1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Março de 2010:
Queridos amigos,
Acabo de confirmar o talento literário do José Martins Garcia.
O Jorge Cabral tem que o ler, está aqui um parodiante ao seu nível, é a guerra no bota abaixo, gente trauliteira, copofónica, a verdadeira, a genuína, a incomparável luta de classes entre milicianos e malta do quadro permanente. Não percam.
Foi um presente do José Grave, em breve teremos mais José Martins Garcia, em toda a sua pompa e circunstância.
Um abraço do
Mário
O massacre de toda uma geração
Beja Santos
Se Armor Pires Mota é o primeiro nome da literatura da guerra colonial na Guiné nos anos 60, José Martins Garcia impôs-se como o nome cimeiro dos anos 70. Dele escreveu Álvaro Manuel Machado: “Romancista, contista, poeta, ensaísta e dramaturgo, a sua obra está intimamente ligada, por um lado àquilo a que poderíamos chamar a “açorianidade”, na melhor tradição de um Vitorino Nemésio (de quem é um dos mais consagrados estudiosos) e, por outro lado, a um dramático e ciclicamente presente memorialismo da guerra colonial, dramatismo sempre compensado por um rigorosa lucidez crítica e por um sentido muito pessoal da sátira levada ao extremo da caricatura. Assim, com o romance Lugar de Massacre (1975) ou com os contos de Morrer Devagar (1979), que de certo modo prolongam este romance, José Martins Garcia foi dos primeiros a evocar o “massacre” da guerra colonial como destruição interior de toda uma geração”.
Lugar de Massacre é um livro soberbo (Edições Salamandra, 3.ª edição, 1996). É difícil acreditar que haja prosa mais niilista, corrosiva e grotesca que a que ele utiliza na construção dos personagens, dos ambientes e atmosferas, nos diálogos entre guerreiros, até nas circunstâncias do quotidiano. Martins Garcia usa a exaustão o
non sense como metáfora, a relação entre chefes e subordinados decorre habitualmente entre o despotismo, a orgia sexual e a bebedeira que culmina no embrutecimento e até mesmo na hospitalização. É um livro autobiográfico, como ele próprio anota: “Este romance foi redigido entre o mês de Dezembro de 1973 e o dia 8 de Setembro de 1974. Qualquer coincidência com a realidade colonial dos anos 1966 – 1968, no que respeita à Guiné-Bissau, não é produto do acaso”. O personagem principal é Pierre Avince, que nada tem a ver com o jovem conde d’Avince, seu camarada de armas, este é um lídimo representante do antigo regime, dos bons usos e costumes. O conde vive do aparato, é paspalhão, veio convencido da sua missão de soberania. No fundo, é menos que medíocre, as suas farroncas, a sua prosápia, denunciam-se quase instantaneamente. Como representante da velha ordem, o conde não se conforma com o pandemónio em que vivem os seus camaradas, os seus palavrões, as sua falta de maneiras, o seu beber desatinado. Pierre Avince é o anarca consumado, trata o conde d’Avince por monarqui-cozinho, separando bem os dois blocos fónicos. A descrição do Quartel-General é de que ali reina a demência e a disciplina chocarreira: ali preside Sua Alteza (será o comandante militar?), o chefe de Pierre Avince é o capitão Pássaro que bem cedo se apercebe a permanente dor de cabeça que lhe trarão estes novatos. A discussão acesa entre os dois Avince não tarda a rebentar:
“O conde d’Avince deambulou um pouco e meteu-se no quarto. Pierre começou um discurso, pastosamente:
– Um dos piores defeitos da nossa colonização é o anacronismo. Transpõem-se para os colonizados valores caídos em desuso. Neste aspecto, a cultura é como a maquinaria: só se vende aos subdesenvolvidos a tralha que deixou de dar lucro. Quando derem a estes gajos uma fábrica de armamento, é porque já foi inventada, para os deuses, uma forma superior de destruição, o armamento fluido, o raio da morte. Quando os civilizados deixam de ligar à moral de entrepernas, a moral de entrepernas é exportada para outras latitudes. Isto é o mundo que a Europa criou. A Europa e o seu falso pudor…
– Não posso consentir! – gritou o conde”. Como sempre, Pierre insulta o conde, que recua, indignado. É nisto que chega o conde d’Enxeque, o bródio acelera-se. Pierre parte para Catió, os dois condes andam desaustinados, naquele Quartel-General, os desvios sexuais não param. Também não é por acaso que o livro é dedicado “a todas as vítimas da paranóia e da incompetência dos déspotas, caídas para nada no campo do dever e do absurdo”. De vez em quando Pierre vem até Bissau onde a relação entre os dois condes atingiu o desregramento total. Acabamos por perceber que Pierre é oficial das transmissões e que anda de aquartelamento em aquartelamento a tratar das ditas.
É nisto que ele vai parar à Ponta do Inglês, temos aqui algumas da páginas mais brilhantes, indispensáveis, do romance. A Ponta do Inglês é uma posição praticamente indefensável, os transportes entre o Xime e aquele destacamento junto do rio Corubal estão interditos: “A única saída era à beira-rio, se a Marinha tivesse tempo ou propósito dali mandar uma lancha. Mas constava ninguém apreciar essas paragens que, bem interiores ao mapa da Guiné-Bissau, constituíam na realidade o último enclave do ocupante, tomando por referência o largo afluente de nome Corubal. Daí para Sul – dizia-se –, embarcação que ousasse adiantar-se saía rendilhada de bala inimiga, como já se provara. E em terra, nas picadas que tinham ligado a Ponta ao Xime e ao Xitole, o matagal apagara o trilho humano, dando por zero a parte colonizadora da civilização.
Havia três meses que aqueles Destacamento de quarenta humanos ali encontrara abrigos e arame farpado e ali se exercitava na espera, numa inquietação sem finalidade senão a de sonhar a evasão. Para além da vedação, percorriam, bem armados, uns cinquenta metros, para alcançarem água vagamente potável, tendo o cuidado de se abastecerem pela manhã, visto já terem notado, na lama fresca, pegadas de pé descalço… Reinava o sol sobre os perdidos defensores da cerca e então algum sorriso lhes sublinhava as falas. Mas vinha a noite e os receios aos montes acidulavam os gestos com que baralhavam as sebentas cartas e as davam a rostos apreensivos de tanto jogarem sem uma só certeza. E quando o vento sarcástico da história lhes fundia mais uma lâmpada amarelenta, falavam de socorro e reabastecimento, culpando da solidão e da escassez de tudo o encarregado das transmissões, incompetentes em horas de exploração ganindo apelos junto ao rádio perro, para nada senão raivar de nervos”. Confesso que me emocionei a ler a reler estes trechos. Várias vezes fui à Ponta do Inglês, nessa altura (1969, 1970) ali perto se acantonava população que lavrava as bolanhas entre o Poidom e a Ponta de Luís Dias, terra fértil de onde vinha o arroz que alimentava uma boa parte dos quartéis do PAIGC da região do Corubal. Ali fui, pelo menos duas vezes, com o Luís Graça e parte da CCaç 12. Eram itinerários muito perigosos mas a beleza do Corubal, de deslumbrante, contrastava em flagrante com uma qualquer iminência de desforço com o recurso das armas. Percebe-se a solidão daqueles homens, a vontade de transgredir, os tiros nocturnos para afugentar os silêncios da floresta envolvente. Com os nervos sempre em franja, ouvindo as flagelações ao longe, dentro de qualquer Ponta do Inglês a alucinação espreita.
Depois, Pierre Avince partiu para São Domingos (sempre o assunto das antenas, ninguém quer viver com as transmissões fanhosas ou silenciadas), prossegue o despautério, perde imenso dinheiro no jogo na vila transformada em caserna e onde tudo ameaça apodrecimento: “Para tomar banho, Pierre teve de permanecer ao lado de um grande monte de excrementos, porque o duche se situava ao lado de uma retrete alemã cujos mecanismos se haviam estragado. De modo que saiu do banho com a impressão de ser ter sujado nos problemas de toda aquela guerra idiota”. De São Domingos segue para Sedengal e depois Ingoré. Curioso, acompanha o médico a Suzana quando aqui se declara a peste. Depois um jipe acciona uma mina, há um morto e vários feridos. Pierre, que caminha para o fim da comissão, é já uma esponja que absorve todo o álcool, recolhe aos serviços de psiquiatria, temos aqui novamente páginas fulgurantes que atestam o elevado recorte literário de Martins Garcia. Pierre é a personagem do massacre, a tal destruição interior, o cérebro inerte e um corpo disposto a todos os desmandos. Embrutecido, não deu pelo Maio de 1968, está desinteressado de tudo, sente-se louco de condição, depois a comissão termina, toda a vida de Pierre vai ficar marcada indelevelmente por aquele lugar de massacre.
Tenho para mim que este romance é o acontecimento principal da literatura da guerra colonial na Guiné dos anos 70. Vale a pena falar a seguir dos contos de Morrer Devagar que comprovam o elevado talento deste escritor da Ilha do Pico que nos deixou em 2002.
Este livro foi-me enviado pelo nosso camarada José Grave, de Ponta Delgada. Agradeço-lhe do coração a lembrança, já lhe incumbi nova missão, a de desencantar obras de Álamo de Oliveira e de Umberto Bettencourt, outros dois camaradas nossos que escreveram sobre aquela guerra.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 26 de Fevereiro de 2010 >
Guiné 63/74 - P5888: Notas de leitura (71): Além do Bojador, romance de estreia de Manuel Fialho (Beja Santos)