quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6867: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (6) : Quadros de Viagem de um Diplomata, de Luiz Gonzaga Ferreira (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Agosto de 2010:

Queridos amigos,
Descansem, estou quase a acabar as férias. Foram curtas, preciso de mais.
Li este livro quando estava a preparar a Mulher Grande, precisava de perceber o fervilhar da vida senegalesa na altura em que o grupo de François Mendy atacou São Domingos, onde pus a viver a minha heroína. A História não especula, não põe hipóteses. Mas é impossível deixar de perguntar o que teria acontecido se Salazar continuasse a apoiar a solução de autonomia progressiva para a Guiné Portuguesa.

Um abraço do
Mário


Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (6)

por Beja Santos

Quando, em Dakar, se negociava uma autonomia pacífica da Guiné


No dia 11 de Agosto de 1963 um DC5 aterrou em Bissalanca e dele saíram Silva Cunha, então Secretário de Estado do Ultramar, diplomatas do MNE e o último cônsul português em Dakar, Luiz Gonzaga Ferreira. Este conjunto de personalidades ia aguardar a comunicação que Salazar faria ao país no dia seguinte, dando conta da sua decisão, tomada depois de se reunir com Benjamim Pinto Bull, Presidente da União dos Naturais da Guiné Portuguesa (UNGP) de aceitar a abertura de negociações para uma autonomia política da Guiné. A esta declaração de Salazar, o conjunto de personalidades e o Governador da Guiné receberiam Benjamim Pinto Bull para iniciar as negociações dessa autodeterminação progressiva.

O que se disse acima não é ficção, está perfeitamente documentado e consta do livro “Quadros de Viagem de Um Diplomata”, por Luiz Gonzaga Ferreira*, Vega, 1998. Ao longo de mais de 400 páginas, o diplomata, que iniciou a sua carreira em Dakar, em 1960, dá-nos conta sobre os bastidores da acção diplomática portuguesa no Senegal e oferece-nos uma importante memória sobre a política de Senghor e o que ele pensava da transição pacífica da Guiné para a independência e, não menos importante, quem eram e como actuavam os diferentes movimentos independentistas que operavam em Dakar, a partir de 1959. Vamos aos factos.

Primeiro, as condições em que se chegou para que o próprio ditador tenha concordado com uma solução negociada com a UNGP. Léopold Sédar Senghor adoptou uma imagem moderada e um perfil de negociador no contexto da antiga África Ocidental Francesa. Poeta africano, autor do princípio da Negritude, apaixonado pela cultura francesa, partidário da democracia parlamentar, debatia-se por aprofundar essa via no Senegal e na vizinhança e sujeitava-se a ter que acompanhar o estado de exaltação das independências e até as próprias vozes radicais que se ouviam no Gana, em Marrocos ou no Congo. Senghor temia os projectos políticos de Sekou Touré e desconfiava do marxismo de Amílcar Cabral. Impelido para o corte de relações com Portugal, manteve, mesmo depois da saída do Embaixador português, relações cordiais com o cônsul. A colónia guineense era representativa no Senegal, tal como a colónia cabo-verdiana. Por muita moderação que imprimissem nas relações com os movimentos independentistas, Senghor estava consciente, sobretudo a partir de 1961, que ou se entrava na luta armada ou na negociação com as autoridades portuguesas. Os movimentos de libertação da Angola, Guiné e Moçambique já se tinham encontrado em Casablanca, agiam com uma estratégia conjunta. Os países africanos preparavam a criação da Organização da Unidade Africana. Para além de lhe repugnar a guerra, Senghor temia a circulação de armamentos pela região do Casamansa, antigo território português, até 1886. Senghor e grande parte dos dirigentes do seu partido, o UPS – Union Progressiste Senegalaise pretendiam a solução moderada, por isso apoiaram a UNGP. Senghor assistira em 1961 às investidas de um grupo de manjacos do Movimento de Libertação da Guiné de François Mendy, que atacaram São Domingos, Susana e Varela. Os movimentos nacionalistas radicais não aceitaram a concorrência da UNGP que procurava promover valores de paz e conciliação. Senghor apostou declaradamente na UNGP. A partir de Dakar, Luiz Gonzaga Ferreira ia informando Bissau e o MNE. Os Estados Unidos não sabiam muito bem quem apoiar, a URSS, nessa época, fazia ainda um jogo duplo entre o FLING e o PAIGC. Este, tinha já em preparação um vasto conjunto de quadros e prepara a sublevação do Sul da Guiné. Os argumentos de uma autonomização progressiva, entregando a Guiné aos guineenses terá seduzido Salazar que aceitou o jogo do diplomático que secretamente era tecido em Dakar por um jovem que iniciava a sua carreira.

Segundo, o enredo negocial urdido passou por captar as simpatias dos altos dirigentes senegaleses para uma situação que impedisse abrir o flanco aos grupos esquerdistas senegaleses, sempre prontos a ver armados os nacionalistas guineenses e cabo-verdianos. A partir do momento em que cortou relações ao nível da embaixada, Senghor teve que fazer uma escolha e fê-la: secretamente, começou a pedir empenho ao governador Peixoto Correia para criar uma atmosfera de aceitação da UNGP em Bissau. Ao longo de centenas de páginas, o embaixador Luiz Gonzaga Ferreira descreve os altos e baixos do regime de Senghor e o equilíbrio que este procurava manter entre o “sonho revolucionário” e uma África independente dialogante com o mundo ocidental. Um simples cônsul move-se entre nacionalistas, dá uma opinião favorável à constituição de uma frente independentista pacífica, descreve demoradamente a actuação dessa miríade de movimentos, na maioria dos casos sem nenhuma representatividade e o apoio dado ao grupo de Pinto Bull que era, segundo o autor, maioritariamente apoiado na época pelos guineenses que viviam no Senegal.

Também, a acreditar no que escreve o autor, é patente que o PAIGC era altamente contestado pela comunidade cabo-verdiana do Senegal que não via com bons olhos o mesmo Estado numa unidade em que não se reconheciam. Neste ponto, estamos perante uma leitura excepcional, pois é possível decepcionar como esta UNGP constituiu a última oportunidade de ter evitado, segundo o autor, a luta armada bem sucedida que o PAIGC desencadeou a partir de 1963.

Terceiro, qualquer possibilidade de ter havido uma Guiné independente multipartidária, dirigida por guineenses, desapareceu com o discurso de Salazar de 12 de Agosto de 1963. Num curto parágrafo deitou tudo por terra, ele que apoiara a negociação com a UNGP ao dizer: “Que todos o saibam – em nenhum momento e sob que pretexto, jamais parcela alguma do território nacional e nenhuma parte da soberania nacional serão alienadas”. Igualmente, no terreno das hipóteses, a proibição desta autonomia deitou por terra outras soluções em Angola e Moçambique. O pano caiu nesse dia. Em Adis Abeba nasceu a Organização da Unidade Africana, o nacionalismo africano entrava na rampa de lançamento, todas as soluções moderadas se tornaram questionáveis, indesejáveis.

Há, por conseguinte, todo o interesse em fazer o registo desta obra como documento singular onde são desveladas todos as iniciativas que precederam soluções pacíficas para a independência da Guiné.

(Continua)

(*) Embaixador Luiz Gonzaga Ferreira, uma carreira que se iniciou em Dakar, que passou pelo Congo, Líbano, Cuba, Bruxelas e Bulgária.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6857: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (5) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6866: O Nosso Livro de Visitas (97): José Pinto Ferreira, ex-1º Cabo Radiotelegrafista, CCS/BCAÇ 237 (Tite, Julho de 1961 / Outubro de 1963): Evocando o lendário Cap Curto (CCAÇ 153, Fulacunda, 1961/63)


Vila Real > Agosto de 1963 > CCAÇ 153 (Fulacunda, 1961/63) > O regresso a casa... Na foto, o 1º pelotão... Repare-se no fardamento, o caqui amarelo...

Foto:  Cortesia de João Baptista (2008), autor do blogue Fulacunda (entretanto falecido)

1. Mensagem do nosso leitor José Pinto Ferreira


Data: 13 de Agosto de 2010 23:18
Assunto: Memória Viva (Postes 2752, 3717, 3724, 3726 e 3731 (*)

Caros amigos:

Permitam-me que os trate assim. Chamo-me José Pinto Ferreira, fui nascido, baptizado e criado até aos 14 anos na freguesia de Ariz, concelho de Marco de Canaveses. Após aquela idade fui pregar para outra freguesia à procura de mais e melhores oportunidades de conquistar um futuro mais apetecível.
Já crescidinho regressei à terra natal onde resido, actualmente na Rua do Canto, nº 38,  4625-037 Ariz, Marco de Canaveses, com o telefone nº. 255589702, e em alternativa o telefone em horário laboral, nº.255589380.

Feita esta apresentação, um pouco corriqueira, vamos ao que me interessa colocar-vos à consideração e que entendi titular de Memória Viva.

Fui militar, classe de 1959. Pertenci á Arma de Engenharia, Batalhão de Transmissões , tendo sido telegrafista no R.E.2,e posteriormente no Centro de Transmissões do Quartel General da 1ª. R.M., nos anos 60/61. Neste Centro de Transmissões fui escravo da especialidade que tinha, trabalhando de noite e dia, com prevenções sucessivas como quando do assalto ao Santa Maria.

Em Julho/61 fui para a Guiné integrado no Comando do BCAÇ 237,aquartelado em Tite até Outubro/63.

Depois do que acima fica dito, quero dizer-lhes que a Guerra da Guiné merece ser contada sem paixões nem vaidades. Quase diariamente corro a persiana e espreito a janela do Vosso Blogue, o que me permite dizer ter a opinião de alguma crítica ao que é dito nos Postes referenciados.

Fui telegrafista muito activo ao serviço do Comando do BCAÇ 237, o que me permitiu assimilar algumas verdades nunca desmentidas. Dito isto, peço que aceitem e reflictam no que se diz nos Postes acima referidos:

(i) O Comandante da CCAÇ 153 foi o Capitão José dos Santos Carreto Curto, aquartelado em Fulacunda. Era um oficial corajoso, visto como inimigo fidalgal pela Rádio Conakry. Nunca terá cortado cabeças a ninguém, mas tão só sido acusado injustamente de um acto menos digno que terá sido praticado por um seu subordinado no IN, morto quando fugia para o Rio. ACTOS REPELENTES, sem confirmação,  não devem ser credibilizados.

(ii) Mudando o tema, quero dizer que as tropas que foram para a Guiné a partir de 1961 também eram portuguesas. Não tiremos a Verdade à História e saibamos com humildade dignificar os que foram antes, mas também os que partiram depois.

(iii) Para terminar digo-lhes que até hoje não me apercebi que alguém tenha referido o ex-Comandante Militar da Guiné, Coronel Bessa. Este Comandante visitou Tite em Janeiro/63, dia seguinte ao ataque do Quartel [23], tendo sido afrontado pelo Comandante do BCAÇ 237,  José António Tavares de Pina, de que ou resolvia rapidamente o problema da falta de meios humanos do Batalhão, ou arreava ferros e os seus homens fariam o mesmo.

Adeus,  Amigos

Até Sempre (**)

2. Comentário de L.G.:

Já em tempos, mais exactamente em 23 de Abril deste ano, fui contactado,  por telefone, pelo José Pinto Ferreira,  natural de (e residente em) Marco de Canaveses, concelho com o qual de resto tenho afinidades, pelo casamento e pela amizade. No essencial, o José Pinto quis dar-me alguns esclarecimentos sobre o Cap Inf José Curto, comandante da CCAÇ 153 / BCAÇ 237, subunidade que estava sediada em Fulacunda, aquando do ataque a Tite em 23 de Janeiro de 1963, data tradicionalmente tida como a do início da guerra na Guiné.

Sobre a lenda do então Cap Inf José Curto (de que eu própio me dei conta na visita que fiz ao Cantanhez, no início de Março de 2008, aquando realizaçãodo Simpósio Internacionalde Guiledje, Bissau, 1-7 de Março de 2008), o ex-1º Cabo Radiotelegrafista contou-me o que sabia, nestes termos:  houve um guerrilheiro que foi morto, já lá as bandas do Cantanhez, num ataque de surpresa a uma das barracas do PAIGC. Ao que parece, era um tipo importante da guerrilha, que estava no ínicio da sua organização, e que foi reconhecido pelo guia ou por um caipaio. Estávamos no início da guerra, com todo o sul já polvorosa. Um militar da companhia terá, à revelia, do seu comandante,  decepado o cadáver, para trazer, para Fulacunda,  uma prova da sua eliminação física.

Este terá sido o princípio da lenda... O capitão passou a ser o diabo, o terror do sul da Guiné, segundo a Rádio Conacry. Para o José Pinto, o capitão José Curto era um militar corajoso que foi apanhado pelo eclodir da guerra de guerrilha no sul (Regiões de Quínara e Tombali), e para a qual as NT estavam muito pouco ou nada preparadas, em termos humanos, psicológicos e militares... O raio de acção da sua companhia ia de Fulacunda a Cacine (onde tinha um Grupo de Combate!).

 Atenção: ele, José Pinto,  não presenciou este acto, "ouviu contar" à malta da companhia (que pertencia ao mesmo batalhão)... Fiquei de voltar a falar com ele, desta vez pessoalmente,  em Ariz, o que até agora ainda não se proporcionou... Recebo agora este mail em que ele volta a reabilitar a memória do Cap José Curto (hoje general reformado, ao que ele me diz).

Fico na dúvida se o José Pinto quer integrar a nossa Tabanca Grande. Se sim, faltam-nos as duas fotos da praxe. Terei muito gosto em inscrevê-lo como membro do nosso blogue, para mais sendo um homem da minha segunda terra. Fico, pois, à espera de notícias. Entretanto, para a semana talvez o possa encontrar pessoalmente.

Ao nosso blogue interessa apenas a verdade dos factos. Como é nossa norma, não fazemos juízos de valor sobre o comportamento, individual, de nenhum combatente da guerra colonial na Guiné, muito menos dos nossos camaradas operacionais (de soldado a capitão).

Sobre o episódio acima narrado, tenho uma outra versão, mais consistente e válida, de um graduado da própria  CCAÇ 153, e que estava com o seu comandante, Cap Inf José Curto,  nesse dia e local, e que portanto é uma testemunha privilegiada. Sei que, depois do regresso à metrópole, em meados de 1963, o pessoal da CCAÇ 153 nunca conseguiu reunir-se e muito menos com o seu comandante, sobre o qual de resto esse graduado confirma a opinião do José Pinto de ser um "oficial corajoso".

O nome deste camarada não será divulgado. Poderá no entanto vir a integrar a nossa Tabanca Grande, no caso de aceitar o meu convite. Até à data só tínhamos notícia do João Baptista, Fur Mil da CCAÇ 153, e açoriano, autor do blogue Fulacunda, mas infelizmente já  falecido há um ou dois anos.
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Notas de L.G.:

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6865: As minhas memórias da guerra (Arménio Estorninho) (16): A chegada à Guiné e a terras de Ingoré

1. Mensagem de Arménio Estorninho* (ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, CCAÇ 2381, Ingoré, Aldeia Formosa, Buba e Empada, 1968/70), com data de 9 de Agosto de 2010:

A chegada à Guiné e a terras de Ingoré, da qual irei narrar singelas “estórias”, também fazem parte do puzzle do historial da CCaç 2381 “Os Maiorais.”

Em 06 de Maio/68, deu-se a chegada do Navio T/T Niassa a Bissau e o desembarque das tropas. Por sua vez a CCaç 2381 fez transbordo para a LDG 101 “Alfange” que zarpando e navegando para norte, ao largo da costa, seguiu com destino a São Vicente - Ingoré. Entrando no Rio Cacheu, na noite do dia 07 para 08 de Maio, avistamos a localidade de Cacheu com a sua iluminação. Prosseguindo, deparamos com o Cais de São Vicente pelas 07h30m. Neste acontecimento que ficou na memória de todos nós, ninguém se encontrava a aguardar-nos e tendo-se dado o desembarque apressadamente, dando como motivos o posicionamento do movimento de maré e a preocupação da manobrabilidade da LDG 101 “Alfange,” conjugando com a segurança da navegabilidade no rio Cacheu, a fim de ir ainda a tempo de abicar no Cais de Barro.

Foto 1 – Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Rio Cacheu > LDG 101 “Alfange” em manobras para abicar.
Fonte da imagem: Arquivo do Museu da Marinha, sendo solicitada ao tempo a sua extracção de Reservanaval.blogspot.com e colocação, com a cortesia do Camarada Lema Santos (MLS)

A LDG 101 “Alfange” não conseguira chegar a S. Vicente no dia 7 de Maio, como programado, dado ao acerto da conjugação da maré durante o dia.
Por sua vez os elementos da CCaç1801, que deviam receber-nos já estavam saturadas de esperar, fazendo-se noite receberam instruções para regressarem a Ingoré.

O Comandante da LDG 101 “Alfange” 1.º Tenente José Manuel C. Passos, antes de reiniciar a viagem informou que de Ingoré já sabiam da nossa presença e vinham a caminho ao nosso encontro.

Assim, o pessoal da CCaç 2381 espraiara-se na margem direita do rio Cacheu pela estrada que lhe fica adjacente (foto 2). Da situação de isolamento deparada, o Comandante da Lancha facultara dois cunhetes de balas de G3 e se algo mais houve foram granadas de mão, por caricato eu também tinha oito balas as quais retirara aquando da minha passagem pela carreira de tiro na Carregueira, sentindo-me dentro de uma certa segurança (depois conclui que aquilo era manteiga no focinho de um cão). Se o In soubesse éramos todos apanhados à mão.

Foto 2 – Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Ingoré > Cais S. Vicente em 1998 > Local onde a companhia espraiou-se, na margem oposta era terra do In (Mata do Canchungo – Teixeira Pinto). Ao tempo não existiam aquelas moranças.
Imagem extraída do Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné, I Série DXCVI, foi solicitado o uso, com a devida vénia ao camarada Francisco Allen.

Estamos isolados, são cerca das nove horas e começamos a ouvir o roncar de viaturas, depois vimos chegar os “nossos protectores” elementos da CCaç 1801 que vieram tirar-nos de um pesadelo. Ala que se faz tarde, todos embarcamos. Pelo caminho foram feitos tiros de G3 a gazelas, antes de passarmos por Antotinha (Tabanca em construção de reordenamento da população) a caminho de Ingoré.

Chegados a Ingoré, seguiu-se a expectativa e a devida acomodação da companhia. A quase todos foram servidos colchões de sumacimento, uma manta e dois lençóis. Com a manta fiz um catre, por isso tendo-a danificado. O meu amigo Cabo Quarteleiro queria o pagamento da mesma aquando da entrega, mas  foi fintado por uma troca.

Após a chegada, em dia que a companhia efectuara escolta a uma coluna auto a Sedengal e a Barro, fora-me solicitado para montar uma roda num Unimog, então pedi ferramenta, mas de momento não havia um macaco mecânico na oficina. Estava a começar bem, porque o único de que havia seguira na coluna auto.

E agora foi tentar desenrascar-me tanto quanto possível, utilizando pranchas fazendo-as de alavancas com a colocação de contra pesos. Levei cerca de duas horas para executar aquele trabalho, que normalmente com equipamento adequado levaria apenas dez minutos.

A situação desenrolara-se num barracão que se localizava na rua principal em frente ao Aquartelamento, tendo sido presenciada pelo Comandante da CCaç 1801, Capitão de Inf. José Daniel B. Adão, que ali se encontrava numa pequena secretária fazendo as suas anotações. Vendo aquela tarefa e não me conhecendo, perguntara o que ali estava fazendo e se era da sua companhia, porque estava queimado do Sol. Tendo-lhe dito que era periquito, e como era algarvio, desde Março sempre que possível fazia praia. Quanto ao serviço era a montagem de uma roda que se apresentava morosa, devido à falta temporária de um macaco para levantar o Unimog. Olhara-me de soslaio “quem é este artista”, mas concordou comigo.

Foto 3 – Guiné-Bissau > Região de Cacheu >  Ingoré > 1968 > Em horas de ócio, a minha primeira foto na Guiné, sentado num cadeirão. Este deverá ser o que está na foto do José M. Ferreira, tirada em Ingoré 1963/4 (P6792).

Na tropa há de tudo, certo dia na caserna aparecera um Soldado da minha companhia vindo todo lavado em lágrimas “de baba e ranho", termo algarvio, lastimando porque a sua mulher lhe escrevera dizendo que tinha o filho muito doente e precisava de 2.000$00 para tratamentos. Porque levou mais de meia hora a choramingar, convencido da sinceridade do artista, como bom samaritano, contribui com um empréstimo de 500$00 (ele nunca disse que não me pagava, mas como foi evacuado...). Ao que me contaram o pobre do homem tem mãos ágeis e vai tratando da sua “vidinha” na baixa do Porto.

Em fins de Maio/68, o In actuou do lado da fronteira tentando referenciar Ingoré com uma manobra de diversão, enviando espaçadamente várias granadas de armas pesadas, as quais caíam distante. Pretendiam assim aliciar as NT de forma perspicaz, não tendo sido ripostado por ordem do Comando, por este ter em conta que não havia noção do local de saída de fogo In, e por palpite seria um desperdício de material.
De manhã partiu uma patrulha de reconhecimento e foi referenciada a posição In.

Foto 4 – Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Ingoré > 1968 > Eu junto da Caserna onde estava hospedado.

Da situação havida serviu para criarmos experiência, recebendo instruções do comando e dos velhos (CCaç 1801), na procura de um abrigo, a forma de proceder e já foi muito “atão… atão.., atão… atão..!” expressão algarvia.

Em 09 de Junho/68, a CCaç 2381 (2 GCOMB), a CCaç 1801 (1 GCOMB) e 1 Secção de Milícias, efectuaram uma acção de reconhecimento na fronteira com o Senegal sendo feitos quatro prisioneiros (prescindiram de dois dada a sua idade avançada).

Chegados a Ingoré, um dos prisioneiros fora colocado numa pequena cela, falava-se que quando lhe levaram comida atirara um balde “penicada”aos militares em serviço, e o Cabo reagiu disparando a G3, mas tendo dito que foi por tentativa de fuga. Se eu fui ao local e vi no pavimento porcaria, frutos do caju e furos na porta da cela feitos por balas, assim estaria esta fechada ou foi para simular um álibi. Eu pergunto, daquela forma como poderia efectuar a fuga. O segundo fora algemado, preso com a uma corda e havendo um vigia, depois fora enviado para Bissau e nada mais se soubera.

Na noite de São João de 1968, houve fanfarra e marcha (foto 5), fora organizada por Camaradas da CCaç 2381, com instrumentos de ocasião e da minha parte dava fracos acordes com uma guitarra portuguesa. Pela surpresa a população de Ingoré veio à rua aplaudindo e os camaradas mais velhos levaram-nos de tolos.

Foto 5 – Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Ingoré > 1968 > A Fanfarra e Marcha de São João, era constituída por Furriéis e Praças da CCaç 2381.
A devida vénia ao Amigo e Camarada Zé Teixeira, que é o primeiro a contar da direita.

Também no dia 23 de Junho/68, fiz serviço de ronda aos postos de sentinela instalados na periferia da Tabanca, era por turnos e com visitas nos intervalos das rendições, fazendo-o montado em cima de uma auto-metralhadora Daimler, era necessária muita astúcia dada a fraca estabilidade e a má condução que esta viatura oferecia.

No norte da Guiné havia uma endemia da doença do sono, trata-se de uma parasitose que entra na circulação do sangue quando uma picada da mosca Tsé-tsé contaminada e que progride rapidamente. Ao tempo era irreversível, não havia medicação para a sua terapêutica, levando o infectado à morte em poucas semanas. Tendo observado um milícia que deambulava por Ingoré, apresentando os sintomas de psicose da fala e dos movimentos.

Por várias vezes efectuei serviço de mecânico auto das viaturas que estavam adstritas aos grupos de combate e operários que diariamente eram escalados para segurança e trabalhos de construção do reordenamento da população em Antotinha.
Em 09 de Julho/68, após a última vez que nesse local fiz serviço, quando já era noite, grupo In acercou-se da dita obra em construção sem qualquer oposição, montando sistema de dinamitação e fizeram um esfrangalhasso.

Foto 6 – Guiné-Bissau > Região do Cacheu > Ingoré > 1968 > Estou a simular a pontaria com a Metralhadora Pesada Browning, arma de calibre 12,7mm que pode usar munições para vários fins. Antes tinha sido reparada pelo 1.º Cabo Mec Armas, Acácio da Silva (na foto) com o meu apoio.
Camarada José M. Ferreira, concordo contigo, por conseguinte não se trata da arma Breda (Comentário P6792).

Durante o período de permanência em Ingoré, a CCaç 2381 efectuara treino operacional com o apoio CCaç 1801, tendo ficado posteriormente como companhia de intervenção do COMCHEF.

Em 18 de Julho de 1968, a companhia embarcou na LDG 101 “Alfange,” no Cais de São Vicente - Ingoré com destino a Aldeia Formosa, via Buba.

Com um grande abraço
Arménio G.F. Estorninho

Ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas
CCaç 2381 “Os Maiorais”
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 11 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6844: As minhas memórias da guerra (Arménio Estorninho) (15): Buba, quotidiano, deveres e desenrascanços

Guiné 63/74 - P6864: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (18): A (mu)dança das bandeiras em Fajonquito, em 1974


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > Antigo quartel das NT > 2010 > Visita do Cherno Baldé e família > Local onde era o salão de futebol de cinco e a Casa (comercial) Ultramarina onde era a messe dos oficiais


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > Antigo quartel das NT > 2010 > Visita do Cherno Baldé e família > Inscrição da CCAÇ 2435, a companhia que construiu o aquartelamento em 1969


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > Antigo quartel das NT > 2010 > Visita do Cherno Baldé e família > Local onde estava situado o poste da bandeira; à esquerda as ruínas do refeitório com a padaria


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > Antigo quartel das NT > 2010 > Visita do Cherno Baldé e família > O antigo forno na padaria


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > Antigo quartel das NT > 2010 > Visita do Cherno Baldé e família >  Posto de vigilância permanente equipado com uma metralhadora.


Bissau > 2006 > Futuros jogadores (Yussuf e Domingos Baldé).

Fotos (e legendas): © Cherno Baldé (2010). Todos os direitos reservados


1. Mensagem de 24 de Julho p.p., enviada pelo Cherno Abdulai Baldé

Assunto: Envio de mais uma crónica sobre Fajonquito

Estimado amigo e irmão Luís Graça,

Venho, como tem sido hábito, enviar mais uma crónica fazendo parte das minhas memórias de infância.

Estive, há poucos dias, em Fajonquito, com as crianças que já reclamavam uma visita aos locais citados na crónica sobre Canhamina: Surumael, Djunkoré e os seus djinés, o recinto da antiga mata dos poilões e o quartel de Fajonquito de cujas imagens aproveito para enviar algumas.

A crónica de hoje trata do período de transição para a independência e algumas turbulências e contradições que o acompanharam. Vejam se gostam e se não gostarem também digam. Espero não ter sido ousado demais e ferir algumas sensibilidades.

Um grande abraço,
Cherno Baldé (Chico de Fajonquito)

2. Memórias do Chico, menino e moço > A MUDANÇA DAS BANDEIRAS (1974)
por Cherno Baldé

(i) Os sinais de uma mudança anunciada

Em Fajonquito, o período entre o mês de Junho a Agosto de 1974, tinha sido marcado pela chegada de uma nova companhia (BCaç 4514/72), conhecida entre nós como a companhia de Gadamael; a visita dos primeiros elementos da guerrilha e a saída definitiva das tropas portuguesas de Fajonquito. 

Período rico em acontecimentos, manifestações de apoio e festas, que algumas vezes assumiam formas dramáticas e outras simplesmente cómicas, mas foi sobretudo um período de indefinição, de ansiedades e de questões sem resposta, relativamente ao futuro.

No plano pessoal, tinha conseguido em Contuboel, um bom resultado nos exames da 4.ª Classe que fechavam o ciclo do ensino primário. Não fizemos nenhuma festa, porque o nosso capitão, Sambaro Djau, tinha reprovado nos exames. Para mim, isto representava uma bela “revanche”, pois, com mais de sete anos de serviço no grupo, e estando sempre na linha da frente, o melhor que tinha conseguido era a frustrante patente de 1.º cabo. Quase nada.

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Para as pessoas mais atentas, sempre há um prenúncio que serve de sinal para o que acontece a seguir. Entre os fulas são os chamados “dillé”. Assim, a queda repentina de uma pessoa adulta, a recepção na cabeça de excrementos de uma ave (se for de um Jagudi pode trazer consigo a marca de uma desgraça) etc., são sinais a ter seriamente em conta. 

Para mim, este sinal tinha sido uma informação que poderia ser muito importante não estivesse fora do seu contexto normal e transmitida por Marques, soldado operacional do 2.º Pelotão da CCAÇ 3549 (Deixós-Poisar), de forma clandestina a uma criança ainda inocente, logo a seguir ao assassinato de Amílcar Cabral em 1973.

Encontrou-me perto do salão preparando-se para mais uma partida de futebol com os colegas e, pegando no meu braço, afastou-me um pouco do grupo como sempre fazia quando queria falar comigo a sós. Fazendo parte dos meus admiradores, habitualmente, o tema era sobre futebol, desta vez, e sem qualquer preparação prévia, falou-me assim:

- Chico, olha que o vosso padrinho morreu, pá!

Não tendo percebido e, pensando que se tratava de algum acidente relacionado com os meus amigos, particularmente ao meu turbulento patrão Dias, condutor auto, perguntei:

- Qual dos meus padrinhos é que morreu, o Dias?

- Não,  pá, é o Cabral.

Eu não conhecia nenhum Cabral, nem de perto nem de longe, que pudesse ser meu padrinho, o Marques, pressentindo que iriam chover as perguntas, olhando para os lados como se estivesse com medo de alguém, afastou-se para o refeitório sem mais explicações, deixando-me coberto de perplexidade. Teria sido um simples desabafo e mais nada. Não me preocupei mais com isso, alias, era um grande alívio, afinal de contas, não tinha nenhum amigo com esse nome. No entanto este seria o tal sinal de aviso premonitório

Partindo desse pressuposto básico, na minha opinião, é mais fácil compreender o desenlace final que se seguiu ao 25 de Abril quando os portugueses muito apressadamente entregaram tudo, sem condições, sem contrapartidas


(ii) Os recados vindos de Oio ou a delegação que voltou bredouille

Quando se tornou claro para toda a gente que, com a partida das tropas portuguesas os guerrilheiros do PAIGC seriam os novos mestres do terreiro, dentre a população civil começou a ser delineado um plano de contacto e de recepção. 

Os fulas, maioritários, conscientes da alteração de forças e das novas condições que se desenhavam, da sua postura perante a guerra e face a uma guerrilha praticamente desconhecida, solicitaram aos seus vizinhos mandingas para que fossem eles a tomar a dianteira e servissem de porta-vozes da aldeia. Com essa táctica, pensavam poder sondar sobre as reais intenções da guerrilha e o que se escondia sob a etiqueta das bonitas palavras de “liberdade e unidade nacional”. Ė o que se poderia chamar “o jogo da lebre contra a perdiz” nos contos africanos.

Esta iniciativa tinha sido rapidamente apropriada por Ansumane Sissé,  um ex-guerrilheiro arrependido,  que, mais tarde soubemos, fazia um jogo duplo entre as duas partes em guerra, tinha beneficiado de apoios para a sua instalação e reinserção no quadro da política de (des)mobilização dos quadros do PAIGC, mas também mantinha os contactos com a guerrilha, fornecendo, de vez em quando, algumas informações. Não fosse o diabo tecê-las.

Embarcados num veículo de um comerciante local, os dignitários seguiram com destino a região de Oio, zona de Caresse, onde eram conhecidas as bases dos guerrilheiros. Dentre os numerosos candidatos, foram seleccionados apenas alguns ao critério e gosto do Sr. Ansumane, que, repentinamente, tinha assumido o estatuto de líder, fazendo valer os supostos conhecimentos e contactos que possuía. Depois de muitos anos de supremacia fula e dos seus patrões portugueses, parecia ter chegado, finalmente, a hora do ajuste de contas.

O meu pai, como muitos outros, não tinha sido escolhido e esta notícia tinha caído como uma bomba na sua cabeça de homem sensato e precavido. Lembro-me ainda do seu olhar vazio, algo aturdido e descontrolado, caminhando cabisbaixo e alheio a tudo, arrastando na estrada de terra vermelha e poeirenta o seu duplo “bubu” azul celeste bordado e suas “babuchas” árabes de cor branca, consumindo-se na preocupação engendrada pela precariedade e incerteza da situação. 

Por ironia do destino aqueles que até então eram os bandidos seriam agora os senhores. “Quem pode compreender as partidas que a vida nos prega, hein?” Estaria ele a pensar. Em casa ele tinha, pelo menos, dois retornados para proteger e sustentar, um antigo leopardo ferido de insónias e um gato preto já sem unhas, isto, sem falar do resto da família. O pior seria a humilhação pública de ser obrigado a fugir.

A delegação voltou ao pôr-do-sol e, ao contrário do que se esperava, não tinham regressado ao som dos tambores, flautas e nhanhero1 e logo que chegaram dispersaram-se,  desaparecendo nas sombras nocturnas das estreitas varandas de palhotas húmidas do mês de Agosto. Aos mais curiosos respondiam:

- “Disseram-nos para ficarmos quietos e esperar, no momento certo eles virão ter connosco”.

Na verdade, eles nem sequer tinham sido recebidos e por um triz não foram presos por invasão de zona de guerra, ainda repleto de minas. Teriam sido energicamente repreendidos pela sua precipitação e insensatez e, por fim, foram encarregues de transmitir a toda a população que, na óptica do partido e dos seus dirigentes, não havia cidadãos de primeira e de segunda, que o objectivo da luta armada era libertar o povo da dominação colonial e da opressão fascista e não trocar esta por outra com pessoas diferentes, por outras palavras, não havia diferenças entre fulas e mandingas, todos seriam tratados da mesma maneira, iguais perante a lei com direitos e obrigações para cumprir.

Por outro lado, o Ansumane não tinha obtido o reconhecimento que todos esperavam. Assim, as nuvens negras do céu tinham-se dissipado um pouco para dar lugar a um horizonte mais claro, mesmo se ainda era cedo demais para dançar. 

Importa dizer que esta informação foi salutar e teve o condão de evitar a situação de debandada geral que já se pressentia dentro da comunidade fula. O gado, principal riqueza da comunidade, já estava posicionado, havia muito tempo, perto da fronteira com o Senegal.
_________

1 - Instrumento de musica tradicional dos fulas feito de fios de cabelo extraídos do rabo de cavalo.


(iii) A chegada dos guerrilheiros

Passaram-se dias e semanas e quando menos se esperava, foi anunciada a chegada dos guerrilheiros que devia acontecer para os lados de Oio/Caresse, zona donde se esperava que viessem, naturalmente. Toda a aldeia saiu para assistir à  chegada mas, era falso alarme. No sítio indicado não estava ninguém.

Passados alguns dias, foi feito o mesmo anúncio mas, já metade da aldeia estava na dúvida e preferia esperar pela confirmação. Desta vez, efectivamente, estavam lá e, não era do lado de Caresse (oeste) mas do lado sul (Bairro Mandinga de Morcunda), donde menos se podia esperar. Tratava-se de uma táctica da guerrilha, simples diversão ou prudência de quem ainda não acreditava na sua sorte? Talvez fosse tudo isso ao mesmo tempo.

Rapidamente a notícia correu pelas aldeias da redondeza, as pessoas afluíram em massa. Crianças, jovens, mulheres, velhos; todos queriam ver a gente do mato, aliás, os “bandidos” agora convertidos em heróis da libertação nacional. Depois de todas as campanhas de desinformação do regime colonial, o que vimos era simplesmente inacreditável. Afinal, eram pessoas normais, como nós, dos pés a cabeça. Não tinham rabos como os animais, nem chifres como imaginamos os diabos. Encontrámo-los, alguns sentados, outros de pé, dispersos debaixo da sombra das mangueiras. Cabeludos, magricelas, olhos vermelhos, uma expressão visual que se situava algures entre o homem e o animal.

Exceptuando as armas e os uniformes que traziam, eram exactamente iguais aos prisioneiros que tínhamos visto no quartel alguns anos antes (na altura a população civil era muito céptica quanto ao serem verdadeiros “Paigecistas” inclinando-se mais para a ideia de que seriam, quando muito, cortadores de chabéu, perdidos entre as remotas aldeias oincas no mato de Caresse). 

Controvérsia a parte, aqueles prisioneiros, de facto, não estavam fardados e o aspecto esfarrapado, nauseabundo, mais metia dó que medo. Sempre que podíamos, metíamos algumas coisinhas por baixo das paredes de chapas que serviam de celas, com o nariz apertado entre os dedos. Porém, entre nós, nem todos partilhavam o mesmo sentimento e havia quem aproveitasse a ocasião para dar umas pisadelas nas mãos esfomeadas que apalpavam a terra e o ar a procura do abençoado pedaço de pão. Tinham fome.

- Quem são estes, os cubanos? 
- perguntava alguém ao vizinho do lado. Sem resposta.

- São estes que nos metiam tanto medo!? - comentou, incrédula, uma mulher fula que trazia ao colo uma criança, tendo no corpo apenas o pano amarrado até a cintura pondo a mostra os seios usados, elásticos, espalmados sobre o ventre (é uma pena o “nós Alfero” não ter passado por aqui).

- Não se iluda mulher, no mato, cada um destes bandidos vale por dez 
- explicou  o Quéta “chauffeur”, antigo companheiro do Tenente Jamanca.

Os homens que se apresentaram eram poucos, (um bigrupo?) e pareciam ser mais altos do que eram na realidade, como os corredores de fundo. O comandante era um homem de etnia mandinga, de meia-idade, alto e simpático que logo cativou as atenções, vindo a revelar-se um excelente orador. 

Ele mudou os hábitos da aldeia. As suas reuniões de presença obrigatória não demoravam menos de 12 horas, o que lhe valeu a alcunha de Presidente Seku Turé. Quando as pessoas eram convocadas, diziam as suas mulheres: “Mariama, prepare a comida de manhã cedo, porque vamos a reunião de Seku Turé”. No decorrer das longas reuniões do partido, aqueles que pediam para ir satisfazer alguma necessidade fisiológica, mulheres inclusive, eram acompanhados por homens armados. Começávamos a colher os frutos da verdadeira independência bem à moda dos movimentos de libertação em África.

Os guerrilheiros usavam uniformes castanhos ou cinzentos (pontilhados de pequenas formigas pretas). Eram diferentes dos sarapintados que estávamos habituados a ver. Pareciam novos e os corpos magros, quase esqueléticos, particularmente dos fulas, nadavam dentro dos uniformes o que dava a sensação de que não estariam lá muito habituados a usá-los. 

A maioria tinha nos pés sapatos de cor castanha, feitos de um tecido duro e resistente, amarrados com cordel. Eram leves e combinavam bem com a cor das fardas. Alguns deles usavam, ainda, plásticos simples comprados, talvez, no Senegal. Não havia muito rigor no fardamento. Os seus olhos, esses, eram muito vivos e penetrantes, em alerta permanente, com as armas ao alcance das mãos. Pela primeira vez, víamos com os nossos olhos, a famosa RPG7.


(iv) A atracção pela metrópole

Mais tarde, quando a retirada do que restava das tropas portuguesas já era iminente, um outro soldado, mecânico-auto, o Jorge, da companhia de Gadamael, ofereceu-me o livro que seria o primeiro da minha vida, cujo título era: “inglês sem mestre” sob um fundo de tiras azuis e vermelhas cruzadas. 

Fiquei com vergonha de dizer que não o conseguia ler. Esta oferta tinha mexido comigo e tinha-me incitado a aprender a ler. Na época, não sabendo interpretar o seu conteúdo, ofereci-o ao meu irmão mais velho que estava mais avançado na escola e que o levaria consigo na sua primeira viagem de estudos a Portugal em 1980. Com ar muito triste e lamentando a nossa sorte,  o Jorge disse-me naquele dia:

- Olha, Chico, nós vamos embora, os “turras” vão tomar conta disto e são capazes de matar a todos, se quiseres ir comigo eu falo com o teu pai.

- Não, nós vamos dar-lhes as nossas vacas e ficamos em paz - respondi-lhe, rindo.

Não tinha reagido a sua oferta, como se não tivesse percebido, na realidade não estava interessado. Durante todo o tempo que passamos no quartel entre os portugueses, a informação que tínhamos da metrópole era muito escassa, dispersa, esporádica, idílica, feita principalmente de imagens de meninas brancas, cor da neve, anjos do céu, exibindo-se no jardim de Éden com os seus vestidos “volantes” (cheira bem… cheira a Lisboa!), docemente embaladas pelo fado da Amália e o trepidante futebol do Benfica de Eusébio da Silva Ferreira, o Pantera Negra, mas era, apesar de tudo, um país de brancos.

A ideia de viver, de forma permanente, no meio dos brancos e suas esquisitices não me seduzia muito, pese o facto de gostar infinitamente dos seus frangos gordurosos, da batata inglesa, do bacalhau salgado e do cheiro dos chouriços vermelhos (Alláh, o clemente e misericordioso, me perdoará por esta pequena fraqueza humana). 

Mesmo supondo que eu quisesse ir, de certeza que a minha avó não mo permitiria. Ela era o meu anjo da guarda e tinha horror aos soldados, com as suas orelhas vermelhas e seus modos libertinos. “Os brancos não respeitam a idade”, dizia. “Se não, como é que se explica que os chefes (os oficiais) sejam mais novos que os subordinados?”. A vista dos soldados, ela fugia e se entrincheirava dentro da sua palhota.

Entretanto, a sua neta, nascida em tempos de Guiné- melhor do seu único filho varão, passava horas a fio a namoricar, mesmo a porta, com um malandro de orelhas vermelhas que só aparecia envolto na escuridão da noite.

Mas, o verdadeiro motivo porque não fui tentado em viajar para a metrópole, estava ligado à forma de lá chegar. Tinham-nos informado, de fontes seguras, que a única forma de uma criança entrar no navio e fazer a viagem era estar metida dentro de um caixão como faziam com os periquitos ou outros animais de estimação. A minha ideia sobre o assunto era clara e firme. Viajar metido num caixão era não, nunca e jamais. Podiam ficar com todas as sardinhas da Europa.

No fundo, também, não acreditava muito nas afirmações do meu amigo Jorge pois, os germes do nacionalismo que tinham conquistado terreno no inicio dos anos 70 e a propaganda que tinha antecedido a entrada do PAIGC já estavam a fazer efeito na consciência de muitos guineenses que não estavam seriamente comprometidos com a guerra. 

O meu caso não era isolado pois, mesmo entre as pessoas adultas e que tinham servido na guerra e estando agora desmobilizadas como o Mamadu Baldé (mais conhecido por Mamadu Senegal, antigo chefe de milícias, originário do Senegal, citado numa das narrativas de José Cortes), e muitos outros naturais da zona encontravam-se no meio das pessoas que foram receber os guerrilheiros, num ambiente de festa e confraternização.

Depois da primeira visita, vieram mais outros grupos vindos de outras “barracas” (acampamentos), recebidos sempre com o mesmo entusiasmo pela população civil e militares portugueses e, no meio disso tudo, podia-se notar um facto bem curioso, a meu ver. Pela forma como os recebiam e se congratulavam, trocando pequenos presentes e “lembranças”, os soldados portugueses pareciam muito mais satisfeitos com o fim da guerra do que os guerrilheiros. 

Talvez pela primeira vez na história dos conflitos armados, um dos beligerantes que, para todos os efeitos, tinha perdido a guerra, parecia estar feliz por não ter vencido. Era compreensível mas nem por isso deixava de ser intrigante.

Na minha infância, havia duas classes de pessoas as quais nutria uma grande admiração e cujo meio frequentava com muito gosto: Era a dos atletas/lutadores tradicionais (habitualmente fulas pretos) e a dos soldados (de todos os tipos), ambos apresentando características muito semelhantes no que se refere ao seu comportamento: Irreverência congénita, ousadia e provocação, ausência de pudor e inclinação para violar regras sociais pré-estabelecidas e/ou velhos tabus, a fraqueza pelas mulheres e sobretudo a predisposição constante para criar situações ridículas, hilariantes.

Lembro-me, a propósito, de uma conversa entre dois milícias em que um deles explicava ao outro, de forma convincente, que aos brancos não lhes interessava o fim das guerras, de todas as guerras e, acrescentava:

- “Na terra deles há uma coisa pequena do tamanho de uma agulha que era capaz de arrasar todo o território da Guiné e matar todos os terroristas num abrir e fechar de olhos”. 

Agora, eu sei que ele se referia as trágicas bombas largadas sobre Hiroshima e Nagasaki. O segundo milícia, mais lúcido, tinha replicado ao primeiro:
 - “Deus nos livra, se isso acontecesse, tu ias esconder o teu traseiro fedorento onde, na cova de um porco-espinho?” 

Perante a gargalhada geral dos presentes, a conversa que tinha começado de forma amena, terminara em pancadaria. Quem teria razão?


(v) A Mudança das bandeiras

Na manhã do dia 1 de Setembro de 1974, os poucos soldados que ainda estavam presentes, perfilaram no centro do aquartelamento para cumprir o último acto militar da entrega do quartel de Fajonquito. De um lado estavam os portugueses, doutro, os guerrilheiros. Frente a frente, pela última vez. Todos fardados com rigor. Cada grupo com a sua bandeira. As cores não eram muito diferentes, vermelha, verde e amarela. Só divergiam nos motivos, na origem e no destino. Os “ex-bandidos” também estavam distintos nesta derradeira cerimónia de passar o testemunho.

Notava-se que na fila dos portugueses, não havia muita diferença, pareciam ter sido escolhidos a dedo, altura mediana. Já do lado dos nossos, a disparidade era gritante, enquanto uns eram baixinhos,  outros eram desmesuradamente altos. Como na música e na dança, na África tropical a desordem é só aparente.

Da boca do oficial saíram, de forma vigorosa, os “firme” e “ombrós-arma”, acompanhados de movimentos da tropa a condizer, a corneta soou estridente seguida pelo coro dos cães da aldeia em protesto, as armas foram apresentadas a altura dos peitos soerguidos. Primeiro, arriaram a bandeira portuguesa, lentamente no início, mas quando ia quase a meio do percurso, contrariando o ritmo habitual, com largos esticões o soldado fê-la cair rapidamente, atirando o pano em cima dos ombros, enquanto desfazia o nó. O gesto denunciava alguma impaciência. Depois, foi a vez da nova bandeira subir e flutuar ao vento. Garanto-vos que estávamos ansiosos e orgulhosos.

O guerrilheiro encarregue do acto, deu dois passos a frente, encaixou a bandeira na corda e puxando uma das pontas, fê-la subir, normalmente. E quando estava quase a chegar ao topo, por qualquer razão, estas se emaranharam entre si deixando a bandeira presa, não podendo subir nem descer. Foi precisa uma pequena ajuda do soldado português para acabar com a trapalhada das cordas e terminar, finalmente, com a parada (seria isto um sinal para o futuro?). 

Depois houve uma troca de apertos de mãos de parte a parte. Havia uma pequena assistência de populares do lado de fora dos arames farpados. Não tinham sido convidados.

Olhando para trás no tempo, esta cena onde uma dúzia de soldados está perfilada frente a frente, procedendo a passagem simbólica do poder de uma terra que tinha sido administrada durante muitos anos por militares, na ausência de qualquer autoridade ou representantes da sociedade civil, desperta em mim, pouco a pouco, a sensação de que a Guiné, a nossa querida Guiné, de facto, não tinha sido preparada para viver sob um regime civil com base em princípios de governação democrática. 

Por outras palavras, a população da Guiné foi, e durante muito tempo, preparada para conviver com as ditaduras militares. Não surpreende muito, a ordem da sucessão parece inequívoca. De distrito militar repressivo (princípios do século XX), o território passou para uma província militarizada e em guerra (1963/74) e desta seguimos directamente para uma ditadura de guerrilheiros impreparados, ávidos de poder e sedentos de sangue. Não existe e nunca existiu uma tradição de poder civil, situada acima dos grupos étnicos. Neste aspecto, em particular, as ex-colónias francesas estavam ou ainda estão a milhas de avanço. As imagens filmadas sobre as independências desses países são disso um facto bastante revelador, pondo de parte o caso da Algéria.


(vi)  Os meus amigos guerrilheiros

Foi preciso esperar pela terceira vaga de guerrilheiros, sempre em bigrupos, para finalmente conseguir fazer alguma amizade. Eram dois combatentes de etnia Balanta, naturais de Banta (região de Quinara), o Dinis e o Marcos. Pelo menos é o que me tinham dito.

Se os portugueses me tinham ensinado as primeiras letras de forma desinteressada, foi com esses jovens Balantas que acabei por assumir a real necessidade de aplicar-me aos estudos a fim de melhor poder contribuir para a construção da nossa pátria (um vocábulo novo, com consonância especial, na altura).

Com os soldados portugueses tinha começado a moldar um instrumento, uma ferramenta de pesquisa e de trabalho mas foram estes guerrilheiros do PAIGC, esfarrapados e desnutridos que, imbuídos do espírito genuíno de libertação e emancipação de todos os povos da Guiné sem distinção, na altura, me ajudaram na definição do objectivo da minha escola. O que antes era longínquo e desconhecido passou a ser conhecido e desejado.

Em casa o meu pai recebeu-os efusivamente, tirando o chapéu da cabeça e curvando-se em sinal de respeito antes de lhes apertar as mãos, como sempre fazia diante das autoridades. O Dinis, calma e serenamente, explicou-nos que estes gestos já não se justificavam pois, todos eles eram filhos do povo.

- Nós lutamos para acabar com a humilhação do nosso povo em geral e dos nossos pais em particular, homens e mulheres, foi isso que Cabral nos ensinou e é isso que vamos transmitir aos nossos irmãos mais novos. 

Ele falava olhando para mim, meigamente.

Na estrutura militar dos guerrilheiros, havia o comandante e o adjunto do comandante, mas a partir dali já era difícil descortinar a sequência hierárquica, tanto para cima como para baixo na cadeia. Eram sinais de uma desordem latente donde podia nascer a anarquia que viria ao de cima, anos depois. 

O Dinis era um combatente simples, um aldeão que, não sendo muito instruído era relativamente bem informado sobre as ideias e conceitos políticos da época. As suas palavras eram simples e claras e com ele iniciei a minha aprendizagem na escola do pensamento político que começava com Cabral e terminava em Marx e Engels ou vice-versa. 

Nesta viagem de iniciação político-ideológica, o Lenine era a criança prodígio que tinha encontrado o livro de um velho sábio (Marx) e graças ao qual ele tinha revelado ao mundo as ideias revolucionárias de como tornar o mundo mais justo, mais progressista, apesar das contrariedades criadas pelas forças reaccionárias da direita capitalista (os demónios). “Foram as ideias contidas nesse livro antigo que, também, permitiram a libertação do nosso povo, através de Amílcar e seus companheiros”, concluía Dinis.

No entanto ele não sabia dizer se, eventualmente, Cabral teria encontrado com o jovem Lenine, quando foi a Moscovo, a procura de tais ideias. Ele se defendia, dizendo: “Tu és jovem e já bastante avançado na escola, depois, quando fores para a União Soviética, perguntas a eles para saber, eu não sei, não estive lá, sou um simples combatente”. 

Saberia mais tarde que Cabral tinha nascido no ano de 1924, no mesmo ano em que morria o líder dos sovietes. O mais importante aqui não era a forma mas sim o conteúdo.

A passagem dos guerrilheiros por Fajonquito foi breve, mas antes de partir, desmantelaram completamente o quartel, onde nunca chegaram a se instalar verdadeiramente, seja pelo pobre número de efectivos ou por outras razões desconhecidas. A atenção estava, sobretudo, concentrada sobre Canhámina e os caminhos de acesso a fronteira com o Senegal. 

Quanto ao resto, os olhos atentos dos comissários políticos se encarregariam de velar. O fim do quartel representou, para a aldeia, o inicio da escuridão, a noite, com o desaparecimento do único grupo gerador da localidade. Ninguém tinha pensado nas consequências, aliás, nem sequer tinham dado a população a possibilidade de pensar.

Mais tarde soube que o Dinis e o Marcos se tinham voluntariamente desmobilizado e regressado para a sua aldeia natal onde continuariam a trabalhar com os jovens da sua tabanca, ajudando na recuperação das bolanhas abandonadas durante a guerra e continuando a sensibilização dos mais novos sobre os ensinamentos de Cabral no meio de histórias da luta de libertação nacional para a qual tinham dado o melhor da sua juventude.

No ano seguinte, após ter concluído o ensino primário, cumpriria a promessa feita ao Dinis de continuar os estudos na cidade, mais precisamente no ciclo preparatório de Bafatá que tinha sido aberto poucos anos antes. Já não era somente a fome e a batalha pelo reconhecimento do grupo que me impeliam para a frente mas, também, a fome pelos livros, pelo saber, pensando, no meu íntimo que, a única forma de voltar a reencontrar os meus divertidos e irreverentes amigos brancos era pela via da escola.

Antes porém, de fazer a minha primeira viagem a Europa em 1985, mais precisamente à URSS, tinha ido à tabanca de Banta, no sector de Empada, à procura dos meus velhos camaradas de 1974. Na localidade, esperava-me uma pequena surpresa, pois, ninguém se lembrava dos antigos combatentes do PAIGC com os nomes de Dinis e/ou Marcos. 

Penso que, teria acontecido uma dessas práticas muito comuns entre os Guineenses das zonas rurais, de usar nomes (cristãos, logo civilizados) fabricados para o momento e a ocasião aos quais podiam livrar-se mais rapidamente que um camaleão muda as suas cores. Na aldeia, teriam voltado aos seus verdadeiros nomes da terra, ocupando os assentos que as suas idades sociais lhes reservavam dentro da comunidade (que não coincidiam necessariamente com a idade biológica), animando as festas dos “ irãs” que habitam os grandes poilões da floresta sagrada do sul.

No caminho de regresso à cidade, perguntava-me a mim mesmo se eles existiram de facto ou se tudo não passara de pura imaginação do espírito fértil de uma criança que queria acordar cedo demais?

Fajonquito, 17 de Junho de 2010

Cherno Baldé

[Revisão / fixação de texto / título: L.G.]
_________________

Nota de L.G.:

(*) Vd último poste da série: 14 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6735: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (17): A desertificação da nossa terra: até os macacos pára-quedistas nos estão a deixar

Em tempo:

O autor do poste enviou novo texto, revisto, para substituir o publicado anteriormente.
CV
17AGO2010
22h30m

Guiné 63/74 - P6863: (Ex)citações (94): A Guerra Colonial, todos querem ser heróis (José Brás)

1. Mensagem de José Brás* (ex-Fur Mil, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68), com data de 16 de Agosto de 2010:

Carlos, [...]

Já vi que saiu o último texto do José Dinis**.

Eu havia escrito hoje de manhã um texto a propósito do dele, mas de facto, mais sobre o do Carlos Geraldes.
Segue como o acabei agora mesmo se sequer uma leitura de revisão, como faço aqui quase sempre porque penso que o coração tem muito a ver com a nossa relação no blogue.
Se achares que tem qualidade, publica.

Um forte abraço
José Brás


Camaradas
Recebi do José Dinis uma mensagem com pluri-destinada, em que ele faz uma análise ao poste 6854, do camarada Carlos Geraldes com título comprido que não repito.
Não comento, nem o poste do Carlos Geraldes (pelo menos directamente), nem o texto-comentário do José Dinis.

O que me traz aqui, de novo a um tema que não morreu nem morrerá agora só porque, com razão se diz, já muito debatido, o que me leva a juntar mais este rol de palavras, é o facto de, no texto do JD aparecer referida uma referência (sic) do texto do CG ao meu livro "Vindimas no Capim".

Já havia lido o poste 6854 e mesmo que aligeiradamente, formado sobre ele a minha opinião, não me parecendo de perder com ele mais tempo que a sua leitura.
Depois de ler o escrito analítico do JD, e de ter descoberto a tal referência à referência, voltei ao blogue no propósito de descobrir o que não havia descoberto antes, isto é, a tal referência.

Li, reli... e confesso que fiquei na mesma.

Terá de ser tomado como referência ao "Vindimas...." O uso de um ou outro termo isolado e sem o enquadramento, político, ideológico, histórico ou simplesmente moral que formatou o meu livro no José Brás que era então e que, sem qualquer tipo de preconceito nem temor, digo que, sendo hoje o mesmo, é também diferente do que era, caldeado nos trambolhões que sempre a vida nos arma.

Devo, neste lugar do que escrevo, dizer que desde que me conheço capaz de pensar, nunca alinhei nesta ideia simplista do CG, ou para me redescobrir pensando assim, terei de recuar aos meus quinze, dezasseis, quando refilava com meu pai e lhe dizia que, sendo os ricos o mal do mundo, era necessário que morressem todos.

E nem sinto qualquer necessidade de dizer que concordo com a afirmação sobre crimes que teremos cometido em toda a nossa história, a maioria cá dentro e sobre o nosso próprio povo, e muitos fora, no desejo de sair de nós, de vencermos um mar que nos emparedava tão perto da outra fronteira, de buscarmos caminhos novos para chegar a mundos de sabíamos já a existência, e, certamente, não para lhes levar apenas a cruz mas, sobretudo, a espada; não para lhe oferecermos riquezas que não tínhamos mas, sobretudo, sacarmos as que adivinhávamos que tinham.

E nesse frenesim, nessa ousadia, nesse sofrimento, matando e matando-nos a nós próprios para renascermos depois, acabámos por dar ao mundo um inigualável contributo que geraram mudanças globais espantosas em todas as áreas do humano viver, e, em especial, a possibilidade de sair do homem medieval para o homem da renascença.

O nosso contributo permitiu aos países desenvolvidos da Europa, a acumulação dos capitais necessários ao advento da revolução industrial e do capitalismo.

Mesmo a propósito, a palavra capitalismo.

Peguemos nela, abramos as portas e as janelas do edifício que se gera no acto de a pronunciar pensando fundo e largo, achemos-lhe todos os crimes em seu nome cometidos desde que nasceu, e vejamos se não lhe achamos também virtudes na história do caminhar humano.

Podemos ver as imagens que Marx nos deu nos seus escritos sobre os milhões de seres humanos deslocados do feudalismo rural para a porta das fábricas de um mundo novo. Podemos vê-los mão de obra barata e disponível, mais miserável ainda do que era nos seus campos, alimentando o enriquecimento dos patrões mas também a explosão industrial e, até, um pensamento operário inexistente até então.

Só a ganância dos patrões pôde responder às questões novas, postas pela maquinaria à disposição da criação de novas formas de riqueza, de objectos de consumo, de um novo comércio, de novas formas de trabalhar a terra e mesmo de organização das sociedades.

Não me passa pela cabeça, com esta distância e julgando saber o que sei, condenar às penas do inferno esse tempo de exploração do homem, sem meter no saco todos os benefícios que me trouxe e sem a consideração da sua inevitabilidade na dialéctica do negativo/positivo.

Como, então, iria eu negar a espantosa odisseia dos navegadores e dos guerreiros portugueses que, na ganância dos seus maiores, e, digamos mesmo sem medo da palavra, dos seus desígnios, acometeram outras terras e outras gentes, impondo cultura nova ou nem isso, apenas no desejo e na necessidade de cevar riqueza nos recursos estranhos, riqueza que, provavelmente sem saberem, iria das condições ao mundo para novo salto?

Quer dizer que concordo eu com as sevícias, com os massacres, com o saque?

Nem pensar, meus camaradas, nem pensar.

Quer dizer que me desdigo do que disse no "Vindimas no Capim", sobre a exploração brutal dos rurais pobres por uma burguesia gananciosa e endinheirada, donos de terras ou de comércios espúrios?

Nem pensar, meus camaradas, nem pensar.

Quer dizer que me desdigo sobre o que disse do direito dos povos das colónias à sublevação e à guerra pela posse da terra que, na verdade sempre tinha sido sua?

Nem pensar, meus camaradas, nem pensar.

Do "Vindimas..." não retiro nem uma palavra das que lá estão, pese embora que eu próprio, às vezes leitor delas, discorde de algumas, numa análise à estética que toda a ideologia tem, dinâmica como não poderia deixar de ser.

Há uma coisa de que sempre discordei e sempre discordarei sem apelo nem agravo.
A ocupação das parcelas que detínhamos em África ultrapassou em muito o seu tempo histórico, moral e ideológico, fechada num conceito velho, tosco e mau, que mais valor dava ao simbolismo dos cantados heróis da raça e à ferramenta da cruz, do que às reais conveniências do seu próprio País no quadro das posturas novas da humanidade.

Dessa teima, colhemos todos nós o sofrimento e a contradição de lutarmos contra quem não odiávamos, e disso é prova, sim, a atitude e a postura geral dos nossos combatentes de quem ninguém poderá dizer com justiça, as coisas horríveis que se ouvem de outros, pese embora reconhecer um ou outro excesso cometido.

Daí que, ao contrário do que aconteceu com outros processos de descolonização, o abraço tenha sido e continue a ser possível.

Sempre pensei que daria a vida se alguém quisesse ocupar-me a casa ou o País.

Desgraçadamente, vivo num País ocupado pela ideologia do mercado e pelo capital financeiro que os donos do mundo acumularam e usam como mortífera arma, e contra essa ocupação não posso nada, nem tenho fisga ou espingarda.

Abraços
José Brás
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 7 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6833: Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres (23): José Brás, há muitos anos, elemento activo do Grupo de Forcados de Vila Franca

(**) Vd. poste de 17 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6861: (Ex)citações (92): A Guerra Colonial, todos querem ser heróis (José Manuel M. Dinis)

Vd. último poste da série de 17 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6862: (Ex)citações (93): A Guerra Colonial, todos querem ser heróis (António J. Pereira da Costa)

Guiné 63/74 - P6862: (Ex)citações (93): A Guerra Colonial, todos querem ser heróis (António J. Pereira da Costa)

1. Mensagem de António José Pereira da Costa*, Coronel Art na reserva, na efectividade de serviço, que foi comandante da CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74, com data de 16 de Agosto de 2010:

Caro Camarada
Se ainda for a tempo, quero deixar um comentário para o Carlos Geraldes**.

Primeiro quero recordar que as revoltas e as revoluções não se improvisam nem surgem por geração espontânea ou por loucura súbita dos povos.

Creio que já lembrei que nos 20 anos anteriores à chegada do Teixeira Pinto houve 12 sublevações das populações da Guiné. Em 1924 creio que terá a última em grande antes do Pidjiguiti.

Claro que as actuações condenáveis (escravatura, roubos, devastações, etc.) começaram logo à chegada, como ele diz. Mesmo vistas no contexto do tempo não podem deixar de criar e acumular revolta nas populações locais. A tensão foi-se acumulando e depois... o resto já sabemos.

Foi mais um caso de nascimento de uma nação, como já afirmei no meu último poste.

A reacção das nossas autoridades foi a que sabemos e a nossa também. Recordo que a nossa atitude foi-se alterando ao longo da guerra que durou 13 anos. O ânimo e a "mentalização" (aceitação activa da necessidade de combater) foi diminuindo ao longo dos anos. Como acabaria não sei.
Creio, por isso que o Geraldes não foge à verdade pelo menos até ao 4.º parágrafo.

Depois...
Depois cada caso é um caso. Mas eu não creio que a generalidade de nós tenha o perfil que ele desenha.

Não o terá tido no passado e não o será na actualidade. Não creio mesmo que "os mais selvagens entre 1000" tivessem sido tantos e não tenham sido "repreendidos" pelos outros (nós todos). Relembro que nas unidades operacionais a grande maioria eram cidadãos fardados.
Claro que cada bala pode matar um chefe-de-família, uma mãe, uma criança, mas isso faz parte da guerra.

Contaram-me que, em Cacine, antes de eu chegar, um dia uma das primeiras companhias que por lá passou foi atacada com armas pesadas e o 1.º Sargento, depois do ataque, gritava e chorava com a perna de uma criança na mão:

- Podia ser a minha filha!... Podia ser a minha filha!

Eu próprio ainda por lá encontrei um miúdo - um "português suave" - o Manel que, na sua cor de café com leite e cabelo quase liso e semi-louro, tinha a cabeça descascada com pequenos estilhaços.

Um Alfa Bravo do
António Costa
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 29 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6805: Controvérsias (99): O que é que o País pode dar aos ex-combatentes? (António J. Pereira da Costa)

(**) Vd. poste de 15 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6854: Questões politicamente (in)correctas (40): A guerra colonial: todos querem ser heróis! (Carlos Geraldes)

Vd. último poste da série de 17 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6861: (Ex)citações (92): A Guerra Colonial, todos querem ser heróis (José Manuel M. Dinis)

Guiné 63/74 - P6861: (Ex)citações (92): A Guerra Colonial, todos querem ser heróis (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem de José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), dirigida ao nosso Blogue em 16 de Agosto de 2010:

Camaradas
Cito: "Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?" (Do poema em Linha Recta de Álvaro de Campos).

Imagino que uma boa parte do pessoal já atingiu a idade do condor (do sexo com dor), mas a razão ainda nos vai escapando. Somos uns emotivos, por isso, reagimos emotivamente, dando pouca, muito pouca atenção aos conteúdos. Neste caso, posso dizer, o bombo saiu à rua. Mas a malhar nele não se faz música. O bombo também obedece a regras musicais, ou abafa os restantes instrumentos e fere-nos o ouvido.

Vamos a detalhes:

1 - Logo no começo refere-se: "E nem se lembram de que tudo foi uma mentira, com mais de quinhentos anos". Penso eu, que se refere a eventual manipulação de factos históricos, filtrando os motivos de vergonha, para exaltar e despertar qualidades do génio lusitano, pois acrescenta a seguir: "Desde tempos imemoriais... quem tinha a força tinha o direito". Assim, à moda do Bush quando mandou invadir o Iraque.

Posso concordar. De facto, todos sabemos que a nossa instrução primária, e os subsequentes estudos secundários, obedeciam a programas aprovados pelo regime, logo, em consonância com o discurso oficial, frequentemente capcioso. E essa foi a nossa cartilha. Foi nesse tempo que aprendemos a odiar os espanhóis. Foi nesse tempo que nos fizeram aceitar as ideias de unidade territorial e de Pátria. Ideias, que, ainda hoje, são determinantes ou condicionantes para os nossos comportamentos. Estranhamente, quando foi a nossa geração a apadrinhar a democracia (às vezes bárbara democracia) que resultou do 25 de Abril.

Quantos daqueles milhares do 1.º de Maio estavam politicamente esclarecidos? Quantos saneamentos levados a cabo por trabalhadores, não lhes serviram de trampolim para benefícios próprios? Refiro-me a contradições da nossa geração, a experiências que denotam insuficiência cívica. Será que hoje já estamos convenientemente formados, com maturidade, sentido do rigor, da ordem, da justiça e não pactuamos com aventureirismos?

2 - Segue-se o 2.º parágrafo que parece suscitar a grande confusão: "quando lá chegavam com as G3 em riste..."

Bem, não se pode tomar a nuvem por Juno, mas lá que houve excessos... houve. E o governo cristão, e a civilização cristã, chegaram a homenagear e condecorar alguns "heroísmos revanchistas". Até hoje parece que os aceitamos como bons, pois a Pátria, no conjunto do seu Povo, ou representada pelos eleitos do Povo, ainda não veio dizer que exagerámos, e que o antigo regime, por isso, deu cobertura a injustiças. Garanto-vos que na África sob jurisdição portuguesa, até aos anos cinquenta do século passado, praticou-se o esclavagismo (vide Norton de Matos - Biografia, Bertrand Editora).

Argumenta-se com o terrorismo, como se os portugueses, em 1640, tivessem tido um comportamento de protecção a acto terrorista. Mas, mais grave ainda, o estado português em 1961 estava informado sobre o que iria acontecer, e continuou a caminhar contra as instâncias internacionais sob o comando do velho néscio.

Em que é que exagerámos?

Na maneira descriminatória relativamente a muitos daqueles povos, pois a par de uma missão religiosa, existia um crápula que negociava mão de obra sem direitos, quer para o estado, quer para as grandes companhias; exagerámos, não dando atenção à Carta da ONU, anterior à nossa adesão, que ficou a dever-se a um truque com a transformação de colónias em províncias, criando expectativas sobre a sua regulação e governo; exagerámos no estúpido orgulhosamente sós, que durou de 1958 a 1974, enquanto, se tivéssemos seguido o caminho da Carta, teríamos 30 anos para construir sociedades modernas e submeter o modelo a referendo; exagerámos, condenando e não convidando os emancipalistas a colaborar na construção das novas sociedades; exagerámos, ao admitir que a nossa capacidade para prosseguir a guerra seria inesgotável, com grandes argumentos em S. Bento e no Terreiro do Paço.

3 - Segue-se uma alusão ao romance do Zé Brás, Vindimas no Capim, que, no entanto, me parece despropositada, na medida em que interpreto o romance como um retrato da vivência de uma geração subjugada ao trabalho duro e mal pago, por vezes em condições de indignidade, desinstruída, que era mobilizada para a guerra de África a dar o corpo ao manifesto, onde apenas tinha como prémio, a sorte de se salvar, ou os namoros de ocasião com as meninas do Jorge.

Não sei se quer referir-se ao heroísmo desses desgraçados, levados das suas famílias e das esperanças que alimentavam, para em condições infra-humanas obedecerem cegamente à cadeia de comando, a ponto de darem tudo pela Pátria. Esta dádiva máxima não era percepcionada, nem nas causas, nem nos efeitos, mas, naquele momento, causava grande perturbação aos sobrevivos.

4 - Pátria. Peço-vos para reflectirem no lugar onde nascemos, no que queremos e fazemos dele, na capacidade do colectivo em intervir no destino da nação. Peço-vos para reflectiram sobre o que pensamos de relações sociais no lugar da Pátria, como aceitamos, ou reagimos, à impunidade dos gestores bancários, dos sectores privado e público, mediante actos de fácil reprovação; peço-vos para reflectirem sobre PIN - Projectos de Interesse Nacional, que delapidam o público em favor do privado; peço-vos para reflectirem sobre tantas manigâncias neste país, e para pensarem porque é que isso acontece.

5 - O que vos pedi em 4) tem a ver com o último parágrafo do Geraldes, que critica os encontros onde se apresentam alguns, com laivos de heróis, boinas e medalhas, em manifestações marciais que, em vez de celebrarem a camaradagem solidária, cimentada nas dificuldades, antes exaltam qualidades guerreiras ou brutais, por vezes sem correspondência com os sentimentos perante o perigo.

Talvez concorde, se o Geraldes pensa na solidariedade que devia resultar do sofrimento colectivo durante a guerra, para, agora, (digo eu) guiar-nos para acções colectivas, de regeneração moral, de orientação para o interesse público, de repúdio pelos oportunistas que, de lés-a-lés, desprestigiam instituições, comprometem equilíbrios da natureza, hipotecam o futuro, acções que dariam de nós, antigos combatentes, a imagem de esforço, seriedade e vontade de actualizar e incrementar o progresso colectivo. Nunca em Portugal um governo se lembrou de mobilizar o Povo para o progresso. Afinal, andámos lá fora a malhar os costados, e aqui cruzamos os braços perante tanta leviandade.

6 - Da generalidade dos comentários, que evocaram Camões, mas esqueceram-se de Fernão Mendes Pinto, retenho uma liminar condenação ao Geraldes. Afinal o texto fez-me reflectir, sobretudo nesta belíssima vida moderna, adornada de Mercedes e Audis, com casas a espelhar sucessos pessoais, ainda que, algumas, sem mão de arquitecto, nem licenças camarárias, mas uma "boa vida", ou a fingir uma boa vida, em hossana ao individualismo. Para mim o poste valeu como exercício de introspecção.

Abraços fraternos
JD
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 15 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6855: Controvérsias (102): Polémica M.Rebocho / V.Lourenço, resposta a António Graça de Abreu (José Manuel M. Dinis)

Vd. último poste da série de 17 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6860: (Ex)citações (90): A Guerra Colonial, todos querem ser heróis (Manuel Maia)

Guiné 63/74 - P6860: (Ex)citações (91): A Guerra Colonial, todos querem ser heróis (Manuel Maia)

1. Comentário de Manuel Maia (ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine, 1972/74), deixado no poste 6854 de autoria de Carlos Geraldes, com data de  16 de Agosto de 2010:

Caro Geraldes,
Li o teu texto, e pergunto-me que mal te fez o mundo para teres este tipo de relação conflituosa contigo próprio...
Depois de me ter habituado a ler-te, fiquei deveras surpreendido com este fel destilado, que em minha opinião se não coaduna contigo.

Todos temos momentos de revolta com a vida mas deveremos procurar os mecanismos de contenção que impeçam que ofendamos gratuitamente quem quer que seja, especialmente aqueles que tal como nós, militares à força, atravessaram os mesmos problemas, sofreram na carne as mesmas vicissitudes, conheceram as mesmas dúvidas, os mesmos medos, as mesmas revoltas.

Aquilo que lês aqui e ali sobre as bajudas, os galos, as tainadas, não são, estou certo, quaisquer loas a um bacoco heroísmo, mas tão só o reavivar de momentos que por esta ou aquela razão ficaram gravados no subconsciente de quem os narra e que no fundo são comuns praticamente a todos...

Os tiros, foram a resultante da nossa presença na guerra e muitas vezes o exteriorizar dos medos, que dizes ninguém contar...

Todos tivemos medos, todos pensamos muitas vezes na impossibilidade de regresso, mas todos tínhamos vinte e poucos anos e a pujança da vida dessa idade.

Nunca assisti a situações como as que descreveste (fiz a guerra entre 72 e 74) e no meu tempo posso testemunhar que a acção psicológica funcionou não havendo crimes ou abusos como os que narraste...
Cabia também aos condutores de homens (e tu eras comandante de um grupo de combate...) a obrigação de dirigir, responsavelmente, os seus militares, por forma a evitar manifestações de primitivismo criminoso como referiste...
Se os testemunhaste e não agiste, então sentes esse peso na consciência.

A súmula que apresentas relativamente à história deste país a que pertences, este reduzir de nove séculos de construção e sustentabilidade de um povo com capacidades e heroicismo incomuns, um povo que se atreveu mar adentro à cata de novos mundos, a uma miserabilista insinuação de que se tratou de bandos de salteadores, violadores, ladrões, burlões, é de facto demasiado redutora, curta de vistas, e decididamente evidenciadora de que estarás doente, provavelmente a sofrer.

O Carlos Geraldes que também foi cordeiro em África, o Carlos Geraldes, homem culto, não pode apresentar um discurso deste jaez...

As almoçaradas dos homens de cabelos ralos e caiados pelo branco da velhice, contrariamente ao que dizes, são extremamente salutares, e mau grado este teu posicionamento que redundou no poste alvo destes comentários, estou convicto que no próximo convívio da Tabanca Grande, estarás presente com um arejamento de ideias.

Sei que provavelmente estarás a remoer-te por dentro a tentar perceber o porquê de assinares um texto tão caustico, tão violento, diria mesmo tão ofensivo.

Peço-te para reflectires, acalmares, contares até dez antes da explosão.

Um abraço
Manuel Maia
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 8 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6837: Blogopoesia (79): Saudades daquele tempo, ou Quisera eu... (6) (Manuel Maia)

(**) Vd. poste de 15 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6854: Questões politicamente (in)correctas (40): A guerra colonial: todos querem ser heróis! (Carlos Geraldes)

Vd. último poste da série de 9 de Agosto de 2010 Guiné 63/74 - P6840: (Ex)citações (90): O nível das modalidades desportivas amadoras de Bissau tinha baixo nível e recorria aos militares ali estacionados (Rogério Cardoso)

Guiné 63/74 - P6859: Parabéns a você (139): José Manuel Moreira Cancela da CCAÇ 2382 (Os Editores)

1. Mais um ano se passou e eis-nos de novo a felicitar o nosso camarada José Manuel Cancela (ex-Soldado AM da CCAÇ 2382, Bula, Buba, Aldeia Formosa, Contabane, Mampatá e Chamarra, 1968/70), pela passagem de mais um aniversário.

Caro Cancela, neste dia 17 de Agosto de 2010, aqui está a tertúlia a renovar os seus votos de uma longa vida para ti, cheia de qualidade, sempre junto dos que te são mais queridos, deixando desde já marcado novo encontro para o próximo ano.

Em nome da tertúlia deixo-te um fraterno abraço de parabéns.


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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 17 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4829: Parabéns a você (18): José Manuel Moreira Cancela da CCAÇ 2382 (Os Editores)

Vd. último poste da série de 10 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6841: Parabéns a você (138): Alberto Nascimento da CCAÇ 84 (Bambadinca, 1961/63) e Tomás Carneiro da CCAÇ 4745 (Binta, 1973/74) (Editores)