternura, ao seu velhote, no Porto... Esta série de postais, relativamente ousados para a época (tema: bajudas de mama firme...)., revelavam uma visão... excêntrica e etnocêntrica da Guiné dita portuguesa, típica do Estado colonizador e dos seus agentes (LG).

Foto: © José Casimiro Carvalho (2006). Direitos reservados.




Décimo quinto solilóquio

Celebramos hoje o nosso Natal, não se consegue ver Colares, estamos cercados por uma neblina cerrada, um reposteiro de vapor. A Benedita está claramente nostálgica. Assim que bati à porta, avançou determinada, avisou-me com aquela sua voz quente e rouca: “É tudo mentira que tenha posto a Guiné atrás das costas, não se pode pôr a pedra no assunto depois de dez anos de convivência diária. Esta noite não preguei olho com dores, andei a remexer em papéis e depois peguei naquele livro que me deixou cá sobre os postais antigos da Guiné. Hoje, já que estamos a arrumar o assunto do fim da comissão do Albano, quero dar-lhe conta da Guiné que guardo no coração”.

Tirei logo o livro de apontamentos, mas não foi fácil seguir-lhe o raciocínio, a Benedita está eufórica, abriu o álbum dos postais antigos, olha para o edifício da Casa Gouveia, em Bissau, e diz: “É por aquela porta que entrava, ao fundo do lado direito comprava chá e café, passava duas portas e tinha as especiarias, no primeiro andar, onde se está a ver esta janela, era a retrosaria e as linhas para a máquina de costura”.

Depois apontou para o cais do Pidgiquiti e observou que a ponte-cais do seu tempo era a como vem no postal da Foto Serra, de 1955. Continuando a folhear o álbum, aponta para a Rua Oliveira Salazar e volta a falar em lojas de comércio. Lembra-se do Grande Hotel mas as fotografias do interior, no postal datado de 1968, não lhe dizem praticamente nada. Recorda a fanfarra à porta do Palácio do Governador, folheamos depois o álbum e pára a contemplar demoradamente um caçador Felupe, com o seu arco tenso, o caçador com um estranho bracelete de inúmeros aros no braço esquerdo. Depois uma vaqueira Manjaca em Pecixe, olha também demoradamente e comenta: “Meu Deus, podia ter sido eu a tirar esta fotografia!”.

Durante o almoço, talvez recordada da longa oração proferida pelo Albano em casa da Ivone Leal, a Benedita lança-se na sua narrativa, começa nas doenças, recorda a doença do sono, a seguir fala do estado das estradas, depois descreve a residência dos chefes de posto, salta para a cultura do arroz, é um discurso sem folgas nem recuos, parece que esteve a ler a história da Guiné do princípio ao fim, lembra-se muito bem das obras públicas, das árvores de fruto, dos recursos florestais, dos grupos étnicos, como se eu fosse um estranho ou a estivesse a ouvir pela primeira vez, recorda-me que Bissorã é uma vila do chão dos Balantas, refere os curandeiros, as superstições, os habilidosos e imaginativos trabalhos em couro, levanta-se e vai-me buscar almofadas em couro policromado, prefiro ir escrevendo sem nenhum comentário, rendo-me ao seu entusiasmo, passaram-se estas décadas e as lembranças vêm facilmente à superfície, é um discurso tão sincero e ardoroso que até paro de escrever quando ela me começa a falar do tear guineense, com os seus quatro prumos de madeira enterrados no chão, a Benedita foi mesmo buscar um pano Manjaco, mostra-me as bandas de 20 centímetros de largura, são 6 bandas cozidas que fazem um pano, quando me preparo para escrever ela grita para me prender completamente a atenção, sou o espectador de uma estranha tirada teatral, ela fala e gesticula, a banda é tecida, vai sendo enrolada numa travessa de madeira, há mesmo um dispositivo de prisão para que os liços mantenham a teia tensa. Os liços sobem e descem, de acordo com os impulsos do artífice, é este movimento alternado que facilita a passagem da lançadeira, assim se estende a trama, e o pente, graças às puas que passam os fios da teia, aconchega os fios da trama.

A Benedita não pára de exemplificar, percorre agilmente a sala de jantar dum lado ao outro, os liços separam os fios, explica como é que tecelões tingem as bandas de cor brancas ou creme, fico a saber que os tecelões também são tintureiros. A Benedita vê que eu estou perplexo, afinal a mulher do administrador que se dizia tão arredada daqueles saberes nativos, viu, assimilou e admirou. Como se estivesse a concluir a sua tirada teatral, atirou-me um olhar divertido, está a explorar o factor -surpresa e diz-me: “Tenho lá em cima as esculturas Bijagós para ver. A minha prenda de Natal para si é um Ninte-Kamatchol, é a mais linda escultura da minha colecção. Andei-lhe a mentir este tempo todo, a Guiné é um mundo pleno de culturas, graças ao Albano aprendi a respeitar e mais tarde aprendi a amar. Menti-lhe sempre, até descobrir que o Mário podia ser o meu maior cúmplice neste amor à Guiné».

Mais recordações da Benedita (décimo quinto trabalho de casa)

O que me deu hoje para recordar dez anos de Guiné? Tinha prometido ao Mário e a mim mesma não voltar mais à Guiné, chegámos em 1962 a Lisboa, era tempo de descansar, de estar com as nossas famílias, a decisão do Albano estava tomada, iríamos refazer a nossas vidas, não sabíamos como nem onde, inicialmente pensámos na linha do Estoril, o Toninho estava na Parede, fomos então de férias para Matosinhos, Vila do Conde, Póvoa de Varzim, o Albano procurou um grande amigo da juventude, o Adérito Miranda, falou-se num trabalho de rações, estávamos na Foz do Douro em casa da irmão do Albano quando ele teve o primeiro enfarte. Exactamente quando eu estava a juntar estas notas abri um envelope e apareceram-me fotografias de um casamento Manjaco, encontrei uma folha que escrevi na época, estava completamente esquecida. Diz o seguinte: “Na sociedade Manjaca promete-se o casamento de uma filha a um amigo ou um familiar que nos ajuda nos trabalhos agrícolas. Tu trabalhas para mim, eu depois dar-te-ei a minha filha. Quando casavam, a filha, acompanhada pelos familiares, é levada até à família do noivo. As raparigas têm namoricos mas não podem engravidar (se engravidarem, têm que ir para o prometido marido). As Manjacas conhecem as plantas abortivas na perfeição. A libertinagem é praticamente total. Quando chega a altura de irem para o marido, este já preparou uma nova morança e traçou um risco na porta, símbolo de uma nova vida. Convida-se toda a população da tabanca para assistirem ao casamento. Diante da população e frente ao risco traçado na porta, a noiva faz a confissão pública de todos os homens com quem andou. Depois passa o risco, a partir daquele momento nunca mais pode ser infiel ao seu marido”.

Seleccionei alguns panos Manjacos para mostrar ao Mário esta bela panaria, infelizmente quase desconhecida em Portugal, continuo a não perceber como é que o belo artesanato guineense não circula nas nossas lojas.

Surpresa, encontrei noutro subscrito fotografias de noivos Bijagós. Tenho pena de nunca ter ido ao arquipélago dos Bijagós, ele foram sempre muito ciosos da sua autonomia, disse-me o Albano que só nos anos 30 é que o arquipélago foi pacificado. Nos Bijagós prevalece o matriarcado: quando a mulher se fartava do marido, punha todos os seus haveres pessoais num pano, fazia uma trouxa com quatro nós e punha-a à porta. Quando o marido chegava a casa, olhando a trouxa ficava a conhecer a sua sorte. Tive muita dificuldade em acreditar que assim era.

Vejo agora a grande emoção destas reminiscências. Foi muito bom ter voltado à Guiné, voltei a percorrer lalas e savanas, a contemplar uma ponte que não servia para coisa nenhuma, vivi numa casa imponente no Gabu, à beira do fim do mundo, atravessei rias de canoa, ensinei cozinha, aprendi a ser professora, descobri a minha esterilidade, assisti ao início de uma guerra, mal sabia eu como aquela guerra ia mudar a história de Portugal.

Prometo a mim própria não voltar a mentir desta maneira. Posso ter sofrido muito nestas terras entre o trópico de Câncer e o Equador. Mas foi nestas terras rasgadas por rios e rias, cheias de vegetação, com mangais e poilões, onde todos os dias se tem o sentimento que estamos a viver dentro da Criação, que verdadeiramente me fiz mulher. Não acredito que tivesse tido sucesso na D. Eva sem o teste da Guiné, sem a dedicação do Albano, sem a aprendizagem de que com pouco se pode fazer muito.

[ Fixação / revisão de texto / título: L.G.]

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Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste > 16 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5825: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (5): São Domingos, 21 de Julho de 1961: É o princípio do fim, Benedita

Guiné 63/74 - P5880: Parabéns a você (81): Gumerzindo Silva, ex-Soldado Condutor da CART 3331, Cuntima, 1970/72 (Editores)

1. Sempre que o calendário acusa o dia 25 de Fevereiro, o nosso camarada Gumerzindo Caetano da Silva (ex- Soldado Condutor da CART 3331, Cuntima, 1970/72) e a sua família estão em festa.

Este ano, a esta comemoração estão associados os seus 399 amigos do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.


Pensamos que haverá camaradas para quem a nossa singela homenagem de aniversário é tocante, mas no caso do Gumerzindo ainda o será mais, porque está emigrado na Alemanha desde 1973.


Sabemos que para a maioria dos nossos compatriotas emigrados há muito tempo, qualquer manifestação de amizade ida de Portugal é um bálsamo que os ajuda a enfrentar aquele sentimento bem português que, por muitos anos que se viva na diáspora nunca morre, a saudade. Assim, é com especial prazer que dedicamos este poste de aniversário ao Gumerzindo.

Caro Gumerzindo, hoje ainda estarás mais acompanhado do que nos outros dias. Nesta data festiva vimos em uníssono desejar-te o melhor da vida, o amor da família e saúde. Apesar de longe da pátria, estás como todos os camaradas nas tuas circunstâncias, bem pertinho dos nossos corações.


2. No dia 7 de Fevereiro de 2009, Gumerzindo Caetano da Silva, no seu primeiro contacto com o nosso Blogue, dizia-nos:

Meus caros Luís Graça, Carlos Vinhal e Virgínio Briote,

No último almoço que a minha Companhia (CART 3331) realizou em Peso da Régua em Junho de 2008, tive conhecimento deste grande e interessante Blogue e logo decidi que um dia viria também a enviar as duas fotos e falar um pouco de mim.

Encontro-me na Alemanha desde Abril de 1973, para onde emigrei passados 5 meses após a minha chegada da Guiné.

Com a minha simples 4.ª classe não podem esperar muito deste modesto Soldado Condutor, de nome Gumerzindo Caetano da Silva, natural de Albarrol, freguesia de Pousaflores, Concelho de Ansião.

Embarquei no Uíge no dia 6 de Março de 1971 e cheguei a Bissau no dia 11 à tarde. Depois de alguns dias no Cumeré e nos Adidos, embarquei num batelão civil, Cacheu acima, até Farim. Ali, esperei que uma coluna viesse de Cuntima para me levar até lá. Cheguei a Cuntima no dia 27 de Março de 1971 e ali permaneci até 19 de Novembro de 1972.

Passei por bons e maus bocados como todos quantos por lá passaram.

Um alfa bravo ao Virgínio, porque conhece muitíssimo bem Cuntima.

Fui recompletar a 3331 que já permanecia, desde Dezembro de 1970, na Guiné. Tive a sorte de voltar à então Metrópole com menos 3 meses que os meus camaradas.

Devo dizer que sou um assíduo leitor deste nosso Blogue desde que o conheci. Pena é que se fale pouco do nosso Sector (Farim). Em contrapartida temos do outro lado o Carlos Silva, incansável pelo trabalho que nos vai proporcionando com as histórias daqueles que por ali deambularam. Um bem haja.

Por hoje nada mais já que vos roubei imenso tempo.

Um abraço deste que silenciosamente vai dando conta de tudo.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 13 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3882: Tabanca Grande (117): Gumerzindo Caetano da Silva, ex-Soldado Condutor da CART 3331 (Cuntima, 1970/72), que nos lê na Alemanha

Vd. último poste da série de 24 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5875: Parabéns a você (80): Manuel Henrique Quintas de Pinho, Marinheiro Radiotelegrafista, Guiné, 1971/73 (Editores)