domingo, 19 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P7010: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (18): Terceiro ataque ao Olossato

1. Mensagem de Raul Albino, ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70, com data de 17 de Setembro de 2010:

Caríssimo Carlos Vinhal,
Descobri que ainda me faltava enviar o relato do 3.º ataque ao Olossato, por sinal o último, durante a permanência da CCaç 2402 naquela localidade.

Por essa razão envio-te em anexo um relato referente a esse evento.

Pedia-te que solicitasses a alguma das nossas enfermeiras pára-quedistas, o favor de tentar identificar quem recolheu, assistiu e auxiliou na evacuação dos feridos graves desse ataque e se encontra empoleirada no cimo do avião Dakota visível na foto que incluo no artigo. A figura dela está um pouco afastada, mas creio que alguma delas a vai conseguir identificar.

Um grande abraço para ti e restantes editores. Que tenham um bom fim de semana.
Raul Albino


História da CCAÇ 2402 (18)

Terceiro Ataque ao Olossato

Descrição do Ataque

A 6 de Fevereiro de 1970, pelas 18,50 horas, deu-se o terceiro e último ataque ao Olossato durante a permanência da CCaç 2402 nesta localidade.

O inimigo foi avaliado em cerca de 10 a 15 elementos e flagelou o quartel e povoação com Morteiro 82 e armas automáticas ligeiras durante um período não muito longo. As nossas tropas, em colaboração com os milícias nativos, repeliram o inimigo que não chegou a causar baixas nas nossas tropas nem consequências para o aquartelamento.

Este ataque, relatado desta maneira crua, parece ter-se tratado de mais um ataque igual a tantos outros, mas infelizmente não o foi, por uma razão simples.

Em que é que este ataque não se diferenciou muito dos anteriores? Primeiro, uma vez mais o nosso Comandante não estava presente, encontrando-se em Bissau. Devo confessar que enquanto estive na Guiné nunca me apercebi desta esperteza do inimigo em escolher os momentos de ausência do nosso Comandante para desencadear os seus ataques ao quartel. Esta coincidência, só me apercebi dela, ao longo da escrita deste livro, mais precisamente durante a segunda metade. E, felizmente que assim foi, porque se na Guiné soubéssemos que as ausências do capitão conduziam a ofensivas do inimigo ao quartel, nem ele saía descansado nem nós ficávamos tranquilos após a sua partida. A segunda semelhança aos outros ataques foi a hora que normalmente o inimigo escolhia. À excepção do primeiro ataque a Có, todos os outros foram desencadeados ao anoitecer, o que significa que o inimigo se deslocava durante o dia, instalava-se até ao anoitecer e então efectuava o ataque. Esta escolha do final do dia tinha ainda as vantagens para o inimigo, de impedir que as nossas tropas pedissem apoio aéreo, visto os aviões e helicópteros existentes não terem condições para apoio nocturno, e ainda porque qualquer reacção das nossas tropas em perseguição ao inimigo estava condenada ao insucesso. De noite, com negros num lado e noutro dos contendores, ninguém de bom senso faria uma perseguição.

Curiosamente os nossos ataques a objectivos do inimigo, eram normalmente feitos ao amanhecer, com a deslocação das nossas tropas a ser feita durante a noite. É que deslocando-nos de noite dificilmente o inimigo nos surpreendia e ao amanhecer as suas sentinelas estavam sonolentas e com a vigilância enfraquecida.

Então em que é que este ataque foi dramático? Pela simples razão de duas granadas de morteiro terem caído no centro da povoação, perto do local onde a etnia balanta realizava uma cerimónia tradicional de casamento. O resultado foi desastroso, sofrendo a população 7 mortos, 36 feridos graves e 55 feridos ligeiros.

Nunca um ataque tinha provocado tamanho número de baixas. A população chorava os seus mortos e feridos e a consternação era geral. O nosso pessoal de saúde não tinha mãos a medir, para atender todos aqueles que pediam socorro. As nossas tropas multiplicavam-se para assistir, dentro do que lhes era possível, a toda a população aflita. As nossas instalações de messes e sala do soldado foram convertidas em extensões auxiliares da enfermaria. O serviço de primeiros socorros foi efectuado durante toda a noite, num esforço inestimável de toda a equipa de enfermagem, até que ao amanhecer se pudesse proceder à evacuação para Bissau, por avião, dos feridos mais graves.


A evacuação dos feridos

Evacuação dos feridos

Pela manhã assistimos pela primeira vez no Olossato à aterragem de um avião “Dakota” (em cima na imagem), com dimensão suficiente para evacuar tão elevado número de feridos. De louvar a perícia e coragem dos pilotos para aterrarem na nossa pista, que, em princípio, só estava dimensionada para pequenos aviões.

Vemos na foto em baixo, a presença da enfermeira pára-quedista, que para nós era vista como um anjo caído dos céus, tal era a consideração que tínhamos pelo seu abnegado trabalho de socorrer os feridos em combate, física e muitas vezes também psicologicamente. Que a sua missão no teatro de guerra nunca seja esquecido, pelo menos até ao fim das nossas vidas de ex-combatentes.

Agradecia que algum dos nossos bloguistas, pertencente à Força Aérea, identificasse na foto em baixo, a nossa enfermeira pára-quedista empoleirada no cimo do Dakota.




Acontecimento Trágico-Cómico

No meio de tanta tragédia, ainda se pode contar uma pequena história que seria cómica se não acontecesse neste ambiente de sofrimento.

O Alferes Brito que mais uma vez se viu na posição de comando do aquartelamento, nervoso e cansado, via os feridos mais graves alinhados ao longo da sala do soldado, com ligaduras, pensos e pedaços de corpos por todo o lado, incluindo uma perna.

Vai daí, o Alf. Brito, com a sua característica simples, directa e prática, ordena a um soldado que limpasse todo aquele lixo que ali estava, que já quase não se podia passar. Só que a perna que se encontrava junto aos outros resíduos dos tratamentos, era uma perna artificial articulada pertencente a um dos feridos, que num momento de lucidez ainda conseguiu deitar a mão à sua perna artificial, impedindo assim de ela ir parar ao lixo.

Se pensarmos na dificuldade que ele teve em adquirir aquela, podemos imaginar o que ele não teria de penar para obter outra igual.

Uma pequena sorte no meio do infortúnio.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4719: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (17): Segundo ataque ao Olossato

Guiné 63/74 - P7009: Efemérides (51): 17 de Setembro, Dia das Transmissões (José Martins)

1. Mensagem de José Marcelino Martins* (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), com data de 16 de Setembro de 2010:

Boa noite
Segue um texto a propósito do Dia das Transmissões, que se festeja a 17 de Setembro.

Um abraço
José Martin


17 de Setembro
Dia das Transmissões


Ocorre no dia de hoje, ano de 2010, o 137.º aniversário da inauguração da Rede Telegráfica Militar no território português.

Para trás ficavam outras formas e meios de comunicação entre exércitos e/ou as suas subunidades, em campanha ou em tempo de paz.

Pensamos que a primeira forma utilizada de comunicar à distância, foi o estafeta. Desses, ficou-nos o relato sobre a batalha de Maratona, travada entre gregos e persas numa planície perto de Atenas, ocorrida em Setembro de 490 a.C., durante a Primeira Guerra Médica, quando os gregos se encontravam enfraquecidos e não conseguiram apoio de Esparta.

Foi após esta batalha que Milcíades, o general grego, enviou Fidípides para avisar a cidade de Atenas, que ficava a cerca de 42 quilómetros, da vitória dos gregos sobre os persas.

Mas voltemos ao nosso país e, concretamente, à criação das Transmissões no nosso Exército, ainda dependente da Arma de Engenharia, uma das razões porque ainda ostenta, nos seus brasões, o castelo ameado

A origem dos telegrafistas militares reporta ao ano de 1810, ano em que é criado o Corpo Telegráfico, que em 1830 ficaria sob a superintendência do Corpo Real de Engenheiros.

No final do terceiro quartel do século XIX, em 1873, com a inauguração da Rede Telegráfica Militar, é criado, simultaneamente e de carácter permanente, o Serviço Telegráfico Militar, entre guarnições fixas.

Em 1880 são instalados os primeiros pombais militares, remontando a 1884 a Companhia de Telegrafistas, a primeira Unidade de Transmissões de campanha.

No virar do século XIX para o século XX, em 1900, são instalados os primeiros telefones militares e, no ano seguinte, 1901, é criada a Companhia de Telegrafistas de Praça [Ordem do Exército 01, 8JAN1902], que ocupa o Quartel na Penha de França (Lisboa) e apoia a Inspecção do Serviço Telegráfico Militar [Ordem do Exército 11, 26MAI1911-1.ª Série]. As Transmissões passam a depender da Arma de Engenharia, e iniciam-se as primeiras experiências em TSF – Telegrafia Sem Fios.

Já com o país em regime republicano, em 1911, é criado o Grupo de Companhias de Telegrafistas, onde é incorporada a nova Companhia de Telegrafistas Sem Fios. Dois anos depois, 1913, o Grupo de Companhias recebe o nome de Batalhão de Telegrafistas de Campanha [Ordem do Exército 11, 18JUL1913], indo fixar-se no Quartel da Ajuda, em Lisboa.

Em substituição do Batalhão de Telegrafistas de Campanha, que é extinto em 1925 [Ordem do Exército 06, 24ABR1925], surge o Batalhão de Telegrafistas [Ordem do Exército 08, 16JUN1925], com duas Companhias de TSF e TPF. No ano seguinte é criado um Batalhão de Telegrafistas de Campanha [Ordem do Exército 06, 14JUN1926].

Em 1927, com a criação do Regimento de Telegrafistas [Ordem do Exército 12, 30SET1926], as Transmissões passam a estar instaladas no aquartelamento da Cruz dos Quatro Caminhos (Sapadores - Lisboa), integrando esta nova Unidade o Batalhão de Telegrafistas de Campanha [Ordem do Exército 06, 14JUN1926], a Inspecção do Serviço Telegráfico Militar [Ordem do Exército 11, 26MAI1911-1.ª Série] e a Companhia de Telegrafistas de Praça. Nesta data é criado o Depósito Geral de Material de Transmissões (Quartel na Penha de França), que fica na dependência do Regimento de Telegrafistas [Ordem do Exército 12, 30SET1926] que, em 1937 passa a designar-se Batalhão de Telegrafistas [suplemento a Ordem do Exército 12, 31DEZ1937] e, em 1951, passa a designar-se Serviço de Telecomunicações Militares.

A esta Unidade – Batalhão de Telegrafistas – são atribuídas as funções de Escola Prática, em 1959, até que, em 1971 é criada a Escola Prática de Transmissões [Ordem do Exército 07, 31JUL1971], que, em 1977 passa a designar-se Regimento de Transmissões [Ordem do Exército 05, 31MAI1977], mantendo as funções e o aquartelamento, herdando as tradições dos diversos serviços de Transmissões.

O dia da Unidade é o dia 17 de Setembro e o seu Patrono é o Arcanjo S. Gabriel [Decreto de Pio XII em 12JAN1951], cuja comemoração litúrgica se festeja a 29 de Fevereiro.

ARMAS
ESCUDO: de azul, uma almenara de oiro, iluminada e aberta de vermelho e acesa do mesmo perfilado de oiro.
ELMO: militar de prata, forrado de vermelho, a três quartos para a dextra.
CORREIA: de vermelho, perfilada de oiro.
PAQUIFE E VIROL: de azul e oiro.
TIMBRE: uma garra de leão de vermelho empunhando seis raios eléctricos de oiro.
DIVISA: num listel de branco, ondulado, sobreposto ao escudo, em letras de estilo elzevir, maiúsculas, de negro: SEMPRE MELHOR.

Simbologia e Alusão das Peças
A almenara (torre de sinais) é o símbolo das comunicações
Os Esmaltes Significam
Oiro: fé e nobreza.
Prata: riqueza e eloquência.
Vermelho: ardor bélico e força.
Azul: ar, espaço, lealdade


José Marcelino Martins
17 de Setembro de 2010

Ver:
Patrono das Transmissões (P5423)
Grito das Transmissões (P6967)
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Notas de CV:

(*) Ver poste de 16 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6995: In Memoriam (54): O meu amigo António Santos partiu (José Martins)

Ver último poste da série de 5 de Agosto de 2010
Guiné 63/74 - P6829: Efemérides (50): Acontecimentos de 3 de Agosto de 1959 no cais do Pindjiguiti, Bissau (3) (Leopoldo Amado)

Guiné 63/74 - P7008: (In)citações (8): Comércio Justo: Sim, obrigado (Luís Graça)

Guiné-Bissau > Bissau > 5 de Dezembro de 2009 > Uma cena pouco idílica, pouco turística,  das ruas da capital... As bideiras, vendedoras ambulantes,  que calcorreiam a  cidade, com os balaios à cabeça, tentando fazer alguns CFA (moeda local)...

Foto: © João Graça (2009) / Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


1. Diz o CIDAC que o conceito de Comércio Justo (Fair Trade, em inglês) se baseia em 12 princípios:

(i) O respeito e a preocupação pelas pessoas e pelo ambiente, colocando as pessoas acima do lucro;

(ii) O estabelecimento de boas condições de trabalho e o pagamento de um preço justo aos produtores e produtoras (um preço que cubra os custos de um rendimento digno, da protecção ambiental e da segurança económica);


(iii) A disponibilização de pré-financiamento ou acesso a outras formas de crédito;


(iv) A transparência quanto à estrutura das organizações e todos os aspectos da sua actividade, e a informação mútua entre todos os intervenientes na cadeia comercial sobre os seus produtos ou serviços e métodos de comercialização;


(v) O fornecimento de informação ao consumidor sobre os objectivos do CJ, a origem dos produtos ou serviços, os produtores e a estrutura do preço;


(vi) A promoção de actividades de sensibilização e campanhas, quer junto dos/as consumidores/as (para realçar o impacto das suas decisões de compra), quer junto das organizações (para provocar mudanças nas regras e práticas do comércio internacional);


(vii) O reforço das capacidades organizativas, produtivas e comerciais das produtoras e dos produtores através de formação, aconselhamento técnico, pesquisa de mercados e desenvolvimento de novos produtos;


(viii) O envolvimento de todas as pessoas (produtores/as, voluntárias/os e empregados/as) nas tomadas de decisão que os afectam no seio das suas respectivas organizações;


(ix) A protecção e a promoção dos direitos humanos, nomeadamente os das mulheres, crianças e povos indígenas, bem como a igualdade de oportunidades entre os sexos;


(x) A protecção do ambiente e a promoção de um desenvolvimento sustentável, subjacente a todas as actividades;


(xi) O estabelecimento de relações comerciais estáveis e de longo prazo;


(xii) A produção tão completa quanto possível dos produtos comercializados no país de origem.


Pessoalmente desconfio de todas as ideias que me querem vender como panaceias para todos os males da humanidade,  do tipo "Ou Nós ou o Dilúvio", "Temos a solução (final)", "Nunca tivemos tantas certezas", "Escolha agora o céu na terra e pague depois" e outras balelas do pensamento único..

O Comércio Justo pode não passar de mais uma utopia, recebida com ironia e cinismo pelos professores de economia... Por mim, acho que é uma ideia que, no mínimo,  tem pernas para andar... É um pouco como todos os grandes rios, que começam por uma gota de água... Um dia muitas destas ideias libertar-se-ão do conceito (que não é mais do que um objecto abstracto-formal, um construído intelectual) e hão-de materializar-se em coisas concretas e palpáveis, úteis, que podem ajudar a resolver os pequenos grandes problemas de muita gente, como ter ou não ter água potável para beber, por exemplo...

Pequenas iniciativas locais como a loja do Cabaz di Terra, em Bissau,  devem ser acarinhadas. Em Bissau, em Luanda, em Lisboa, em toda a parte.. Não sei se esta é uma verdadeira  loja do Comércio Justo, com todos os ff e rr....Rege-se pelo menos por alguns dos seus princípios...E isso me basta, para já.

Em louvor do Comércio Justo, e dos nossos  pequenos projectos de solidariedade para com o povo guineense; em louvor de tanta gente, boa, solidária, que ajuda os outros que são vítimas do círculo vicioso da pobreza e do subdesenvolvimento - como alguns membros da nossa Tabanca Grande, portugueses e guineenses,  que eu não vou citar para mão ferir susceptibilidades, correndo sempre o risco de parcialidade, ao evocar uns nomes e omitir  outros - compus este texto poético a que chamei "Comércio Justo, Sim,  obrigado"...


2. Comércio Justo: Sim, obrigado!


Andei por aí
À procura de lojas
Do Comércio Justo:
Queria comprar dez cêntimos de equidade;
Acabei por encontrar uma,
A custo,
Já à saída da cidade.

Ao lado, havia um hipermercado,
Com a bandeira, verde-rubra,  de Portugal;
E, mais à frente,
Uma Loja dos Trezentos;
E a seguir, uma outra, a do Chinês;
E às tantas perdi-me,
Só de contar as lojas
De artigos de marca
Que havia na Grande Superfície Comercial.
Pensei cá para mim:
- Eh!, pá,
Já não vives na era de Quinhentos,
Ó Português de cá e lá,
De torna viagem,
O mundo está mais global,
Está mais quentinho,
O planeta,
Mais próximo,
Mais aconchegadinho,
Com o PIB a crescer,
A taxas de dois dígitos,
O que é obra,
Seus pobretanas!
Só não sei é se esse mundo
É mais fraterno,
Mais livre,
Mais justo,
Mais viável,
Mais plural.
Nem sei qual é a nossa margem
De manobra,
Que a economia é uma treta,
E a realidade é execrável,
Com tantos centos e centos
De milhares e de milhões,
Sem a mais elementar água potável.

Entrei na loja do Comércio Justo,
E ouvi histórias
De gente de mil e uma cores
E sabores:
- Sou uma pobre viúva da Índia
E faço bonecos de pano,
Comprem, comprem,
Meus senhores,
Ganham mais vocês num só dia
Do que eu em todo o ano.

Dez cêntimos de equidade
Embrulhada em papel de jornal...
- Essa coisa da equidade
Que o senhor vem à procura,
Eu não vendo nem nunca vi;
Não é por ter a pele escura
Mas a verdade, a verdade,
É que só conheço a ruindade
Da ilha do Haiti
Onde nasci.

Equidade não é justiça,
Mas igualdade de oportunidades,
Tento eu explicar, a medo,
À mulata africana:
- O pensamento, senhor,
Até pode ser bem profundo,
E tão fecundo
Como o meu ventre
De mestiça...
Mas que me adianta, a mim,
Ser bonita e  ser roliça,
Sem direitos nem liberdades,
Sem remédio para a minha dor,
Neste sítio do fim...
Do mundo.

A OIT, sabe,  vem agora falar
De trabalho decente,
Tanto nos campos como nas ciades...
- Tu, estrangeiro,
Que me acusas de dumping social,
Por extrair o carvão da mina:
Silicótico,
Ex-mineiro,
Fiz a revolução cultural,
E mudei p'ra mensageiro
Do Grande Negócio da China.

A seguir entra em cena
O dono da loja,
Que parece ser o ideólogo
De serviço:
- Tu, meu amigo, sociólogo,
Que és um consumidor responsável,
E vives na parte do planeta,
No hemisfério norte,
Que é a mais habitável,
Põe sempre o olho na etiqueta,
Que o desenvolvimento sustentável
É a minha...
E a tua meta.

Oiço algures um apelo,
Que me deixa desarmado:
- Sê solidário comigo
Que estou há dias sem vender,
E sem dinheiro para comer,
E portanto esfomeado,
Compra-me esta estatueta,
Que o politicamente correcto
Não enche a barriga da gente;
Já sei o que me vás dizer,
Que se a peça é de pau preto,
É mau para o ambiente.
E se alimento pai e mãe,
Na Indonésia ou no Brasil,
Dizes-me que é crime também,
Por ser trabalho infantil.

Fico sem jeito,
Ao ouvir todas estas histórias
E lições de geografia
Da pobreza:
- Não sabes onde fica o Benim,
Mas podes ajudar-me,
Ao meu povo,
Aos meus irmãos,
Não quero que tenhas pena de mim,
Basta ambos darmos as mãos.

- A mão invísivel do mercado,
Diz o meu professor, economista,
Que encontro no hipermercado,
Há-de chegar a todo o lado,
Mais devagar ou mais depressa,
De avião, de carro ou a pé,
E poderá fazer-te até
Um pequeno capitalista.

Fico baralhado,
Até sem pinga
De sangue,
Não sei se o negócio é bom ou mau,
Mas, para resumir a lição,
Ouvida na loja do Comércio Justo,
Presto um pouco mais de atenção
Ao meu amigo, mandinga,
Da Guiné-Bissau
Que toca Kora:
- Nossa ideia nasce agora
Mas já  vinga,
Tu és consumidor, solidário,
Eu produtor, acreditado,
Do Comércio Justo és partidário,
Amigo, manga de obrigado.

Luís Graça

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Nota de L.G.:

(*) Poste anterior desta série > 16 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6998: (In)citações (7): Inauguração da Loja Cabaz di Terra, em Bissau (Pepito / AD - Acção para o Desenvolvimento)

Guiné 63/74 - P7006: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (5): Portugal nem explorava nem desenvolvia, colonizava pouco e mal

1. Mais umas notas do caderno de um velho colon (*):


Escreveu Amílcar Cabral, que Salazar nunca daria a independência às colónias, porque não tinha poder de manter o neocolonialismo, como faziam as outras potências.

E Salazar não deu mesmo essas independências. Caiu da cadeira em 1968.

A exemplo de Amílcar Cabral, todos os outros portugueses ultramarinos desde os auto-intitulados brancos de 2ª (penso que era assim que o Otelo Saraiva de Carvalho se referia a ele próprio), até aos atletas que vinham para cá (por ex., Rui Mingas e Coluna, Bonga e outros artistas como o Ouro Negro), até ao contínuo bailundo da minha repartição em Luanda, que fez a 4ª classe de adulto, eram todos politizados, assim como o ponta esquerda que veio para o Belenenses e deixou uma vaga para mim.(Algumas vezes repito-me, apenas para localizar e datar factos).

Estas constatações são antes de 1961, sem guerra, sem PIDE, com um à vontade que existia só em África, sem fome, sem frio, também, e principalmente nas sanzalas em ambiente absolutamente tribal (notava-se abastança aos olhos de quem ia das nossas aldeias),  a pouca tropa com as balas contadas e os canos da arma cheios de massa contra a ferrugem.

Porque lá, desde a presença de empresas estrangeiras, os vários portos frequentadíssimos, as missões católicas e protestantes,  alemãs, italianas e americanas, e uma natural fome de informação dos africanos, que na Europa não existe essa fome, é a explicação que eu posso dar para tanta politização.

Mas entre Angola e Guiné há muita diferença na politização do povo das tabancas que vivia e vive tradicionalmente dentro do ambiente puramente étnico.

Enquanto em Angola as etnias são territorialmente muito fechadas e de "costas viradas umas para as outras", na Guiné estão muito em comunicação umas com as outras, e, devido à religião muçulmana e àquele comércio à maneira árabe, toda a Guiné fica aberta interiormente e também com todos os vizinhos desde a Mauritânia até à Serra Leoa.
Quando se fala da carta de Amílcar Cabral para Salazar, essa carta seria totalmente desnecessária, pois que diariamente, no caso em Angola, todos os angolanos dos meios urbanos eram de opinião que,  havendo tanta riqueza nas colónias, Portugal só dificultava a exploração e o desenvolvimento.

Falava-se em ouro, diamantes, petróleo, etc. e "que lhe dessem a independência", que eles sabiam governar melhor.

Isto eram discussões por exemplo na minha recruta, malta com  19/20 anos,  em 1959, em Nova Lisboa, onde éramos 1000, e que no CSM [, Curso de Sargentos Milicianos,], éramos 3 pelotões de infantaria e 1 pelotão de artilharia. Portanto não era conversa em voz baixa.

Mas enquanto que na ignorância devido à idade e desconhecimento do que era África, de quem recentemente tinha chegado àquelas paragens, ficávamos entre calados sem saber se discordar ou concordar, ou até incrédulos se falavam a sério no que diziam "aqueles independentistas". Até tomavam a iniciativa de jogos de futebol Metrópole x Angola, em que só faltava o hino nacional.

Alguns, penso que sonhavam à maneira sulafricana, mas com o tal "lusotropicalismo", em vez do apartheid.

Às vezes ouvia-se falar em novos Brasis, e notava-se urgência nessas intenções. E não misturavam colonialismo com salazarismo nem com comunismo, como cá as pessoas, estudantes principalmente,  faziam. Eles eram mais pragmáticos.

Mais tarde, na Guiné, verificava-se que tinha sido conversa de todos os movimentos, aquela conversa da abundância do ouro,  diamantes e petróleo, pela Europa, Rússia e Américas.

E, notava-se que foi uma propaganda bem montada, no caso da Guiné, que ajudou o PAIGC a "vender a sua luta" interior e exteriormente, tal entusiasmo internacional, na "cooperação", tanto em gente como financeiramente, principalmente durante o governo de Luís Cabral.

Cheguei a conhecer pessoalmente, na pensão da Dª Berta, já no tempo de Nino Vieira, gente que foi de propósito daqui, com indicações "fidedignas" obtidas no Rossio, em Lisboa, que havia algures no Sul da Guiné um lugar onde se viam diamantes a olho nu. Mas isto são outras estórias.

É muito célebre a exploração selvagem de diamantes em Angola, durante a guerra de 27 anos que se seguiu à independência, onde havia garimpeiros e negociantes semiclandestinos desde a Rússia, Checoslováquia, portugueses e africanos de países vizinhos, tudo por causa dessa propaganda das riquezas.

Aquilo foi mais uma invasão do que cooperação, tal a quantidade e variedade de gente, muitas vezes a sobreporem-se. Assistia-se,  por exemplo em Bissau, ver aplicar cabos para telecomunicações, por uma cooperação sueca, e passados uns tempos, a Visabeira portuguesa estava a substituir esses cabos por outros da Telecom.

Mas, como é que Amílcar Cabral sabendo da disposição de Salazar de não dar a independência às colónias, como é que se lembrou de lutar ele próprio por duas colónias simultaneamente?

É que é uma atitude tão ambígua, que até aos caboverdeanos, embora admirassem o conterrâneo (ou descendente de caboverdeano), não cabia na cabeça da maioria aquela ideia. Não eram só uns tantos guineenses que duvidaram do PAIGC, e alguns pagaram com o fuzilamento; em Caboverde já se sabe, alguns caboverdeanos tiveram menos azar, foram reabrir o Tarrafal, quando já fechado, após o 25 de Abril. (Falta comprovar se essa reabertura foi feita pelos governantes portugueses, se pelo PAIGC, ou pelos dois).

Agora, só para nós, que já há muita gente que nos lê, era normal ouvir na nossa praça que,  se "Angola, que era o bom e já vai embora, para que devemos ficar com aquelas ilhas desérticas"?
Igualmente ideias com o mesmo sentido eram emitidas a respeito da Guiné.

É que havia uma explicação do nosso Ministro dos Negócios Estrangeiros daquele tempo, quando lhe perguntavam da urgência da entrega das colónias, que era a seguinte (frase mais ou menos textual,  ouvida na rádio): «Em democracia é assim, se o próprio Algarve diz que quer a independência, temos que lha conceder».

Será que o PAIGC/PAICV arranja alibi para a reabertura do Tarrafal? Eu quero ser imparcial, mas têm que ser eles a escrever também, se não sujeitam-se eles a ouvir.

Enquanto os fundadores do PAIGC/PAICV não escreverem toda a história, que só eles conhecem, podem-se fazer mil conjecturas, as mais imaginativas.

Por exemplo, se alguém disser que o pouco e mal que Portugal colonizou na Guiné em 500 anos, (por falar em 500 anos, no Zimbabué e na Zâmbia, só se pode atribuir 400) foi exponencialmente agravado em prejuízo dos guineenses, por aquele grupo de caboverdeanos do PAICV, de 1963 a 1980 (17 anos).
Com consequências posteriores que se agravam com o tempo.

Podem-se imaginar coisas muito negativas, se não explicarem como foi, desde o julgamento dos assassinos de Cabral, até ao abandono do projecto deste.

Se explicassem se foram eles que usaram a ajuda de Che Guevara e Fidel, ou se foram estes que usaram o PAIGC, para atingir alvos mais importantes, e que os guineenses não passavam de carne para canhão.
Por nunca os dirigentes do PAIGC/PAICV terem explicado as verdades e as mentiras em que basearam a sua luta, é que o povo da Guiné reagiu de braços caídos aos anos de governação de Luis Cabral, até este ser derrubado por velhos combatentes que também não se sentiam enquadrados naquela independência.

Havia uma verdade repetida antes, durante a luta e após a independência, que era a incapacidade de Portugal desenvolver e enriquecer aquela terra, nem fazer universidades, e não fazer o que outras potências importantes faziam nas suas colónias.

Havia uma mentira dita antes, durante a luta e após a independência, que os guineenses logo que fossem independentes não precisavam nada do colon, porque iam fazer tudo "à nossa maneira"... e "os nossos amigos vão-nos ajudar".

Como,  depois, tudo estava a ser feito à maneira alheia ao povo e aos velhos combatentes, e a ajuda dos amigos era dirigida ao Partido e não ao povo, este baixou os braços, e a reação dos velhos combatentes manifestou-se da maneira mais desorientada que se reflete até aos dias de hoje.

Havia também verdades difusas, como por exemplo a tal justiça colonial do Chefe de Posto desumano, com reguadas e cipaios, e que acabariam com a saída do colon, mas ninguém compreendeu qual foi a alternativa que Luís Cabral e aqueles dirigentes  preconizavam.

Evidentemente que,  com dirigentes como aqueles em que até alguns eram advogados, a justiça seria com advogados, juízes de toga e prisões de grades de ferro nas janelas, aí ficaria muito caro sustentar à sombra por exemplo um ladrão de vaca ou ladrão de bajuda ou um desordeiro de tabanca ou bairro.

E, como não aparecia alternativa, enchiam-se as esquadras de Bissau com multidões numa desordem insuportável para qualquer autoridade.

E como Luis Cabral e ministros eram realmente dinâmicos, e julgavam-se intocáveis, mandavam prender sem contemplações de uma maneira que seria inimaginável por um chefe de posto. Rusgas em Bissau caçando indocumentados e sem trabalho, testemunhadas por inúmeros estrangeiros da ONU, soviéticos, suecos..., não podiam acabar bem.

Talvez estas incongruências, tão visíveis, ajudaram  a que houvesse pouca reacção ao golpe de Nino Vieira e àqueles comandantes que se foram suicidando até hoje.

Nunca se devem condenar os africanos de qualquer país, que violentamente têm governado os seus paises, sem atribuir a responsabilidade a quem voluntária ou involuntariamente os levou a tomar o poder.

Muitas vezes foi a própria ONU, a ter essa responsabilidade.

Em suma, há bandeiras conquistadas, há bandeiras impostas e há bandeiras escolhidas democraticamente. Caboverde já tem uma bandeira escolhida democraticamente.

Cumprimentos,
Antº Rosinha
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Nota de L.G.:

(*) Último poste da série > 11 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6971: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (4): Guerra Colonial : dividir para reinar...Quem dividiu quem?

sábado, 18 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P7005: Estórias do Juvenal Amado (31): Desse amor ficou só a nostalgia daquela idade

1. Mensagem de Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74), com data de 17 de Setembro de 2010:

Caros Luís, Carlos, Virgínio, Magalhães e restante Tabanca Grande.
As nossas mulheres acompanharam-nos durante aqueles anos e quando regressámos, de muitos aturaram e trataram as feridas da alma que carregámos.
O alcoolismo, os traumas de muitos, foram duras batalhas que para as quais só elas disseram presente.
Primeiro ficaram chocadas, incrédulas com a agressividade e maus tratos, vinda de quem o regresso tanto tinham desejado.
O seu sofrimento deu lugar à resignação ao abandono.
A História tinha-as usado e deitado fora.
Também elas estiveram na guerra e muitas nunca alcançaram a Paz.
É para elas esta estória, também a dedico à minha mulher que há trinta e um anos me atura e equilibra a minha vida.

Um abraço para todos
Juvenal Amado


Estórias do Juvenal Amado (31)

DESSE AMOR FICOU SÓ A NOSTALGIA DAQUELA IDADE

O Unimog da escolta aparece e desaparece entre as nuvens de pó que a coluna formada por Berliets, Chaimites e Whites levantam quando se dirige ao Saltinho. Serve a dita também para reabastecer Mansambo e Xitole dois destacamentos do Batalhão de Bambadinca.

No Saltinho e a pescaria

Mansambo, Xitole e Saltinho fazem segurança nas respectivas zonas de influência e o aspecto barbudo, os cabelos demasiado grandes bem com o fardamento descuidado dos homens, quase faz o nosso Comandante ter um ataque de «caspa».
O ar reprovador que nós bem lhe conhecemos, deve ter chegado aos ouvidos dos graduados e posteriormente ao próprio Comandante na sede do Batalhão, a que as duas Companhias pertencem.

Viaja normalmente entre os homens da escolta sem galões e de espingarda como qualquer soldado, não vá o diabo tecê-las e ele ser referenciado como alvo importante que é.

Não foi pois de admirar um alferes ou o furriel, ver-se interpelado por um militar cheio de pó, que salta de uma viatura da escolta e grita com ar bem azedo:

- Oh nosso alferes não há barbeiros nesta Companhia?

Escusado será dizer-se que o homem quando chegou ao Saltinho, bem tentou apanhar alguém com o cabelo ou a barba fora dos regulamentos, para descarregar assim a fúria contida.

Estavam os nossos camaradas do Saltinho bem avisados!
Os que não estariam nas melhores condições desviaram-se do seu caminho e evitaram assim algumas chatices.

Mas voltando ao caminho, o pó cobria-me todo. Valem-me os óculos e o lenço no nariz e na boca para me proteger.

Os meus pensamentos voavam para casa, porque a Maria vai chegar depois de sete anos de ausência e eu não a vou poder ver nem estar com ela.
Foi uma paixão tímida de adolescente, pois sendo ela amiga da minha irmã e eu querendo escapar à troça, desmentia a evidência da minha paixoneta que todos conheciam.

Ela era mais velha e eu pensava não estar ao meu alcance essa relação.
Tinha eu dezassete anos quando ela emigrou para outro continente. Passamos a escrevermo-nos, mas a distância e os anos, fizeram esfriar os sentimentos tão pouco amadurecidos.

O rosto dela, a sua recordação e dos bailaricos onde tudo fazia para poder dançar com ela, fizeram-me companhia muitas noites, quando aguardava a rendição no posto de sentinela.
Fazia planos e sonhava acordado.
Pensava no que lhe iria dizer finalmente quando a voltasse a ver.
O que é que haveria afinal entre nós?
Será que recuperaria os sete anos de afastamento onde outros relacionamentos tinham eclodido e esmorecido, como os dias naquelas paragens, onde o dia nasce e morre rapidamente?

Estamos a atravessar uma ponte. Temos de passar com as rodas em cima de travessas de madeira.
Só passa uma viatura de cada vez.

E se nos atacassem agora lá do fundo da bolanha quando eu vou a meio da ponte?

A viagem é lenta por razões de segurança, mas também por causa da picada. Quando chegar ao Saltinho, vou logo tomar um banho no rio. Não estou habituado a ter abundância de água como ali há.

As estações das chuvas estão à porta e eu só regressarei depois quando as picadas ficarem novamente transitáveis.

A vontade de rever a Maria tinha-me levado quase a pedir aos meus pais, que me arranjassem o dinheiro da passagem. Seria um pedido irracional sabendo eu, que eles não têm dinheiro para isso. Irão pedi-lo, se eu levar as minhas pretensões em frente.

Lá está o Saltinho com a sua ponte de arcos em cimento, que parece deslocada na paisagem.
Moderna de mais para as necessidades, parece um monumento ao absurdo, pois começava e acabava em trilhos de terra batida por onde pouco trânsito se faz.
Quando a mandaram construir viram com certeza outro futuro para ela.

No Saltinho a banhos

O rio Corubal corre abundante debaixo dela. A água tão racionada praticamente em toda a zona Leste é ali um bem à mão.

O meu reencontro com a Maria está definitivamente adiado, mas aquelas paragens, iram ajudar a suportar a impossibilidade de a abraçar e regressar ao passado, quando a sua presença me punha o coração aos saltos.
Talvez um dia quando regressar e a encontrar, lhe diga o que foi para mim a sua recordação, as suas cartas bem como as cassetes com a sua voz, nos anos em que estivemos separados, especialmente nos dias e noites do Leste da Guiné.

Voltei a vê-la 12 anos depois.
O passado não se repetiu quando a encontrei.
O meu coração tinha outra dona, que conheci depois de regressar e com quem dividi a vida e os anseios futuros.

Ficou assim por se cumprir uma vida, a certa altura sem queres ou por opção, ou porque fomos empurrados, tomamos caminhos diferentes, que não tiveram retorno.
Restou assim a nostalgia de um amor não concretizado e para sempre perdido na voragem dos dias e anos.

Juvenal Amado

Catroga e a Ponte do Saltinho
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6931: Estórias do Juvenal Amado (30): Quando o passado vem ao nosso encontro

Guiné 63/74 - P7004: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (3): A grande lição do baptismo de fogo

1. Mensagem José Ferreira da Silva* (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 16 de Setembro de 2010:

Caros Camaradas
Junto nova história (Baptismo de fogo), vivida no Oio, para ser registada na série "Outras memórias da minha guerra".

Segue, também em anexo, uma das fotos tiradas, à civil, em Fá Mandinga, no primeiro Domingo de Guiné que, apesar do espanto (e contestação) do Capitão, serviram para acalmar as nossas famílias, com a aparente boa disposição de um grupo de militares amigos em "gozo de férias" na Guiné.
Publiquem se julgarem oportuna.

Um abraço e Parabéns pelos DOIS MILHÕES.
do Silva


Outras memórias da minha guerra (3)

Baptismo de fogo – A grande lição

Fá Mandinga, primeiro domingo na Guiné

A nossa Companhia (Cart 1689) havia chegado a Fá Mandinga nos primeiros dias de Maio de 67. Fizemos treino de adaptação na zona do Xime, em Ponte Varela e no Enxalé. Andámos por lá relativamente à vontade e chegámos a não alvejar o IN, apanhado desprevenido em deslocação, o que serviu de chacota na sede de Bambadinca, ao qual a nossa Cart 1689 estava adstrita (que não era o nosso BART 1913, que fora colocado em Catió).

O certo é que, de repente, apesar da inexperiência de combate, fomos mandados para o OIO (zona de Samba Culo), que era uma das zonas mais perigosas da Guiné, sendo a progressão apeada feita a partir do destacamento de Banjara.

Transportados em viaturas desde Bafatá, chegámos a Banjara, onde fizemos um grande jogo de futebol, no Estádio do Capim, que, apesar de muito aquém das medidas regulamentares, não impediu a nossa vitória expressiva de 7 a 2 contra os desgraçados residentes, que viviam ali mais limitados que o melro enjaulado do meu vizinho. Digamos que com 5 semanas de Guiné, ainda tínhamos bastantes reservas energéticas acumuladas na santa terrinha da Metrópole.

Já passava da meia-noite quando saímos virados a norte. Fomos logo aconselhados a poupar a água, visto que só teríamos hipóteses de reabastecimento, lá para o meio-dia, quando se atingisse um rio.

Ninguém estava habituado a tanto calor, especialmente no interior da mata, onde, de noite, o oxigénio rareava. Daí que a água transportada nos cantis e pelos carregadores que nos acompanhavam, foi desaparecendo com o amanhecer.

Outras 2 ou 3 Companhias também andavam lá pela mesma zona, integradas na mesma operação (Op Inquietar), dando-nos uma confiança ilimitada nos êxitos iminentes. E como durante a instrução na Metrópole, se incutia que o que era difícil era apanhar os “turras” porque, “cobardemente”, fugiam, nós já tínhamos alguns valentões capazes de correr atrás deles, logo que os ataques começassem. Quem os ouvia, incluindo alguns graduados, ficava com a ideia de que a guerra não passava de uma caça ao homem, apanhá-los à mão (descalços, desnutridos, mal treinados e desmilitarizados).

Samba Culo, localizada a sul do Rio Canjambari

Recordo aqui que no RASP (V.N.Gaia), unidade onde foi formado o nosso BART 1913, como despedida, foi efectuado um ataque demonstração, em que eu fui designado para comandar o grupo de assalto. Eu, que sempre trazia bala real na câmara desde os “Rangers” de Lamego (onde as “desviei”), fui advertido e instruído pelo Comandante de Batalhão para que se tirasse o “pau-bala” das cápsulas e fosse substituído por algodão. Mais – foram dadas instruções para agir, segundo a guerra clássica, de capacetes, com os postos marcados e os braços estendidos, a indicar a “metralhadora à esquerda” ou “à direita”, sempre a correr para envolver e aniquilar o IN.

Todos os militares eram dignos discípulos de Marte e tinham também aprendido, mais ou menos, a teoria da cautela e caldos de galinha, que lhes tinham ensinado, mas, com tanta gente e tanta confiança, pensava-se: coitados dos “turras”, se a gente os descobre…

Todavia, também havia alguém que passava o tempo a advertir os soldados dos perigos que poderiam surgir e, também, sobre a falta de água, conforme se veio a verificar com alguns militares, ainda nas primeiras horas da madrugada. Tudo parecia estar a ser descuidado. Era o barulho, as conversas, os espaços demasiado curtos entre os homens, a desatenção, etc. Como reacção às minhas manifestas preocupações, era normal os visados encherem o peito e, até, gozarem:

- Calma, ó meu Furriel. Parece que está com medo.

Cruzámos com malta de outra(s) Companhia(s) e, então, a algazarra parecia a do reencontro dos ciganos na Feira de Espinho, às Segundas de manhã. A dada altura até se perguntava em voz alta:

- Onde está o Alferes tal? Está aqui fulano do Curso de Vendas Novas?

Mais uma horita de progressão e muitas reclamações, eis que se parou, para descanso. Uns instalaram-se logo nesse local e outros foram-se deslocando, à procura de uma sombra das poucas árvores e muitos arbustos. E como se amontoavam, procurei afastar um pouco o nosso Pelotão para a direita e mais para norte. Assistiu-se então ao barulho típico de um pic-nic. Só faltou ouvir-se perguntar pelo presunto e pelo garrafão do “binho berde”. Todos, ou quase todos, estavam de tronco nu, sendo de salientar um alferes que até as calças tirou. As armas encostadas (quase) à balda e as roupas, a enxugar do suor, penduradas nos arbustos, ao sol, transmitiam uma imagem de verdadeira paz e alegria que nem na "Aldeia da Roupa Branca". Digamos até, que com um Cimbalino e um cheirinho a pingar, ficaríamos por ali umas horitas em alegre convívio.

Tudo bem… seria uma maravilha se a guerra fosse assim. Mas (lá vem sempre o filho da puta do “mas”), quando menos se esperava, inicia-se um tiroteio tão perto de nós e a envolver-nos, que parecia que nos estavam já a apanhar à mão, ao mesmo tempo que se ouviam alguns gritos de Colonialistas, Filhos da puta, Salazaristas, fora daqui, ide para Lisboa.

Estávamos todos desprevenidos (alguns dormiam a sesta). Recordo que foram relativamente poucos os que responderam de imediato ao fogo, mas estou seguro que foram esses que, sem pararem, utilizando as armas e munições que apanhavam, evitaram o assalto. A confusão era geral, os gritos permanentes; uns de joelhos pediam a Deus, à querida Mãezinha e ao Senhor Santo Cristo, para lhes valer e outros à Senhora da Saúde e à Nossa Senhora de Fátima. Muitos, desorientados, nem sabiam onde tinham a arma, outros não eram capazes de a apontar e, ainda outros, descarregavam os cartuchos com a arma virada para o céu. E os que estavam perto de uma árvore maior, furavam por baixo dos colegas, amontoados, para ficarem por debaixo, provocando a subida dos outros que, ao verem-se, de novo, por cima, repetiam a operação. Enquanto isso, o “valentão da Lixa”, agarrado ao tubo do morteiro 60, desesperado, sem prato, sem granadas e sem saber o que fazer, gritava:

- Ai querida mãezinha que vamos morrer aqui todos - e pedia, também em voz alta, o apoio da Nossa Senhora de Fátima, com quem, seguramente, havia firmado o contrato do feliz regresso…

Claro que pouco a pouco, todos foram reagindo e assumindo o controlo da situação. Não morreu ninguém, nem sequer houve feridos nesse embate (aparte algumas pequenas escoriações e queimadelas com as armas mais utilizadas). Alguém estava a apontar, por engano, para os nossos camuflados pendurados nos arbustos, porque o dólmen do furriel Cepa tinha 11 (onze!) buracos.

Na mesma operação houve outros embates mas, aí já não eram os mesmos periquitos a reagir. Antes pelo contrário, graças à aflição do Baptismo de Fogo, iniciou-se ali um comportamento responsável e eficaz, que nos acompanhou por toda a comissão de serviço, tendo a Cart 1689 alcançado a Flâmula de Honra em Ouro do CTIG e um prestígio que nos acompanhou até ao fim da comissão.

Silva da Cart 1689
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 8 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6951: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (7): O Miranda e a sua adoração pelo Fê Cê Pê

Vd. último poste da série de 3 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6926: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (2): Alferes do QP Henrique Ferreira de Almeida da CART 1689 / BART 1913

Guiné 63/74 - P7003: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (20 ): Fugindo da guerra civil, de Bissau a Fajonquito, Junho de 1998 (II Parte)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá > 15 de Dezembro de 2009 > Rua principal, com o Rio Geba ao fundo... Do lado direito, a casa das libanesas... A família ainda lá está 40 anos depois... Por aqui, por Bafatá viveu o Cherno Baldé, como estudante, após a independência; e por aqui, a caminho de Fajonquito, fugindo do conflito político-militar que deu origem à guerra civil de 1998/99. Foto do médico e músico João Graça.




Guiné Bissau > Região de Bolama / Bijagós > Ilha de Bubaque > 12 de Dezembro de 2009 > Um bom conselho ou um bom voto ? "Deus dê à Guiné-Bissau uma boa governação"...


Fotos: © João Graça (2009) / Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


Bissau > Safim > 1973 > Cruzamento: Bula e João Landim, à esquerda; Ensalme, a 5 km, à direita... Foto de um militar português, António Rogério Rodrigues Moura, que lá estava aquartelado em 1973...

Cortesia do portal Prof2000 > Aveiro e Cultura Safim




Guiné-Bissau > Bissau > c. 2010 > Cherno Baldé e família (o filho mais velho, à esquerda), no Tabaski ou festa do carneiro. 


Foto: ©  Cherno Baldé (2010) / Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


1. Publicação da 2ª e última parte du texto do Cherno Baldé (*)


A CAMINHO DO REFÚGIO

Safim, Dia 11 de Junho, (Quinta-Feira). (*)


Na manhã do quinto dia (11 de Junho), decidi que desta vez se a Djenaba não quisesse sair, então eu sairia com a minha família, mulher e filho. No entanto, quando lá cheguei, já estavam prontos, na verdade todos os vizinhos já se tinham ido embora. Pegámos nas coisas, metemos algumas provisões num carrinho de mão e rapidamente, atravessámos a bolanha de Bairro Militar. Ainda o fluxo da população era enorme. Seguimos ao longo da estrada que leva a estrada da volta Bissau. A nossa caravana estava constituída de 10 pessoas: Eu, a minha esposa, o filho de três anos de idade[, ,Abduramane Santos Baldé], a minha sobrinha de cinco anos, por um lado, e por outro Djenaba, seus quatro filhos e uma sobrinha, com 13 anos. Portanto, três adultos e sete crianças dos 3 aos 13 anos.

No caminho, pelas informações que circulavam, soubemos que em Safim a multidão era tanta que já era muito difícil encontrar água. Munido desta informação, decidi seguir a via alternativa. Consultámo-nos rapidamente e decidimos tentar chegar até Nhacra. O percurso seria difícil mas aumentava nossas hipóteses de sobrevivência se conseguíssemos lá chegar. Caminhámos para o cemitério de Antula. A minha intenção era atravessar a bolanha, passar para os lados de Cumeré e seguir até Nhacra a uma distância de, talvez, 20 Km.

Era puro palpite, nunca tinha feito esse percurso antes. O raciocínio parecia correcto mas, todavia, ao chegarmos às portas do cemitério,  cruzámo-nos com uma multidão de pessoas que estavam cobertas de lodo dos pés a cabeça, irreconhecíveis, pareciam Nhayés Balantas, informaram-nos que era impossível passar por ali pois o curso d´água estava muito baixo, só pessoas jovens e fortes podiam fazer a travessia, e isto quando havia canoa.

Ao ver o estado deplorável dos nossos interlocutores, não tive qualquer dúvida e tivemos que voltar atrás a fim de procurar o caminho de Safim. Já tínhamos perdido três horas de tempo e as crianças já davam sinais de fadiga. A quantidade de água era insuficiente pelo que comecei a racionar o seu consumo. A alegria das crianças abrandou, no caminho, juntámo-nos à multidão que de todos os lados afluía, seguindo depois pela bolanha que separa o Bairro de Afiá ao Aeroporto de Bissalanca, para tentar chegar a estrada que leva a Safim, para os lados de Djáhal.

Ninguém soube porque tinham fechado as vias de saída para fora, por onde todos podiam sair, transportados em veículos, sem grandes dificuldades. Mas eu sei e a resposta, na minha opinião, é muito simples: Ódios e medos que ganharam as hostes dos militares e antigos combatentes desde 1980. Ódios, medos e velhos demónios trazidos das matas de Oio, Cubucaré e Quitáfine que ainda não tinham sido exorcizados de todo.  

Durante o trajecto ouvíamos o som das explosões das BM [, órgãos de Estaline,] e uma vez pareceu-nos que éramos nós os visados ao ouvirmos o assobio seguido do impacto de uma bomba à nossa frente e nessa altura tivemos que nos deitar ao chão. Foi durante este exercício que o meu filho que viajava em cima dos meus ombros,  caiu estatelando-se no chão. Para além dos bombardeamentos contínuos que pareciam nos perseguir, foi, talvez, o único momento em que ele sentiu, de facto, o perigo em que nos encontrávamos e já não lhe parecia tão divertido andar viajando nos ombros do papai.

Chegámos à vila de Safim quando o sol já começava a descair para oeste pintando o horizonte de vermelho. O maior problema que tivemos foram os bombardeamentos que nos acompanharam ao longo do trajecto, de resto, chegámos em bom estado e, no fundo,  a travessia acabou sendo divertida com as crianças a correr de um lado para o outro numa planície largamente aberta e pitoresca. As paisagens da nossa terra são lindas. Era uma maravilhosa descoberta para eles, crianças de uma cidade caótica, fechadas entre muros e estradas estreitas. Sentia-se o cheiro acre da terra esbranquiçada da bolanha que os pés libertavam na caminhada qual manada de búfalos em corrida tresloucada.

A confusão em Safim, afinal, não era assim tão grande como se dizia, e não tivemos problemas de maior para nos instalarmos. Era preciso preparar rapidamente qualquer coisa para comer e preparar-se para o que desse e viesse. Graças à ajuda de um colega, consegui uma cama para três pessoas. O espectáculo na estrada era impressionante, uma corrente humana afluía de Bissau para o interior, cada um carregando o que podia, acompanhado de suas crianças e até de alguns animais. Esta caminhada era sobretudo difícil, ver impossível para os idosos. Alguns caiam no caminho completamente esgotados, e muitos acabaram por morrer.

Passámos dois dias em Safim, na vã esperança de que tudo ficava resolvido e que tão cedo como isso voltávamos para casa. Tudo se assemelhava a um pesadelo, que insistia teimosamente em transformar-se na mais dura das realidades, daquelas que não queremos reconhecer como tal mas que parecem gozar com a nossa capacidade de entendimento. Todos os dias víamos pessoas a correr para embarcar em camiões que as levavam para longe dali.

Como da primeira vez, a minha decisão de partir chegou tardiamente, pois a Djenaba estava à espera que o seu marido viesse à sua procura. Também eu desejava que assim acontecesse pois senão teríamos grandes problemas com ela e seus filhos pois o seu destino era para o sul e nós devíamos seguir para leste. Todavia, o marido não aparecia. No dia seguinte, decidimos avançar para o centro da vila na esperança de conseguir transporte.     




Guiné > Mansoa > 1968 > CCAÇ 2405 (1968/70) > O Alf Mil Inf Paulo Raposo, membro da nossa Tabanca Grande, junto à placa toponímica que indivaca as localidades mais próximas: para oeste, Nhacra (a 28 km), Bissau (a 49 km)...; para leste, Enxalé (a 50 km), Bambadinca (a 65 km), Bafatá (a 93 km)...

Foto: Paulo Raposo (2006)
                
MANSOA, 13 de Junho (Sábado) - O perigo ainda a espreita



No centro da vila de Safim, apesar do trabalho contínuo dos camiões que transportavam as pessoas para o norte leste e sul, ainda a multidão apinhada junto a estrada era enorme e para conseguir um lugar num desses camiões era uma autêntica guerra e para quem tinha crianças e cargas ainda pior. Como a desgraça nunca vem só, o transporte não era gratuito aliás, os preços tinham subido cinco vezes mais. Fomos parar junto a uma escola, onde pernoitámos. A maioria estendeu-se assim directamente no chão. Consegui arranjar um lugar sentado numa carteira da escola local, apinhada de gente, onde passei a noite com o meu filho ao colo. Na manhã do dia seguinte esperava-nos uma boa surpresa.

O meu colega tinha conseguido, para nós, uma boleia até à cidade de Mansoa. Bem, não era exactamente o que precisávamos mas, nessa altura, com os ruídos e sinais da guerra cada vez mais perto, o que importava era afastar-se o mais longe possível. Quando me informaram, nem sequer nos preocupámos com o pequeno-almoço. Preparámos rapidamente e fomos pegar o camião.

Depois de muitos anos trabalhando como quadro superior da administração com carro de função e regalias, a sensação que senti,  ao embarcar nas traseiras de um camião, foi indescritível. Mais uma vez, isto não era o mais importante, aliás, sem o saber, tínhamos entrado no labirinto onde, cada vez, as coisas tomavam um carácter estranhamente diferente, onde tudo perdia o seu verdadeiro sentido e valor. Ali, pela primeira vez, percebi que o mal era irreversível e com ele a desgraça humana que o acompanha sempre que a ordem é abalada. A pensar que, no meu íntimo, tinha desejado esta sublevação armada, logo a desordem. Não, de facto, não era a desordem que desejara mas sim uma mudança. Mas, é possível fazer a mudança sem criar desordem? Era possível criar, algo de novo, sem destruir? Eis uma questão melindrosa para a qual não tinha resposta.

No geral não nos surpreendeu muito esta inversão de situação, e como eu, as pessoas viviam esta situação de forma absolutamente normal, afinal tinham também vivido a independência, acontecimento que tinha virado o país de pernas ao ar há cerca de 24 anos atrás. O desespero é apanágio das pessoas de pouca fé. Isto não durará para sempre, dizia-me a mim mesmo para me confortar. Na verdade, o medo do desconhecido roía o meu coração de chefe de família e,  chegado a este ponto, lembrei-me do meu pai e da sua coragem nas situações mais difíceis por que tínhamos passado, na infância. Tinha conseguido, finalmente, encontrar a âncora que me faltava neste mar de angústias, o exemplo e a bravura do meu pai.

O camião rolava velozmente para fora de Safim, finalmente tínhamos conseguido sair do inferno situado nos arredores de Bissau. Tentando verificar se estávamos ao completo, acabei reparando em Djenaba, acocorada não muito longe, à minha esquerda. O seu rosto estava banhado em lágrimas. Porque chorava ela? É possível compreender as mulheres? Virou-se para o outro lado como quem queria admirar o andamento das árvores, na verdade, não queria enfrentar o meu olhar recriminatório. Ah, Chita, a nossa cadela, deixámo-la ficar em casa. Era tarde demais.

A nossa partida para Mansoa tinha sido fruto de um puro azar, o que não era de admirar naquelas circunstâncias e, por isso mesmo, não tínhamos ninguém à nossa espera. Descemos do camião e acomodámo-nos na sombra de uma mangueira perto da missão católica enquanto ia pensando sobre a decisão a tomar de seguida. Sabia do enorme esforço que a igreja estava a fazer para ajudar as multidões abandonadas a si, particularmente naquela cidade. Mas, na verdade, imaginando o trabalho que já teriam tido com toda aquela gente, eu não tinha qualquer intenção de sobrecarregá-la com mais pessoas, por enquanto. Fomos,  sim, lá dentro reabastecermo-nos de água.

Mais uma vez, foi um colega que nos encontrou ali casualmente e que nos socorreu, levando-nos para a sua casa. No dia seguinte já estávamos bastante melhor. Estávamos longe do teatro da guerra, tínhamos tomado banho e recuperado um pouco do nosso juízo e amor-próprio.

Todavia, sabia que ainda estávamos numa área potencialmente perigosa, pois a cidade de Mansoa, situada na confluência das principais vias que atravessam o pais, é um corredor natural de acesso às três zonas em que este se divide, Bissau/Centro, Leste/Sul e Norte/Oeste e funcionou sempre como um ponto estrategicamente importante em termos militares e por enquanto estava sob o controlo da Junta Militar [ , de Ansumane Mané,] aliás toda a zona norte estava nas mãos desta, enquanto a zona leste e parte do sul se mantinham fiéis ao governo. Para qualquer das duas partes, pensei, o controlo de Mansoa será indispensável para a conquista do resto do país. Por isso convinha sair dali sem perda de tempo. 

A casa do meu colega estava situado na estrada que liga Mansoa à Mansabá e não muito distante do centro da cidade, por isso, deixámo-nos ficar ali à espera mesmo depois de ter despedido dos nossos benfeitores. Comecei então, a fazer vaivém entre a casa e o centro da cidade à procura de uma solução. Foi com grande alívio  que vi aparecer um camião que já conhecia, e o motorista, um jovem da minha aldeia, quando me viu parou para os habituais cumprimentos. Não foi preciso dizer nada pois era evidente que estava ali à espera de poder viajar até Bafatá a partir donde poderia seguir para a aldeia natal. Explicou-me que tinha que ir até Farim mas que, de seguida, voltaria no mesmo dia à Bafatá.

Ficámos à espera, já, mais confiantes e descontraídos. Consegui finalmente comer alguma coisa para enganar a fome pois a preocupação e a responsabilidade que pesavam sobre mim não me tinham permitido fazê-lo havia muito tempo. A espera não foi demorada. Pode ser que tenha sido, mas não deu para perceber, estava contente de mais pela dádiva que Deus nos concedera.


BAFATÁ, 14 de Junho - Recordações dos tempos de estudante


Na tarde do dia 14 de Junho, uma semana depois do inicio da guerra, chegámos à cidade de Bafatá. E durante a viagem, para já, o único acontecimento de relevo tinha sido o facto do jovem condutor decidir voltar, ainda, até Nhacra antes de virar o rosto do camião para leste. Tive medo sim, por algum momento, por causa dos imprevistos e imponderáveis a que estava sujeito qualquer veículo equipado de motor e assente sobre um monte de ferralha e rodas de borracha. Se acontecesse alguma avaria ao camião seria uma grande desgraça para nós que voltávamos para trás depois de termos alcançado lugares seguros. Era uma aventura perigosa. Para me acalmar, dizia a mim mesmo que não havia razão para entrar em pânico e repetia isso várias vezes à minha consciência, mas sempre que olhava para as crianças o medo voltava a me invadir de novo.

Ao atravessarmos a ponte de Finete, perto de Bambadinca, entrámos na zona controlada pelos governamentais que, a acreditar naquilo que tínhamos visto no caminho, oferecia maior segurança as populações civis. Junto à ponte estava um destacamento de tropas da Guiné-Conacri e alguns tanques de guerra dissimulados no meio do arvoredo. Tudo novinho em folha. Depois de Bantandjan, finalmente, chegámos à cidade de Bafatá.

Mas antes, o camião atravessou a ponte sobre um braço do rio Geba, por onde corria a água turva carregada de material orgânico com que fertiliza as bolanhas nas suas margens, passou pela antiga fábrica de cerâmica, atravessou a rua Porto, passando pelo Liceu, o nosso velho Liceu onde está situado o memorial de Amílcar Cabral e foi parar no Bairro de Sintchã Bonódji,  na saída para Gabú.

Sem contar com o número de pessoas que tinha afluído a esta cidade leste do país, fugindo da guerra de Bissau, não se notava qualquer diferença. Sim, Bafatá era ainda a mesma cidade de sempre, preguiçosamente estendida no dorso de um planalto meio adormecido que tínhamos deixado 27 anos atrás, quando partimos para continuar os estudos em Bissau.

Esta cidade não será, certamente, a pior localidade da Guiné, mas para mim foi um inferno durante uns longos anos dos quais conservo uma péssima recordação dos tempos de estudante. Aqui, de rafeiro saído de um antigo quartel de brancos e filho querido de um lojeiro de uma pacata aldeia que, no fulgor da sua inocência, pontapeava o prato de farinha de milho que a avó lhe trazia a noite, tinha-se transformado num verdadeiro cão vadio. Nunca e em lugar algum tinha merecido tanto este animalesco cognome.

Lembrei-me de Boma (situada à frente do quartel), suas árvores frondosas e a água fresca das suas nascentes onde íamos esconder-se das brasas do calor que arrasavam os Bairros situados na parte mais elevada do planalto e a Ponte Nova e onde, também, íamos enganar a fúria das nossas fomes insaciáveis de estudantes sem tecto, fingindo estudar. O guarda da plantação de mangueiras e cajueiros nas profundezas de Boma cujo nome era Sekuel (1), nos conhecia de cor e deixava-nos assaltar a sua horta, na certeza de que não adiantava muito tentar impedir-nos. Era uma pessoa dotada de grande humanismo e de bom senso, vacilando entre as suas obrigações de guarda e os sentimentos de piedade para com crianças deserdadas. No princípio ainda tentou, mas rapidamente teria notado que, empurrados pela fome, a nossa insistência e capacidade de resistência eram fora do comum. Não tínhamos alternativa. Acabou por nos aceitar como se aceita a presença de animais roedores dentro da própria casa. De facto, durante mais de cinco  anos, conseguimos sobreviver graças a nossa perícia em roubar e mendigar peixe e frutas, ora nos mercados ora nas hortas a volta da Cidade.

Ali estava Bafatá com os seus habitantes avaros e a sua juventude implacável que aceitava mal a invasão da mocidade mal fardada vinda das tabancas ao seu redor a quem apelidavam de mocidade treco (2). O certo é que, por qualquer razão, as nossas fardas destoavam sempre dos da cidade. Foi assim no tempo da mocidade portuguesa e foi assim com os pioneiros Abel Djassi. A farda era a mesma, mas a tonalidade das cores era sempre diferente. As meias, calções e sapatilhas não eram tão castanhos como se devia, a camisa era verde ou azul mas não tão verde ou azul como se devia e isto era motivo de chacota e de corre-corre entre os jovens incautos que tinham aceitado a aventura das paradas e acampamentos na cidade. Faziam-no de propósito, para se divertir.

 Vindos de Contuboel, Gabú, Sonaco, Cossé, Pirada, Bajocunda, Paunca, Pitche, Bambadinca, Quebo, entre outras localidades, e abandonados numa cidade inospitaleira, o nosso bando era formado por jovens de todas as regiões, de todas as cores, com uma particularidade bem marcante. Todos tinham nascido e crescido com a guerra colonial e todos eram originários de antigos centros de aquartelamento de tropas portuguesas e muitos tinham aprendido as primeiras letras com soldados e oficiais portugueses.

Esta era, para todos os efeitos, a primeira geração formada nas escolas portuguesas dentro da comunidade Fula e talvez de todos os grupos étnicos (chamados gentílicos) na zona leste da Guiné-Bissau. A administração portuguesa só tardiamente (com o General Spínola), se tinha resolvido a seguir os conselhos de Teixeira Pinto, ainda no princípio do século XX, de criar escolas para os nativos em todos os postos militares, convencido que, a coragem e irredutibilidade do Guinéu estaria ao mesmo nível do seu obscurantismo (R. Pélissiér – História da Guiné).Mas, no fim, foram o PAIGC e a independência que colheram os louros da formação de quadros iniciada na década de 60 e acelerada a partir de 70.

Quando apanhavam um dos nossos durante os saques, os outros vinham em grupo ajudar o companheiro infeliz. Tínhamos regras a que éramos muito fieis, ajudar um ao outro e nunca faltar às aulas, com ou sem fome. Era a mesma lógica no enfrentar das situações de perigo e de necessidade. Roubar ou morrer de fome.

A nossa estadia em Bafatá, não demorou muito, estávamos apressados. Dormimos uma noite e na manhã seguinte partimos para Fajonquito. Antes de partir, acompanhámos a Djenaba e as suas crianças a fim de apanharem o transporte que os conduziria até Bambadinca donde partiriam para a aldeia dos pais em Cacine, no sul do país. Despendi parte do meu dinheiro para os ajudar a alimentar-se durante o trajecto que seria, longo e, certamente, difícil nessa altura.

Podia estar orgulhoso do meu trabalho, pois apesar das dificuldades, tinha conseguido tirar de Bissau duas famílias,  ou seja 10 pessoas. Também, já não restavam dúvidas que esta guerra iria durar. Foi com este pensamento que me despedi deles e da cidade de Bafatá,  rumo à minha terra natal.

Engraçado, agora que estava a alguns quilómetros da minha tabanca, lembrei-me que o meu filho, nascido e criado na cidade, não sabia falar a nossa língua, como dizem os Fulas, era macaco que não sabia trepar. Também eu, alguns anos antes, não sendo filho de gente da cidade, quando me mudei para Bafatá, ainda não falava o crioulo. O meu filho fazia o percurso inverso num contexto e condições diferentes, porém, havia uma constante, era o mesmo país de sempre, a Guiné-Bissau como a Guiné de Cabo-Verde, no desequilíbrio da balança, oscilando entre a guerra e a paz.

                                                                   
Bissau, de Junho a Dezembro de 2000
                                                                          
Cherno Abdulai Baldé
                                                                                                                                                                                (...) 
 Notas do autor:

1- O sufixo el colocado no fim dos substantivos, na língua fula (Sekuel, Gadamael, Contuboel), empresta-lhes o significado de pequenino(a) e, logo, lindo(a). A beleza, entre os fulas, é algo intimamente associado aquilo que é pequeno, que não é grande.

2- Treco: Personagem caricatural da banda desenhada.

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Nota de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores desta série:

 17 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7002: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (19): Fugindo da guerra civil, de Bissau a Fajonquito, Junho de 1998 (I Parte)

(...) Na madrugada do dia 7 de Junho de 1998, ainda na cama ouvimos, de longe, tiros de armas de guerra. Na manhã do mesmo dia, ouviram-se tiros de armas pesadas acompanhadas de rajadas de metralhadoras. Em casa, apercebemo-nos que se passava coisa séria para justificar tamanho tiroteio. Sentámo-nos a mesa para o pequeno-almoço. Aqueles tiros não nos incomodaram em nada, afinal já tínhamos vivido outros golpes, coisa banal, seriam escaramuças localizadas e algumas mortes mas depois tudo voltava a normalidade. (...).

17 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6864: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (18): A (mu)dança das bandeiras em Fajonquito, em 1974
 (...) Em Fajonquito, o período entre o mês de Junho a Agosto de 1974, tinha sido marcado pela chegada de uma nova companhia (BCaç 4514/72), conhecida entre nós como a companhia de Gadamael; a visita dos primeiros elementos da guerrilha e a saída definitiva das tropas portuguesas de Fajonquito. Período rico em acontecimentos, manifestações de apoio e festas, que algumas vezes assumiam formas dramáticas e outras simplesmente cómicas, mas foi sobretudo um período de indefinição, de ansiedades e de questões sem resposta, relativamente ao futuro. (...)

14 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6735: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (17): A desertificação da nossa terra: até os macacos pára-quedistas nos estão a deixar
(...) O nosso amigo José [Cortes] demorou a reagir mas gostei das imagens da nossa Fajonquito (**). É mais que óbvio que conheci e convivi com ele no quartel e ainda mais sendo responsável do parque automóvel, a minha zona predilecta de actuação. O José, certamente, se lembrara do Sérgio, o responsavel pelo abastecimento do combustível, de resto, como ele diz, faziam parte da mesma companhia, para além dos meus controversos patrões, o Dias e o Magalhães, também me lembro do Mandinga. Gente porreira. (...)

12 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4816: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (12): E se o Algássimo tivesse razão ?

(...) Quando finalmente saía do quartel, a noite, encontrava o Algássimo Djaló à minha espera, ele gostava da sopa (entenda-se comida do quartel) que trazia metida em latas de conservas de tomate. Não podia entrar dentro do quartel, por ordens do seu pai, de princípios rígidos e ortodoxos como todos os seus conterraneos de Futa-Djalon que em tudo se comportavam como perpétuos emigrantes e nunca se integravam nas comunidades locais consideradas de nível inferior, religiosamente falando. (...).

 10 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4806: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (11): Filho da p... de barrote queimado...... Ou as sobras do rancho

(...) Após a última partida [de futebol] da tarde e depois do toque da corneta das 19H30, voltava para o meu cantinho no quartel[,em Fajonquito,] a fim de recolher as sobras do jantar. O meu barulhento patrão, o Dias, raramente trazia alguma coisa do refeitório, ele comia tudo e nem sequer se lembrava de pedir uma segunda dose, ocupado em pôr pitadas nos mexericos e conversas alheias, brigando as vezes quando tomava alguns copos de tinto a mais. Mas, mesmo assim, era ele que ordenava aos outros para me trazerem a comida, assegurava-me prontamente, atirando o seu prato no chão ainda por lavar. (...)

8 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4802: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (10): Futebol: ser do Benfica ou do Sporting, eis a questão

(...) No início eu não sabia que partido tomar entre as duas claques predominantes, Sporting ou Benfica?... Foi o Dias que decidiu. Um dia entrou na conversa dos putos e disse prontamente:
- O Chico é do Sporting, pronto, nós em casa somos todos do Sporting, eu, minha mãe...

O Dias metia a mãe em todas as suas conversas e quando isso acontecia instintivamente eu sentia vergonha, ficava vermelho em seu lugar, entre nós a evocaçao da mãe, logo do sexo feminino, por um homem era sinal de fraqueza e não era bem acolhido entre adultos, iniciados. (...).


5 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4782: Memórias do Chico,menino e moço (Cherno Baldé) (9): Futebol, rivalidades, bajudas... e nacionalismos(s)

(...) O Júllio era um garoto muito estimado entre os colegas do grupo de Sambaro Djau, bem constituído, duro que nem um pau esculpido e ágil como um animal selvagem. No futebol de salão era o mestre no drible de frente a frente. O seu nome verdadeiro era Abibo. Ficámos amigos logo a seguir ao nosso primeiro duelo. Os bons adversários respeitam-se mutuamente, não é?... (...).

27 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4746: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (8): Misérias e grandezas de Fajonquito, 1970/75

(...) No início dos anos 70, Fajonquito é quase um burgo com muitos milhares de almas. Aqui estavam misturadas várias comunidades. Diferentes subgrupos da comunidade fula (Fulas-pretos, Fulas-forros, Futa-fulas), Mandingas (ou do que restava desta comunidade em consequência da guerra), algumas famílias Balantas, Saracolés, Manjacas e mesmo Bijagós que o comércio do amendoím e a guerra tinham trazido consigo. (...).

21 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4714: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (7): As profecias do velho Marabu de Sumbundo

(...) No período decorrido entre os anos de 1972/75, vivendo em Fajonquito para onde mudámos no ano de 1968 na sequência da transferência do meu pai, acompanhava este com frequência, em deslocações às aldeias vizinhas, durante os fins-de-semana. Nessa altura, o meu pai tinha sempre consigo uma bicicleta como meio de transporte para esses casos. Eram, na maioria dos casos, bicicletas usadas que ele raramente montava, não só pela idade que não permitia muito esforço físico, mas também a necessidade ou a obrigatoriedade de falar e cumprimentar cada pessoa com que nos cruzávamos. Eram mantenhas prolongadas que nunca mais acabavam, durante as quais cada um tentava sondar o outro sobre assuntos dos mais variados de seu interesse, coisas de adultos no mundo rural de Fuladu de então. Eu, ao lado, ouvia e ouvia, era quase sempre o mesmo discurso que, na minha opinião de criança apressada, não servia para nada. (...)

13 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4679: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (6): Uma gesta familiar, de Canhámina a Sinchã Samagaia, aliás, Luanda


(...) A minha família, descendente de Fulas originários de Macina, no espaço territorial do antigo Sudão Ocidental (actual Mali), e que se consideram a si mesmos de Fulbhê Arábbhê, cujo significado se deve ter perdido na noite dos tempos e que, no entanto, tem uma similitude muito próxima da palavra Árabe, vivia em Kerewane (uma deformação de Kairuan?), localidade situada entre Kumakara (Senegal) e Saré Bacar (Guiné-Bissau), mesmo na linha da fronteira entre os dois países. (...)

6 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4646: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (5): A família extensa, reunida em Fajonquito, em 1968

(...) Em 1968, , o meu pai foi transferido para Fajonquito e com ele toda a nossa família. Todavia, o meu pai não estava satisfeito com a transferência porque ela tinha provocado a separação com o seu irmão Dembaro, cuja família não podia sair de lá naquela época de rigoroso controlo do movimento de pessoas, por parte das autoridades tradicionais fortemente empenhadas na guerra, sem um pretexto muito forte. (...).

30 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4611: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (4): O ataque dos meus primos a Cambajú e o meu pai que foi um herói

(...) Ainda hoje, a nossa mãe está convencida que este ataque foi obra dos primos do meu pai que viviam do outro lado da fronteira, não muito longe de Cambajú. Aconteceu que, no dia anterior ao ataque, o meu pai tinha recebido uma grande quantidade de mercadorias e, por coincidência, no mesmo dia tinha-se despedido uma pessoa que estava hospedada em casa para tratamento e que voltara junto dos tais primos da outra banda. Assim, nesse dia do ano de 1966, na calada da noite, pouco depois das quatro horas de madrugada, ouvimos tiros. Primeiro os disparos se fizeram ouvir a oeste para os lados do quartel, fazendo pensar que o objectivo era militar, depois se espalharam rapidamente contornando a aldeia.(...).


25 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4580: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (3): A chegada dos primeiros homens brancos a Cambajú em 1965: terror e fascínio

(...) No ano de 1965, altura em que a guerra para a independência se alastrava rapidamente e aterroriza as aldeias daquela área e obrigava a uma concentração maior da população em certos locais com algumas garantias de defesa e protecção militar, Contuboel, Saré-Bacar, Cambajú e Fajonquito constituíam as praças-fortes da área. Em Cambajú foi estacionado um destacamento de milícias que assegurava a defesa da localidade e que mais tarde foi reforçado com um destacamento de tropas portuguesas. Pela primeira vez na minha vida ainda jovem, via pessoas de uma raça diferente. Foi um choque tremendo. (...)

24 de Junho de 2009 > Guine 63/74 - P4567: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (2): Cambajú, uma janela para o mundo

(...) Em Cambajú, pequeno centro comercial, começou o despertar da minha infância, altura em que, saído da pequeníssima aldeia de Sintchã Samagaya, fundada por meus pais, aterrei-me numa aldeia de muito maior concentração de moranças e de gente. Cambaju estava situada mesmo na linha da fronteira com o Senegal, o que lhe emprestava um certo ar cosmopolita onde se cruzavam pessoas de várias origens e destinos e um certo movimento de vaivém de pessoas e mercadorias com as suas três ou quatro casas comerciais, algumas pequenas boutiques e o contrabando pra cá e pra lá das duas fronteiras. (...)


19 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

(...) Foi naquela época que, na idade de 4 ou 5 anos, aconteceu a minha primeira visão de uma máquina voadora, que terá sido, provavelmente em meados de 1964, precisamente na altura em que estávamos em Samagaia, pouco tempo antes do ataque à zona que nos obrigaria a deixar a aldeia para nos refugiarmos em Cambajú, onde o meu pai já se encontrava a trabalhar alguns anos antes. (...).


(...) Estimados amigos e irmãos da Tabanca Grande, não tenho palavras para exprimir a minha gratidão para todos os que lêem os meus escritos e me encorajam. Lamento imensamente não ter o tempo necessário para me dirigir, pessoalmente, a todos e, também, discutir sobre diversos aspectos do que se escreve ou escreveu. A todos as minhas sinceras desculpas. (...)

30 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6661: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (16): Canhámina, 1974: o fim do triângulo da vida e do poder do regulado de Sancorlã


(...) Estamos no ano de 1975, alguns meses após a independência. Só agora começamos a compreender todo o tamanho do trama em que estamos metidos. Pessoalmente, estou na fase da readaptação de uma nova vida. Não é fácil para mim, sobretudo, ter de voltar à comida de farinha de milho preto. De manhã vou à escola e à tarde cuido do nosso gado na companhia de outros miúdos. As dificuldades são de vária ordem mas, na memória da criança não há lugar para a saudade. (...).


18 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6417: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (15): Obrigado, Mortágua, salvaste-me a vida!


(...) Para todos aqueles que conhecem minimamente terras Lusas, Mortágua deve significar uma aldeia, vila, freguesia ou cidade, situadas algures no centro norte de Portugal. Para as crianças "rafeiras" do quartel de Fajonquito por volta de 1970/72, Mortágua era o nome dado a um dos soldados cozinheiros da messe dos oficiais, situada nas traseiras da casa comercial Ultramarina, onde trabalhava o meu pai. (...) O nosso amigo José [Cortes] demorou a reagir mas gostei das imagens da nossa Fajonquito (**). É mais que óbvio que conheci e convivi com ele no quartel e ainda mais sendo responsável do parque automóvel, a minha zona predilecta de actuação. O José, certamente, se lembrara do Sérgio, o responsavel pelo abastecimento do combustível, de resto, como ele diz, faziam parte da mesma companhia, para além dos meus controversos patrões, o Dias e o Magalhães, também me lembro do Mandinga. Gente porreira. (...)

24 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6244: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (14): Cap Figueiredo: Capiton Lelö dahdè ou capitão cabeça inclinada

(...) O que vou dizer pode parecer paradoxal se não incongruente. O Sr. Carlos Borges de Figueiredo, ao contrário de muitos outros, foi um Capitão pacifista pois ele tinha-se distinguido, sobretudo, pela promoção da educação entre as criancas nativas (o número de alunos na escola local tinha aumentado significativamente facto que poderia estar ligado ao ambiente de paz criado e uma grande sensibilidade pelos problemas sociais da população) e organização de eventos sócio-culturais que, não só afastavam, por algumas horas, o espectro da guerra e da morte entre a tropa mas eram também muito úteis e importantes na construção de relações de aproximação e de confiança com a populaçã local, tão prezada por General Spínola. (...). 

12 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6146: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (13): Fajonquito, o blogue, o meu silêncio... e as fotos do José Cortes