quarta-feira, 19 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6427: Notas de leitura (108): Os Resistentes de Nhala, de Manel Mesquita (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Maio de 2010:

Queridos amigos,
Afinal eu não sou a voz que clama no deserto e fica sem resposta.
Já aqui tenho o livro do Rui de Azevedo Teixeira “A Guerra Colonial e o Romance Português”.
O José Brás prometeu-me enviar um livro do madeirense António Loja. Esteve cá o António Estácio e deixou-me a “Nha Carlota”.
E já li 100 páginas do “Rumo a Fulacunda” do Rui Alexandrino Ferreira.

Aproveito para voltar a pedir ajuda de todos sobre os livros que foram publicados nos anos 90.
Li cheio de comoção este livro do Manel Mesquita. Não venham agora dizer que os soldados não escrevem livros.

Um abraço do
Mário


O soldado que guardou toda a vida Nhala no coração

por Beja Santos

O que surpreende no belíssimo relato do Manel Mesquita é o acordo que ele, mesmo antes de chegar ao teatro de guerra, estabeleceu com a vida, a sua pauta de heroísmo é o convívio sadio, a solicitude permanente, a não resignação, o profundo respeito pela condição humana. 

Deixará uma galeria de depoimentos no seu livrinho “Os Resistentes de Nhala”, são pessoas que podíamos ter conhecido, com quem seguramente convivemos ou, de quem ouvimos falar: aquele que se afundou no álcool, incapaz de cerrar os dentes e dar a volta à corrediça da vida; o capitão miliciano que organizou um torneio de futebol lá em Nhala e que levantou o moral da malta; os ocasos da vida que impediram o Manel de desertar quando veio de férias à metrópole, em meados de 1970, mas há também o Rosa, o Carinhas, o Victor, o Maiato...

Vamos por partes, o Manel volta de férias, uma LDM larga-o no areal de Buba. Trouxe comida para todos. Foi procurar o Carinhas para se juntar ao banquete, encontrou-o a cantar o fado. Segue-se uma rajada de tiros, são rajadas de costureirinhas e roquetadas. É uma grande flagelação, há gritos, a noite transformou-se momentaneamente em dia. Depois, o silêncio. Descobre-se que há um morto, era o faxina conhecido pelo Foda-se, tem vários buracos na frente do corpo. O grupo atacante chegara a abrir o portão para entrar em Nhala. Logo que descoberto, atacou à morteirada, morreram civis e também o chefe da milícia, o sargento Marcelino. Alguém recorda que durante as emboscadas e as flagelações na estrada nova de Uane os guerrilheiros gritavam que um dia iriam entrar e arrasar Nhala. O Manel aproveita para falar com Deus, pede-Lhe que não o abandone, não os abandone. Segue-se o enterramento dos civis:

“Estava a tomar o pequeno-almoço quando recebo ordens do furriel para tratarmos dos cadáveres. Três colegas vão abrir as covas ali fora dos arames, por coincidência onde horas antes estiveram os inimigos a atacar-nos. A mim calha-me fazer guarda de honra ao militar da milícia. Vou vestir-me com farda completa e limpa. Os defuntos civis são embrulhados em lençóis brancos e lavados, e assim baixam à terra. Dois colegas cobrem com pés e arrasam o terreno. Reparei que todos guardámos respeito e dignidade ao acto.

Por fim trazem o corpo do sargento numa maca embrulhado num lençol, mas coberto com a bandeira nacional. Morreu em combate. Tudo fez para defender Nhala... É uma cerimónia digna, mas arrepiante. Qualquer combatente ou caído ao serviço da Pátria merece-a”.

Segue-se uma operação ao Saltinho. Descobrem duas canoas. A força fica de atalaia, há um soldado africano que conta ao Manel que naquele local, poucos anos antes, se tinha voltado uma jangada com cerca de vinte soldados que foram abocanhados pelos crocodilos. O inimigo não apareceu, melhor o inimigo foi em enxame de abelhas que provocou inúmero sofrimento. 

O Manel passa em revista pessoas, situações e locais que permanecem indeléveis na sua memória. Primeiro o Bento. Numa operação levou um tiro no pulso esquerdo. O guerrilheiro estava numa frondosa árvore, foi abatido. A força inimiga foge em debandada. O Bento está sereno, prescinde da evacuação, o enfermeiro faz-lhe um penso, mas entretanto chegou o helicóptero. O Bento estava mais preocupado em que se transportasse o material de guerra capturado. Há ainda pessoas capazes de prescindir da dor. 

Chega o segundo Natal passado na Guiné. O Manel recorda uma conversa com o Deus menino: “E eu, nesta terra, nesta missão, que tenho para dar? Já sei, tenho uma prenda muito valiosa e importante para dar. Vou fazer um negócio invisível com as tropas do PAIGC, eu não irei disparar contra eles. Eu estou aqui a lutar para impedir que eles tenham direito à guerra que é deles, mas não é minha, não a quero. Nós negamos-lhes o direito que eles têm de possuir a sua terra”. O espírito de improvisação musical também vem ao de cima. Em Aldeia Formosa o pessoal, para esquecer a saudade, pegou numa melodia da marcha do Bairro Alto e passou a cantar a toda a hora:

Aldeia e as colunas a seguir
Para Buba com a malta
Sujeitos a ir para não vir
Com aquilo que nos faz falta.

São emboscadas e minas,
Bolanhas e covazinhas
Viaturas rebocadas.
Deitaram-nos isto à sorte
De procurarmos a morte
Nestas tão reles estradas


Refrão:

Viaturas velhas mesmo a cair
E, mesmo assim, a malta tem que seguir
São tristes chaços, em procissão
Andam mecânicos com as chaves de mão em mão.

Há muito mais a dizer sobre estes personagens que marcaram o Manel. Fiquemos com o Mário de Fontelas, seu conterrâneo, que apareceu em Aldeia Formosa. Já tinha cumprido 21 meses em rendição individual na CCaç 2478. A companhia embarcou, o Mário ficou no cais a ver os companheiros. O Mário foi colocado no segundo pelotão da CCaç 2614. 

O Manel convenceu o Mário que deveria apresentar o seu caso ao Spínola quando este viesse despedir-se do batalhão. Spínola discursou e preparava-se para se retirar quando o Mário pediu para falar, explicou-lhe que já levava 24 meses em teatro de operações. O general diz ao seu ajudante de campo para tomar nota do pedido, informando que não irá com a CCaç 2614, mas seguirá para Lisboa no próximo barco. Fizera-se justiça. O Manel nunca mais esqueceu aquele homem que soubera reclamar os seus direitos.

O leitor irá apreciar o João Vasques, o Fugitivo, o Bráulio. Não deixará de se comover com o sonho do Manel na sua última semana de comissão, já em Aldeia Formosa. A povoação já não era quartel, tudo se transformara: as casernas em escolas, infantários e cresces; a cozinha e o refeitório eram locais onde se preparavam refeições as refeições para as criança e jovens; o posto de socorros era agora um centro de saúde; os morteiros eram agora charruas e arados; e os campos de batalha estavam todos transformados em arrozais.

Manel nunca mais esqueceu Nhala, os abrigos que construiu, as aulas que deu, as lições de camaradagem. É impensável que alguém possa ficar indiferente a este depoimento tão singelo. Convido-vos a telefonar ao Manel (22 762 07 36 / 96 35 25 912) mais não seja para ter acesso a este livrinho maravilhoso, verdadeiro, corajoso. O Manel é um homem de fé e transmite-a. A pretexto de uma guerra de onde ele regressou há cerca de 40 anos.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6419: Notas de leitura (107): Os Resistentes de Nhala, de Manel Mesquita (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6426: Convívios (241): 3º Encontro da Companhia de Caçadores 1589, 15 de Maio de 2010 (Armandino Alves)


1. O nosso Camarada Armandino Alves (ex-1º Cabo Auxiliar de Enfermagem na CCAÇ 1589 - Beli, Fá Mandinga e Madina do Boé -, 1966/68), enviou-nos uma mensagem, em 17 de Maio, sobre a confraternização anual da sua Companhia que a seguir publicamos:

Foto de família tendo o Comandante ao centro

Camaradas,

Realizou-se no passado dia 15 de Maio, o 3º Convívio da Companhia de Caçadores 1589, que contou pela 1º vez com a presença do seu Comandante, hoje Coronel Reformado do QP, Henrique Victor Guimarães Perez Brandão, o qual nos muito nos honrou com a sua presença.

Informou-nos o mesmo que não lhe foi possível comparecer às 2 anteriores festas devido aos deveres inerentes do seu cargo e à sua sobrecarregada agenda para os dias em que elas se realizaram.

Cada ano vai comparecendo mais malta e as respectivas famílias, o que nos vai dando alento para continuarmos a fomentar estes eventos.

O nosso Comandante fez um discurso deveras comovente, notando-se que este convívio e a maneira efusiva com que todos o receberam, caiu bem fundo no seu coração.

No seu discurso referiu-se a uma entrevista que deu ao Joaquim Furtado, que esteve a ouvi-lo durante 2 horas e que, posteriormente, só passou no ecrã 10 minutos da gravação (a parte que lhe convinha), descontextualizando-a completamente.

A finalizar realçou o nosso espírito de grupo e entreajuda, realçando o sentir do dever cumprido.

Concentração do Pessoal na Alameda das Antas
O Comandante de Companhia discursando antes do almoço
Alf Mil Daniel Velêda (esq.) Coronel Henrique Brandão (centro) e Alf Mil Leitão (dir.)
O meu reencontro com o comandante passados 42 anos
E assim terminou o nosso 3º Convívio. Para o ano haverá mais.

Um Abraço,
Armandino Alves (Dr. Jivago)
1º Cabo Aux Enf CCAÇ 1589
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Nota de M.R.:

terça-feira, 18 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6425: (Ex)citações (73): A tropa e a criançada nas belíssimas crónicas do Cherno Baldé (Alberto Branquinho)

1. Comentário do Alberto Branquinho ao poste de  18 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6417: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (15): Obrigado, Mortágua, salvaste-me a vida!Caro Cherno

Este texto (e outros já aqui publicados) é uma beleza. Neste a análise do meio social nativo - a avó, as velhotas, as mulheres mais novas e até os homens e as suas análises sobre a "abundância" verificada no aquartelamento e a injustiça de Alá na distribiução, são facetas de uma realidade que nós (os militares) não conseguimos aperceber-nos. 



Por outro lado, as relações da criançada com o ambiente militar e com cada um dos militares são, aqui, mais uma vez abordadas com mestria... e do lado e do ponto de vista da criançada.

Cherno, se me leres, queria fazer-te um desafio, que é, afinal, um pedido. É sobre um aspecto que já tentei escrever. É isto: de que modo a presença da tropa, o convívio com a tropa, o conseguimento de uma certa auto-suficiência por parte dos garotos na frequência dos aquartelamentos (alimentação, algum vestuário, etc) pôs em causa a sociedade guineense (autoridade familiar, poder patriarcal,etc.).

Se o que quer que escrevesses fosse ilustrado com duas ou três histórias, seria óptimo.

Um abraço e fico agradecido,

Alberto Branquinho (*)
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Nota de L.G.:

(*) Último poste desta série > 17 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6408: (Ex)citações (57): A dolce vita de Bambadinca: Os lagostins do Zé Maria, pescados pelo barqueiro do Enxalé em "zona vermelha"... (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P6424: E as Nossas Palmas Vão Para... (4): O Município de Vila Nova de Famalicão no Dia Internacional dos Museus, a que se associaram dez museus, públicos e privados, incluindo o Museu da Guerra Colonial

1. Excerto de notícia publicada no Portal do Município de Vila Nova de Famalicão: 

Cultura > Dez museus celebram Dia Internacional com programa diversificado
13-05-2009

Dez espaços museológicos públicos e privados do concelho de Vila Nova de Famalicão uniram-se para celebrar o Dia Internacional dos Museus, que se assinala no próximo dia 18 de Maio, sob o lema “Museus e Turismo”.

“É o programa de comemorações do Dia Internacional dos Museus mais diversificado de sempre e também aquele que regista a maior participação dos museus de Famalicão”, conforme salientou o presidente da Câmara Municipal de Famalicão, Armindo Costa, na apresentação do programa.

As comemorações, que arrancam já no próximo sábado, dia 16, e decorrem até dia 30, incluem diversas iniciativas como visitas guiadas aos espaços em roteiros de autocarro (serviço gratuito assegurado pelo município), peças de teatro, workshops, recitais de poesia, oficinas de escrita criativa e ateliês para crianças, entre outras.
Para Armindo Costa, “a grandeza e a qualidade das iniciativas previstas não acontecem por acaso”. E explicou: “Acontecem porque os museus famalicenses são espaços de memória viva, com actividade permanente, que fazem de Famalicão um exemplo nacional na preservação e dinamização dos seus espaços museológicos”.

Neste âmbito, segundo o autarca, hoje, Famalicão afirma-se no panorama cultural nacional através do trabalho desenvolvido na Casa-Museu de Camilo, que foi eleito “Melhor Museu Português”, em 2006, mas também através das actividades promovidas no Museu Bernardino Machado, dedicado ao antigo Presidente da República, no Museu do Surrealismo, no Museu da Indústria Têxtil e no Museu dos Caminhos-de-Ferro, entre outros.

“Estamos a falar de espaços de memória viva.” “Espaços que fazem de Famalicão uma terra das artes e da cultura” referiu o edil, salientando o “trabalho realizado pela Câmara Municipal, mas também a capacidade de iniciativa dos agentes culturais locais, de que os responsáveis pelos museus particulares são um bom exemplo”. (...)
 
Esta iniciativa  merece o nosso aplauso (*). Os museus do concelho de Famalicão que participam nas comemorações do Dia Internacional são os seguintes: 

Casa-Museu Camilo Castelo Branco; 
Museu Bernardino Machado; 
Museu Ferroviário; 
Museu da Indústria Têxtil; 
Museu da Fundação Cupertino de Miranda; 
Museu de Cerâmica da Fundação Castro Alves; 
Museu de Arte Sacra de S. Tiago de Antas; 
Museu de Arte Sacra da Capela da Lapa; 
Museu do Automóvel Antigo; 
Casa-Museu Soledade Malvar; 
Museu Cívico, Cultural e Religioso de Mouquim.

2. Museu Guerra Colonial > Delegação local da ADFA

A história deste museu remonta ao ano lectivo de 1989/90, quando três dezenas de alunos,  oriundos de várias freguesias dos concelhos de Vila Nova de Famalicão, Barcelos e Braga,  participaram no projecto pedagógico-didáctico  "Guerra Colonial, uma história por contar". 

Através da metodologia da história de vida oral,  os alunos recolheram o espólio dos combatentes das suas áreas de residência. Surgiram então vários documentos como processos por morte e ferimentos em combate,  correspondência (cartas e aerogramas), histórias de unidades, diários pessoais, diários de acção social e psicológica, relatos e processos confidenciais, objectos de arte, fotografias, bibliografias, objectos religiosos, fardamento, armamento, etc. enfim todo um rico e diversificado manancial de fontes que permitiu, entre outras coisas, organizar uma exposição e nela reconstruir as "peugadas" do combatente português na guerra colonial (1961/74)

Em 1992, iniciou-se um trabalho de colaboração com a Delegação da Associação dos Deficientes das Forças Armadas (ADFA) de Vila Nova de Famalicão.Foram efectuados novos estudos regionais com base nos arquivos e membros desta organização. Foi ampliada a exposição com a integração de nova documentação e  materiais.   A exposição integrou diversos eventos culturais e percorreu várias localidades.
Por fim,  em Maio de 1998, foi celebrado um protocolo de colaboração entre a Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, Delegação da ADFA de Famalicão e Externato D. Henrique de Ruilhe de Braga, formalizando a criação do Museu da Guerra Colonial.

"O Museu rege-se pela recolha, preservação e divulgação de fontes e estudos, reformulação técnica da exposição permanente, constituição de um centro documental e o alargamento de novos estudos na região".

Localização: 
Centro Coordenador de Transportes, 
Sala 1, 
Rua Henriques Nogueira, 
4760-038 Vila Nova de Famalicão

Ingresso: Entrada Livre 
Horário: De 2ª a 6ª feira,  09h30 - 12h00 e 14h00 - 19h00
(Sábado, só com marcação prévia)
Contactos: Tel. 252 322848 e 252 376323
E-mail: info@adfa-famalicao.rcts.pt 
Sítio: Delegação local da ADFA 

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Nota de L.G.:

(*) Último poste desta série > 24 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 – P5005: E as Nossas Palmas Vão Para... (3): Medalha de Prata de Serviços Distintos, com Palma (José Martins)

Guiné 63/74 – P6423: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (21): Zumbidos em noite de Verão

1. Mais uma Estória de Mansambo, enviada pelo nosso camarada Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69) em mensagem datada de 11 de maio de 2010.


ESTÓRIAS DE MANSAMBO II - 21

ZUMBIDOS em NOITE de VERÃO



Vista para Poente. O abrigo com a entrada pela falta do bidão. Em Junho não havia espaldão do 10,5


O clarão, o som, a força bruta a atirá-lo de encontro ao fundo da vala.

Cabeça à roda, ouvidos a estalarem, olhos a nada verem, só, só aquela mancha de cor forte, entre o amarelo dourado e o esverdeado.

Tudo à volta roda. Sente que o puxam e deixa-se arrastar. Não sabe o que sente. Não sabe nada do que aconteceu. Parece que tudo desabou.

Molham-lhe a cabeça e a água escorre pelo tronco nu, vai activando o cérebro e aos poucos sente que regressa.

Regresso de onde? Quer falar e nenhum som sai ou se saírem, talvez, sejam sons de confusão.

Tocam-lhe e sente. Está confuso, nada ouve, nada vê. Tem vontade de ir para o fundo, vontade de descer.

Quanto tempo se passou, segundos, minutos? Quantos?

Lentamente, aos poucos, começa a passar as mãos pelos olhos, pela boca, pelos ouvidos. Tenta levantar-se e ajudam-no. O calor de uma chama qualquer vem até ele, só que não vê. Metem-lhe um cigarro na boca e suga-o sofregamente.

Aos poucos sente um ruído, um zumbido diferente, um som que não consegue definir. Sente somente que os pensamentos voltam lentamente e a confusão se vai. Os zumbidos vão-se transformando e o pensamento voltando.

Começa a saber onde se encontra, a sentir o que o rodeia, a tocar objectos e a virem sons mais perceptíveis. A mancha que lhe turva a visão continua, mais suave, mas ainda lá está.

- Apanharam-me. Lixaram-me, espera, espera um pouco mais.

Sente aos pés o morteiro sessenta e uma caixa de granadas. Agarra-os e sai.

Apanharam-me sacanas… e sai uma e outra e mais outra granada… começa a ter noção do espaço, da situação. Do abrigo o guarda-costas grita, chama-lhe doido e, dizem-lhe depois, nomes piores. Ouve som que não consegue definir e de repente vê a chama da saída da granada pela boca do morteiro.

Vê. Vê e talvez tenha sorrido. Rebola para a vala e o abrigo dos dilagramas e dos sessenta. O morteiro está a ferver. As mãos estão queimadas e agora sente o ferrete da dor no peito. Que importa se já vai vendo, difuso, enevoado mas vê e começa a ouvir, a sentir as palavras do Serra e ali ficam naquele buraco a dar resposta ao inimigo que veio sem ser convidado. Veio para arrasar tudo. Quantas horas já se passaram? Não sabe e isso que interessa.

Amanhece e ainda se digladiam.

Entra no abrigo grande e tudo está bem. Parece que por ali passou um ciclone.

- Os cabrões não partem porque querem levar os mortos e feridos.

As munições começam a escassear, as dores e o cansaço a vir. Parece que tudo, na parte dele, da parte dos militares a que pertence está bem.

Vieram caçar-nos e foram caçados.

Aos poucos tudo começa a acalmar, lentamente os tiros soam espaçadamente e as armas pesadas já não se ouvem.

Estendem-lhe uns calções e tapa a nudez. Os abrigos comunicam entre eles e tudo está bem. Felizmente e da tabanca vêm sons igualmente animadores.

Tenta calçar as botas mas tem os pés lixados e sai de chinelos.

Apontam-lhe o buraco da morteirada junto à vala. Encolhe os ombros e sobe-lhe a raiva pelo que lhe aconteceu.

Voltam a chamá-lo. Vai um pouco mais à frente, junto da segunda fiada de arame, está enorme poça de sangue, metade de um cinturão e uma Ceska num coldre. Vêem-se sinais de arrastarem o corpo do dono dos despojos. Graduado de certeza, melhor ainda. Levanta os braços ao alto e ri, ri alarvemente em hino à morte ou à falta de sorte e lança ao ar palavras de ofensa. Tempos loucos.

Doem-lhe os ouvidos, os pés, as mãos. Dói-lhe tudo e ainda ri, riso alarve.

Que noite de merda, diz e afasta-se….

Ainda a sente. Basta com ele falarem.

Mansambo, 28 de Junho de 1968


Rescaldo do ataque de 28 de Junho


Mansambo > Bonito, agradável e saudável

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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 17 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6410: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (9): O saco do Zé Paz D'Almas

Vd. último poste da série de 13 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 – P6381: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (20): Choro na noite

Guiné 63/74 – P6422: Memórias de outros tempos (5): O Básico que queria fazer um ronco (Jorge Teixeira / Portojo)

1. Mensagem de Jorge Teixeira (Portojo)* (ex-Fur Mil do Pelotão de Canhões S/R 2054, Catió, 1968/70), com data de 17 de Maio de 2010:

Caros amigos e camaradas.
Primeiro, um abraço para vocês.
Segundo, se der para post, siga e anda.
Não é preciso aprovação prévia.

Jorge Teixeira


MEMÓRIAS DE OUTROS TEMPOS

5 - Especialidades militares

Ao ler a mensagem do Alcides - Post 6394 - lembrei-me de uma Especialidade, que não o era: a de Básico. Que me lembre encontrei em Catió 2 rapazes com essa não Especialidade. Que afinal era a que todos queríamos, porque assim não iríamos dar com os costados em África. Dizia-se. Mas puro engano.

Quando regressei a Catió depois das férias no HM 241 de Bissau em 4 de Dezembro de 1969, após os 5 dias de convalescença obrigatório por lei, foi-me dado um mini Pelotão, digamos com 2 Secções de 10 homens cada, formados por rapazes da CCS do BART 2865, das mais diversas Especialidades, que, com excepção de um deles, atirador de metralhadora ligeira, (não sei onde foi desencantado, mas era bom mesmo com aquela coisa), os outros eram Padeiros e de outras Especialidades das quais já não me lembro minimamente, com excepção da de Básico. Durante os 9 ou 10 meses de comissão que já levavam, nunca tinham saído do Quartel, a não ser para ir jogar à bola, beber uma cerveja no Libanês ou ao Taras-Buba, ou ir partir catota lá numa tabanca. A nossa missão era (para além de outras brincadeiras) o patrulhamento e segurança nocturnas mais ou menos junto às populações. Esse serviço era feito diariamente, melhor, nocturnamente, normalmente entre as 5 da tarde e as 5 da madrugada. Cada dita Secção saía dia sim dia não, eu saía dois dias e descansava um.

Quer dizer, não saía, mas estava de segurança. Quando flagelados, teria que ir reforçar um dos "postos" exteriores, com a Secção que estava em descanso. Mas para o caso não interessa nada e voltemos ao tema das Especialidades.

Ora um Básico, em princípio era um faz tudo. Colher para toda a obra. Até atirador.

Na foto, o "Básico" é o segundo, com camuflado, a partir da direita

Um dos rapazes "básico" era de estatura pequenina e nunca tinha dado um tiro. Ficou feliz da vida quando lhe disseram que iria fazer parte de um Grupo de Combate. A primeira coisa que me disse foi: quero fazer um ronco. E comigo. E logo eu, que a primeira coisa que fiz com esse grupo, foi ensinar-lhes a correr muito e o caminho para "casa" a partir dos vários locais exteriores a Catió.

Certo dia tivemos uma flagelação e em grande, cerca das 2 horas da manhã. Toca a levantar, ir para o ponto de encontro e sair com o pessoal que estivesse pronto para reforçar o exterior que nesse dia era logo a seguir a Catió Fula.

Lembro-me dos pormenores dessa noite/madrugada. Estava luar, e arranquei com o pessoal, cheio de cagaço, muito encostado e o mais metido possível para dentro do arvoredo junto à picada. Fui olhando para trás e de repente vejo um pequeno vulto quási encostado a mim. Quando distingui quem era, vi o Básico, todo contente com a G3 ao ombro. Diz-me ele: Furriel é hoje o ronco, vamos a eles.

Além dele, trazia mais de 25 às costas e tremi todo pensando como iria aguentar e esconder aquela gente toda. Os homens do meu Pelotão oficial, que nunca me largavam nessas ocasiões, sabia que estavam atrás de mim e que orientavam a coisa, mas os outros não faço a mínima ideia quem eram nem a quem pertenciam: Se à CCS, se à Companhia de intervenção, se ao Pelotão de Morteiros. Sei que parte deles, que também não pertenciam ao mini-pelotão da CCS, foram arrastados pelo Básico.

A rapaziada começou a dizer que ouvia barulhos. Sem transmissões e mesmo sem ordem do comando - em Catió só se fazia fogo à ordem - autorizei a dar uns tiritos com o canhão. Não adiantava nada, porque as nossas granadas eram incendiárias e já com o prazo de validade expirado há manga de chuvas. Mas pelo menos se andasse por ali alguém sempre assustava. E parece que andou mesmo, pois segundo me disseram no outro dia, havia rastos de sangue. E a rapaziada ficou contente. Manga di ronco, pessoal.

Conclusão: O meu Básico, homem cheio de coragem, levava mesmo a G3 que embora com carregador, não tinha munições. Os camaradas preveniam-se contra os heróis...

Portanto a guerra também se fez com os incógnitos Básicos. E o meu Básico andou feliz da vida a contar a aventura por muito tempo. E lá teve direito à cervejinha da ordem para comemorar aquela noite de ronco.

Notem: Básico não é pejorativo. Muito menos para este rapaz que não tinha nome. Quer dizer, ter tinha, mas era o Básico e pronto, todos sabíamos quem era. A alcunha já lhe vinha desde a "Especialidade".

Um abraço
Jorge (Portojo)
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 25 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6250: O 6º aniversário do nosso blogue (30): Eu, a Tabanca Grande e o 25 de Abril (Jorge Portojo)

Guiné 63/74 - P6421: Do meu álbum fotográfico (Arménio Estorninho) (2): Bissau - Um olhar de turista

1. Recordando a mensagem de Arménio Estorninho* (ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, CCAÇ 2381, Ingoré, Aldeia Formosa, Buba e Empada, 1968/70), com data de 15 de Abril de 2010:

[...]
Recordando com saudade, com um bloco de imagens de referências sobre a cidade de Bissau que achei interessantes, obtidas de Janeiro a Março/70.

Bissau, como a conheci, era uma cidade pequena, em que a parte urbana (casario de alvenaria) seria idêntica à da minha Lagoa (hoje tembém cidade). Era suficientemente perceptível que a grande maioria dos que se apresentavam como civis eram militares “camuflados à paisana” e/ou seus familiares e parecendo uma cidade cheia de movimento.

Aquando do aproximar do regresso à Metrópole dos militares em fim de comissão de serviço, era ver um movimento inusitado nos estabelecimentos comerciais. Pela minha parte e bem informado, fui comprando muito antes da chegada do navio para o embarque, regateando aqui e além, o que me favorecia obter preços mais acessíveis.

Na baixa de Bissau, tanto de noite como de dia, era ver em grupos os “camuflados à paisana” nos diversos estabelecimentos similares e de restauração, de uma forma geral tudo se movimentava com os militares. Lembrando entre outros: O Noé (dos pombos verdes e ostras), O Solar dos 10 (Restaurante), O Pelicano (na cave, as francesinhas e as inglesinhas), Cervejaria Império, Cervejaria Sol Mar e Esplanada do Bento (locais onde não faltavam as cervejas e os mariscos)


Do meu álbum fotográfico, recordando com um olhar sobre Bissau (2)


Foto 9 – Bissau> Pilão (Cupelon de Cima, Av. da Cintura)> 1970> Pôr-do-Sol, com grande esplendor e beleza

Foto 10 – Bissau> Pilão> Cupelon de cima> 1970> Tabanca isolada e protegida sob a árvore sagrada o poilão

Foto 11 – Bissau> Sé Catedral> Casamento de casal com relevância> 1970> Cerimónia pública de noivado católico, com a curiosidade de muito povo anónimo.

Foto 12 > Bissau> Sé Catedral> Populares em extra-cerimónia> 1970> Povo anónimo fazendo festa no casamento, executando danças e cantares tradicionais.

Foto 13 > Bissau> Av. da Rádio Bissau> (Av. da Unidade Africana)> 1970> Parte da avenida, que se estendia desde a Sacor, até ao jardim do Palácio.

Foto 14 > Bissau> Av. da Rádio Bissau> (Praça Combatente Desconhecido)> 1970>Pequeno Jardim, numa bifurcação que derivava para a Pensão Regional.

Foto 15 > Bissau> Liceu Honório Barreto> 1970> Na Guiné, no Liceu e na Escola Técnica, é que se obtinham os Cursos Secundários.

Foto 16 > Bissau> Avenida da República> (Av. Amílcar Cabral)> 1970>
Vendo-se ao fundo o Monumento e o Palácio do Governador.



Era assim ao tempo e quando virá a ser, são os tempos que terão que ser recuperados a bem do povo guineense, que tardam em decidir-se, e que também necessitam de apoio. Mas avancemos com aquele provérbio chinês, “não me dês o peixe para comer, mas ensina-me a pescar.”

Com cordiais saudações e um grade abração para todos os Tertulianos
Arménio Estorninho
Ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas
CCaç 2381 “Um Maioral”
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Nota de CV:

Vd. poste da série de 16 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6405: Do meu álbum fotográfico (Arménio Estorninho) (1): Bissau - Um olhar de turista

Guiné 63/74 - P6420: Memória dos lugares (80): Bambadinca, Abril de 2010 (Jaime Machado / Beja Santos)












Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > Abril de 2010 > Por aqui passou (e fotografou) o nosso amigo e camarada Jaime Machado, outrora comandante do Pel Rec Daimler 2046 (Bambadinca, 1968/70). 


Fotos:   © Jaime Machado (2010). Direitos reservados


1. Mensagem do Mário Beja Santos (*):

Luis,


A  escola onde a Dª Violete namorava comigo! (**)...


O cemitério de Bambadinca,  reduzido a lixeira,  com as sepulturas dos nossos camaradas!...


Uma lousa onde se aprende a língua comum!...


Foi o Jaime Machado que me enviou, anda por estes olhos uma água fina a boiar de saudade...


Um abraço do Mário


_________________

Notas de L.G.:

(*) Vd. útimo poste da série >  11 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6369: Memória dos lugares (74): Bissau, cidadezinha colonial (Parte II) (Agostinho Gaspar / Luís Graça)

(**) Vd. poste de 11 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2431: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (15): Oficial e cavalheiro em Bambadinca, às ordens de Dona Violete

Guiné 63/74 - P6419: Notas de leitura (107): Os Resistentes de Nhala, de Manel Mesquita (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Maio de 2010:

Queridos amigos,
Conhecer o testemunho do Manel Mesquita vale todos os pequenos enfados eventualmente sofridos.

Que agradável surpresa! É indispensável que uma editora o estimule a reformular este seu espelho de alma, não conheço melhor cântico de soldado.

Um abraço do
Mário


O admirável soldado Manel Mesquita

por Beja Santos

É uma edição de autor, dá pelo título “Os Resistentes de Nhala, 1969 – 1971”. É um documento impressionante pela bondade e solicitude. O ofício de escrever empurra-nos para uma composição sempre comprometida entre a cultura, valores como o pudor, o voo imaginativo e o charme discreto pelo dever cumprido.

 Quem escreve sobre a guerra colonial são fundamentalmente oficiais e alguns sargentos. Não é um problema de classe, tudo passa pelas regras da comunicação, há bloqueios que muitos não se sentem afoitos a transpor. 

Começamos a ler o livrinho, apercebemo-nos que é alguém que tem um diário de campanha para nos comunicar. Ficamos logo a saber que o Manel Mesquita fez parte da companhia CCaç 2614, detentora da divisa “Poucos Quanto Fortes”. É um homem que se comove com o seu amor a Nhala, pelas amizades feitas, pela solidariedade construída. É um homem que constantemente procura rezar, para aliviar a sua solidão ou dissipar os seus sofrimentos.

Acima de tudo, de tudo quanto já li sobre o teatro de operações da Guiné, ninguém como ele anuncia o encantamento dos discursos, das falas do quotidiano, a métrica dos sentimentos. Li e reli, e empurrado pela emoção, telefonei para os contactos que ele estampa no seu livrinho de 300 exemplares: 22 762 07 36 / 96 35 25 912. 

Encontrei-o a caminho de Fátima, já ia perto de Pombal. Rendi-lhe homenagem e admiração, pedi-lhe encarecidamente que tivesse em conta a magnitude do seu testemunho: falei-lhe em certas imprecisões, muitos erros ortográficos, eventos que mereciam desenvolvimento, aliciei-o para uma edição comercial, este documento é de uma humanidade tal que não pode circunscrever-se às mãos de uns tantos. Disse que vai pensar, ofereceu-se para ser mediador meu nas suas orações. Aí comovi-me até às lágrimas. Adiante, vamos ao tutano da questão.

Na Rocha do Conde de Óbidos, o Manel sobe para o Uige e lembra-se do que lhe disse a irmã mais velha: “Entra com o pé direito”. Entrou e perguntou ao marinheiro para onde devia seguir. Resposta pronta: “Desenrasca-te, a tropa ainda não te ensinou a desenrascar?”. Indigna-se com o porão do navio, aquelas zonas frias, húmidas, sem luz natural, uma lâmpada envergonhada e triste. Há quem fume apressadamente, as garrafas de vinho andam de mão em mão. O Manel começa a conversar com o Zé Lourenço, falam da família, de gente desaparecida, do trabalho na vida civil. A tensão, a expectativa, as incógnitas da guerra, atravessam todas as conversas. 

E assim se chega a Bissau, dias depois embarcam numa LDG para Buba. O Manel regista: “Passámos o resto da noite a bordo. O orvalho molhava-nos as fardas e todos os nossos haveres. A noite parecia gelada. Das margens vinham árvores e arbustos de uma vegetação muito densa e fechada, nada deixando ver para além. Algumas dessas árvores vergavam-se até à água, parecia que nos queriam homenagear com cortesias. Águas pareciam de prata, brilhavam com o luar, bem cedo se começou a notar que o sol espreitava com os seus bonitos rigores coloridos por entre algumas árvores. Há um brilho cristalino ao encontro do sol com o orvalho e resíduos de luar. Parece pintura de artista. A água do rio, essa, estava ali à altura do nosso braço, ia ficando para trás. A natureza é bela! É pena que nem sempre o espírito nos dá a tranquilidade necessária para a deleitarmos como merece. É bonito ver o nascer do sol durante esta viagem neste rio”. E assim chegam ao Buba, onde cai chuva com muita intensidade. Há pelotões que ficarão em Buba, outros irão para Nhala, outra tropa seguirá para a Aldeia Formosa.

Começa a viagem. O Manel deslumbra-se com aquelas árvores talvez centenárias, observa que há locais onde o sol nunca secará as águas que escorrem junto das estradas. Há um sinistro na viagem, uma arma que se disparou imprevistamente, o ferido grita pela mulher e pela filha, quem cometeu o imprevisto ameaça suicidar-se, contristados chegam a Nhala. Novo registo: “Há um soldado sentinela num posto de vigia. Tem as roupas velhas. Os olhos e a arma voltados para nós. As palhotas estão velhas e desalinhadas. A palha que serve de cobertura vem quase até ao chão foi feita sem ordem. À frente há uma tenda de tecido muito velho, será provavelmente para as tropas”. Começa a adaptação. Para tomar banho vão armados, é uma poça com dois metros de diâmetro e dois palmos de profundidade, tinha pedras de lavadouro, estavam lá algumas africanas a lavar a roupa. Invadido pelo pudor, o Manel sente que não pode despir-se naquelas circunstâncias, seria desrespeito pelos outros. Mas o bom senso imperou, despiu-se, fez a sua higiene, no regresso é informado que às seis da tarde irá para o posto de vigia. Sente-se revoltado com a comida que lhe dão ao jantar, em grupo comem o resto de um naco de presunto.

O Manel relembra tudo, como veio lá do Norte até RI 16 em Évora, nunca esqueceu a cidade quando regressaram das marchas finais e os saudaram, vinham cansados e sujos, o povo saúda-os. Em Évora recebeu 500 escudos em dinheiro e guia de marcha, nunca o número 120156/69 fora tantas vezes pronunciado e escrito.

Tinham um pouco mais de uma semana de comissão quando descobrem, dentro da tenda, a primeira hostilidade da natureza: estavam a ser atacados por formigas, houve que regar toda a zona com gasóleo. Aquele primeiro Natal foi muito duro de passar. Depois chegou o alferes Giesteira, vinha tapar uma falta desde o embarque. E começam os patrulhamentos na estrada nova de Uane. Houve logo contacto. O que resta da estrada é espectral: esqueletos das máquinas queimadas ou enferrujadas, até niveladoras e camionetas. Agora o capim cresce por todos os lados.

O Manel é católico praticante, esteve no seminário, é contra a violência, há mesmo que insinue que ele é comunista. Foi castigado por ter dito que não aceitava pegar numa G 3 para matar pretos, chegou mesmo a ser interrogado por vários oficiais, proibiram-lhe que frequentasse a escola de cabos. O Manel explica aos seus camaradas que vem ali procurar ser útil às populações, não o move qualquer hostilidade a quem quer ser independente. É tocante o modo como ele nos conta o seu dia-a-dia, desde a manutenção e faxina ao aquartelamento, o apoio à construção de moranças, os patrulhamentos. Na sua casa, o Manel construiu uma lápide onde está escrito: “Qui venit in nomine Dei focare placet bene (Quem vem em nome de Deus será bem aceite)”. No carreiro de Uane, os pelotões da CCaç 2614 continuam a ser emboscados, por vezes consegue-se reagir energicamente, outras vezes o factor surpresa joga a favor das tropas do PAIGC. Em todo o sofrimento, o Manel procura a aceitação: “Tenho que reconstruir-me e tudo recomeçar. Tentaremos que recomece melhor e de maneira mais perfeita. Tentarei distinguir a amargura da vida diária. Nhala tem que continuar a evoluir. Nós queremos melhorar as condições de permanência e habitualidade em Nhala”.

Este testemunho deixa-me emudecido, o Manel é um coração pacífico, nunca mais esquecerá Nhala. E o que ele vai registar de tipos humanos, camaradas que encontrou, gente inesquecível, é surpreendente.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6409: Notas de leitura (106): Bissau Em Chamas, de Alexandre Reis Rodrigues e Américo Silva Santos (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6418: Álbum fotográfico de Daniel Matos - II parte

Segunda parte do Álbum fotográfico de Daniel Matos, ex-Fur Mil da CCaç 3518, Gadamael, 1971/74.


Foto 30 > Reagirmos às emboscadas ou dispararmos enfiados nas valas, não era tarefa fácil...

Foto 32 > Pormenor de Gadamael.

Foto 33 > Crianças de tenra idade na Guiné. São sempre as crianças quem mais sofre durante uma guerra e estas não foram excepção.

Foto 41 > Os momentos de lazer não eram muitos, mas havia que os aproveitar quando se proporcionavam. Aqui, um momento de repouso, sentado sobre uma das imaginosas obras dos nossos soldados: uma cadeira de balouço construída com velhas aduelas (tábuas redondas de barris).

Foto 44 > Cais de Gadamael, num momento de descarga do batelão (BM3), que nos abastecia e que ali deixava os produtos que transportaríamos nas colunas para Guileje

Foto 52 > Passeio de Sintex: eu, o Soldado Condutor Albino Caldas, o saudoso 1.º Cabo Telo, o Fur Mil Lopes Silva e o Alf Mil António Monteiro. A cabeça que se vê na água é do Capitão Manuel de Sousa.

Foto 53 > Equipa de Voleibol dos Marados

Foto 55 > Machado

Foto 58 > Caixa de Correio

Foto 65 > Secretaria

Foto 66 > Pindjiguiti > 31 de Maio de 1973

Foto 67 > Bafatá > Janeiro de 1974

Foto 67a > Gadamael > Fevereiro de 1973 > Messe

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Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 16 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6407: Álbum fotográfico de Daniel Matos - I

Guiné 63/74 - P6417: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (15): Obrigado, Mortágua, salvaste-me a vida!


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sector de Contuboel > Contuboel > Ponte sobre o Rio Geba > 16 de Dezembro de 2009 > Foto de João Graça, médico e músico, membro da nossa Tabanca Grande. O Cherno Abdulai Baldé, o Chico de Fajonquito,  é natural de Fajonquito, que pertence ao Sector de Contuboel, Região de Bafatá. Entre os de Fajonquito (na fronteira com o Senegal) e os de Contuboel (que,  no meu tempo,  Junho/Julho de 1969, era centro de instrução militar, foi lá que foi formada a futura CCAÇ 12...) havia (ou ainda há) uma certa rivalidade... nomeadamente em termos futebolísticos (diz-nos o Cherno).


Foto: © João Graça (2010). Direitos reservados

1. Mensagem do guineense Cherno Baldé, amigo e membro do nosso blogue, com data de 17 do corrente

Caro Luis Graça,

Na continuação das crónicas de Chico (Cherno Baldé,  de Fajonquito), envio mais esta, esperando que suscite reacções mais positivas do que as anteriores.

De notar, entretanto, que não existe nenhuma motivação, pró ou contra relativamente ao nome de Mortágua ou de outras possiveis conotações.Tudo foi fruto do simples gosto de escrever recordações e de partilhar pontos de vista. Como poderão notar, não conheço esta localidade ou freguesia e nunca convivi com outra pessoa que tivesse estas origens salvo o soldado a que me refiro e do qual me lembro vagamente.

Cherno Abdulai Baldé - A partir de Bissau.


2. Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (15):  O Mortágua (*)


Para todos aqueles que conhecem minimamente terras Lusas, Mortágua deve significar uma aldeia, vila, freguesia ou cidade,  situadas algures no centro norte de Portugal. Para as crianças "rafeiras" do quartel de Fajonquito por volta de 1970/72 (**), Mortágua era o nome dado a um dos soldados cozinheiros da messe dos oficiais,  situada nas traseiras da casa comercial Ultramarina, onde trabalhava o meu pai. 

Por detrás desta cozinha, encontrava-se o salão de futebol de cinco, onde passávamos a maior parte do tempo a brincar ou a observar aquelas crianças adultas, como lhes chamava a minha avó, que eram, nesse caso, os soldados portugueses, a jogar a bola no meio de gritos e, quase sempre, como que para impor a ordem, um ou outro oficial espectador junto ao murro que circundava o salão.

Indiferente, sorumbático e a destoar de tudo e de todos,  estava o Mortágua ocupado nos seus afazeres de todos os dias. O homem não era muito vulgar, a começar por seu tamanho que saltava fora do comum dos portugueses. Era alto e possuía enormes pés,  sempre descalços,  ou em chinelas que mais pareciam trompas de elefante, pintados de nódoas pretas da caldeira da cozinha e o corpo invariavelmente habitado por cascas de batata, penas de galinha e restos de comida. 

Tanto o víamos ocupado à volta da sua cozinha que pensávamos que ele passava lá as noites. Quando matava as galinhas, não se dava ao trabalho de cortar a garganta e segurá-las até esfriar para não saltitarem enquanto lutavam entre a vida e a morte, momentos que todos os seres humanos devem respeitar, como mandam as regras. Ele, ao contrário, segurava nelas e batia a cabeça das pobres criaturas contra as bordas salientes de um tanque e, de seguida deixava-as rolar no chão até perderem a vida. 

Esta crueldade da parte de um homem, certamente, criava um misto de medo e de ódio contra ele da parte das crianças e por extensão da aldeia, também. Não era dado a passear ou a brincar, nem tão pouco frequentava a aldeia, plantada mesmo ao pé do quartel,  doutro lado da estrada para além da vedação de arame farpado. A sua postura de homem solitário, triste e cruel,  fazia pensar numa alma infeliz.

Ora, ai é que estava o cerne da questão, e que me intrigava sobremaneira. Na minha opinião, era difícil imaginar que pudesse haver pessoas infelizes num sítio com tanta abundância de alimentos e de vida, jovem e saudável. Certamente, estes brancos não sabiam a felicidade que Deus lhes tinha concedido ao enviar-lhes neste mundo sem as mazelas que atormentavam a população nativa, pensava eu. 

Se não vejamos: Não tinham bebés para amamentar e levar as costas, aliás não eram obrigados a aturar as birras das mulheres que diariamente engendravam mil e um conflitos nas nossas moranças criando fissuras na coesão social e familiar com as suas histórias trelelé, sem pés nem cabeça, nascidas da sua eterna insatisfação sexual; não tinham velhotas intrometidas como a minha avó que queria saber e controlar tudo e todos ao pormenor só para se manter ocupada e não definhar; não tinham doenças, pelo menos, nunca tinha visto sequer um soldado que o estivesse, salvo algumas diarreias que entupiam as casas de banho em certas ocasiões.

Desde o primeiro contacto, para mim, o quartel transformou-se irremediavelmente num local atractivo porque era o lugar ideal, quase perfeito, para viver, longe das misérias do mundo. Os homens em geral têm tendência natural para justificar as suas fraquezas. Foi assim que, confrontados com a força conquistadora e dominante dos Portugueses, os nossos velhos encontraram uma forma subtil e engenhosa de explicar a supremacia e também, a sorte dos brancos. Diziam: "A eles, Alá (Deus) deu tudo o que desejavam neste mundo e a nós, pretos, Deus nos reservou o paraíso na eternidade, na condição de sermos pacientes e cumpridores das obrigações contidas nos cinco pilares da religião". 

Todavia, não era assim tão simples no espírito de uma criança que tinha fome e muita curiosidade. E mais, a fome podia ser enganada ou controlada mas era mais difícil ocultar a evidência, para lá das barreiras e dos dogmas.

Desculpem pois, estava a falar do Mortágua. Pensava eu ser esse o seu nome, todos o chamavam assim. Não raras vezes, gritávamos, escondidos noutro lado do murro do pequeno salão: 
– Mortábua !!! Mortábua !!!

Era uma festa de risos e assobios, após uma breve escapada, seguros da nossa impunidade. Mais que a zombaria, era a sonoridade do nome que nos divertia. Mas ele nunca reagia as nossas provocações, continuando impávido a descascar batatas ou a depenar as suas galinhas dessacralizadas.

Num dia em que me tinha levantado mais cedo que o habitual como que empurrado pelo Satanás, fui ao centro da aldeia, onde se situava a única escola e, como não estava ninguém naquela hora do dia, desci para os lados do quartel. No refeitório cruzei-me com o sempiterno Zeca Mané, auxiliar da cozinha, ainda com os vestígios da bebedeira de ontem, a lavar as panelas e a pôr lenha no fogão para o café da manhã, acompanhado de algumas crianças que o ajudavam a troco dos restos de comida da véspera. Do forno da padaria, situado entre a cozinha e a caserna dos condutores, saia o cheiro agradável do pão a cozer mas, ainda a maior parte da malta estava dentro das casernas a preparar-se para o novo dia que começava.

Encostado ao murro do refeitório, para não ser visto por Matos,  o Chefe da cozinha, que por razões que não sei explicar, não simpatizava comigo, dirigi-me aos colegas suplicando-lhes que me dessem um pouco dos restos de comida, para segurar a barriga . Talvez devido à vida de rafeiros que levavam no quartel, normalmente nenhuma das crianças cedia em tais condições em oferecer comida aos outros. Nenhum deles sequer olhou para mim. Como não respondiam, dirigi-me para o local onde sabia estar escondida a comida e então chamaram o patrão:
- Xô Matos, olha o desenfiado!

O Matos era um brutamontes e, sabendo do perigo que corria, deixei o refeitório e afastei-me para os lados do salão. Estas circunstâncias salvaram-me de uma morte certa mas, vamos por partes.

Sem saber ao certo o que fazer perante a recusa dos colegas que sabia ser irreversível mas ainda com a barriga vazia, dirigi-me para os lados do salão de futebol e, aí, avistei uma figura conhecida, era o Mortágua nas suas lides diárias. Inclinado sobre um caixote de madeira semi-aberto, ele apanhava com uma das mãos as batatas inglesas munido de uma faca de cozinha. Talvez devido a monotonia da hora e, sem pensar nas consequências, chamei:
- Mortábua!

Como que picado por uma vespa, o homem levantou-se com uma facilidade que não suspeitava nele e lançou-se na minha direcção com a faca em punho. Com a surpresa do momento, ainda perdi alguns segundos sem reagir. Pensei em fazer marcha atrás mas, na cozinha estava o Matos mais um grupo de soldados da companhia de operacionais, que não hesitaria em caçar-me. Pensei em fugir e entrar na caserna dos condutores mas ainda alguns estavam na cama e arriscava-se a levar dupla porrada. A única saída eram os arames farpados.

Com o medo à flor da pele, dei meia volta, como que a querer dirigir-me a cozinha, de seguida virei na primeira porta do refeitório e que dava para a padaria, tendo voltado de novo ao salão do qual saltei o primeiro e o segundo murro sem dificuldades, tendo-me, depois, lançado em grande velocidade, em direcção ao cercado mais distante, situado ao sul e que dava acesso ao morcunda, bairro Mandinga. A distância a correr era razoável e convinha fazê-lo rapidamente e em ziguezague senão arriscava-me a ser atropelado pelo monstro.

O Mortágua não cedia um passo. Não podia supor, nem por um triz que aquele calmeirão fosse tão ágil e resistente na corrida. Sentia o bafo de ar quente por cima da minha cabeça e eu corria e corria. No quartel, já se tinha perfilado um certo número de curiosos a observar a corrida. Só pedia a Deus que a sentinela estivesse a dormir, senão... Sentia que as pernas estavam cada vez mais pesadas e as mãos do gigante me arranhando as costas no desespero de me agarrar. Socorro!

O que o Mortágua não sabia era que tudo estava calculado, de antemão, assim como fazem os animais que vivem sob ameaça permanente. Havia sítios onde tínhamos feito aberturas com as pontas redondas do arame viradas para cima, de modo a permitir a passagem de um corpo minúsculo e, foi por ai que me escapuli, deixando cair o corpo a terra e rolando por baixo, da mesma forma que nos tinha ensinado o nosso "instrutor militar". 

O Mortágua, incrédulo e impotente,  começou a mandar vir com imprecações acompanhadas de mil ameaças caso voltasse a pisar o quartel. Atirou-me ainda algumas pedras mas a partida já estava perdida para ele, pelo menos, desta vez. Pelos vistos, era preciso mais que a fúria de um gigante para encurralar um rafeiro.

Como se nada tivesse acontecido, com o corpo riscado de arranhões e a camisa em tiras, juntei-me ao grupo de rapazes que seguia para Morcunda. Agora era preciso encontrar os mantimentos necessários e juntos partir para a bidal, ponto de encontro da malta jovem nos períodos matinais. Devíamos preparar alguma provisão em mangas que íamos roubar no bairro mandinga. E foi ai que começou o desenrolar do drama que dava sequência ao episódio do refeitório e que viria a ceifar a vida de alguns dos nossos colegas.

Os primeiros sinais foram de náuseas e vómitos mas não tardou a que todos aqueles que tinham passado pelo refeitório e que se tinham servido da comida da véspera no quartel, estivessem estatelados no chão sem forças. Pusemo-los dentro dos caixotes que nos serviam de carros para os arrastar mas as cordas cediam e, então,  fomos obrigados a carregá-los nas costas até à casa Gouveia, no centro da aldeia, onde funcionava o hospital ou o que fazia passar por tal. Antes de chegarmos ao local já uma das crianças estava morta. As outras, ainda receberam alguma assistência e medicamentos mas muitas vieram, mais tarde, a sucumbir. Os mortos foram enterrados e a vida continuou, era o destino.

O que tinha acontecido? Segundo as informações que depois circularam, eles tinham comido carne de atum em mau estado de conservação que as tinha intoxicado. Esta carne vinha em latas largas e redondas. Verdade ou não e, como não podia avaliar do seu estado, nunca mais voltei a comer atum, pelo menos, enquanto durou a presença das tropas em Fajonquito.

Durante algum tempo, impediram a entrada dos civis no quartel, mas a medida durou pouco e não teve o efeito desejado pois, apesar disso,  nós entrávamos no quartel violando as ordens com conivência dos nossos amigos e os soldados que, também, continuavam a fugir a coberto da noite para visitar as suas bajudas nas nossas moranças. Era inútil.

Este acontecimento ilustra, se necessário fosse demonstrá-lo, a grande capacidade de sofrimento humano e de perdão de que são imbuídas as populações Africanas e, também da sua força espiritual na crença em Deus ou algo de transcendência superior. Quantas vezes, estes comportamentos passivos, lentos e conformistas,  não foram entendidos como sinais de fraqueza e de incapacidade. Uma vez, o meu pai, que raramente entrava em conversas inúteis, quando ouviu falar da chegada dos brancos à Lua, falou naqueles seus monólogos que nos tinha habituado, dirigindo-se a nós: 
- Estes brancos, sempre apressados, para onde nos hão-de levar?

Ainda hoje pergunto-me a mim mesmo, o que teria feito ao Mortágua para suscitar tanta raiva nele? Seriam as nossas provocações infantis ou o facto de o chamar pelo nome que, suponho, não seria o dele mas da sua terra de origem? Ou então, foi Deus que quis salvar-me por seu intermédio?

Ainda, passados muitos anos, estas questões me habitam e, esteja onde estiver, quero que saiba que ele salvou-me de uma morte quase certa, mesmo que o tenha feito de uma forma muito estranha. Espero, também, que,  com idade madura, ele tenha percebido da importância de lidar com a vida com a simplicidade e o sacramento que a nossa existência como humanos nos impõe. Obrigado,  Mortágua.

Bissau, Abril de 2010.

Guiné-Bissau > região de Gabu > Fajonquito > c. 1975 > "A nossa equipa de futebol de salão no quartel de Fajonquito entre 1974-1975, podendo-se ver em pé: Mamudo, Algássimo e o professor António Tavares; sentados: Eu (Cherno) e Aruna (filho do antigo padeiro) à minha esquerda" (CB)

Fotos: © Cherno Baldé (2009). Direitos reservados

3. Comentário de L.G.:

Obrigado, Chico,  grande rafeiro de Fajonquito, e sobretudo obrigado  meu amigo e irmãozinho Cherno. Já conquistaste o coração destes tugas que nos idos tempos de 1963/74 tu conheceste e admiravas, com um misto de reverência, terror, curiosidade, simpatia e compaixão... Já aqui escreveste páginas admiráveis, e únicas (que nenhum de nós poderia escrever), sobre a inocência em tempo de guerra, sobre a condição dos meninos guineenses dentro e fora do arame farpado, sobre o quotidiano dos soldados portugueses visto pelo desarmante e fascinante olhar infantil, sobre a vida e a morte das crianças numa tabanca fronteiriça  militarizada, sobre a atracção e a repulsa da cultura europeia... 

Cherno, as tuas crónicas, pela emoção que nos provocaram, pela autenticidade do teu testemunho, pelo fascínio das tuas memórias de infância e pela beleza literária da tua narrativa,  já bem merecem um editor português. Não tenho dúvida, não temos dúvidas: és um talentoso escritor de língua portuguesa. E o nosso blogue orgulha-se de estares entre nós, como guineense, como homem, como amigo, como lusófono. Espero que esta crónica chegue ao conhecimento do Mortágua, onde quer que ele esteja, dos Mortáguas que tu conheceste e que, como dizia a tua avó, não eram mais do que crianças crescidas que a guerra veio roubar às suas famílias e às suas tabancas...  
________________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores:

24 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6244: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (14): Cap Figueiredo: Capiton Lelö dahdè ou capitão cabeça inclinada



10 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4806: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (11): Filho da p... de barrote queimado...... Ou as sobras do rancho

8 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4802: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (10): Futebol: ser do Benfica ou do Sporting, eis a questão

5 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4782: Memórias do Chico,menino e moço (Cherno Baldé) (9): Futebol, rivalidades, bajudas... e nacionalismos(s)

 27 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4746: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (8): Misérias e grandezas de Fajonquito, 1970/75

21 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4714: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (7): As profecias do velho Marabu de Sumbundo

13 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4679: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (6): Uma gesta familiar, de Canhámina a Sinchã Samagaia, aliás, Luanda

6 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4646: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (5): A família extensa, reunida em Fajonquito, em 1968

30 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4611: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (4): O ataque dos meus primos a Cambajú e o meu pai que foi um herói

25 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4580: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (3): A chegada dos primeiros homens brancos a Cambajú em 1965: terror e fascínio

24 de Junho de 2009 > Guine 63/74 - P4567: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (2): Cambajú, uma janela para o mundo

19 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

Vd. também:

18 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...

7 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4650: (Ex)citações (32): A Tabanca Grande ou... Global: de Contuboel, Fajonquito e Bissau com amizade (Cherno Baldé)

20 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4710: Blogoterapia (119): As Fantas, as Marias, as Natachas, ou o amor em tempo de guerra e de diáspora (Cherno Baldé)

(**) Vd. poste de 3 de Abril de 2009 >Guiné 63/74 - P4136: As Unidades que passaram por Fajonquito (José Martins)

(...) Companhia de Caçadores n.º 1501, comandada pelo Capitão de Infantaria Rui Antunes Tomaz, unidade orgânica do Batalhão de Caçadores n.º 1877, mobilizada em Tomar no Regimento de Infantaria n.º 15, assumiu a responsabilidade do subsector, rendendo a CCaç 1497, em 26 de Janeiro de 1967, vindo a ser substituída pela CCaç 1685 em 19 de Setembro de 1967.

Companhia de Caçadores n.º 1685, comandada pelo Capitão de Infantaria Alcino de Jesus Raiano, unidade orgânica do Batalhão de Caçadores n.º 1912, mobilizada em Évora no Regimento de Infantaria n.º 16, assumiu a responsabilidade do subsector, rendendo a CCaç 1501, em 19 de Setembro de 1967, vindo a ser substituída pela CCaç 2435 em 14 de Dezembro de 1968.

Companhia de Caçadores n.º 2435, comandada pelo Capitão de Infantaria José António Rodrigues de Carvalho e, posteriormente, pelo Capitão de Infantaria Raul Afonso Reis, unidade orgânica do Batalhão de Caçadores n.º 2856, mobilizada em Abrantes no Regimento de Infantaria n.º 2, assumiu a responsabilidade do subsector, rendendo a CCaç 1685, em 07 de Dezembro de 1968, vindo a ser substituída pela CCaç 2436 em 20 de Abril de 1970.

Companhia de Caçadores n.º 2436, comandada pelo Capitão de Infantaria José Rui Borges da Costa, unidade orgânica do Batalhão de Caçadores n.º 2856, mobilizada em Abrantes no Regimento de Infantaria n.º 2, assumiu a responsabilidade do subsector, rendendo a CCaç 2435, em 20 de Abril de 1970, vindo a ser substituída pela CArt 2742 em 13 de Agosto de 1970.

Companhia de Artilharia n.º 2742, comandada pelo Capitão de Artilharia Carlos Borges de Figueiredo e, posteriormente, pelo Alferes Miliciano de Artilharia Baltazar Gomes da Silva, unidade orgânica do Batalhão de Artilharia n.º 2920, mobilizada em Penafiel no Regimento de Artilharia Ligeira n.º 5, assumiu a responsabilidade do subsector, rendendo a CCaç 2436, em 13 de Agosto de 1970, vindo a ser substituída pela CCaç 3549 em 21 de Maio de 1972.

Companhia de Caçadores n.º 3549, comandada pelo Capitão Quadro especial de Oficiais José Eduardo Marques Patrocínio e, posteriormente, pelo Capitão Miliciano Graduado de Infantaria Manuel Mendes São Pedro, unidade orgânica do Batalhão de Caçadores n.º 3884, mobilizada em Chaves no Batalhão de Caçadores n.º 10, assumiu a responsabilidade do subsector, rendendo a CArt 2742, em 27 de Maio de 1972, vindo a ser substituída pela 2.ª Companhia do BCaç 4514/72 em 15 de Junho de 1974.

2.ª Companhia do BCaç 4514/72, comandada pelo Capitão Miliciano de Infantaria Ramiro Filipe Raposo Pedreiro Martins, unidade orgânica do Batalhão de Caçadores n.º 4514/72, mobilizada em Tomar no Regimento de Infantaria n.º 15, assumiu a responsabilidade do subsector, rendendo a CCaç 3549, em 15 de Junho de 1974, vindo a iniciar o deslocamento para Bissau a partir de 30 de Agosto de 1974, tendo um pelotão efectuado a desactivação e entrega, ao PAIGC, do aquartelamento em 01 de Setembro de 1974. (...)

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6416: Controvérsias (75): A nossa postura face ao PAIGC no pós-Abril (Manuel Marinho)

1. Mensagem de Manuel Marinho* (ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Nema/Farim e Binta, 1972/74), com data de 11 de Maio de 2010:


A(s) NOSSA(s) POSTURA(s) FACE AO PAIGC NO PÓS-ABRIL

Ultimamente as discussões sobre a postura dos camaradas que estavam na Guiné face aos acontecimentos pós-Abril relacionados com o PAIGC, têm ocupado espaço considerável no blogue, e na minha opinião, com elevado respeito por opiniões diversas entre camaradas que na expressão feliz de alguém, “tiveram que fechar as portas da guerra”.

Vamos lá ver se sou capaz de expressar o que sinto em relação a esses acontecimentos sem beliscar a postura de ninguém.

A minha posição quanto a essa questão já a manifestei por várias vezes quando o tema é mesmo esse, isto é sou e fui contra todas as formas de regozijo para com o PAIGC.

Apenas e só, respeito a sua luta que travaram pela emancipação do seu povo, de igual modo exijo-lhes o mesmo em relação aos meus companheiros de armas que lutaram com brio e honra, por uma causa que a esmagadora maioria considerava um dever pátrio, e que pagaram muito caro essa luta.

Não merecem mais, porque entre outras coisas, é de muito mau gosto, ”sou educado” senão a palavra era outra, levar a esses encontros de reconciliação na altura, algumas peças de equipamento de guerra pertencentes a camaradas nossos, e que eles ostentaram de forma “vitoriosa” junto dos nossos camaradas, em alguns encontros perante o silêncio e a vergonha de alguns soldados que a eles assistiam.

Se fosse o contrário o que seria?

Já se imaginaram a levar alguma peça de farda do PAIGC a encontros com o IN na altura? Seria essa a melhor forma de reconciliação?

Lamento mas não posso deixar de pensar assim, se calhar o defeito é meu e (posso) poderei estar errado na apreciação que faço dos meus ex-inimigos, mas cada vez mais sinto a minha razão fortalecida, ao ler e ver alguns posts, e saber o que aconteceu depois aos que a nosso lado combateram.

Não respeito o vencedor que não respeita o vencido.

Como abomino o abuso do forte sobre o fraco.

Ou será que não foi o mesmo PAIGC que agiu no caso dos fuzilamentos?

Mas a questão principal prende-se com toda a envolvência na guerra que travamos ao longo de 13 longos anos, e que se não foi resolvida pela via política, teria forçosamente de o ser pela classe militar.

E é bom que lembremos que fomos nós que acabamos com as hostilidades, não havendo motivos para que se exagerasse nos festejos.

Mas não foi o melhor que nos podia ter acontecido? Claro! Nem podia pensar de outra maneira.

Queríamos vir embora rapidamente? É óbvio que sim.

Poupou dezenas de vidas de ambos os lados? É evidente e não tem discussão.

Mas a saída teria de ser outra! E não a que se verificou!

Mas estes acontecimentos serão mais tarde analisados e contados por historiadores que farão a História da guerra colonial, (no caso da Guiné este blogue é imprescindível) e eu apenas sou mais um, que deixo modesto contributo no sentido de evitar que qualquer dia estejamos todos a bater palmas ao PAIGC, porque nos deixaram vir em paz para a nossa “santa terrinha”, em 1974.

Respeito sem o mínimo de reservas os que pensam de maneira contrária, mas tenho que deixar expresso o meu testemunho do que pensava na altura, e que hoje já com idade para ter mais juízo (escusava de falar disto), os factos passados ao longo destes anos, reforçaram a minha opinião.

Para mim a coerência deve ser acompanhada de juízos de valor que à época tínhamos, eu até podia refugiar-me na minha juventude de então.

Mas não será que nesses 2 anos terríveis que todos nós passamos em comissão, não amadurecemos demasiado depressa em comparação com os nossos amigos de então?

É que hoje camaradas, sinto em diversas leituras que éramos todos muito politizados, e era bom que também aqui no blogue se afirmasse que havia muitos soldados que se lhes perguntava o porquê da ida para a Guiné, a resposta era mais ou menos esta:

Defesa da Pátria ou da Bandeira, e sempre por obrigação e dever.

Havia de facto uma minoria mais politizada, sei do que falo, mas daí até pensarmos que no dia 25 Abril estávamos todos a gritar “abaixo a guerra / regresso imediato”, vai uma grande distância.

As perguntas mais frequentes nesse dia eram, “o que é isso de revolução”?

Eu até fui eleito para representar os meus camaradas na classe de Cabos e Praças, (eram 4, um Alferes, um Furriel e dois Cabos) a ideia era travar ímpetos de quem comandava as Companhias para que não pudessem pôr em causa o cessar fogo entretanto a ser negociado, isto é, os representantes(?) do MFA nos quartéis no mato tinham por missão impedir possíveis saídas para o mato, determinadas por algum Comandante de Companhia que entendesse o contrário.

No nosso caso até nem foi difícil, pois durante toda a comissão o “senhor” que nos comandava saiu duas ou três vezes para o mato e julgo que por ordens superiores que o ditaram.

A partir daí para nós acabou-se a guerra, porque se o cessar fogo corresse mal já não tínhamos a possibilidade de fazer frente ao PAIGC, restava-nos entregar os aquartelamentos e pedir por favor para virmos embora, pois os aquartelamentos ficaram à mercê deles pois eles movimentavam-se à vontade, enquanto nós esperávamos o final das conversações a ver no que dava, esta é a minha opinião, vale o que vale.

E na altura o PAIGC nem tinha a força de um ano antes, pelo menos na minha ZO, ou será que eles não passavam dificuldades na altura do 25 de Abril?

Seria só o nosso lado a ter problemas?

Se na altura se entendia que era uma provocação ao PAIGC o facto de andarmos armados, o que pensar quando leio hoje alguns camaradas dizerem que eram mandados parar por forças do PAIGC armados?

Já houve camaradas que disseram que só quando chegaram a Bissau, entregaram o armamento, no nosso caso foi entregue em Binta, para depois termos de tornar a pegar em armas para apagar “fogos” ateados pelos “festejos exagerados” que se fizeram em Guidaje, e para o qual tivemos de ser nós a apagar os mesmos, (quando puder conto), e era para intervir contra os nossos camaradas africanos.

E mais uma questão, alguém consegue explicar os comportamentos desiguais que eles tiveram nas diversas Unidades, numas entravam e bebiam, noutras pediam por favor, e finalmente havia outras que eles tinham vergonha de franquear as entradas, porque seria?

Um grande abraço para todos vós.
Manuel Marinho
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Notas de CV:

(*) Vd. postes do nosso camarada no marcador Manuel Marinho

Vd. último poste da série de 9 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6350: Controvérsias (74): Como eu vi o fim da guerra (Fernando C. G. Araújo, ex-Fur Mil OpEsp / RANGER da 2ª CCAÇ / BCAÇ 4512)