quarta-feira, 24 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6043: V Convívio da Tabanca Grande (3): Justificação para a segunda mudança de data (Joaquim Mexia Alves)

1. Mensagem à Tertúlia de Joaquim Mexia Alves, o elemento mais activo na organização dos dois últimos Convívios da Tabanca Grande, com data de hoje, dia 24 de Março de 2010:

A MUDANÇA DA DATA DO V CONVÍVIO DA TABANCA GRANDE PARA 26 DE JUNHO*


Meus caros camarigos

“O seu a seu dono”, o que quer dizer que quem faz as coisas deve assumi-las!

Vem isto a propósito da última e definitiva mudança de data para o V Convívio da Tabanca Grande, agora confirmado para o dia 26 de Junho, em Monte Real.

A última mudança de data, que das outras não tenho “culpa”, foi da minha responsabilidade e explico porquê.

Recebi um mail do Carlos Vinhal em que me informava não poder afinal estar presente no V Convívio, porque devido a um mau entendimento da data de um baptizado na sua família, a sua opção lógica era pela família.

Para mim, era absolutamente impossível conceber o V Convívio sem a presença do Carlos Vinhal, pelo que logo me coloquei em campo, para ver se havia possibilidades de mudar a data do Convívio para dia 26.

Falei com o Luís Graça que me afirmou estar de acordo comigo, desde que isso não causasse problema de maior, e eu avancei para a tomada dessa decisão, sob a condição de auscultar os já inscritos sobre a mudança da data.

Falei então com o Carlos Vinhal que se opôs veementemente a essa mudança e afirmou até que não colaboraria para que essa mudança fosse feita.

Acho que até me falou “grosso”, calculem, “zangado” com a minha ideia!

Claro que eu lhe disse que sim e mais que também e com o Luís engendramos a coisa de tal modo que passado pouco tempo tínhamos, como calculávamos, só respostas positivas.

Tivemos até um camarigo, do qual não revelo o nome, que me disse que se não se mudasse a data para o Carlos Vinhal ir, ele também não iria no dia 19 para o qual já estava inscrito!

Isso dissipou todas as minhas dúvidas! 

O Carlos Vinhal, e perdoem-me os outros editores da Tabanca Grande, é, a par com o Luís Graça a alma mater do nosso espaço de convívio, conhecido como Tabanca Grande.

Desde que organizo os Convívios, tem sido inexcedível no empenho, na dedicação à organização dos mesmos, às vezes até suportando algumas criticas das quais afinal não tem culpa nenhuma.

Sem ele, eu não me sentiria bem no V Convívio e sei que muitos, se não todos, reagiriam de igual modo.

Somos todos iguais nesta Tabanca solidária, mas temos que reconhecer o esforço individual de cada um e se alguém deve ser reconhecido, é com certeza o Carlos Vinhal, a quem aproveito para prestar a minha homenagem, que acredito é de todos, porque se o Luís Graça fundou e gere, o Carlos gere e faz crescer com a sua permanente disponibilidade e bom senso.

Esta é uma homenagem há muito devida!

Eu sei que quando lhe enviar este texto para ele publicar, ele me vai rogar pragas e se vai “zangar” comigo, mas isso não impede que as verdades se digam.

E “prontos”, aqui está a razão para a mudança da data do V Convívio, em que o Carlos Vinhal “não foi ouvido nem achado”!

E não concordam os camarigos comigo?

Um abraço para todos
Joaquim Mexia Alves

Nota: É que eu,  sem “adjunto”, (que afinal é quem trabalha), não sei fazer nada!!!


2. Aviso aos inscritos para o dia 19 de Junho

Os camaradas inscritos para o dia 19 de Junho devem, se ainda não o fizeram, reinscrever-se no dia 26 de Junho ou apresentarem a sua desistência, caso não possam ou não queiram estar presentes nesta data.

A Organização


3. O nosso camarada Mexia Alves enviou-nos um prospeto que reproduzimos, com Programas de SPA, com preços exclusivos para os participantes no V Convívio da Tabanca Grande, e válidos só nos dias 25; 26 e 27 de Junho.

Os interessados em experimentar sensações novas deverão fazer a sua marcação directamente ao Mexia Alves e levar de casa o respectivo fato de banho.


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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 20 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6025: V Convívio da Tabanca Grande (2): Escolhida a data de 19 de Junho de 2010 e o local, o Palace Hotel Monte Real (A Organização)

Guiné 64/74 - P6042: Tabanca Grande (209 ): Jacinto Cristina, natural de Ferreira do Alentejo, CCAÇ 3546 (Piche e Caium, 1972/74): Foi soldado atirador, mas a guerra fê-lo padeiro...


Guiné > Zona Leste > Piche > Destacamento de Caium &gt CCAÇ 3546 (Piche e Camajabá, 1972 / 1973) > Foto de de meados de 1972 (*). O destacamento ficava na estrada que ligava Piche a Buruntuma. Foi nesta foto que se reconheceu,, por mero acaso, o Sold Jacinto António Grilo Cristina, natural de Figueira de Cavaleiros, Ferreira do Alentejo, pai de uma amiga minha...

Não imaginam a alegria dele quando eu, ao abrir o portátil e pesquisar no blogue postes sobre Piche e Caium, deparei com esta foto que nos foi enviada pelo Henrique Castro (e depois com a foto da ponte, da autoria do Luís Borrega, que o antecedeu em Piche e em Caium)... O Jacinto, com olho de lince, disparou logo:
- Mas este sou eu!

A minha amiga Cristina fazia anos, veio de propósito da Madeira com o marido para estar com os pais (é filha única), e convidou-nos, a mim e à Alice, para ir jantar à casa paterna nesse dia,  9 de Janeiro transacto... Há dias perfeitos: esse foi porventura um deles... A felicidade do Jacinto e da esposa era notória (devido à presença da filha, do genro, da neta e dos amigos de Lisboa)... Além o jantar foi uma delícia (estão a imaginar um borreguinho assado no forno do padeiro, com as ervinhas especiais do Alentejo, e acompanhado com um fabuloso tinto da região, sem falar do pão, do queixo e das azeitonas da nossa perdição!)... A nossa amiga  mais emocionada ficou ao ver, com a lágrimazinha ao conto do olho, o pai ao recuar, assim, 40 anos na sua vida e voltar de novo a  Caium, ao destacamento de Caium, onde penou 14 meses da sua vida, num total de 27 meses de comissão na Guiné!...

Dias mais tarde, a nossa amiga Cristina confidenciou-nos:
- Amigos, foi o aniversário mais feliz da minha vida!- E prometi-lhe que ia pôr o Jacinto (que eu conheci pela primeira nessa noite) em título de caixa alta no nosso blogue, logo que ela me mandasse duas ou três fotos do Jacinto em Piche e em Caium... Há dias ela cumpri a sua parte, no nosso acordo,  e eu agora estou a cumprir a minha...

Bom, e é caso para se voltar a dizer que o mundo é pequeno e o nosso blogue é ... grande! (É uma força de expressão, não levem à letra, nem me julguem mal).

Na foto acima, o Jacinto é o militar que está no meio, sentado no banco de detrás do Unimog. Tinha chegado a  Piche há poucos meses...(Partida para a Guiné em 23/3/1972; regressso, 27 meses depois, em 23/6/1974).

Foto: © Henrique Martins de Castro (2008). Direitos reservados



Guiné > Zona leste > Piche > Destacamento da ponte de Rio Caium visto da margem direita do Rio Caium. Foi aqui que o sold Jacinto Catarino viu morrer, à sua frente, o furriel da sua secção, numa armadilha montada pelas nossas próprias tropas... [ Fur Mil Op Esp Amândio de Morais Cardoso, natural de Valpaços, morto em acidente, em Piche, a 19 de Fevereiro de 1973, rezarão as crónicas...].

"Passei um ano em Piche, e o resto do tempo,  14 meses,  em Caium. As nossas instalações eram uns bidões cheios de areia, uns em cima dos outros, com um chapa de zinco por cima.  Todas as noites o furriel fazia uma armadilha com uma granada de mão junto do rio. Dava um jeio à cavilha de modo a ela soltar-se facilmente se alguém ou um animal tropeçasse no fio. Podia ser uma gazela que ia ao rio beber água ou podia ser um turra. Tantas vezes a bilha foi à fonte que partiu-se"...

O Cristina assistiu, horrorizado, à morte imediata do furriel (de que já não se lembra o nome) bem como de um camarada que ficou gravemente ferido, cego de um olho, e que foi helievacuado. Nunca mais teve notícias dele. Isto terá sido em 1973, em data que ele já não pode precisar. O pelotão não tinha alferes.

Em Caium, o Cristina entretinha-se a fazer o pão. "Ajeitou-se, quando era mais moço via a mãe amassar a massa  e a enfornar"... Aliás, a sua profissão hoje é padeiro. Faz o o melhor pão de Figueira de Cavaleiros. Trabalha de noite para que os seus clientes tenham o pão fresquinho e saboroso pela manhã. Posso-vos jurar que é uma maravilha de pão. Dorme de tarde até às oito. É um homem disciplinado e trabalhador. Antes da tropa, foi assalariado agrícola. Casou para se tornar independente da casa do pai, como qualquer jovem alentejano do seu tempo.  Antes de ir para a Guiné, já tinha a seu cargo mulher e filha. Tem muito orgulho em ter-lhe dado, à filha,  o curso de engenheira. Conhecemo-nos há largos anos, quando ela casou com um amigo meu, médico, o Dr.Rui Silva.

Foto:  © Luís Borrega (2009). Direitos reservados




Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Piche > CCAÇ3546 (Piche e Camajabá, 1972 / 1974) > Em primeiro plano, o Cristina; atrás, a meio, o Charlot, do seu grupo de combate, o 3º pelotão. O Charlot morreu em combate. 

O Cristina fez a recruta no RI 14, em Viseu, e especialidade no RI 2, Abrantes. A CCAÇ 3546 pertencia ao BCAÇ 3883, mobilizado pelo RI 2. A CSS estava sedeada em Piche. O comandante era o Ten Cor Inf Manuel António Dantas.  O comandante da CCAÇ 3546 era o Cap QEO José Carlos Duarte Ferreira (o Cristina já não se lembrava do nome).

As outras companhias do BCAÇ 3883 era a CCAÇ 3544 (Buruntuma e Piche; teve dois comandantes: Cap Mil Inf Luís Manuel Teixeira Neves de Carvalho; Cap Mil Inf José Carlos Guerra Nunes) e a CCAÇ 3445 (Canquelifá e Piche; comandante, Cap Mil Inf Fernando Peixinho de Cristo).

Pela informação de dispomos, estas quatro subunidades partiram para a Guiné, possivelmente de avião, com um dia de diferença: o comando e a CCS/BCAÇ 3883, em 19/3/1972; a CCAÇ 3544, a 20; a CCAÇ 3545, a 22; e a CCAÇ 3546 a 23.



Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Piche > CCAÇ3546 (Piche e Camajabá, 1972 / 1974) >  Destacamento da Ponte Caium > Da esquerda para a direita: O 1º Cabo Pinto, e os soldados Ramos, Cristina (segurando granadas de morteiro 60), o Wolkswagen, o Fernando, de pé (outro que morreu em combate) e o Silva (que percorreu 18 km com um tiro no pé!)...

Em data que o Cristina já não pode precisar, a sua companhia sofreu uma violenta emboscada, entre Piche e Buruntuma, montada por um grupo "estimado em 400" elementos IN (ou "turras, como a gente lhe chamava")...Um RPG 7 atingiu a viatura da frente da coluna, que ia relativamente distanciada do grosso da coluna, e que explodiu...Houve de imediato 4 mortos: O Charlot e o Fernando foram  dois deles... Dos outros dois o Cristina já não se lembra.

Com as granadas de mão dos mortos, o Wolkswagen conseguiu aguentar o ímpeto da emboscada, mas chegou a ter uma Kalash apontada à cabeça... Ninguém sabe como ele  se safou... O Silva por sua vez levo um tiro no pé, fugiu, e mesmo ferido fez 18 km até ao aquartelamento...

Tempos bem duros que o Cristina recorda com emoção... Não é muito dado a convívios, e além disso é homem de fracas letras. Quem lhe vai emprestar o endereço de email é a filha Cristina (nome próprio)... Mas aqui fica o telemóvel para algum camarada do seu tempo de Piche e de Caium o poder contactar (sempre de manhã): 964 346 202.

 Prometi-lhe, a ele e à filha,  que o poria na galeria da nossa Tabanca Grande. Em contrapartida, ele prometeu-me contar-me mais histórias do soldado que a guerra obrigou a fazer-se padeiro...(Além de padeiro, era o municiador - e às vezes  apontador - do morteiro 81, no destacamento de Caium; é outra história que ele tem para nos contar...).



Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Piche > CCAÇ3546 (Piche e Camajabá, 1972 / 1974) > O Cristina abrindo valas em meados de 1973




Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Piche > CCAÇ3546 (Piche e Camajabá, 1972 / 1974) > O 3º pelotão... O Cristina é o terceiro da primeira fila, a contar da esquerda para a direita...

Fotos: © Jacinto Cristina (2010). Direitos reservados

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Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 30 de Setembro de 2008  > Guiné 63/74 - P3252: Tabanca Grande (90): Henrique Martins de Castro, ex-Sold Cond Auto da CART 3521 (Piche, Bafatá e Safim, 1971/74)

(...) Já em Piche, a malta da Companhia fazia colunas a Canquelifá, Buruntuma, Nova Lamego, Bambadinca, Bafatá, Galomaro, etc., operações, patrulhas e psíco - que,  para quem não sabe, era dar um certo apoio e levar medicamentos (mesinho).

Estivemos em Piche mais ou menos até Agosto de 1972, só o primeiro Gr Comb ficou em Piche adido ao BCAÇ 3883. A Companhia seguiu para Bafatá com o segundo, terceiro e quarto Gr Comb.

A Companhia ficou com terceiro e quarto Gr Comb adidos ao BCAÇ 3884 em Bafatá, o segundo foi reforçar para Galomaro o BCAÇ 3872. (...)


(**) 27 de Abril de 2009> Guiné 63/74 - P4252: Os Bu...rakos em que vivemos (7): Destacamento de Rio Caium (Luís Borrega)

(...) Era uma ponte estreita em pedra e cimento com 59 metros de comprimento sobre o Rio Caium, na estrada Piche – Buruntuma. Estava situada a 17,5 km de Piche, a 3,5 Km do Destacamento de Camajabá (pertença da CCav 2747,  sediada em Buruntuma) e a l8,5 Kms de Buruntuma.



O aquartelamento estava instalado no tabuleiro da ponte. Dois abrigos à entrada e dois abrigos à saída. Estes eram feitos de bidões de gasóleo de 200 litros, cheios de terra, uns em cima dos outros, cobertos com troncos e cimento por cima. Ao meio do tabuleiro a cozinha, o depósito de géneros e o refeitório. Eram uns barracos, cujo telhado eram chapas de zinco. Havia ainda um nicho com uma santa e do lado esquerdo (sentido Buruntuma) estava o forno.


Como armamento pesado tínhamos um Canhão sem recuo montado num jeep e um morteiro 81 mm num espaldão apropriado. O restante do armamento era HK21 e RPG 7,  apreendidos ao IN. Dilagramas, morteiro de 60 mm e G3 distribuídas pelo Grupo de Combate.


Para nos reabastecermos de água (para beber, cozinha e banhos) tínhamos que nos deslocar a 2 km do aquartelamento, a um poço cavado no chão, com um Unimog a rebocar um atrelado carregado com barris de vinho (50 litros) vazios, que eram cheios com latas de dobrada liofilizada, adaptadas para o efeito.


Como era de difícil solução a localização de um heliporto, foi decidido superiormente, manter sobre a estrada, uma superfície regada com óleo queimado, para a aterragem de helicópteros.


Como se pode imaginar, nas horas de lazer o tempo era preenchido a jogar cartas, ler, escrever à família. Quase todos os dias tínhamos saída à agua, patrulhamento às áreas em redor, etc.


Os dias e as noites eram passados nos limites do espaço, do tempo, na expectativa dum ataque – e quando este começasse, já estaríamos cercados por todos os lados, porque ali não havia milícias, nem tabanca, nem pista de aviação ou possibilidade de retirada (só saltando o parapeito da ponte e atirarmo-nos ao rio uns bons metros mais abaixo).


A desvantagem da área diminuta tinha contrapartidas benéficas: era mais difícil ao PAIGC acertar com os morteiros e a nossa artilharia tinha mais à vontade nos tiros de retaliação, nos limites do alcance das peças de 11,4 instaladas em Piche. (...)

Guiné 63/74 - P6041: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (4): Os dias da batalha de Guidaje, 15 a 18 de Maio de 1973

1. Continuação do relato da Batalha de Guidaje, de autoria do nosso camarada Daniel Matos (ex-Fur Mil da CCaç 3518, Gadamael, 1972/74), enviado ao nosso Blogue em 6 de Março de 2010:


Os Marados de Gadamael
e os dias da
Batalha de Guidaje


Parte IV

Daniel de Matos

Os Dias da Batalha


Os Dias de Guidaje

15 de Maio


Terça? Quarta? Digamos, tão-só, que estava a romper o dia 15. Já tínhamos mastigado um pedaço de casqueiro besuntado com manteiga, bebido um copo de leite tornado em tons de creme com o café-chicória do costume e perfilámo-nos junto às viaturas, aguardando as ordens do capitão, em Farim. Os nossos dois pelotões, um grupo de combate da companhia africana local e o grupo de milícias especial de Jumbembém, seguem motorizados até Binta, que efectivamente não dista muito da vila, e como se circula em razoável piso o andamento é rápido. Apeamo-nos à chegada, metemos bala na câmara e começamos prudentemente a caminhada que, avisa-me um camarada que conhece o trajecto, não será pera doce, deveremos dar corda aos sapatos e caminhar entre dezassete a dezoito quilómetros. Organizamos então duas filas em que os homens, mantendo distâncias generosas dos camaradas da frente, se põem em andamento, tão devagar quanto o dita o rigor da picagem, pois é garantida a existência de minas ao longo do percurso. Entre os talvez quarenta metros que separam as duas filas humanas seguem as viaturas, à boleia das quais apenas se vislumbram os condutores, rodeados de sacos de areia, para melhor protecção dos corpos e para fazer peso e evitar que a viatura seja projectada, caso um pneu aziago accione o engenho mais inopinado. Na frente, a rebenta-minas, uma Berliet já amachucada, leva tanto saco sobre as rodas e na carlinga que o condutor se vê em palpos de aranha para espreitar a trajectória a seguir, parece guiar de pé. Não leva mais viaturas no encalço, a que se segue vem lá muito para trás, a não menos de duzentos metros.

Ouvimos, bem de longe, dois rebentamentos e depois uma série de rajadas. Parámos. Cada pelotão leva um rádio AVP-1 e somos informados que uma força vinda de Guidaje ao fazer rebentar minas fora emboscada logo em seguida. Soubemos mais tarde tratar-se dos fuzileiros especiais que chegaram a Guidaje no dia 12 (DFO-3 e DFO-4) e que tentavam cruzar-se connosco e regressar a Farim. A única coisa que conseguiram foi o revés de mais sete feridos, cinco na emboscada e dois (graves), cada qual accionando a sua mina.

As minas são cada vez mais as armas que mais baixas provocam nesta guerra e as que maiores temores causam dum lado e doutro das barricadas. Usadas isoladamente ou no despoletar de emboscadas, estima-se que mais de metade das baixas das forças armadas foram ocasionadas devido a minas e armadilhas, e isto nos três teatros de guerra. E muitas dessas minas foram detectadas em devido tempo, poderão ter posto os nervos em franja aos sapadores e aos camaradas que, como eu, foram “formados” em Tancos, na Escola Prática de Engenharia, mas nada mais do que isso. Só no ano transacto (1972) o PAIGC teria à volta de quinhentas minas e armadilhas implantadas no terreno (perto de quatrocentas antipessoal e de cem anticarro, das quais foram neutralizadas cerca de trezentas e setenta. E nem todas as armadilhas são montadas com engenhos sofisticados: uma simples granada de mão presa a uma estaca ou num tronco de árvore, com um fio-de-tropeçar atado à cavilha de segurança e esticado a partir do outro lado dum trilho, pode ser armadilha eficiente e, logo, fatal!

Damos com as viaturas desventradas pelas minas e por combates recentes. Há peças espalhadas ao longo de centenas de metros, pedaços de bancos, jantes, faróis, chaparia amarrotada como folhas de papel. Mas nem tudo foi destroçado pelo IN. No dia 9 a força aérea avistou sobre as viaturas abandonadas guerrilheiros a descarregar o material, e não era pouco, (recorde-se que pertenciam a colunas de reabastecimento e em geral levavam armas e munições, em especial Morteiros 81 e respectivas granadas). O capitão José Manuel Pinto Ferreira (hoje tenente-coronel piloto-aviador, já reformado) recebeu instruções para bombardear as viaturas por forma a tudo destruir, e assim fez! O bombardeamento foi tão intenso que o ferro-velho se alastrou por alguns quilómetros. Mas veio-se a apurar que as bombas já foram algo tardias, pois muitos morteiros e munições já haviam sido apanhados pelo PAIGC, provavelmente durante a noite.

Tentamos contornar os campos de minas, rasgando uma nova passagem, paralela à existente. A planura e o facto da vegetação não ser muito densa facilitam o trabalho. Enquanto na frente as milícias picam o terreno nos desvios que o capitão pretende efectuar, calhou-me ficar instalado cerca de um quarto de hora a metro e meio de um cadáver. Com tanta mosca a levantar voo do meio das larvas e da carne putrefacta e a cirandar sobre a minha cabeça, eu não ter vomitado os fígados já foi acto de grande heroicidade! O estado em que se encontra não permite apurar se é branco ou preto nem que tipo de farda será o que resta da sua. Embora eu não os veja do local onde estou, oiço dizer que também há (ou houve) corpos de guerrilheiros abandonados por ali. O sangue seco tingiu completamente da mesma cor o camuflado, tornando muito difícil a destrinça. Os corpos expostos ao sol e ao calor estão já em decomposição, o cheiro e o aspecto são asquerosos…

Os sete ou oito quilómetros que se seguem demoram três horas a transpor. Depois disso, a marcha é mais célere e, por fim, respiramos de alívio e avistamos a aldeia, um punhado de moranças, um grosso embondeiro, palmeiras espaçadas, um pequeno grupo de soldados africanos na recepção a dar-nos indicações, já as sabíamos mais ou menos, caminhar sempre pertinho das valas e procurar abrigos. Aos soldados é indicada a caserna (penso que um antigo armazém) onde devem instalar-se, podendo levantar colchões e mantas logo ali ao lado.

Para nos ter deixado chegar ao destino, o PAIGC ou nos preparava um grande castigo ou nem teria sequer desconfiado que alguém nos tinha deitado ao caminho e só por isso corremos o percurso de Binta à fronteira sem uma beliscadura física (mentais permaneceram umas quantas, vida fora).

A crise militar já estava de tal modo instalada que, já neste dia 15 de Maio, se efectua uma alta reunião de comandos em Bissau para debater a situação. Spínola convocou os comandantes dos três ramos das forças armadas, – exército, força aérea e marinha, – o comandante adjunto operacional, o chefe do estado-maior do comandante-chefe e os chefes das repartições de operações especiais. Na reunião, o brigadeiro Leitão Marques alerta que o PAIGC “está a preparar as necessárias condições para a conquista e destruição de guarnições menos apoiadas por dificuldade de acesso (Guidaje, Buruntuma, Guileje, Gadamael, etc.), a fim de obter os êxitos indispensáveis à sua propaganda internacional e manobra psicológica, – e isto está já ao alcance das suas possibilidades militares”.

O momento não dá para satisfazer grandes curiosidades, mas sempre percebemos que a linha de fronteira com o Senegal fica mesmo em frente, à perpendicular dos nossos olhos. A extrema da pista de aviação já é estrangeiro e numa boa parte do arame farpado bem poderíamos instalar a alfândega! Sobre as árvores que avistamos a cerca de duas centenas de metros garantem-nos que há “turras” a vigiar-nos e a atacar-nos quando querem. Certamente que já deram pela nossa chegada, contemos então que não demorem a dar-nos as boas-vindas com o fogo de artifício de canhões sem recuo, morteiros e foguetes (passariam, no entanto, as primeiras horas sem se confirmar o esperado ataque).

Por toda a parte existem valas, algumas de escavação recente. Circundam todo o quartel e ligam todos os edifícios, um por um, independentemente da dimensão. O furriel Machado, que é de Valpaços, vem com o contacto (leia-se cunha) de um furriel também transmontano, de Vimioso, que ali se encontra, e de um primeiro-cabo do pelotão de artilharia, para cujo abrigo nos dirigimos eu, o próprio Machado e o Ângelo Silva. O abrigo do Obus 10,5 ao fundo, é subterrâneo e a dois passos da fronteira. Em redor do Obus há uma circunferência desenhada por bidões atulhados de terra e bem encostados uns aos outros. No sítio onde faltam dois bidões é a entrada, que dá directamente acesso às valas e à portinhola do quarto (abrigo subterrâneo).

O “dono” do quarto é um furriel pertencente ao Pelotão de Artilharia n.º 24, que está ausente, de férias na metrópole. Deixara naquele buraco meia dúzia de coisas, entre as quais a cama, um baú e um gravador de bobinas vertical Akay, (que virão a desfazer-se…) O quarto é acanhado. Da porta descaem três ou quatro degraus irregulares, altos e toscos, e do lado esquerdo, encostadas cada qual à sua parede, estão duas camas, – a dele e a ocupada pelo nosso cabo artilheiro que o ficou a substituir naquele posto. Não cabe mais nada, o “corredor” entre as camas quase nem permite que duas pessoas se cruzem. Cá em cima, à superfície, o tecto do abrigo lembra um enorme quisto. Presumo a existência de uma placa de cimento, que não é visível por ter em cima duas fiadas de troncos de madeira bem unidos e cobertos de uma camada redonda de terra, como as que cobrem muitos fornos de aldeia. Aparentemente, é o local mais seguro pois não se imagina que uma granada qualquer consiga destruir um tecto daqueles.



16 de Maio

Para aqui estamos, os 200 que já cá “moravam” (essencialmente a companhia africana n.º 19 e o pelotão de artilharia de 10,5 mm), mais os acabados de chegar. Se o IN nos poupou às boas-vindas, o certo é que não foi preciso esperarmos vinte e quatro horas para levarmos com a primeira chuva de granadas. Regista-se um morto, – o soldado Martinho Cá, apontador de metralhadora da CCaç 3. Também um dos nossos homens (CCaç 3518) é ferido ligeiramente com o ricochete de um estilhaço, mas nada de grave.

Se no sul nos diziam que quem comandava directamente os guerrilheiros era o temível Nino Vieira, aqui também não fazem a coisa por menos: os renhidos combates que se estão a travar em redor de Guidaje mobilizam largas centenas de homens do PAIGC, que cada vez mais nos apertam o cerco, comandados pelos já conhecidos (de nome, pelo menos) Francisco Mendes e Manuel dos Santos.

Francisco Mendes (também Chico Mendes, ou Chico Té) esteve com Amílcar Cabral e outros dirigentes históricos nos primeiros cursos de formação, em Praga (antiga Checoslováquia). Foi assassinado em 7 de Julho de 1988, após uma independência pela qual lutou a vida inteira. Mas diz a sabedoria popular, em crioulo, que “dinti mora ku lingu, ma i ta daju i murdil” (os dentes moram com a língua, mas às vezes mordem-na – provérbio guineense)! Chegaria a primeiro-ministro da Guiné-Bissau. Quanto a Manuel dos Santos (Manecas), que além de dirigir guerrilheiros é um dos comissários políticos que coordena quem vive nas “áreas libertadas” e, nesta altura, comanda a Frente Norte, é responsável pelas operações dos mísseis terra/ar em todo o território. Estivera na União Soviética a receber formação específica para operar e ensinar a manejar os Strela. Será ministro da informação logo no primeiro governo da Guiné-Bissau, após a retirada das autoridades portuguesas. Nasceu em Santo Antão, Cabo Verde, em 1943 e será dos raros dirigentes cabo-verdianos do PAIGC que permanecem nos governos de Bissau depois do “14 de Novembro” (golpe de estado de Nino Vieira). Logicamente que na investida contra Guidaje estiveram envolvidos mais quadros do PAIGC, entre eles, Manuel Saturnino da Costa, que chegaria a ser secretário-geral do partido e primeiro-ministro da Guiné-Bissau independente, e alguns intermédios, como Lúcio Soares, Joaquim Biagué e Bobo Queita.

Logo a seguir ao primeiro ataque, o furriel Bernardo Monteiro e os alferes Igreja e Cruz foram não sei onde desencantar mais duas camas e colchões, trouxeram-nas para o abrigo e, sobrepondo-as às existentes, montaram-nas em camarata. O quarto do furriel artilheiro ausente, onde há duas ou três semanas só ele residia, transformou-se num dormitório apertado, onde passamos a pernoitar sete almas. Virá também a juntar-se ao grupo o furriel Fernandes, da CCaç 19 (o tal outro transmontano que alguém de Farim indicou ao Machado).


17 de Maio

Acordo estremunhado sob o efeito de novos ataques de artilharia, com granadas a cair bem no interior do quartel. Os obus 10,5 reagem prontamente sob as ordens do comandante (tenente-coronel Correia de Campos) e fazem um longo batimento de zona, conseguindo calar os disparos inimigos. Os canos são também apontados para o interior senegalês, dizem-me que visam certamente atingir a base de Koumbamory. São disparados mais de 40 tiros de obus. O nosso cabo artilheiro que coabita o quarto subterrâneo que “ocupámos” confidenciou-me que em todo o quartel restam unicamente 39 granadas de calibre 10,5 e que as deve poupar para qualquer eventualidade futura. O certo é que nos dias seguintes a artilharia deixará mesmo de reagir aos repetidos ataques inimigos, essa tarefa ficará a cargo dos Morteiros 81, talvez somente para marcar presença, para demonstrar que estamos vivos!

Entretanto, está em andamento a grande operação Ametista Real. Com efeito, prepara-se uma acção de gigantescas proporções para o envolvimento da principal base inimiga. O objectivo é aniquilar ou reduzir a capacidade bélica de um IN que contará com cerca de 650 efectivos concentrados ali à volta, uma acção que ponha fim ao actual isolamento da guarnição de Guidaje, que nos permita evacuar os feridos e tratar do reabastecimento de géneros, de medicamentos, até mesmo de urnas!...


18 de Maio

No cerne da operação, que será comandada pelo major João de Almeida Bruno (antigo comandante do Centro de Operações Especiais) e pelos capitães António Ramos (agrupamento Romeu, do tenente Quiseco), Matos Gomes (agrupamento Bombox, do tenente Zacarias Saiegh) e Raul Folques (agrupamento Centauro, do tenente Jamanca), está o Batalhão de Comandos Africanos. A par do agrupamento Romeu desloca-se o Grupo Especial (do Centro de Operações Especiais), hábil em demolições, comandado pelo alferes Marcelino da Mata.

O capitão António Ramos já faleceu; os capitães Raul Folques e Matos Gomes são hoje coronéis. Este último tem sido porventura o militar mais empenhado em estudar e contar a História das guerras coloniais (nas três frentes – Guiné, Angola e Moçambique); e também tem obra relevante publicada no domínio da ficção/literatura de guerra, sob o pseudónimo de Carlos Vale Ferraz (destaco Nó Cego, obra inspirada na operação Nó Górdio, em Moçambique ordenada pelo general Kaúlza de Arriaga e condenada por toda a comunidade internacional), entre os seus romances de ficção ASP – De Passo Trocado, Soldado, Os Lobos Não Usam Coleira, este adaptado ao cinema por António Pedro de Vasconcelos com o título”Os Imortais”, O Livro das Maravilhas e Flamingos Dourados).

Os cerca de 450 homens envolvidos na Operação Ametista Real saem este sábado de Bissau e chegam a Ganturé, transportados a bordo de uma LDG (lancha de desembarque grande) e duas LFG (lanchas de fiscalização grandes).

A base fluvial de Ganturé, a 5 quilómetros de Bigene e na margem do Cacheu, quase não tinha estruturas. Contou-nos um marinheiro, de rosto bem queimado pelo abrasador sol africano e que chefiava uma esquadra, que foi o Destacamento de Fuzileiros Especiais n.º 4 que recebeu a incumbência de as (re)construir, desde o mês passado. Assim, receberam em Abril, por via fluvial, uma montanha de bidões de combustível vazios, a que haviam que cortar as tampas e encher de terra, com o que montaram a estrutura lateral do “quartel”, colocando por cima as chapas de zinco, como era de uso na engenharia tradicional dos tempos de guerra. Em simultâneo, cavaram abrigos subterrâneos e as imprescindíveis valas, não esquecendo o imprescindível bar para as horas de ócio…

Diz-se que o batalhão de comandos africanos é especializado em acções fora do território, talhado para intervir nos países vizinhos. Daí os comandos vestirem muitas vezes fardas turras e usarem, também com frequência, o mesmo armamento (à medida que se vão capturando as Kalashnikov, os lança-granadas foguete RPG-2 e RPG-7, as espingardas automáticas Simonov, as metralhadoras ligeiras Degtyarev e pesada Goryounov, utilizadas pelo PAIGC)…

As Kalashnikov usam balas de calibre idêntico (7,62 mm) às das G3 que nós utilizamos. Manejam-se, contudo, com muito mais facilidade: desde logo, por serem mais leves (menos 225 gramas) e quinze centímetros mais curtas; e porque os seus carregadores comportam trinta cartuchos, mais dez que os vinte da nossa G3. Ora, salvo em situações/operações excepcionais, cada soldado das NT leva para o mato um carregador na arma (permite-lhe dar vinte tiros) e quatro cartucheiras no cinturão (cada uma com um carregador de vinte, o que permite dar oitenta tiros, – cem no total); enquanto que um guerrilheiro do PAIGC, com menos peso e melhor operacionalidade, pode disparar por cento e cinquenta vezes…

(Continua)
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 20 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6027: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (3): Os dias da batalha de Guidaje - Antecedentes à nossa chegada

Guiné 63/74 - P6040: Parabéns a você (89): Ibrahim Djaura, ex-Soldado Condutor Auto da CCAÇ 19 (Os Editores)

1. No dia 24 de Março de 1949 nasceu na então Colónia Portuguesa da Guiné, Ibrahim Djaura* (ex-Soldado Condutor Auto, CCAÇ 19, Guidaje, 1972/74), que viu o seu nome próprio passar para Braima, por imposição administrativa já que o original seria um nome não cristão.

Ibrahim combateu pela sua pátria de então, Portugal, ao lado de militares brancos que não conhecia de lado nenhum, mas que como ele defendiam, por imposição, um ideal imperialista, então já em desuso. Veio para Portugal em busca de justiça e do reconhecimento pelo seu sacrifício, pelo sangue derramado, igualzinho aos dos jovens brancos que a ele se juntaram naquele território de gentes, costumes e clima, tão estranhos para quem se deslocava da Europa.

"Honra" seja feita à nossa pátria que não reconhece nem os de lá (africanos) nem os de cá. Muitos dos de lá foram assassinados, muitos dos de cá vão morrendo aos poucos entregues à sua sorte, porque fazem parte dos descartados já sem préstimo.

Apesar de todas as vicissitudes o Braima, melhor, Ibrahim soma já 61 anos, a maior parte deles vividos com doença adquirida na guerra, e privações materiais, porque a vida nem sempre corre de feição.

Ao nosso camarada combatente que viveu os dias difíceis de Guidaje, deseja a Tabanca inteira um dia de aniversário com alegria junto dos seus familiares e amigos, portugueses e guineenses.



2. Em Julho do ano passado Braima apresentava-se assim ao Blogue:

Sou natural da Guiné, onde cumpri serviço militar. Antes fui preso dez dias pela PIDE-DGS, por não querer cumprir serviço militar em 1970. Lá fui então enviado para o CIM [ Centro de Instrução Militar], em Bolama, em 1971. Concluida Instrução Militar, fui enviado para CICA, para [tirar a especialidade de] condutor Auto Rodas. Fui colocado em Guidaje em Janeiro de 1972. [Fui transportado] no Navio Alfange. Ao chegar ao Cacheu, fomos escoltados por dois outros Navios do Destacamento de Fuzileiros aí estacionados.

Foi nesta altura que percebi, quando nos juntamos com outros Camaradas comandados pelo Capitão Caramona. Foi ele que nos informou que a nossa Companhia era a CCaç 19. Já no Porto de Binta, abrimos caixas de G3 e munições, prontos para fazer os 21 quilómetros até Guidage, zona considerada Inferno.

Assim começou tudo, não sei se muitos Camaradas sabem o que eu quero dizer, [com essa expressão], mas acho que sabem prefeitamente; Bom, mas o mais importante para já é poder aceder a este Site, ou a este Sítio e a este Blogue, pois muito sinceramente adoro ver Camaradas que que falam da Guiné, e das Aldeias que muitos Naturais da Guiné, do pós-Guerra, desconhecem.

Muito sinceramente este Blogue serve para mim como uma Terapia diária desde que tomei conhecimento [da sua existência]. A história não pode nem deve morrer lá.

Junto a minhas fotos, e há mais para enviar, relativas à minha estada em Guidaje até Junho de 1974.

Caro Luís e Camaradas, há muita história entre Binta, Cufeu, Ujeque e Guidaje, a 300 metros da fronteira com o Senegal, a 6 Km de Cumbamori uma base importante do IN, até ao dia da operação "Resgate" em Maio de 1973.

Bem hajam todos e muita saúde já que estamos todos F... mas não nos deixaremos ser apanhados apesar de tudo.
Alfa Bravo Romeu.
Djaura.

__________

Notas de CV:

(*) Ibrahim (Do árabe: ابراهيم,Ibrāhīm) ou Ebrahim (Ebrāhīm) é o nome semita dado ao profeta Abraão (hebraico: אַבְרָהָם, Aḇrāhām).

Apontamento retirado da Wikipédia

Vd. postes de Braima Djaura de:

7 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5418: Tabanca Grande (194): Braima Djaura, Sold Cond Auto, CCAÇ 19, Guidaje, 1972/74, um sobrevivente
e
Guiné 63/74 - P5419: Os Nossos Camaradas Guineenses (22): Muitos se salvaram pela solidariedade que existia entre todos, brancos e pretos (Braima Djaura, Sold Cond CCaç 19, Guidaje, 1972/74)

8 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5427: Os nossos camaradas guineenses (23): Temos uma dívida de gratidão para com homens como o Braima Djaura (José Manuel Pechorro, CCAÇ 19, Guidaje, 1971/73)

22 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5520: Os nossos camaradas guineenses (24): Vi matar o meu camarada Lamine Sanha (Braima Djaura, ex-Sold Cond Auto, CCAÇ 19, Guidaje, 1972/74)

Vd. último poste da série de 17 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6003: Parabéns a você (88): José Armando F. Almeida, ex-Fur Mil TRMS da CCS/BART 2917 (Editores)

terça-feira, 23 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6039: (Ex)citações (61): O desvario de um capitão de cavalaria, que matou a tiro um militar e um civil, no Senegal, e que apanhou 12 meses de presídio militar (Carlos Cordeiro)

1. Comentário, de 21 do corrente,  do nosso camarada Carlos Cordeiro (*), ao poste P6022 (**)

Caro Luís,

Sobre o infeliz acontecimento, há um testemunho no "Correio da Manhã" [, reproduzido no blogue Leste de Angola]:

http://lestedeangola.weblog.com.pt/arquivo/264295.html (***)

Além disso, veja-se a sentença do Supremo Tribunal Administrativo relativamente a um recurso apresentado pelo Cap Botelho contra o facto de não ter sido promovido a Major (o despacho é de 12/1/93 - na caixa find, ao colocar-se Botelho, surge logo a sentença).

Este acto (e outros) por ele cometido teve gravíssimas repercussões na sua carreira militar (****). Depois de submetido a Junta Médica, passou à reserva, em 1974. É muito importante a leitura da sentença para se compreender o seu comportamento militar.

www.dre.pt/pdfgratisac/1993/32110.pdf

Abraço,

Carlos Cordeiro

[ Revisão / fixação de texto / selecção de excertos / título: L.G.]
______________

Notas de L.G.:

(*) Foi Fur Mil Inf no Centro de Instrução de Comandos, em Angola, nos anos de 1969/71; irmão do infortunado Cap  Pára José Costa Cordeiro, morto em acidente em 1973 (CCP 123/BCP 12); é Professor de História Contemporânea na Universidade dos Açores, Ponta Delgada, Ilha de S. Miguel,

(**) Vd. poste de 19 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6022: Fajonquito do meu tempo (José Cortes, CCAÇ 3549, 1972/74) (4): Ainda o caso do Cap Patrício que foi, por castigo, para a CCAÇ 15, Mansoa, e do comandante do Esq Rec Fox de Bafatá que invadiu o Senegal com as chaimites

Vd. também poste de 20 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6028: A propósito do Dia do Pai... e da história do Esq Rec Fox 3431 (Bafatá, 1971/73)

(***) Trata-se de um depoimento de um militar do Esq Rec Fox 3431 (Bafatá, Setembro de 1971/ Junho de 1973), Sérgio Marques dos Santos, hoje motorista de táxis no Porto, e um dos organizadores habituais do convívio anual da unidade... Não consegui apurar a data, ao certo, em que este depoimento foi publicado, na revista "Domingo", do jornal "Correio da Manhã", na série "A Minha Guerra"... Muito provavelmente foi publicado no ano de 2008. Também não sei quem foi o jornalista que recolheu e tratou o depoimento do Sérigo Marques dos Santos.  Tomo a liberdade de reproduzir alguns excertos, com a devida vénia:

 (...) Foi uma tarde louca, aquela de Outubro de 1972, em Pirada, no Leste da Guiné, na fronteira com o Senegal. Eu integrava um pelotão de reconhecimento composto por duas viaturas blindadas, uma ‘White’ e uma ‘Chaimite’, que fazia escolta ao comandante do Batalhão de Caçadores (BCAÇ) 3884, a Uacaba, Mafanco, Sonaco, Paúnca e Pirada. A certa altura, no intervalo de uma reunião de oficiais, o nosso comandante, o capitão de Cavalaria Manuel Eduardo Alves Botelho, diz: 'Venham comigo, vamos dar uma volta!' Fomos, éramos uma dezena de homens.


"Passámos a fronteira e penetrámos quatro ou cinco quilómetros no Senegal. Nenhum de nós adivinhava a intenção do capitão, que continuava entusiasmado a conduzir-nos por território estrangeiro adentro. A certa altura, avistámos um acampamento militar de senegaleses. A ‘White’ foi obrigada a interromper a marcha, por causa das valas feitas pelos militares estrangeiros, mas a ‘Chaimite’, que tudo passa, entrou no acampamento.


"Os senegaleses ficaram surpreendidos, mas não esboçaram qualquer atitude hostil. Pelo contrário, entraram num convívio estreito com os nossos camaradas de Pirada, onde frequentemente iam buscar cerveja. Estavam a saudar-nos com acenos, aos quais nós correspondíamos, quando, subitamente, o capitão, que empunhava uma pistola, desatou aos tiros em direcção aos pretos senegaleses.


"As tropas senegalesas, apanhadas completamente de surpresa, correram em todas as direcções, tentando abrigar-se do fogo do nosso comandante. Um tenente do exército senegalês, que se aproximara um pouco mais, caiu morto e um soldado ficou ferido. Antes que pudessem recuperar e ripostar, o capitão Alves Botelho ordenou a nossa retirada.


"No caminho de regresso à Guiné, quando passávamos por dois camponeses senegaleses, que seguiam de bicicleta e que também nos saudaram, o nosso capitão, que estava definitivamente de cabeça perdida, disparou a sua pistola contra eles. Um morreu e o outro ficou ferido. 'Eram terroristas?', alguém perguntou ao capitão Alves Botelho. O oficial apenas ordenou que continuássemos até Pirada.


"Estes actos foram uma loucura que ninguém compreendeu. Em Pirada, os oficiais e comandantes ficaram ‘loucos’ quando souberam, pois os senegaleses eram nossos amigos e confiavam em nós. O comandante da unidade ordenou o regresso imediato do pelotão de reconhecimento envolvido no tiroteio a Bafatá. O capitão foi enviado sob detenção para Bissau, por helicóptero, na manhã seguinte. Três dias depois, o capitão Alves Botelho reuniu o Esquadrão e fez um discurso de despedida. Foi enviado para a Metrópole, para os serviços de Psiquiatria de um hospital militar e, mais tarde, abatido ao efectivo. Nunca mais soube dele, sei apenas que faleceu há quatro anos.


"Este episódio foi dos piores e mais gratuitos que vivi durante a guerra, mas houve outros igualmente trágicos. A nossa tarefa consistia em fazer a segurança às colunas de abastecimento aos nossos aquartelamentos. Eu conduzia a ‘Chaimite’ ou, eventualmente, a ‘White’. Em alternativa, era atirador numa das viaturas. E foram inúmeras as ocasiões em que estivemos debaixo de fogo. Era impressionante como os ‘turras’ tinham conhecimento das nossas saídas. Muitas vezes, só sabíamos à meia-noite do dia anterior, mas eles sabiam antes e emboscavam-nos. As nossas colunas reagiam, o pessoal dos ‘Unimog’ e das ‘Berliet’ atirava-se para as bermas e eu andava às voltas na ‘Chaimite’ a fazer fogo indiscriminadamente" (...)

Fonte: Leste de Angola > 5 de Outubro de 2008 > "Abatemos um um militar e um civil sem razão"

 (****) Entre outras punições, registe-se a condenação do Cap Cav Alves Botelho em 12 meses de presídio militar, pelo Tribunal Militar Territorial da Guiné, em Junho de 1973, conforme se pode ler, a pp, 45, da  setença do STA, documento citado pelo Carlos Cordeiro

Guiné 63/74 - P6038: Da Suécia com saudade (23): A Tabanca da Lapónia em mudanças para a... Flórida! (José Belo)

1. Mensagem do José Belo, com data de 22 do corrente

Assunto: A Tabanca da Lapónia em mudanças.

Caríssimo Amigo e Camarada:

Lamento informar que a Tabanca da Lapónia irá estar encerrada por uns tempos a partir de meios de Abril. A nova geração cresceu, acabou os seus cursos e decidiu ir trabalhar nas sucursais da empresa familiar nos Estados Unidos.  Um muito [grande], e oportuno, alibi para arranjarmos uma casa extra na Flórida, aproveitando proximidade com ambos os filhos.

Finalmente,este Lusitano há tantas décadas a viver entre renas e outras alimárias-frias.....(.que não as Suecas!) vai até ao calor, luz, sol, palmeiras, areias brancas e mar verde! Sem esquecer Whisky-Whiskey-Bourbon-Rum...mas SEM GELO!!!!! Tanto dentro do copo, como e principalmente......à volta dele!

É mudanca grande, pois a ideia é por lá ficarmos durante os longos nove meses dos Invernos escandinavos. Muita coisa a arrumar em contentor, organizar e preparar. (Não menos, o devido empacotamento de algumas renas e hui-huis de estimação!).

A minha participação em Tabancas, com alegria e entusiasmo, no fantástico convívio, camaradagem e amizade que elas proporcionam,voltará por certo, pois como se sabe, até na Lapónia,... O MUNDO É PEQUENO E A NOSSA TABANCA É GRANDE!

Um grande abraço amigo do José Belo.

2. Em 18 do corrente, o José mandou-me outra mensagem, com referências a Belmonte, e dando assim continuidade a uma conversa, entre nós dois, que ficou a meio:

Caro Amigo e Camarada:


Durante o tao curto tempo em que tivemos oportunidade de conversar em Monte Real, falou-se de Belmonte. Se tiveres tempo e paciência,dá uma saltada à Tabanca da Lapónia,onde se fala do tal Belmonte. Um grande abraço do José Belo.

2. Comentário de L.G.:

Camarado e amigo lusitano (na diáspora):

Permite-nos que as tuas alegrias sejam também as nossas alegrias, e que as tuas tristezas sejam também as nossas... Se vais estar ao pé dos que amas e te amam, a  tua mulher, os teus filhos, vais estar bem e feliz. Nós estaremos também felizes, por teres luz, e sol, do outro lado do Atlântico,  e estares ao pé dos teus. Basta-nos a  ideia de pensar que em qualquer altura  somos livres de comunicar (= pôr em comum)  uns com os outros... Aparece sempre que te der na real gana... Sabemos, em contrapartida, que a partir de agora vai ser mais difícil concretizar, num futuro próximo,  a ideia de irmos, alguns de nós,  em romaria,  à tua Lapónia de adopção... Até já me ensinaste o caminho para lá chegar... Mas, enfim, há mais marés do que marinheiros, diz-se na minha terra, à beira-mar (a escassos 15 km do Baleal onde chegaste a pensar casa de verão...).

Boa sorte e sobretudo muita saúde lá nas tuas novas terras de Miami. Nada te impede, por outro lado,  de abrires, em Miami, uma nova Tabanca. Ficavas com duas,  a da Lapónia e a de Miami, a usar conforme as estações, as conveniências e os amigos... Em Miami vais apanhar seguramente algum cubano que também a fez guerra da Guiné... LG

PS - Cadê o tal poste sobre Belmonte, terra de teu avô (paterno), se bem percebi ? Não localizo o texto no teu blogue... Deve ser por nabice minha.

___________________

Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 23 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5871: Da Suécia com saudade (20): As portas que Abril me abriu e as que me fechou (José Belo)

Sobre o José Belo, há mais de 3 dezenas de referências ou marcadores... Vd.em:

José (ou Joseph) Belo (20)
José Belo (13)

segunda-feira, 22 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6037: Blogpoesia (69): O Dia Mundial da Poesia, da Falagueira a Buruntuma (Luís Graça)



Da Falagueira a Buruntuma, no dia mundial da poesia


por Luís Graça




Celebrou-se ontem, 21 de Março,
o Dia Mundial da Poesia.
Eu não o celebrei,como devia.
Gosto de efemérides,
sou rigorosamente circadiano,
respeito o dia e a noite,
a semana, o mês e o ano,
as festas, as feiras, os feriados,
o calendário gregoriano,
o século, o milénio, a nossa era,
o solstício...
Mas já anteontem perdi o equinócio da primavera.
Bolas, que desperdício!


Dizem que Deus proibe o ócio
a quem tem de ganhar o pão
que o diabo amassou.
Não celebrei,o tal Dia Mundial da Poesia.
Nem o equinócio.
Nem eu, nem sequer o senhor ministro
de Estado da Pompa & da Circunstância
que escolheu o dia
para falar do choque tecnológico,
e do nosso portefólio nacional
de competências,
em estrofe triunfal,
plagiando o engenheiro Álvaro de Campos,
talvez o nosso maior futurista do passado.


Eu preferiria falar do risco biológico
que resulta do simples facto  de nós existirmos.
E sobretudo de sermos um corpo,
de intervenção.
E ser pura água potável
mais de 70% do nosso escudo de protecção.

Que admirável!

Confesso, pela minha parte,
que estava demasiado distraído ou cansado.
Por surdez profissional ou por usura,
por pura usura do trabalho acumulado.
De facto, não celebrei o dia como devia,
por fadiga, por pura fadiga física e mental.
Mas também por falta de co-celebrantes do ritual...
E ainda, confesso, pela minha falta  de sentido eclesial.

Por que deveria eu, ao fim e ao cabo,
ter o pesado encargo de celebrar
o Dia Mundial da Poesia,
por minha conta e risco ?


Não, não é nada pessoal,
simplesmente acontece que tenho
um ponto de vista mais esquizofrénico
sobre a relação dos poetas, vivos e mortos,
com o bem e com o mal.

Em Angola, na província do Uíge,
o vírus de Marburgo mata.
Ou matava outrora as palancas negras
e os ursos brancos e as lebres
no fim da pista.
Matava a cólera e a kalash,
na cidade de Bissau,
em lutas fratricidas.
E o sezonismo no Mondego.
Ou nos campos de arroz do Vale do Sado,
no tempo em que os escravos balantas cultivavam as nossas bolanhas.
Agora é proibido apanhar conquilhas.
Bem como montar minas e armadilhas
no troço da ponte Caium
entre Piche e Buruntuma.
E isso não é metafísica nenhuma,
é rigorosamente política,
pura e dura.
Ou é um caso de polícia sanitária.
Todavia não tira o sono a ninguém,
muito menos o sono de má qualidade
dos ex-combatentes da ex-guerra colonial.
Nem é notícia de jornal.
ou se o é, é fait-divers,
à falta de melhor título de caixa alta.

A verdade é que os fluídos do corpo matam,
o sangue, o suor, as lágrimas,
a saliva, a merda, o vomitado,
as secreções gástricas,o sémen,
o sangue, suor e lágrimas de Buruntuma,
em fim de tarde,
em final de filme de guerra a preto e branco.

Já a ministra da arte, exportável,
é mais democrática,
ao proclamar que a poesia quando nasce
é para todos.
Faço que não, com a cabeça,
mas digo: Ámen, muito obrigado.
Como qualquer cidadão, certificado,
acreditado, homologado,
avaliado, testado,
co-penetrado,respeitador,
respeitado,recenseado
vigiado, usado e abusado....
Ah!, com Cartão Único
e as contas da Segurança Social em dia.

Agora que eu faço
o meu exame de consciência,
à hora mortal do deitar,
como qualquer menino bem comportado,
falando com o seu anjo da guarda,
ou o seu director espiritual,
ou o seu personal trainer do fitness center,
ou o seu comandante de pelotão celestial
ou até o inefável capelão do batalhão,
vejo que o Dia Mundial da Poesia
passou ao meu lado,na rua,
a caminho do metro da Falagueira.
Dizia o outdoor:
"Feira da poesia: Saldos.
Apoio:  Junta de Freguesia".

No bairro do meu burgo,
onde os polícias se deixam matar
por balas de aço de calibre de 9 milímetros.
Mortíferas, tão mortíferas,
como as febres hemorrágicas
do Ébola e do Marburgo.
Ou os estilhaços do morteiro 120
em Buruntuma.
Ou o aço outrora bem temperado
da Sorefame e depois da Bombardier,
onde fui Prometeu Agrilhoado.
Pobre corpo, o meu, de intervenção
que não é imune aos vírus
nem às balas, nem aos estilhaços,
nem aos quatro humores dos deuses,
os bons e os maus.
Nem às ordens de despejo.
E ao passar rente ao muro,
de lancheira na mão,
do trabalho para casa,
e de casa para o trabalho
não pude deixar de ler o grafito,
ainda visível, a vermelho,
comido do sol:
"Lembra-te, ó Bófia, da Cova Moura!"

Não me adianta saber, como os doutores
que são pagos para pensar e para saber,
que os maiores poetas do mundo
andam distraídos
com a parte nebulosa do centro do planeta,
donde brota a água, o fogo,
a terra e o ar.
E o ciclone dos Açores.
E quiçá o Ébola e o Marburgo.
E a violência dita urbana.
E os rappers.
E os grafiteiros da minha rua.
E o lobo mau travestido de velhinha
a atravessar a passadeira
da segunda circular.
E o tsunami das entranhas da terra.
Da terra, a ferro e fogo em Buruntuma.
Dos novos ideogramas da ética
confuciana do trabalho.
Espantoso: nada mudou em Buruntuma.
Minto: chegou lá o telemóvel!

Não adianta saber que
os densímetros dos poetas
não captam a essência da coisa
e dos seus pormenores acidentais.
Ou das coisas que estão a acontecer
na subcapa do planeta.
É a própria existência da falta de água
que alimenta a vida
e rega o horto, seco, dos poetas menores,
que constitui o âmago do problema,
não o seu alfa e o seu omega.
Nada mudou em Buruntuma,
continuam a ser as mulheres
as aguadeiras.

É por isso que a poesia, sem âmago,
não se vende
nem chega às esquadras da polícia,
nem à Cova da Moura,
nem às escolas, nem às igrejas,
nem aos locais de trabalho,
nem aos campos de refugiados,
nem aos bares de alterne,
nem à tabancas dos fulas,
nem à fonte de Buruntuma,
nem às casernas dos tugas,
nem às tendas dos beduínos,
nem às tristes putas da minha rua triste
que tem nome de poeta que ninguém leu.
Nem aos oásis aprazíveis
da tua árida civilização,
nem à Casa Branca, nem ao Kremlin,
nem à Cidade Proibida,
nem às crianças do meu país
que são vítimas da violência ideológica
dos manuais escolares,
nem aos agentes patogénicos de Pasteur,
nem às dores do coma induzido...
Nem ao destacamento de Caium
onde matavas peixes à granada.
Nem ao soro a correr aos borbotões
na fronteira entre Buruntuma e o inferno.
É uma segunda pele,
que, por muito que te laves,
não te sai do corpo:
Buruntuma é uma tatuagem,
feita a ferro em brasa.
Ou talvez uma miragem.
Buruntuma ? Nunca mais.

A poesia, mesmo sem âmago nem alma,
mesmo a saldo
na junta de freguesia da Falagueira,
simplesmente não chega a a Buruntuma,
que foi outrora a minha casa.
Tal como a água do Alqueva
não chega ao monte
onde o meu velho se enforcou.
Não chega à boca do corpo
nem à boca de incêndio.
Nem a poesia nem a água nem a carta a Garcia chegam ao seu destinatário.
Ou se calhar ficam apenas nas mãos
do seu fiel depositário.
Do quarteleiro.
Do porteiro.
Do escriturário.
Do básico.
Do trolha.
Do relé parasita.
Do comutador.
Do canalizador do intestino.
Entre a angústia e o esófago
e o aperto mitral.
Do vago vago-mestre
que nos enfartava de bianda
e cavalas de conserva.
Ou chegam e eu não conheço o aqueduto
das Águas Livres
nestes tempos da poesia e da água
a conta-gotas.
A poesia e a água não chegam, juntas,
através dos canais de irrigação,
das condutas do gás,
das grandes cloacas,
dos cabos de fibra óptica,
ou até das correntes submarinas.
Não chegam nem por ar nem por mar.
Nem por meio do SPAM do terror.
em Buruntuma.

Quem leva a carta a Garcia
a dizer que a poesia caiu na rua
ou foi apanhada à unha?
Ou que o pombo-correio
foi abatido por um Strela.
Inútil Álvaro de Campos,
inútil Ode Triunfal,
pobre Fernando Pessoa,
menino de sua mãe,
pobre camarada de Crestuma,
morto no tabuleiro da ponte de Caium,
entre Piche e Buruntuma.

Há a poesia da punição, da inanição,
da oração, da expiação,
da desidratação, dos espamos,
dos orgasmos, da masturbação.
Há a poesia da baixa pressão diastólica
que nos entra pelos vasos sanguíneos
da fábrica do corpo humano
desde os tempos mais recuados
da Santa Inquisição.
Há a poesia mais terrorista,
a de conquista da Terra Santa,
a das Palavras Cruzadas,
a da paz e da guerra.
E aquela que é mais hedonista,
a existencialista
e a essencialista.
E há, enfim, a poesia-poesia,
sem adjectivos.

Para mim,
a poesia quer-se livre, de liberdade,
sem maiúscula,sem cinto de castidade
sem algemas, sem gemas de ovos
por causa das salmonelas.
A solução é desalfandegá-la,
desembrulhá-la,
descongelá-la,
pô-la viva,
esquartejá-la,
comprá-la,
cozê-la viva como a lagosta,
metralhá-la com o helicanhão,
comê-la,
violá-la,
canibalizá-la,
digeri-la,
degluti-la,
arrotá-la.
E proclamá-la artigo de primeira necessidade,
isenta de IVA
e de qualquer outra alcavala.
Mas, por favor, sirvam-na
com as tripas... à mostra!

A verdade é que
a poesia não se vende,
nem se trapaceia,
nem se come,
nem se defeca,
nos bairros ditos problemáticos
onde homicidas e suicidários
se acoitam na anomia do Durkheim.
Poesia é homicídio,
é droga,
é suicídio,
é para-suicídio,
é etnocídio,
é logocídio,
é blogocídio,
é crime contra a ordem pública,
é golpe de misericórdia,
é tiro atrás da nuca
da vil humanidade.
Ao poeta, ao boi e ao doido,
dêem-lhe o curro!
Diz o comissário.
Político ?
Ou de cabo de esquadra ?

Confesso que não dei por nada,
por ser Dia,
Mundial,
e para mais da Poesia.
Não dei por nada.
Não houve rancho melhorado.
Nem alvoroço do povo.
Nem fogo de artifício à beira rio.
Nem uivei à lua como um cão com cio.
Ou com raiva.
Que a raiva de cão também pode matar.
Tal como o cio.
E a xenofobia.
E as balas de borracha da polícia
na secção J do bairro de Chelas.
E o morteiro 120 em Buruntuma.
E a anomia do Durkheim.
E o HIV/Sida.
E a overdose.
E as febres hemorrágicas.

E a falta de fé, esperança e caridade.
E as dores menstruais do PIB
do nosso descontentamento.
E as águas barrentas
Do Rio Geba que escondem a bilharziose.

Ia caminho, dizia, da Falagueira,
deitando contas à vida
e ao passe social
do metro de Lisboa, da CP, da Carris e do Barraqueiro.
E ao que me resta, do mês,
do subsídio do desemprego,
do orçamento para o ano inteiro,
do deve-e-haver do cidadão,
mais que imperfeito,
periférico,
marginal-secante da lei e da ordem,
chutado do comboio em andamento.

Ironia:
com louvor na caderneta militar,
que te há de ser de algum proveito
em tu passando à peluda,
dizia o meu primeiro.
- Meu rapaz, Deus manda ser bom,
mas não manda ser parvo...

Não sou homem de pôr os pontos nos is,
nem as vírgulas entre o sujeito passivo
e o predicado pró-activo.
Nem muito menos os libertar os resíduos reactivos da Pátria.
Não sei poesia,
nem fazê-la
nem dizê-la,
nem cozinhá-la,
nem prová-la.
Não sei conjugar o verbo existir
quanto mais soletrar o difícil verbo
sobre-viver.

Em tempos, em Buruntuma, sabia de cor
alguns duros versos do Aleixo,
poeta maior,
popular,
marafado,
algarvio,
cauteleiro,
analfabeto,
guardador de rebannhos
como Alberto Caeiro,
cantor ambulante de feira em feira
como o didjiu do Gabu,
o Aleixo lírico,
irónico,
às vezes cáustico,
sarcástico.
Hoje seguramente info-excluído,
por que não teria email
nem registo na rede social do Facebook.
Ajudou-me a sonhar e a sobreviver em Buruntuma:
O homem sonha acordado,
Sonhando a vida percorre,
E desse sonho dourado
Só acorda, quando morre!

E aqui estou eu,
de vigília,
à massa falida da fábrica
à espera do camartelo camarário.
Desempregado,
supranumerário,
ex-soldado
da guerra do ultramar.
Ex-soldador,
miseravelmente despedido
por um robô.
Ou trocado.
Posto a um canto,
na lixeira social da Falagueira.
Por estar fora da validade.

O meu currículo ?
Uma merda,
com a sua licença,
de operário,
ou ex-operário industrial.
Alentejano de nascença.
Por sinal, pouco esperto.
Corre, espermatozóide, corre,
que a cegonha ainda te confunde
com um lagostim americano
da barragem do Alqueva!

Estado civil ?
Casado,
mal encarado.
Situação no trabalho ?
Trabalhador, descartável,
sem lugar
na Eurolândia da excelência prometida.
Qualificações ?
Soube em tempos matar & morrer.
E desmontar e montar a G3
em tempo recorde.
Expectativas ?
Pensava que me restava o punho,
erguido,
à espera da luta,
à espera que a luta continue,
mesmo devagar,
sem esmorecer.
Da luta por causas perdidas.

Prognóstico?
Reservado...

Se ontem foi Dia Mundial da Poesia,
devo dizer que o dia foi mal escolhido.
Digo-o aos senhores do mundo e do tempo
ou aos catedráticos das letras por protestar no banco.
Digo-o com pena e com mágoa,
mas sem raiva nenhuma,
acrescento, em jeito de adenda,
que me resta o dia de hoje,
o qual, para não voltar a esquecer-me,
apontei ontem na agenda:
22 de Março,
"Dia Mundial da Água.
Que tempo fará em Buruntuma" ?

Guiné 63/74 - P6036: José Corceiro na CCAÇ 5 (7): Canjadude debaixo de ameaça

1. Mensagem de José Corceiro* (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos -, Canjadude, 1969/71), com data de 19 de Março de 2010:

Caros camaradas Luís Graça, Carlos Vinhal, J. Magalhães
Venho com estima relatar um pouco da actividade operacional da CCAÇ 5, no condado de Canjadude, Guiné.
Deixo ao vosso critério a publicação, ou não, da mesma, assim como a inclusão das fotos.
Um Abraço
José Corceiro


José Corceiro na CCAÇ 5 (7)

CANJADUDE DEBAIXO DE AMEAÇA


Não sei quais as fontes, mas há apreensão e é voz corrente que o IN vai flagelar de novo a CCAÇ 5 brevemente. Tem havido por aqui muita actividade operacional, desde que Canjadude foi flagelado pela primeira vez, em 11 de Julho 1969. Comenta-se que o IN estará a estruturar e preparar uma base operacional no Bormeleu, perto do Cheche, junto ao rio Corubal para nos atacar.

No dia 19 de Julho, a CCAÇ 5, juntamente com outras forças, realizaram uma operação no mato durante três dias, para os lados do Bormeleu, que dista de Canjadude cerca de 20 a 25km, eu fui integrado como responsável pelas comunicações do AN/PRC-10, junto do Comando.

O AN/PRC-10 é um emissor/receptor móvel, de frequência modelada, praticamente impune às interferências de ruídos parasitas nas suas comunicações, destaca-se a qualidade sonora comparativamente com aparelhos de amplitude modelada. Foi concebido essencialmente para comunicações de terra para meios aéreos e vice-versa, tem uma boa qualidade sonora e as ondas de difusão neste meio, terra/ar, não têm praticamente obstáculos físicos, aos quais as ondas de frequência modelada são sensíveis. Para comunicar em terra neste teatro operacional, plano e com arvoredo, o seu alcance é limitado, não só pela potência do equipamento emissor que é fraco em watts (0,9W), mas também devido às características das suas ondas, frequência modelada, cuja propagação é prejudicada por obstáculos físicos; para obstar a esta característica negativa, nos Aquartelamentos, há necessidade de montar um suporte físico, mastro, com altura razoável, com uma antena vertical instalada no topo do mastro, que optimiza a recepção e emissão do AN/PRC-10. Tem ainda um outro inconveniente nas comunicações, o chamado efeito de captura, isto é, perante dois equipamentos a emitir na mesma frequência para um terceiro equipamento receptor, (central) este selecciona o sinal de maior potência ignorando o mais fraco.

Foto 1 > AN/PRC-10 deitado > Vista do painel de comandos e respectiva legendagem.

Foto 2 > Canjadude > Corceiro no mastro onde estava instalada a antena do PRC-10

Os equipamentos mais utilizados nas comunicações terrestres são: (desprezando o AVP-1 de fraco alcance) AN-GRC-9 e RACAL-TR-28, este último já transistorizado, (menos consumo de energia e outras performances tais como, a maleabilidade e maneiro) e tem comutador de canais com posições de frequências definidas, associado a cada posição um cristal específico com frequência pré-estabelecida, facilita a sintonia e torna-o mais versátil e preciso, tem ainda a vantagem de ter terminal de antena dipolo, que se pode montar entre duas árvores, beneficiando consideravelmente as comunicações com esta antena instalada na horizontal, tão alto quanto possível. No AN/PRC-10 para tirar o máximo de partido das suas emissões/recepções com outra antena que não a segmentada, a antena tem que ser montada na vertical e acima dos obstáculos, o que no mato por vezes se torna improvável ou até impossível. Não podemos desprezar as interferências atmosféricas, para a propagação das ondas hertzianas de emissão e recepção, visto haver influência com adversidades e vantagens.

Como comecei por explanar, o dia 19 de Julho saí para uma operação no mato, em que a progressão foi muito difícil, pois tivemos que andar quase todo o dia dentro de água, algumas vezes até à cintura, as bolhanhas estão todas alagadas e a chuva durante o percurso caiu a potes. Acampamos para passar a noite, todos encharcados e exaustos, e para nos atiçar as amarguras e sacrificar ainda mais as nossas mazelas, durante a noite choveu torrencialmente. Ao despontar da aurora levantamo-nos do chão que estava ensopado e enlameado, todos emporcalhados a contorcermo-nos com dores lombares e actividade muscular entorpecida, além de estarmos arreganhados pois de noite com a chuva refrescou. Não sei como os nossos corpos suportam tamanhas adversidades? Progredimos operacionalmente, neste segundo dia, em trilhos menos alagadiços, o tempo com abertas e alguns aguaceiros, passamos bem melhor que ontem.

Entretanto, as forças operacionais separaram-se em dois grupos, seguindo trajectos distintos. Durante estes dois dias não detectamos vestígios alguns, que denunciassem a presença de humanos por aqui. O grupo no qual eu estava integrado avançou em direcção a um morro, que escalamos com muito esforço, tinha acessos dificultados, não só pela vegetação que nos enleava, mas também devido às vertentes do terreno muito declivosas, com um trilho muito íngreme e escorregadio e com frequência o pessoal estatelava-se no chão e rebolava. Foi com imensa labuta, que trepamos até ao topo do morro tão escarpado era o trajecto, que mais parecia ser escalada de alpinista. Instalámo-nos no topo do monte para comer a ração de combate. Ainda não tínhamos acabado de comer, desencadeou-se tamanha berraria provocada pela agitação e algazarra dos macacos-cão, no sopé do morro, que segundo os entendidos que bem conheciam estes sinais de alarme, era revelador que algo de muito estranho por ali acontecia. Todos, apressadamente, nos preparámos para abandonar o local e começar a descer. Foi neste momento que avistámos um pouco para lá da base do morro, pessoal IN a fugir em debandada. Eu pessoalmente vi uma ou duas pessoas, houve quem dissesse que viu mais de meia dúzia de elementos com armamento. Descemos apressadamente, por trilho muito acidentado, ladeiroso e inclinado, onde os tombos do pessoal eram constantes e alguns caiam e deslizavam no chão 2 e 3 metros, pela acção das forças da inércia e gravidade, tal era a inclinação da encosta. Afigurava-se que a todo o momento, houvesse algum acidentado o que felizmente não aconteceu (atenda-se que estávamos para os lados do Bormeleu e Cheche, onde havia algumas montanhas que tinham continuidade atravessando o rio Corubal em direcção a Madina de Boé). Havia necessidade de descer rapidamente, por se recear que estivesse em curso a montagem de uma emboscada às NT, e não nos podíamos expor a essa fragilidade de dar vantagem e oportunidade ao IN.

Foto 3 > Pequena amostra de obstáculos a vencer para subir o morro

Foto 4 > Corceiro no topo do morro a comer a ração de combate

Chegados à base do morro já o IN se tinha escapulido, pois não se descobriu nem proveniência nem refúgio do grupo, que se evaporou nos meandros emaranhados da floresta, sem que ninguém mais o visse. Ao que parece o IN vinha em fuga do outro grupo das NT, que não se apercebeu absolutamente de nada.
É surpreendente o comportamento do IN em virtude da localização da CCAÇ 5, estarmos tão próximo de redutos inimigos e não sermos atacados com outra assiduidade, pois somos o último Aquartelamento e o mais periférico aqui da zona, para além de Canjadude está o Cheche já abandonado, na margem direita do rio Corubal, atravessando o rio é zona de Madina de Boé. Está provado que há por aqui actividade IN. No espaço de oito dias o inimigo é visto duas vezes nestas bandas e Canjadude sofreu uma flagelação cujo itinerário utilizado pelo IN foi nesta direcção!

Será que nos poupam por sermos uma Companhia com nativos, ou será que estão a preparar alguma orquestração com maestria, ou terão receio de se envolver com a CCAÇ 5?!

Fisicamente todo o pessoal está muito stressado, pelo esforço despendido no dia de ontem a caminhar grande parte da progressão dentro de água que foi deveras extenuante, a noite foi chuvosa muito desconfortável e tão sofredora, hoje a subida e descida do morro tão desgastante, esta tarde de Domingo tem sido bem mais tranquila, e acampamos já os dois grupos juntos, para passar a noite, sem que tenha havido acontecimentos dignos de registo, e mais, sem necessidade de evacuações.

A noite passada não choveu. Hoje progredimos no terreno sem termos encontrado o mínimo vestígio de presença IN. Ao meio da tarde fomos ao encontro das viaturas, onde chegamos já com alguns homens a arrastarem-se, no limite das suas forças, tudo exaurido. Chegamos ao Aquartelamento exaustos fisicamente e alguns a precisarem de tratamento clínico, com bolhas nos pés e “impinges” a nível das virilhas, devido ao demasiado tempo que se caminhou dentro de água, que é propício ao desenvolvimento de dermatofitose (micose cutânea provocada por fungos).

O dia 22 de Julho, deram-nos a informação que neste dia Canjadude ia ser flagelado, o pessoal ficou todo de prevenção, praticamente ninguém dormiu à espera do ataque, com tudo às escuras, pois desligou-se o gerador da energia eléctrica do destacamento. Não houve ataque.

Tem continuado a actividade operacional intensa, saídas para o mato quase diárias, mas nada de vulto há a registar, a não ser a dificuldade na progressão do pessoal, devido ao alagamento das bolanhas que tornam muito difícil caminhar dentro de água, muitas das vezes até à cintura e mais.

Dia 27 houve mais uma operação para o mato, mas a meio da tarde tivemos que ir buscar o pessoal com as viaturas, pois cinco ou seis militares ficaram incapacitados de progredir devido a doença.

Dia 1 de Agosto, fui com um grupo para garantir segurança e assegurar comunicações a um Furriel e um Cabo, “Radiolocalizadores”, na picada do Cheche, próximo do começo da pista aérea de Canjadude, para referenciar coordenadas de emissão de rádio, que já tinham sido registadas em mais dois lados.

Dia 8 sai para o mato às 06.00h em operação de dois dias com dois pelotões. Saimos em direcção ao Cheche e depois flectimos para a esquerda e entrámos em zonas alagadas onde caminhamos grande parte do dia dentro de água, por vezes até à cintura. Fomos pernoitar a Canducuré tendo chovido praticamente toda a noite. Logo ao alvorecer levantamo-nos todos a tiritar e começamos a caminhar dentro de água rumo a Canjadude onde chegámos ao fim da manhã.

A actividade operacional tem continuado muito movimentada, praticamente todos os dias há saída para o mato e há informações consecutivas a dizer que Canjadude vai ser flagelado.

Dia 11 de Agosto, houve evacuação de militar devido a fractura do pé.

Dia 14, operação de dois dias.

Dia 17, tudo no Aquartelamento numa labuta constante a fazer limpeza de higienização e pôr tudo em ordem, pois chegou mensagem a informar que amanhã, dia 18, o Delegado do Governador da Província vem a Canjadude.

Dia 18, tudo devidamente fardado e aprumado, mas o Delegado não apareceu.

Dia 23, os Pára-quedistas, vindos duma operação, aqui na nossa área, chegaram a Canjadude carregados de material de guerra capturado ao IN num assalto a uma base deste. Não houve feridos dignos de registo e segundo disseram muito outro material seguiu de Heli.

Dia 24, mais uma operação de três dias, em que fui eu e o Silva de Transmissões. As bolanhas continuam alagadíssimas e a necessidade impõe que a todo o momento tenhamos que caminhar dentro de água. As noites no mato são agitadas e inquietantes, ora mosquitos, ora chuva, ora dores lombares, não dá para minimamente tonificar e descansar. Fisicamente há muito pessoal a ficar exausto. Regressamos dia 26, com o pessoal a dar sinais de fadiga preocupante, e sem que haja o mínimo de estímulo palpável, que justifique todo este esforço, ainda que o não sermos atacados é por si óptimo. Tenho a percepção que o pessoal da CCAÇ 5, está ansioso e precisa de cintilar, (fazer ronco) como brilharam os Pára-quedistas, que apanharam tanto material de guerra aqui na nossa área de intervenção!

Foto 5 > Dia 24 de Agosto > Caminhar dentro de água na bolanha de que não recordo o nome

Foto 6 > Dia 24 de Agosto > Momento de pausa. Da esquerda para a direita: Silva das Transmissões, um camarada de quem não recordo o nome, Fur Mil Cabrita e outro camarada de quem não me ocorre o nome

Foto 7 > Algum do armamento apanhado pelos Pára-quedistas ao IN na zona de Canjadude. Foto que me foi enviada por um Pára

Para baixar mais o moral e desalento no pessoal, já uns tempos que o comer tem sido de péssima qualidade no Aquartelamento, até já aconteceu virem caganitas de ratos no arroz já cozinhado. Um destes dias o comer era dobrada, intragável, pois tinha uma fetidez arrepiante, que ninguém conseguia inalar, quanto mais tragar. Como as desgraças andam sempre aos pares, está a tornar-se habitual passarem mais de oito dias sem recebermos correio, quando era norma haver distribuição duas e três vezes por semana e isto perturba o equilíbrio emocional e desanima os metropolitanos.

Para todos o desejo de muita saúde, um abraço.
José Corceiro
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5996: José Corceiro na CCAÇ 5 (6): Pânico no abrigo norte, crocodilo à vista

domingo, 21 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6035: Notas de leitura (81): O Pé na Paisagem, de Filipe Leandro Martins (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Março de 2010:

Queridos amigos,
Não será possível, um dia que se escreva detalhadamente o que foram os nossos preparativos para a guerra, iludir a existência de um relato tão vigoroso, aliás a alavanca de um escritor confirmado. Muitos de nós, lendo-o, regressamos às Caldas da Rainha ou a Mafra, a uma vivência perturbante que desencadeou tantas mudanças na nossa vida.
Peço aos mais virtuosos que não se enfureçam por ele não ter ido para África.
O Filipe Leandro Martins é leitura indispensável na justa medida em que possui um olhar sobre o nosso tempo, na recolha das ideias, de valores e atitudes dos rapazes que fomos. O seu olhar anti-colonialista e anti-militarista. Que também existiu.

Um abraço do
Mário


Os preparativos para a guerra: a caserna, o aparato, o espelho da Nação

Beja Santos

Nunca me fora dado ler um relato tão vincado, minucioso, expressivo da sequência da chegada para a recruta, as suas andanças, a nova vida de relação, a passagem para a especialidade, as dúvidas, as pesadas decisões. Em “O Pé na Paisagem”, (Editorial Caminho, 1981), Filipe Leandro Martins procura dar-nos corajosamente todo esse itinerário, o pulsar da caserna, os encontros e desencontros com a cadeia do comando, a atmosfera da vida promíscua, a preparação física, o discurso ideológico reinante. De algum modo, estamos todos lá enquanto geração das casernas, movendo-nos entre o quartel e o fim-de-semana, todo o roteiro que levou a generalidade até ao embarque e outros à deserção. É um relato a vários títulos poderoso, combina o realismo com o expressionismo, deixa as entranhas da engrenagem militar, obriga-nos a rever corredores, instrução, novas amizades, a carreira de tiro, a expectativa de partir para uma frente da guerra, lá longe, no completo desconhecido.

O arranque do romance é quase cinematográfico: “O comboio deixou-nos na cidade com mais ou menos vinte anos. Saímos aos trambolhões, entre malas e saquinhos, berrando uns pelos outros com a solidariedade de bairro, de vila ou de escola. Eu vinha só com a mala pesadíssima que trazia de casa para a caserna que nos esperava, velhaca. Arrastávamo-nos com pressa, desancados pela viagem, pelas bagagens, pelo sol provinciano à uma da tarde no largo amarelo da estação e ouvi alguém gritar o meu nome uma porrada de vezes antes de me voltar”. Segue-se o cerimonial da entrega dos materiais e a chegada à caserna, tudo em tropel, o pessoal deslumbrado pela novidade, intimidados: “Sombras chinesas falavam aos berros, contraditórias e desmoralizantes – já não davam mais lençóis ou só havia botas das pequenas, ou não distribuíam mais fardas nessa noite e amanhã estás lixado que tens de aparecer fardado, despacha-te que o quarteleiro está a dar a roupa da cama... Deram-me duas mantas castanhas e esburacadas, um par de lençóis duros e molhados. Quando voltei ao boliche já a minha cama estava feita e ocupada por uma feroz sombra a ressonar. A caserna ia abrigar cerca de duzentos instruendos, uma companhia de instrução dividida por muros até meia altura e um corredor lateral percorria todo o casarão até aos lavabos e às cagadeiras. Em cada compartimento duas filas de camas em beliches de ferro, assentes no ladrilho encardido, o ferro pintado a descascar-se nas camas e nos cacifos, os colchões de palha endurecidos por gerações de guerreiros que ali tinham cultivado o sono.

São rostos cansados, insones, gente que grita, há quem ande à procura de receber ordens, há gente com fome, há gente que conta histórias, algumas delas horripilantes sobre o que se passa em África. Tocam clarim e alguém grita: “Esta é que é a puta da segunda companhia?” Da desorganização aparece a ordem de um quartel inteiro: “Depois começou a chamada, milhões de nomes a acertar com números, e a fome a roer. Depois firme. Sentido. Os braços esticados, dedos juntos, olhar em frente. Não mexe. O furriel deu um passo em direcção a nós, perna estendida, patada no chão. Deu meia volta, muito teso. Fez a continência a um homem franzino, enquanto a malta bichanava que era um alferes. O alferes fez um gesto mole em resposta, virámo-nos para a direita e lá fomos a caminho do refeitório, a toque de caixa”.

Surgem as novas relações, aprende-se a importância de engraxar as botas, revelam-se as manigâncias de quem quer uma cunha para fugir a África.

Começam as aulas teóricas e práticas, aprende-se a limpar a arma, a correr e a saltar, os ensinamentos da táctica são muito importantes. A permanente obsessão das botas engraxadas. Vai ser assim até ao juramento de bandeira. De quando em vez, o autor pontua a vivacidade da descrição introduzindo monólogos: Norberto, o fura-vidas, sempre a procurar desenrascar-se, o seu sonho é ser amanuense; o tenente Estêvão que meteu o chico porque gostava da tropa, era ali que estava a juventude do país e que se maravilha com as qualidades da raça. Na especialidade, a qualidade da comida é degradante. Os instruendos combinam, encenam um protesto colectivo: “Sentámo-nos no refeitório, veio a sopa, uns três ou quatro cabos milicianos mandavam aos soldados fazer a distribuição, a malta comia calada. Começaram depois a distribuição da segunda terrina, o pivete anunciava a desgraça. Era mesmo a papa de peixe. O meu pescoço passou de gelado a arder. O Marcelino levantou-se e berrou:

“Não pode ser! Não como isto, catano!”

Outro gajo, quatro meses adiante deu também um berro: “Isto está mas é podre. Olha-me pra este cheiro!”

Na minha mesa um tipo com ar sabido puxou a terrina e estendeu o prato, agarrou na concha. Ia começar a servir-se. O Marcelino agarrou-lhe um pulso: “Ninguém come. O primeiro a comer desfaço-o, meu cabrão!”
Havia de repente seis mesas a recusarem-se... A porta abriu-se. O tenente Estêvão entrou. A malta calou-se.

“Que é isto? Um levantamento de rancho? Ora vamos lá a ver. É um levantamento de rancho?”

O tenente Estêvão avançou para nós, para as mesas do pelotão que ele comandava, para a malta dele. O Lourenço pisou a bota do Marcelino e falou, apontando a terrina: “O meu tenente, cheire lá isto aqui. É de mais. Já não é a primeira vez que nos fazem uma destas. Isto está podre, meu tenente.”

O tenente acercou-se. Virou-se rapidamente: “Tudo sentado. Se a comida estiver boa estão lixados comigo!” Pegou numa colher, revolveu a papa, cheirou. Provou.

“Vá chamar o cozinheiro”, disse para um cabo miliciano. A malta ficou a esperar em silêncio, alguns desfaziam o pão com as mãos desocupadas. O cozinheiro chegou a escorregar nas botas oleosas.

“Você quer que eu lhe meta a cabeça aí dentro? Anda cá, anda cá, queres que te obrigue a comer esta merda? Vai chamar o sargento!”

“O nosso sargento vai abrir umas latas de atum, vai cozer umas batatas. Quero isso rápido”, disse o tenente ao sargento que vinha vermelho da corrida... [O tenente] virou-se para a gente, levantou a voz:

“Vocês, cuidadinho! Não quero ouvir falar em levantamentos de rancho. Se eu sonho que queriam fazer um levantamento, já sabem: apanham uma porrada que nunca mais têm vontade de reguilar. Não quero cá reguila nem gandulos. Mas se houver algum problema venham ter comigo. A minha tropa não come merda. Ninguém sai daqui até acabar o almoço!”

Tinha-nos lixado tudo. Em vez de um levantamento de rancho apenas conseguíramos que a malta ficasse devotada ao tenente Estêvão.

Filipe Leandro Martins é escritor e jornalista. Nasceu em Lisboa em 1945, fez o curso de sargentos nas Caldas da Rainha e foi destinado à especialidade de atirador. Mobilizado para a Guiné, escolheram-no para o curso especial de minas e armadilhas. De Santa Margarida, aproveitando as férias que antecedem o embarque, desertou em Outubro de 1968, exilou-se na Bélgica. É jornalista profissional desde 1976 (chefe de redacção do jornal Avante!).

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6017: Notas de leitura (80): Abalada do Pidjiguiti, de Manuel Viana (Beja Santos)