quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 – P7807: FAP (60): O destacamento de Nova Lamego ou Recordando o Tcor José Fernando de Almeida Brito (António Martins de Matos)



1. O nosso Camarada António Martins de Matos (ex-Ten Pilav, BA12, Bissalanca, 1972/74, hoje Ten Gen Pilav Res), enviou-nos em 16 de Fevereiro a seguinte mensagem:

O destacamento de Nova Lamego
ou
Recordando o Tcor José Fernando de Almeida Brito
É por todos reconhecido que a Guiné tem apenas uma pequena superfície, ainda assim são cerca de 200 quilómetros entre Bissau e Buruntuma, um voo de DO-27 ou AL-III entre estas duas localidades demora cerca de hora e meia, três horas para ir e voltar.
Foi com base nesta evidência que, durante a guerra colonial, a FAP acabou por decidir estabelecer um destacamento em Nova Lamego, duas aeronaves, respectivos pilotos e mecânicos, um meteorologista e um responsável pelos bidões de combustível necessários para as missões.
Pretendia-se com este núcleo dar uma maior prontidão às evacuações de feridos e doentes do Leste da província.
O mais graduado dos militares assumia o pomposo título de “Chefe do Destacamento”, oficialmente passava a ser o representante da FAP no Leste, nada que se deitasse fora, fosse ele Alferes ou Furriel, era como se fosse equiparado a Tenente-coronel.


O destacamento funcionava com um carácter permanente, o pessoal ia rodando e sendo rendido semanalmente.
O trabalho por ali acabava por ser um pouco rotineiro, o Coronel Comandante da Zona Leste tinha à sua disposição 15 horas de voo semanais por cada uma das duas aeronaves, para usar como entendesse na sua área de operações, uma vez gastas essas horas as aeronaves já só faziam evacuações.
E, verdade se diga, não havia muitos locais onde ir, o que normalmente acontecia ao longo da semana era uma saída para norte, visitando Paunca, Pirada, Bajucunda e Canquelifá, uma outra para sul com passagem em Canjadude e Cabuca, eventualmente uma terceira a Piche e Buruntuma.
Para os pilotos a melhor situação era deixar o Coronel alargar-se a gastar rapidamente essas tais 15 horas, como a guerra no Leste era ligeira e poucas evacuações ocorriam, apenas umas parturientes, uns apêndices e um ou outro braço partido, o resto da semana transformava‑se num “dolce fare niente”.


No entanto e aqui que ninguém nos ouve, os destacamentos continham algo de preocupante, já para não dizer de muito perigoso, o pessoal envolvido acabava por ficar totalmente fora do enquadramento normal, apenas entregues aos seus conhecimentos, vontades e loucuras.
Grande parte das histórias malucas sobre aviadores que se contam pela blogosfera ocorreram durante destacamentos, e não foi por acaso que a maior parte dos acidentes que a FAP sofreu na Guiné aconteceram igualmente durante esses períodos.
E deixem-me dizer-vos, fico de cabelos em pé quando oiço alguém contar histórias do A ou do B que voavam de porta aberta ou aos loopings ou com uns whiskies no bucho, ou... estes pilotos não deviam nem podiam ser admirados, deviam antes ser referenciados e punidos, não por arriscarem as suas vidas, mas sim por arriscarem as vidas de outros que, sem possibilidades de escolha, acabavam por ter que confiar neles.
Na minha comissão lembro-me de dois destes acidentes, um em Pirada (11-5-72) e outro em Bafatá (12-8-72), dois pilotos na flor da idade que morreram, dois aviões destruídos por “pardaladas aviadoras” e, custa dize-lo, dois Cabos mecânicos, o José Valoura e o António Madeira, não tinha que ser o seu dia, razões mais que estúpidas para se morrer ao serviço da Pátria.


No sentido de se tentar pôr um travão à indisciplina de voo e controlar o modo como as missões se iam desenrolando, de tempos a tempos o destacamento passava a ser comandado por um piloto mais experiente, do QP, verificação in loco de que tudo estava a decorrer de acordo com as Directivas promulgadas.


A introdução já vai comprida, passemos à história.


Alguém veio ter comigo para me dar um recado, chamavam-me ao gabinete do Tenente Coronel, Comandante do Grupo Operacional, não era habitual os Tenentes irem falar directamente com os Deuses, coisa boa não devia ser.


Apenas um parêntesis para recordar que este Tenente-coronel iria mais tarde ser recordado pelos militares da FAP como um dos seus heróis, abatido por um míssil Strela a 28 de Março de 1973, o seu nome José Fernando de Almeida Brito.
O Tenente-coronel Almeida Brito até é um dos dois únicos pilotos da FAP oficialmente declarado como “morto em combate”, isto segundo o site da Liga dos Combatentes, todos os outros que levaram com antiaéreas, mísseis e correlativos não contam, morreram em “acidentes”.
Eu sei, desculpem-me o desabafo, até porque já falei nisto outras vezes, mas, já agora, fiquem sabendo que não me calo enquanto esta afronta não for reparada.


Homem grande e forte, de poucas falas mas sem papas na língua, foi com ele que aprendi a voar DO-27, usava um fato de voo bem desbotado de tantas lavagens, naquela indumentária já dificilmente se conseguia descortinar o seu nome ou o posto.
Amiúde fazia inspecções às pistas do mato, dava um certo gozo acompanhá-lo, por vezes os menos atentos tomavam-no por um mero “sargento barrigudo”, quando se apercebiam do equívoco já era tarde, não estivesse a pista nas devidas condições e... ia tudo à frente.
Dizia o que tinha a dizer, doesse a quem doesse, pouca gente o viu sorrir, o homem era daqueles que oscilavam entre o sério e o muito sério.
E, para que fique claro, deixou muitas saudades.


Apenas chegado ao seu gabinete, logo me disse de rompante:
- “Ó Matos, venha cá, vai fazer um destacamento a Nova Lamego!
Há por lá uma data de chatices, é verdade que ultimamente só temos mandado Furriéis, aquilo está a precisar de entrar nos eixos, vai por uma semana, parte amanhã”.


E pronto, nem ses nem talvezes, nem okeis que, como já referi, o homem era de poucas palavras, as ordens dele não se discutiam, eram para se cumprir.
Só que não me disse que chatices se teriam passado e eu não podia ir assim no escuro, tinha que saber mais qualquer coisa, ainda fui perguntar aos Furriéis, certamente deveriam saber o que tinha corrido mal, não se descoseram, deveriam estar comprometidos com qualquer coisa.
Finalmente o Cabo que me ia acompanhar no destacamento acabou por me pôr um pouco ao corrente das últimas novidades (os Cabos sabiam sempre tudo), o pessoal do Exército estava em ascendente, já punham e dispunham do avião como muito bem entendiam e, para o cúmulo, um Major acabara de participar de um dos pilotos, só porque o rapazito tinha chegado cinco minutos atrasado à hora estipulada para a partida de um dos voos.


OK, os dados estavam lançados, recapitulando, ter atenção ao que estava estipulado em termos de Directivas, ter atenção aos horários e identificar e não mais perder de vista o tal Major.


Na manhã seguinte lá me preparei para o destacamento, a saída de Bissau seria logo ao início do dia, um DO-27 e o meu Cabo mecânico, verificação junto do Serviço da Carga sobre o que havia a transportar, apenas três passageiros e uns caixotes.
Só que um dos passageiros era... Major!
E não é que o passageiro Major, sem ninguém lhe perguntar nada e completamente a despropósito, resolveu mostrar serviço, entrar pelo bar dos pilotos adentro, a perguntar alto e bom som, quem é que ia com ele para o GABU?
- “Senhor Major, aqui ninguém vai consigo, o senhor é que vai comigo”, toma lá que já almoçaste.
Logo o Cabo a falar-me ao ouvido, “Este Major é um pouco desbundado mas até é porreiro, o mau é um outro…”.
Pronto, ok, tudo bem, mas, pergunta de periquito, afinal quantos Majores havia lá pelo Gabu?
Manga deles, que o mau até era fácil de identificar, andava de bota alta e pingalim.
Ok, já tinha planeado que este Major haveria de ir sentado lá atrás no meio da carga, convidei-o a sentar-se ao meu lado, durante o voo fizemos as pazes.
Viagem sem problemas, quem foi o tonto que disse que na Guiné não havia nevoeiro, o que vale é que o AL-III ia à frente e tinha um modo óptimo de o afastar.


Apenas chegados a Nova Lamego e logo a prioridade maior se revelava, parquear as aeronaves em condições de segurança.
Existiam dois locais perto da pista, ambos protegidos por bidões cheios de terra, era aí que estacionavam o DO-27 e o AL-III, os mecânicos tratavam de os abastecer a fim de no dia seguinte apenas ser necessário uma simples vistoria antes do primeiro voo.
E ali todos ajudavam, se houvesse uma bomba eléctrica de combustível o abastecimento levava 10 minutos, caso contrário algumas horas, só depois dessas tarefas completadas se iniciava a seguinte, a instalação do pessoal.


Ao que parece haveria dois quartos disponíveis algures junto ao pessoal do Exército, só que os da FAP tinham por hábito dormir junto das aeronaves, uns alojamentos situados junto a um abrigo, daqueles construídos com o auxílio de grossos troncos.
Não era grande coisa, dois compartimentos minúsculos, demasiado quentes e a cheirar a Lion-Brand, banho racionado e ao ar livre, funcionando com o auxílio de bidões de água colocados estrategicamente sobre o tecto dos quartos.
Confesso, teria preferido o quarto lá do quartel, mas os “cabos velhos” insistiam que, além de mais operacional, era muito mais agradável o acordar por aquelas paragens.
Com aquela “boca” de ser mais operacional calavam-me, só que os seus olhares cúmplices e sorrisos matreiros, indicavam que deviam de me estar a preparar alguma...
Mesmo assim acabei por ceder e lá nos instalámos.
Aeronaves estacionadas e mochilas nos locais de pernoita, passo seguinte apresentação ao Coronel, saber o que nos estava destinado para o dia seguinte.
Finalmente e com o serviço terminado, o jantar, a comida do quartel era entre o sofrível e o mau, o melhor procedimento era deixarmo-nos levar pelos nossos Cabos, jovens sempre esfomeados, ou não tivessem eles vinte anos, conhecedores exímios das possibilidades de restauração em N Lamego, quase serviço “a la carte”.
Mais tarde e depois de algumas bazucas abaixo e mais uns whiskies, o sono a instalar-se, pesado e fundo, a esperança de não acontecer nenhum ataque durante a noite, que, a haver, “não estou com disposição para me levantar da cama”.


Com a manhã a chegar, logo o mistério que os “velhos” me tinham feito recear, acabava por ser desvendado, alguém me acordava movimentado-me o sexo, acima e abaixo, em ritmo bem compassado.
Subitamente acordado, logo reparei na intrusa, vinda não sei de onde, negra e jovem, eventualmente demasiado jovem, seios erectos e sorriso matreiro.
Acordar destes só em África, de imediato um movimento envolvente no sentido de a tentar agarrar, logo ela rindo e recuando, dizendo com ar malicioso:
“Ná ná, nem qui foras Tinente”.
E assim como tinha aparecido, sumiu-se num instante.
Certamente devia já estar farta de Cabos e Furriéis, para a próxima noite ainda pensei dormir com os galões bem à vista, para ela ver o que era um Tenente de verdade, podia ser que a sorte mudasse...
Não mudou.
E, verdade verdadeira, nunca mais a vi, não devia conhecer os postos da tropa.


Dois dias depois e ao ir saber junto do Coronel quais as missões para o dia seguinte, encontrei finalmente “O Major”, a bota e o pingalim a identificá-lo.
Queria ir a Canjadude e Cabuca e queria sair às 14 horas, frisou, o pingalim a dar toques na bota, “a coisa tá preta”.
“Sim meu Major, para sairmos às 14:00, faça o favor de estar junto à aeronave pelas 13:45.”


No dia seguinte eram 13:30 e já lá estava eu, o Cabo e o avião, os três, alinhados, apreensivos e completamente prontos.
Só que, às 13:45 nada aconteceu...
Até às 13:55 nada aconteceu... disse ao Cabo para pôr o correio dentro do avião e fechar portas.
Às 14:00, não se avistava vivalma, pus o motor em marcha.
Eram 14:05, iniciei a rolagem.
Ao longe, vi aparecer o jeep do Major.
Julgaria ele que eu ia voltar atrás?
Já vos disse, os pilotos de caça reagem em milésimos de segundo...
Passei com o DO-27 bem perto da sua viatura, cheguei à pista e ala que se faz tarde, descolagem em direcção a Canjadude.
E pronto, foi assim que o Major perdeu a oportunidade de ir mostrar as suas botas altas ao pessoal mal vestido lá do mato.
Fui recebido com entusiasmo, levava correio e nada de chatices, todas elas tinha ficado em terra, um cafezito para animar, uns abraços e logo em direcção a Cabuca, a recepção foi semelhante, sorrisos de orelha a orelha.
Descobri entretanto que o Capitão de um destes quartéis (já não me lembro qual) tinha andado comigo no liceu (O Académico), tão pouco me lembro do seu nome, desde sempre usava pêra, capa e batina e cantava o fado de Coimbra.


Quarenta minutos depois da partida e já estava de regresso a N Lamego.
Arrumar e abastecer o avião, o resto da tarde foi de uma tranquilidade absoluta.
À noite o Coronel perguntou-me se a missão tinha corrido bem.
Disse-lhe que sim, o que até era verdade.
O resto do destacamento processou-se sem algo digno de realce.


Com o regresso a Bissau, os respectivos relatórios escritos e entregues, estava pronto a esquecer o destacamento.
Nova chamada para voltar ao gabinete do Tenente Coronel Brito, Comandante do Grupo Operacional.
Mau mau, outra vez?
Coisa boa não deve ser, será que o Major fez outra participação?


Recebeu-me como sempre, com o seu ar sério:
-“Como é que correu o destacamento?
- Bem...
- As Directivas, estão a ser cumpridas?
- Sim senhor...
- E o Major?


Ó diabo, não querem lá ver que o homem sabia da marosca...


- O Major ficou bem...”. Disse a medo.
- “OK, pode ir...”


Como devem saber, os pilotos são todos duros de ouvido, doença profissional, dizem.
Ainda assim, não é que ao sair do gabinete e após fechar a porta, pareceu-me ouvir alguém lá dentro a rir às gargalhadas...
Um abraço,
António Martins de Matos
Ten Pilav da BA12
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:

Guiné 63/74 - P7806: A última missão, de José Moura Calheiros, antigo comandante pára-quedista: apresentação do livro (5): Agradecimentos do autor ao nosso blogue

1. Por lapso, só agora publicamos o agradecimento que o Cor Pára Ref José Moura Calheiros nos dirigiu, no princípio do ano, com referência ao papel do blogue na promoção do seu livro, A Última Missão:

 6/1/2011

Caro Amigo:
 
Pasada a fase as apresentações em Lisboa, Porto e Coimbra e o Natal e ano Novo em casa, chegou a altura de agradecer ao Homem Grande da Tabanca Grande, não apenas a presença no lançamento do livro em Lisboa, mas tambémas excelentes gravações das intervenções - a unica que foi feita,  esqueci-me por completo disso! Ainda bem que se lembrou. E agradecer ainda a publicidade feita ao livro no site da Tabanca Grande.

A única coisa má disto tudo é que continuo sem o conhecer pessoalmente. Tenho uma ideia de termos trocado algumas, poucas palavras no final da cerimónia, mas estava sempre a ser tão assediado pelas pessoas que não estou bem seguro. 

Se necessitar de algo da minha pessoa, estou ao seu inteiro dispor.

Com um forte abraço,
Moura Calheiros

Preço de capa: 27 €

Uma edição
CAMINHOS ROMANOS, Editora
Rua Pedro Escobar, 90 - R/C
4150 - 596 PORTO
Tel./Fax 220 110 532
Telemóvel 936 364 150
e-mail ac.azeredo@hotmail.



2. Comentário de L.G.:

Na realidade, continuamos sem conhecermo-nos pessoalmente... e eu ainda sem ter tido tempo de ler o seu livro: está numa pilha em cima de muitos outros... Como de costume, faço uma primeira leitura em diagonal. E, do que me apercebi, não sei se foi a sua última missão (fica mal a um pára dizer isso...), mas foi seguramente a sua mais nobre missão... Felizmente começam a aparecer algumas notas de leitura, de camaradas nossos. Haveremos de encontrar-nos por aí, nas picadas e bolanhas da cidade e da vida.

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Nota de L. G.:

(*) Último poste da série > 5 de Dezembro de 2010 &gtGuiné 63/74 - P7385: A última missão, de José Moura Calheiros, antigo comandante pára-quedista: apresentação do livro (4): "A História, tal como a ficção, não pode ficar em suspenso sem um epílogo que a justifique e lhe dê um sentido" (António-Pedro de Vasconcelos)

Guiné 63/74 - P7805: Notas de leitura (204) A Última Missão, de José de Moura Calheiros (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Fevereiro de 2011:

Queridos amigos,
Desde o Amadu Djaló e do sargento Talhadas que não lia algo tão arrancado da alma. O coronel Calheiros é despretensioso, não veio à escrita comandado pelos veios literários mas por uma missão onde pesou o estrito sentido do dever: devolver às famílias os corpos de quem morreu em combate.
Um livro a juntar a outros muito bons que a guerra transforma em escrita de valor indiscutível.

Um abraço do
Mário


Uma memória admirável, pessoal e intransmissível:
“A Última Missão”

Beja Santos

O coronel José de Moura Calheiros cumpriu três comissões de serviço, conheceu os três teatros de operações de risco (Angola, Moçambique e Guiné, respectivamente). Na Guiné (1971-1973) foi 2.º Comandante e Oficial de Operações do BCP 12, COP 4 e COP 5 e ainda Comandante do COP 3. Assistiu de perto aos acontecimentos dramáticos de Guidage e nunca os esqueceu. “A Última Missão” é um título feliz para uma vastíssima e ordenada colecção de memórias que entremeiam as notas de viagem de um grupo que voltou a Guidage, em Março de 2008, para acompanhar a exumação de três pára-quedistas BCP 12, 35 anos depois do cerco à martirizada Guidage. Temos aqui, em grande angular, e numa sinceridade sem nenhuma encenação uma longa viagem de memórias à guerra que ele viveu em África ao serviço das tropas pára-quedistas (“A Última Missão”, por José de Moura Calheiros, Caminhos Romanos, 2010).

É um livro de memórias tocante por se sentir que se trata de alguém que se expõe completamente, alguém que se olha ao espelho sem flores de retórica ou à procura da última comenda. A missão é trazer os restos mortais dos soldados Vitoriano, Lourenço e Peixoto, mortos em combate na bolanha de Cufeu, tendo ficado sepultados no interior do aquartelamento. Alguém elaborou um croqui com a localização exacta das campas, dado providencial para o resultado desta última missão.

No acto de embarque, nesse dia 7 de Março de 2008, assalta-lhe à memória a primeira aproximação a África, dá-nos o registo da participação dos pára-quedistas e da sua chegada em Maio de 1963, relata o seu baptismo de fogo, entre outras memórias. A caminho de Bissau, fala-nos do programa “Conservação das Memórias”, criado pela Liga dos Combatentes no sentido de concentrar em alguns cemitérios os restos mortais dos nossos combatentes em África. Assegurado o financiamento para a operação de exumação que decorreu sob o impulso da UPP – União Portuguesa de Pára-quedistas, foram estabelecidos contactos com peritos para se formar a indispensável equipa técnica. Ainda a caminho de Bissau, o coronel Calheiros recorda a sua missão no Norte de Moçambique, entre 1967 e 1969, repertoria momentos de perigo, o sofrimento físico. Refere algo que vi em dois momentos de tormenta, o desespero da sede, militares a molhar os lábios com urina. Dá-nos a descrição de várias operações e é assim que a equipa de missão chega a Bissalanca, onde ficou a aguardar a chegada da equipa técnica.

Dá-nos um registo da sua ida a Bissau e recorda-se da Bissau de 1971, compara o estado da cidade e o viver das populações. De seguida começam os preparativos para a deslocação, a escolha da base para o cumprimento da missão em Guidage. Ponderadas as hipóteses (permanecer em Guidage todo o tempo, aceder a Guidage a partir do Senegal utilizando um hotel de caça próximo ou construir uma base em Farim) optou-se por Farim onde já se tinha alugado duas casas. De novo assistimos ao revolteio da memória, aqueles preparativos do deslocamento para Farim lembraram-lhe as preocupações com as do tempo de guerra em que o kit-bag (saco de bagagem utilizado pelos pára-quedistas) era o albergue com que se podia contar durante o ciclo operacional, a casa ambulante. A coluna segue para Farim, o autor lembra outras colunas, desde a via marítima até à deslocação em Berliet e Unimog, com todas as peripécias imagináveis. Tudo é comparável, buscam-se analogias, pontos de contacto entre o passado da outra missão e esta, apresentada como a derradeira. É um dos aspectos mais atractivos desta prosa eficiente, conduzida pelo olhar, sem sinuosidades nem piruetas líricas. É o que é, o que a recordação consente, como se vivia nas instalações do BCP 12 e que agora está à disposição da missão e assim se vai progredir até Farim, pelo caminho recordam-se minas e emboscadas, a travessia nos rios, assim se chega ao cais de Farim, na margem esquerda do rio Cacheu. Está constituída a equipa, militares, um jornalista e vários peritos indispensáveis para a exumação. A casa de Farim vai detonar memórias sobre o modo de viver dos pára-quedistas, há a nostalgia da base de operações e o repouso físico e psicológico que permitia, ali se jogava às cartas, escrevia os aerogramas, mas também se jogava à bola e até se praticavam os jogos tradicionais que se trazia das aldeias.

Iniciam-se os contactos com agentes de Farim, surgem antigos militares que combateram à sombra da bandeira portuguesa e antigos militares do PAIGC. São relatos humanos, muito humanos, quem escreve está aberto a ouvir e a perguntar, é alguém que toma notas do movimento das ruas e dos usos e costumes. Esse alguém recorda a sua chegada a Bissau, em 1971, a memória põe-no de novo à varanda e então passam em desfile os jovens combatentes, desde os jovens contestatários àqueles que trazem curiosidade e o sentido do dever. Será porventura um dos quadros de memórias mais preciosos e singelos que o autor nos oferece, esse e o das gentes de Farim, desvelando, a propósito, o drama (talvez insolúvel) das pensões de sangue, de invalidez e de reforma daqueles guineenses que combateram ao lado dos portugueses, acreditando ser portugueses. Em torno deste drama (que eu próprio verifiquei em 1991 e 2010) há propostas para desbloquear a situação, todas elas são altamente sensíveis e cheias de riscos se não forem praticadas com o máximo de equanimidade. No seguimento desta dura prova que é mostrar a chaga destes antigos camaradas que continuam a não entender a perda de direitos, o coronel Calheiros debruça-se sobre as famílias dos militares, o seu sofrimento à distância e aqui detém-se sobre aqueles três jovens ainda sepultados em Guidage.

É um relato que impressiona pela ausência de jactância, pelo ânimo da camaradagem e pela franqueza do desnudamento da alma. Já estamos a caminho de Guidage. A última missão, na sua plena acepção, vai agora começar.

(continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7797: Notas de leitura (203) Estudos Sobre o Tifo Murino na Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P7804: Memórias de Mansabá (20): Jornal Bajudo da CCAÇ 1421 (Ernesto Duarte)

1. Em mensagem do dia 8 de Fevereiro de 2011, o nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67), enviou-nos estas páginas referentes a um exemplar do Jornal Bajudo, publicado pela sua Companhia. 

Pelo material enviado fica-se a saber que se tratou de um períódico com grande tiragem, que abarcava vários temas de interesse para a população (militar e civil) local, oferecendo rubricas variadas, tais como: crónicas, turismo, anúncios, poesia, notícias sobre o jet set local, etc.


MEMÓRIAS DE MANSABÁ (20)


JORNAL BAJUDO, EDIÇÃO DA CCAÇ 1421


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OBS: - do editor

- Imagens editadas por Carlos Vinhal.
- O editor não é responsável pela não apresentação completa dos textos nas páginas apresentadas
- Para uma leitura mais cómoda, clicar nas imagens para as ampliar
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7800: Memórias de Mansabá (8): Operação Vaca (Ernesto Duarte)

Guiné 63/74 - P7803: Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 (1) (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva* (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402, , Mansabá e Olossato, 1968/70), ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999, com data de 15 de Fevereiro de 2011:

Meus caros amigos e camaradas,


Junto remeto uns textos da minha lavra relativos às causas da guerra civil bissau-guineense de 1998-99, uma vez que aí me encontrava em missão de soberania, desempenhando, na altura, as funções de embaixador de Portugal. Fui, pois, uma testemunha privilegiada do conflito armado, mas os meus juízos e apreciações, porque subjectivos, poderão não coincidir com os de quem me lê.


O meu amigo, camarada e companheiro de estudos (fomos para a tropa juntos e formámo-nos juntos), Mário Beja Santos, fez recentemente uma recensão sobre o livro de Mário Matos e Lemos,  "Política Cultural Portuguesa em África - O caso da Guiné-Bissau"**. O referenciado foi meu colaborador durante alguns meses, tendo abandonado aquele país, exactamente uma semana antes da eclosão do conflito. Com uma estada de 11 anos em Bissau, Matos e Lemos é, sem dúvida alguma, um profundo conhecedor do dossiê.


Sobre a matéria, concordo, genericamente com a análise do Mário Beja Santos e pretendo complementá-la com a minha visão sobre as causas (próximas e remotas) do conflito, a fim de elucidar melhor o problema. Os textos que envio vão integrar um capítulo de um livro de memórias sobre a guerra civil da minha autoria que está em curso de publicação.


Como se diz na Guiné-Bissau,
Mantenhas


Francisco Henriques da Silva
(Alf Mil da CCaç 2402 - Có, Mansabá e Olossato, 1968-1970;
ex-embaixador na Guiné-Bissau, 1997 a 1999)



Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 - 1/3

Subsistem poucas dúvidas sobre as causas próximas do conflito civil armado da Guiné-Bissau, outro tanto não se poderá dizer das causas remotas da guerra, muito embora para os que conhecem bem aquele território e as suas gentes não seja muito difícil descortinar as razões profundas que levaram àquela situação de conflitualidade.

As causas próximas: do tráfico de armas para Casamansa à destituição de Mané

As causas próximas do conflito tiveram que ver,

Em primeiro lugar, com problemas do foro castrense, ou seja as substituições das chefias militares e a situação das Forças Armadas, em geral. Como, entre outros, refere Roberto Cordeiro de Sousa “o acontecimento que desencadeou o início da guerra civil foi a tentativa de prisão de Ansumane Mané na madrugada de domingo, dia 7 de Junho de 1998.” Trata-se do verdadeiro detonador da conflagração.

Por seu turno, António Duarte Silva salienta que “factores ligados à instituição militar terão constituído as causas próximas da rebelião, sobretudo a insatisfação crescente dos ‘Combatentes da Liberdade da Pátria’ (ou seja, dos ex-guerrilheiros das ‘Forças Armadas de Libertação Nacional’) e as denúncias e ameaças a propósito do tráfico de armas em favor dos guerrilheiros independentistas na área do Casamansa, cujo inquérito parlamentar estava em vias de conclusão (e que, datado de 8 de Junho, ilibava o brigadeiro Ansumane Mané concluindo com múltiplas acusações, do PR ao Ministro da Defesa, entre outros, e várias recomendações de instauração de procedimentos judiciais).”

 O dr. Huco Monteiro, que foi Ministro da Educação do Governo de Unidade Nacional e um dos braços direitos do então Primeiro-ministro, Francisco Fadul, apontou-me que se visava “a despartidarização real da sociedade castrense, a clarificação da sua missão e o ajustamento da sua estrutura, a dignificação e a valorização da função dos militares graças, nomeadamente, à regulamentação da vida e da carreira dos mesmos por textos claros e republicanos”.
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[1] Sousa, Roberto Cordeiro de, “DANÇA DE CADEIRA: Golpes de Estado entre Autoritarismo e a Democracia guineense” in www.didinho.org, p. 10


[2] Silva, António Duarte, “Invenção e Construção da Guiné-Bissau”,  Edições Almedina, Coimbra, 2010, p. 213.
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Em segundo lugar, com o envolvimento de sectores do aparelho de Estado e da sociedade militar e civil guineense na questão de Casamansa, com revelações de impacto quase diárias junto da opinião pública.
Em terceiro lugar, com o agravamento da situação social dos combatentes da Liberdade da Pátria que se agudizava, pelo menos em termos psicológicos, nos meses e semanas que precederam o levantamento de 7 de Junho de 1998 (tratava-se, essencialmente, de um problema social, porém, com óbvias repercussões nas áreas política e militar e, a um tempo, uma causa próxima e remota da insurreição).

Finalmente, com questões do estrito foro político que tinham que ver com as exacções, com os abusos, com o clientelismo, com a corrupção generalizada que geravam desde há muito um sentimento de mal estar e de revolta genuína junto da população. Para além disso, a acentuada personalização do poder em “Nino” Vieira e na sua clique (ou mesmo, o enquistamento num e noutra), num país política, social e economicamente bloqueado.

Esta problemática é visível nas semanas que antecedem o 7 de Junho, maxime no discurso que Nino Vieira pronuncia, na véspera da revolta militar, na Chapa de Bissau, junto ao mercado de Bandim, em que recusa, em absoluto e a qualquer título, abandonar o Poder. Sem esquecermos, igualmente, as vicissitudes do VI Congresso do PAIGC, cujas feridas estavam abertas. Para António Duarte Silva: “... também contribuíram para converter a inicial rebelião numa "guerra de Bissau" quer a conjuntura de crise económico-financeira e social (por exemplo, nos sectores da saúde, educação e administração pública), quer a crise interna no PAIGC, patente no recente e muito contestado VI Congresso.”


As causas remotas do conflito

Como causas remotas poderíamos indicar principalmente os referidos bloqueamentos políticos, económicos e sociais da República da Guiné-Bissau incapaz de encontrar um rumo próprio, a nenhum dos níveis mencionados, quase 25 anos após a declaração unilateral da independência em 24 de Setembro de 1973 em Madina do Boé e cerca de 9 anos depois da queda do muro de Berlim. Problemas estruturais a que o Poder político não sabia dar resposta. Para além disso, mereceria especial referência o problema da identidade nacional da Guiné-Bissau, que se esboçava, factor que não podia ser subestimado no contexto da guerra civil entrecruzando-se em permanência com aqueles bloqueamentos, nem tão-pouco poderia ser subavaliado a nível sub-regional e regional.

Estas causas profundas e remotas do conflito merecem ser analisadas ainda que sumariamente.
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[3] Ibidem.
[4] Leonardo Cardoso confirma estas asserções: “... o conflito político-militar que formalmente começou a 7 de Junho de 1998 com o levantamento de um grupo de homens armados não deve ser visto senão como consequência de um longo período de crise política, económica e social.”, vd. “A Tragédia de Junho de 1998
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 Bloqueamento político, porque

- subsistiam “traços duradouros deixados pelo processo de acesso à independência, no termo de onze anos de luta de libertação nacional, conduzida por um partido armado ...o PAIGC

- os efeitos perversos do sistema de hegemonia política do PAIGC fundado sobre a legitimidade histórica decorrente da sua exemplar guerra de libertação nacional;

- a insuficiente despolitização [leia-se, despartidarização, no sentido que lhe dá Huco Monteiro] das Forças Armadas que, na origem, eram o braço armado do PAIGC;

- a incompleta conversão do PAIGC em partido civil liberto das suas antigas ‘correias de transmissão’ institucionais nas Forças Armadas;

- A difícil adaptação do antigo partido único ao novo contexto político caracterizado pelo pluralismo...”

Para alem destes factores de bloqueamento relativos aos pilares Partido-Forças Armadas e à interconexão entre eles, o verdadeiro Poder estava concentrado num só homem – João Bernardo Vieira -, numa camarilha que ascendeu a esse mesmo poder – ou a parte dele – por meras concessões do Príncipe, num só partido (o PAIGC), dominado pela mesma pessoa e pelo seu pequeno grupo (situação perfeitamente perceptível, por exemplo, em Maio de 1998, no rescaldo do VI Congresso do PAIGC ), acusando já de forma pronunciada a erosão de uma extrema longevidade no exercício do Poder e as consequentes insuficiências na distribuição de favores e prebendas; num regime de fachada democrática, apenas “para inglês ver” que, ao passar os testes impostos pelo exterior, beneficiaria do respectivo apoio e, porque não dizê-lo, do respectivo silêncio.

De eleições alegadamente falseadas (as presidenciais de 1995), à mais do que deficiente – e jamais conscientemente assumida - separação de poderes, passando por todo o tipo de violações de direitos humanos e de abusos de poder e, last but not least, um regime onde campeava a má governação e a corrupção generalizadas.

Era este a traços muito largos o esboço político da Guiné-Bissau de “Kabi.”
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Factos e Comentários”, in Soronda, Revista de Estudos Guineenses, INEP, Bissau, Dezembro, 2000, p. 127.


[5] Koudawo, Fafali, “La guerre des Mandjua – crise de gouvernance et implosion d’un modele de résorprtion de crises”,  in Soronda, Revista de Estudos Guineenses, INEP, Bissau, Dezembro, 2000 – pp. 153-154 


[6] O partido, porém, não era monolítico. A contestação no seio do PAIGC entre o PR e presidente do partido e o Secretário-nacional, Manuel Saturnino Costa,  iria ter dois episódios marcantes, antes da eclosão do conflito armado: em primeiro lugar, a demissão do Governo liderado pelo último, por iniciativa do Chefe do Estado, em Junho de 1997, por alegada incompetência, numa manobra constitucionalmente duvidosa e que gerou várias tensões no seio do PAIGC; em segundo lugar, a vitória “esmagadora”(?) de “Nino” Vieira no VI Congresso do partido “apagando” (?) os focos de discórdia interna de que Saturnino Costa, entre outros (Hélder Proença e Malan Bacai Sanhá), era um dos chefes de fila . 


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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 15 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7439: (Ex)citações (120): Destruição e incêndio do Mercado Central de Bissau (Francisco Henriques da Silva)

(**) Vd. poste de 12 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7769: Notas de leitura (202): Política Cultural Portuguesa Em África O Caso da Guiné-Bissau, de Mário Matos e Lemos (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P7802: Álbum fotográfico de Amaral Bernardo (Alf Mil Med, CCS/BCAÇ 2930, Catió, Cacine, Bedanda, Guileje, Gadamel, Tite, Bolama, 1970/72) (1): O reabastecimento de Bedanda, no tempo das chuvas, através do Nordatlas, com lançamento de pára-quedas






Guiné > Região de Tombali > Bedanda > 1971 > Reabastecimento do aquartelamento e povoação através do Nordatlas e do lançamento  de géneros por pára-quedas,  durante a época das chuvas. Fotos do Álbum de Amaral Bernardo, ex-Alf Mil Med, CCS / BCAÇ 2930 (Catió, 1970/72)... Esteve em 1971 em Bedanda (*), onde foi rendido em Dezembro de 1971 pelo Mário Bravo.

Fotos: © Amaral Bernardo (2011). Todos os direitos reservados.


"Estive em Bedanda, durante 13 meses, sob o comando do capitão de cavalaria Ayala Botto [, CCAÇ 6]. Um grande comandante, um verdadeiro oficial de cavalaria... que nos derretia com mimos: ovos liofilizados e outras delícias, que vinham de Lisboa, de uma fábrica da família...
 
"Estive primeiro em Cacine, que era deslumbrante... Percorri todo o sul, acabando em Bolama, depois de passar por Bedanda, Gadamael, Guileje, Tite... A CÇAÇ 6 tinha fulas e um pelotão de balantas... Em Bedanda, os tipos do PAIGC apareciam nas minhas consultas, nas calmas, disfarçados com a população...
 
"Bedanda, no tempo das chuvas, era inacessível por terra, transformava-se numa ilha. Ficava entre dois rios, o Cumbijã, a oeste e o seu afluente, o Ungariol, a leste e a norte... Era abasteciada  pelos fuzileiros e pela força aérea...
 
"Em 2005 falei com o Nino sobre os ataques a Bedanda, quando ele era o comandante da região sul... Havia malta na tabanca que lhe fazia sinais de luz (com uma lanterna) para orientação do tiro... À terceira, eles acertavam todas...
 
"Os melhores abrigos, à prova do 120, eram os de Guileje... Mas o Spínola proibiu a construção de mais bunkers, queria que o pessoal fosse todo para as valas... Foram tempos muitos duros, tive uma [grande] actividade como médico... e eu próprio cheguei a desejar secretamente ser ferido para poder ser evacuado dali" (Amaral Bernardo, membro da nossa Tabanca Grande, desde Fevereiro de 2007).


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Nota de L.G.:
 
(*) Vd. poste de 16 de Fevereiro de 2011 > Guiné 7799: Os nossos médicos (22): Um pedido de desculpas por uma falsa informação a (e um firme repúdio pelas insinuações de) o ex-Cap Art Morais da Silva, comandante da CCAÇ 2769 (Amaral Bernardo)

Guiné 63/74 - P7801: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (65): Na Kontra Ka Kontra: 29.º episódio




1. Vigésimo oitavo nono da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 16 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


29º EPISÓDIO

Estavam assim os dois graduados, descontraídos, quando para os lados de Padada, onde se situavam as sentinelas metidas na mata, se ouve um tiro aparentemente de arma automática.

Conforme as instruções que havia e que envolviam toda a população da tabanca, um dos militares foi percutir uma velha jante de viatura que se tinha pendurado numa árvore. Era o sinal de alarme para todos o pessoal ir para os abrigos que lhe estavam destinados. Como já havia abrigo para a população civil, aí se reuniram todas as mulheres, crianças e os poucos homens que não pertenciam à milícia. Deve aqui referir-se que a jante, neste caso, desempenhava as funções do “Grande Tambor” existente em quase todas as tabancas ou o característico tronco oco utilizado pelos balantas, maior que os utilizados nos batuques e por isso de som cavo. Todos eles eram tocados sempre que, por motivo importante, era necessário reunir toda a população.

Há dias já se tinha feito um ensaio dessa situação mas agora era a sério. Fora dos abrigos só se encontram os três graduados. Passaram-se uns minutos sem mais nada acontecer. Teria sido abatido um sentinela? Ou apenas o disparo de um deles? A quem? Os três interrogavam-se.

- João, é preciso mandar um grupo de homens ver o que passou com os sentinelas.

Para alívio de todos tão depressa foram como vieram. Aconteceu que um dos sentinelas viu ao seu alcance um porco do mato e, contrariamente a todas as regras, não perdeu a oportunidade de o abater. Claro que não se podia deixar passar este acto sem uma punição, embora pequena dada a pouca formação militar de todos os milícias. De acordo com o João, o milícia em questão integraria a próxima operação apesar de ter participado na anterior e, principalmente, teria que dividir o animal com a tropa metropolitana.

Dado o sinal para acabar a situação de alarme toda a tabanca voltou aos seus afazeres. O Furriel aproveita e vai deitar-se um pouco, tendo o nosso Alferes pedido ao João para mandar chamar o Samba, pois queria falar com ele. Queria resolver a situação da Asmau rapidamente.

Sentados os dois à mesa das refeições foi rápida a conversa. O Alferes disse que já tinha falado com o Adramane e que iam resolver já o assunto. Para abreviar e não haver constrangimentos de discurso pode dizer-se que o Samba deu ao Alferes o equivalente a meia vaca para ficar com a Asmau. Foi um montante muito inferior ao que tinha dispendido, mas o Alferes Magalhães resolve o seu problema e o Samba também.

Passam uns dias e o nosso Alferes, agora mais liberto, dedica-se além dos patrulhamentos, a colher mais informações sobre os hábitos de todos os habitantes da tabanca. Passa a andar mais com o João vendo o evoluir das suas lavras. Ao princípio achava um pouco estranho que os milícias trabalhassem para ele aparentemente de forma gratuita mas agora já sabe que era uma ancestral prerrogativa de qualquer chefe. Os chefes de tabanca e os régulos chegavam a ter lavras longe da sua morança mas perto das moranças dos súbditos, que tinham que as trabalhar para proveito do seu chefe. Aqui, com o Chefe da Milícia passava-se procedimento semelhante. Não será de esquecer que esses mesmos chefes asseguravam o bem estar dos homens que para ele trabalhavam, distribuindo -lhes os excedentes das produções.

Tinha visto a sementeira da mancarra e acompanha agora o crescimento das plantas. Assiste ao aconchegar de terra às mesmas. Repara nas plantações de mandioca com largos sulcos, para melhor drenarem as águas da chuva e também para protegerem as raízes, não ficando fora da terra nem ensopadas em água, quando chove muito. Fica a saber, contrariamente ao conhecimento que tinha, que a raiz da mandioca se pode comer crua, pois vê comê-la aos africanos. Acha muita piada às enxadas de madeira que usam para trabalhar a terra: Autênticas preciosidades da pré-história. Acaba por comprar algumas para levar para a Metrópole quando regressar de vez. Vê que o João guarda a mancarra descascada, destinada a semente, em grandes garrafões de vidro.

Uma das enxadas com que trabalhavam a terra.

Repara nas cabaças de recolher o vinho de palma com forma de grandes peras e sobretudo nos funis feitos com folhas de palmeira, para lá em cima da árvore conduzirem a seiva da incisão para a cabaça.

Em determinado momento de um fim de tarde o rádio-telegrafista vem ter com o Alferes e entrega-lhe uma mensagem acabada de chegar do comando de Galomaro. Não é demais referir que com o rádio que se possuía, um AN GRC 9, só se conseguia comunicar com Galomaro de dia e só em Morse. Se por qualquer motivo, ataque, evacuação, etc. fosse necessário comunicar durante a noite com a sede da Companhia…

Depois de o Alferes ter ido buscar o livrinho de descodificação pôde ver o que a mensagem dizia: Ordem para no dia seguinte fazer uma operação de reabastecimento de munições à tabanca próxima de Cantacunda.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Fevereiro de 2011 Guiné 63/74 - P7794: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (64): Na Kontra Ka Kontra: 28.º episódio

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7800: Memórias de Mansabá (19): Operação Vaca (Ernesto Duarte)

1. Continuando as suas Memórias de Mansabá, o nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67), enviou-mos mais esta mensagem com data de 8 de Fevereiro de 2011:

MEMÓRIAS DE MANSABÁ (19)

OPERAÇÃO VACA

Vieram-me à memória ainda muitas coisas e há milhentos episódios em que eu não estive presente. Falei por vezes no geral, mas eu estive lá e sempre fui observador, e é com muita admiração que eu olho para a capacidade de resistência e disciplina daquela malta. Quanto à resistência havia muito poucos que chegassem aos 70Kg quando regressaram, mas ainda me falta falar de uma operação, a última que foi ir a Mantida... assaltar o curral das vacas.

E lá fomos, por acaso já com alguma euforia, era a última noite fora, caminhos e sítios conhecidos, não chovia, passámos a bolanha, a zona de floresta, o campo de mancarra, uns pela esquerda, outros pela direita, entrada na mata voltados para Morés, e logo no principio lá estavam as vacas presas com cordas. Cada um à sua e retirar o mais rápido possível.

Nem todos tinham jeito para vaqueiros, queriam que as vacas corressem, mas... mas era preciso deixar o campo de mancarra rapidamente e entrar na floresta. Houve algum engarrafamento, até que chegaram os pastores, as vacas tiveram muito medo dos tiros, mais difícil foi segurá-las, muitos deixaram-nas fugir, calámos os pastores, conseguiu-se meia bolanha onde havia uma espécie de ilha com árvores e palmeiras, onde ficámos uns quantos e as armas pesadas. Eles vieram mais fortes, mas um homem da bazuka pôs lá uma ou duas mesmo no sitio. Foi mais um regresso em calma e ainda com muitas vacas que o nosso Capitão ofereceu em grande parte à Tabanca. Tudo que sobre um ponto de vista foi inglório, tinha que acabar também sem grande glória, ou pelo menos algo inserido em toda a ilógica. Acho que naqueles dois anos fiz muito pouco pelo meu País.

Eu sei que foi uma guerra dos soldados e seus familiares, não fomos voluntários, claro que há excepções, fomos porque fomos obedientes e cumpridores, fizemos o que a pátria mandava. Volto a dizer que sou de origem muito humilde, mas tenho o orgulho e a altivez das gentes da serra, não quis, não quero nada, o país nunca aceitou que estava em guerra, também não me parece que seja hoje, que seja amanhã, que reconheça o facto nobre que um indivudúo fez, responder presente quando a pátria o chamou. Continuo a amar a minha pátria com orgulho e lealdade, mas eu sempre a tenho visto por caminhos atribulados, ou pelo menos que eu não gostei, não gosto, não espero nada dela, só gostava que ela pelo menos me deixasse quieto no meu canto, porque cada vez gosto menos das máquinas estatais e dos homens que as conduzem.

Eu gosto da verdade pela verdade, sem peias sem obrigações, que nascem e crescem, porque têm o tal coração enorme, o tal abnegação sem limites.

Sabem bem ver o senhor Luís Graça e o senhor Carlos Vinhal, totalmente independentes terem atingido os números que atingiram.

Não me venham bater por causa do senhor, porque eu bato já em mim, mas foi uma maneira que eu arranjei para dizer um muito obrigado sincero à vossa independência.

Éramos uma companhia cultural, criámos um jornal e tudo.

Ernesto Duarte

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7798: Memórias de Mansabá (7): Recordações sobre o Fur Mil Jaime de Matos Feijão (Manuel Joaquim/Veríssimo Ferreira)

Guiné 63/74 - P7799: Os nossos médicos (22): Um pedido de desculpas por uma falsa informação a (e um firme repúdio pelas insinuações de) o ex-Cap Art Morais da Silva, comandante da CCAÇ 2769 (Amaral Bernardo)



Guiné > Região de Tombali >  Rio Cacine  a caminho de Gadamael; s/d> O Alf Mil Méd Amaral Bernardo, que pertencia à CCS/BCAÇ 2930 (Catió, 1970/72), e passou mais de um ano (1971) em Bedanda (CCAÇ 6).




Guiné > Região de Tombali > Bedanda > 1971 > Vista aérea  


Fotos (e legendas) : © Amaral Bernardo (2011). Todos os direitos reservados.




1. Resposta de Amaral Bernardo, ex-Alf Mil Med, CCS / BCAÇ 2930 (Catió, 1970/72),  ao ex-Cap Art, António Carlos  Morais da Silva comandante da CCAÇ 2769 (Gadamael e Quinhamel, de Janeiro de 1971 a Outubro de 1972) (*)

Ex.mº.Senhor
Coronel Morais da Silva

Após a leitura do seu desmentido ao P7756 da minha autoria, a primeira reacção foi de estupefacção e angústia…e, a seguir ,de constrangimento, em que ainda me encontro. Tinha vivido todo este tempo convicto que a CCaç 2796 tinha sido deslocada de Gadamael meses depois da morte do capitão Assunção Silva e que para essa decisão eu teria contribuído de algum modo, na minha qualidade da médico da CCaç e conhecedor da realidade de Gadamael e da pressão constante que exercia sobre o pessoal aí colocado. 



Mas os factos são factos, e a realidade é que a Companhia só saiu a 12 de Fevereiro de 72, sendo óbvio que a informação é FALSA e IMPERDOÁVEL, como diz! 


Do erro me penitencio e, com humildade e sinceridade, peço desculpa a todos os elementos da CCaç 2796, a toda a TABANCA GRANDE e ao seu Editor Luís Graça, de quem aceito desde já todas as consequências que achar adequadas (incluindo a minha expulsão do Blog, retirada do post, sua correcção…, enfim, o que for por bem  entendido).

O que alegar em minha defesa?... Por mais que procure, só a “convicção” que eu tinha até agora e a espontaneidade e emoção com que escrevi. E quando há Emoção… a Razão deixa praticamente de existir e a Emoção, sempre que pode, trai-nos.



Não houve qualquer intencionalidade (seria absurdo, no tempo da Net, com este blogue e com os intervenientes praticamente todos vivos, com datas e locais…),foi um acto falhado que assumo e com que terei que viver. Mais uma vez peço que aceitem as minhas desculpas, todos.


É obvio que neste ponto, a sua indignação é natural e eu aceito-a , senhor Coronel,  e, se assim o entender e não me tomar por persona non grata, estou disponível para, pessoalmente, num encontro-convívio da Companhia, me retratar. À sua consideração.

Antes de prosseguir, e se me permite, gostava de deixar algumas considerações gerais que, penso, na minha maneira de ver e de estar, ajudarão a melhor entender e a ajuizar a essência do que está em causa quando , na sequência do facto acima referenciado, o senhor Coronel se permite, ainda que de forma aparentemente cuidada, lançar urbi et orbi e através deste meio (de veteranos de guerra na Guiné)  dúvidas sobre a minha conduta médica no terreno, pondo em causa a minha dignidade e obrigações profissionais, assim como a minha atitude enquanto pessoa em relação aos que necessitassem da minha ajuda.

Uma delas diz respeito a um aspecto que é importante trazer para aqui e que merece meditação serena e isenta — a da prática médica na guerra, em situações como as de Gadamael ou outras semelhantes , em que o risco de vida é igual para todos, e só há um médico.



Não vou desenvolver este tema agora, mas gostaria de o poder discutir a frio e estarei sempre disponível para o fazer logo que achado pertinente. Em qualquer fórum.


Deixe-me, contudo, perguntar-lhe: acha que o médico, o único existente neste cenário, não deve pensar na sua segurança, não terá que avaliar o risco, se há condições para poder ser médico, vivo e não morto ou ferido, incapacitado? E se ele for ferido? Quem o trata? E se morrer… será útil a alguém, onde ele era preciso?


Imagine um cenário como o que descrevo (não, não sou eu): médico, miopia incapacitante sem óculos (cerca de seis dioptrias em cada olho), em pânico com os rebentamentos a correr para uma vala ou pseudo-abrigo, de noite, com medo de cair, ficar sem óculos e sem autonomia, que ferido só contará com os cuidados dos enfermeiros, sem possibilidade de evacuação nocturna (salvo em raríssimos casos)… Não, senhor Coronel, sabe bem que este cenário não é filme!

Acha que os médicos, nestas circunstâncias ou idênticas, tiveram a segurança e as condições mínimas para actuar? 



Se calhar esta análise deve ser tomada na devida conta antes de qualquer juízo de valor, digo eu!

Eu estive em algumas situações destas e, não sei bem como (talvez a ainda resistência dos esfincteres), consegui resolvê-las.

Com medo, MUITO MEDO e ANGÚSTIA… Herói? Não, em absoluto. Desejei até, muitas vezes, ser ferido para poder ser evacuado.(Síndrome muito comum em todas as guerras, como sabe).

Às vezes interrogo-me se estas perguntas terão razão de ser, sentido, para um militar de carreira que foi estruturado para situações que, para nós, comuns mortais, era suposto nunca vivermos. Só na ficção. Não sei, sinceramente. (Não entenda que estou a desculpar ou ilibar seja quem for. Estou só a contextualizar.)

Perguntará: Porque não fugiram à mobilização como outros? Porque foram? 



É uma pergunta para a qual ainda não tenho resposta. Mas penso que andará à volta desta:  por ignorância da monstruosidade e aberração que ia vivenciar e, como disse um colega, PARA VIVER EM LIBERDADE NA MINHA TERRA.

Feitas as considerações que me propus e que, penso, importantes no contexto, vou responder às suas insinuações.

Pondo de lado “Este médico deve ter andado distraído durante 11 meses…” ( o senhor Coronel sabe que a guerra na Guiné foi uma distração permanente para os milicianos ,incluindo os médicos!), a sua indignação não pode legitimar, de modo nenhum, que tente pôr em causa, mesmo que insinuando só, a minha conduta como médico, no teatro operacional. Um parênteses só para esclarecer: eu nunca estive em Bissau com médico (a não ser agora,  a fazer formação posgraduada a médicos do Hospital Simão Mendes, antigo hospital civil). Estive sempre colocado em aquartelamentos do sul e só no último mês de comissão em Bolama.



A minha conduta como médico pode ser testemunhada pela hierarquia militar de quem dependia e, que eu saiba, está toda viva, felizmente:

(i) Em Cacine era comandante o cap Magalhães (não sei que posto terá agora), em Bedanda o cap Ayala Botto (depois ajudante do Gen Spínola);



(ii) a CCS de Catió, minha Companhia,  era comandada pelo major Vieira Correia (com quem ainda me encontro quase anualmente na reunião convívio ), em Tite o major Valente, o major Castanheira 2ºcmdt;


(iii) Como disse,  passei o último mês em Bolama, mas não me lembro do nome do comandante; mas estive lá algum tempo com o agora Gen Carlos Azeredo com quem também ocasionalmente me encontro ainda.

Como complemento, (passe a imodéstia,)  acrescento que me foi atribuído um louvor pelo cap Ayala Botto, a nível de Companhia, e outro pelo Com-Chefe (não sei se é assim que se diz), este por proposta do Cmdt de Tite, major Valente, ambos a dar testemunho da minha estrura pessoal e do meu desempenho, quer a nível militar, quer em relação à população civil.(Infelizmente não posso apresentar esses documentos agora porque mudei de casa e o arquivo morto está ainda encaixotado e na aldeia; logo que estejam à mão, penso que no Verão, terei muito gosto em lhe enviar uma cópia, para que conste).



Se outra prova não houvesse, penso que o anteriormente dito me ilibaria das suas insinuações sobre a minha conduta como médico( eu poderia andar distraído, mas as personalidades que acabo de referenciar … todas, e os louvores que recebi por quase 20 meses de mato, por certo não).


Mas, para que fique claro, na data em questão [, 8 de Maio de 1971,] eu já estava colocado em Bedanda  já há meses.

Portanto, o senhor Coronel, por um erro involuntário que cometi (que, repito, me constrange e pelo qual me penitencio) , e sem que as situações em causa possam ter qualquer relação 
 de um lado um erro involuntário de data e a convicção que as minhas recomendações teriam servido para alguma coisa, do outro uma situação dramática, com mortos e feridos e o suposto não cumprimento por parte de um médico dos seus deveres profissionais, independentemente de todos os condicionalismos do momento  põe em causa o meu sentido de dever para com o meu semelhante e a minha dignidade profissional 

“….queira Deus que o autor da falsidade não seja o médico que ocasionalmente em Cacine, se recusou…”. Porquê eu?  pergunto-lhe.  No Batalhão havia mais médicos e, “ocasionalmente em Cacine “  passavam outros médicos.

O que o fez, embora interrogando-se, ao lançar para a praça pública o meu nome profissional 
 AMARAL BERNARDO  colado a uma situação completamente fora do contexto, é incompreensível (para não adjectivar mais) e altamente estigmatizante para mim.


Mesmo com a dúvida, o senhor Coronel teria que tentar certificar-se, com recato e discrição, da veracidade ou não dessas suas INTERROGADAS DÚVIDAS.

Para minha informação — porque não foram apurados os factos no momento em que aconteceram? por certo fez esses diligencias? Porque nunca se soube o nome do médico? O senhor afirma que o "proibiu” (mas não foi em abstracto, teve que ser um médico em concreto) de voltar a Gadamael ? De 8 de Maio  de 1971 a Fevereiro de 1972, não foi mais nenhum médico a Gadamael ? E,  se foi outro, nunca conversaram sobre o assunto?

Para além de ter família e amigos, como toda a gente, sou formador de médicos (de alunos e na posgraduação, incluindo médicos em Bissau, como já referi).Que lhes responderei quando me questionarem por constar que foi lançada a suspeita, num blog de veteranos de guerra, de me ter recusado a prestar assistência a feridos graves? E a todos aqueles que estiveram comigo na guerra, que me deram a sua amizade e solidariedade e em mim confiaram ?



Lamento e respeito o sofrimento que esta situação lhe causou e expressa de forma pungente forma no in+icio do parágrafo: “É com muita dor que, após 41 anos, sou obrigado a recordar e trazer à tona do meu íntimo uma das piores noites que tive em combate….” 

Saberá , contudo, que os flash back (passe o anglicismo) são parte integrante de quem passou por traumas violentos e que estamos (eu estou) sujeitos a tê-los quando existem condições desencadeantes. 



Sem querer comparar o que não é comparável, também vivo, neste momento, duas das mais marcantes vivências da guerra, da minha guerra (todos nós temos a nossa guerra, mesmo quando no mesmo território, e no mesmo espaço temporal):

(i) A minha primeira ida a Gadamael. De forma resumida e poupando detalhes 
— recém- chegado a Cacine , para iniciar a comissão, no do dia seguinte à tarde tive que ir para Gadamael. A informação que me foi dada, é que tinha havido na véspera um violentíssimo ataque, com ida ao “arame” dos guerrilheiros e que havia baixas. Periquito, sem penugem ainda sequer, fui e, ao chegar, dei conta que tinha entrado na guerra: chão e algumas paredes das instalações do aquartelamento com os sinais elucidativos da violência da noite anterior, três militares mortos ( executados a tiro por um guerrilheiro pela abertura superior de uma Daimler imobilizada junto ao arame por fogo IN ; um outro militar não foi morto por ter ficado debaixo dos companheiros ; sem ferimentos físicos , foi evacuado em estado de choque e de profunda alienação mental);  pessoas esgotadas, transtornadas…. Surrealismo puro para quem ainda estava em estado de graça.

Fui ajudado a começar a estar naquele mundo ajudado pelo acolhimento que o cap Assunção Silva e seu pessoal me dispensaram, apesar das circunstâncias! E lá fiquei nessa noite.

(ii) Em Cacine esperávamos nesse domingo a chegada do cap Assunção Silva. Vinha almoçar connosco a convite do cap Magalhães .As horas passaram, chegou a hora combinada para almoçar… mas não veio! Veio a notícia brutal da sua morte em combate,  fora do aquartelamento, no princípio da manhã. Não havia feridos graves.

Ao fim da tarde cheguei a Gadamael( só com o condutor do sintex, como era hábito).O que senti, sinto…deixe que fique na minha intimidade.


Passei lá a noite com os demais da Companhia  e nessa noite, não pertencendo à companhia, oficial, só estava eu, o médico. O capelão, Mário de Oliveira, sediado em Catió, só teve voo de manhã.

Durante todo o dia e a noite, aquela gente, naquelas circunstâncias, esteve entregue e a si mesma e ao seu desespero. Comandava, no momento, com a serenidade, segurança e determinação possíveis, o Alf Mil Fontes que é e está no Porto.

“Pior do que dizerem mal de mim, é não falarem de mim.” Só não lhe agradeço o seu contributo para que eu não caia no esquecimento porque esta insinuação é 'FALSA e IMPERDOÁVEL'

“Nós só valemos o que os outros queiram que nós valhamos.” Mas não pode ser usada uma suspeição que é 'FALSA e IMPERDOÁVEL'.

Ao seu dispor, senhor Coronel.

Cumprimenta
Amaral Bernardo

P.S.-O Mário de Oliveira citado não é o da Lixa.

amaralbern@gmail.com
915676614 / 967070758 / 917745306(93)



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Nota de L.G.:

(*) 16 de Fevereiro de 2011 Guiné 63/74 - P7796: Os nossos médicos (21): É falso que a CCAÇ 2796 tenha sido evacuada de Gadamael para Bissau, por recomendação médica (Morais da Silva, ex-Cap Art)

Guiné 63/74 - P7798: Memórias de Mansabá (18): Recordações sobre o Fur Mil Jaime de Matos Feijão (Manuel Joaquim/Veríssimo Ferreira)

MEMÓRIAS DE MANSABÁ (18)



1. Dois comentários colocados no poste do nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857,
Mansabá, 1965/67), da autoria do Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá
, 1965/67) e Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil da CCAÇ 1422), por motivos evidentes merecem o nosso destaque.


2. O comentário do Manuel Joaquim, publicado no dia 16 Fevereiro, pelas 04h40:

Meu caro Ernesto, um grande abraço.Estou emocionado com a tua referência à morte do Jaime de Matos Feijão. E relembro:

A bordo do Niassa, a caminho da Guiné, numa mesa do bar alguns furriéis redigiam a sua primeira correspondência para ser enviada do Funchal, aproveitando a paragem do paquete. A conversa derivou para os perigos que a guerra nos reservaria. E, blá, blá, blá, falou-se em cálculo de probabilidades e todos aceitaram a ideia de que era praticamente impossível não morrer ninguém de toda aquela gente que enchia o Niassa. Saiu-me uma frase seca: "tenho a certeza de que não regressaremos todos". O furriel Feijão, debruçado sobre uma folha de papel, e com um ar meio perdido, sai-se com uma expressão do género "não sei porquê mas sinto que não vou voltar". Como é óbvio, o tema da conversa acabou ali com gargalhadas forçadas, a minimizar em absoluto tal ideia e a tentar levantar o ânimo do Jaime Feijão, "que ideia mais estúpida, pá!"


Fiquei tão surpreendido que nunca mais me esqueci de tal momento. Eu era radicalmente antimilitarista, anti-guerra. E tinha sido o Jaime a convencer-me a tirar uma foto em farda nº1, farda que ele arranjou e me emprestou para a fotografia. Para quê a foto? Para deixar à minha mãe, mulher do campo aterrorizada com a minha ida para a guerra e sem qualquer noção sobre o "campo de batalha". Dizia o Jaime que, assim vestido, a poderia convencer de que iria chefiar, mandar os soldados fazer a guerra, ficando eu mais resguardado do perigo. A verdade é que me convenceu e fiz tudo para a minha mãe acreditar nisso. Não sei é se acreditou. Pelo desespero mostrado na gare marítima aquando do embarque, é de julgar que não.

Chegados à Guiné no início de Agosto/65, o nosso BCaç 1857 dispersou-se: a minha CCaç 1419 fica em Bissau quase três meses, a CCaç 1420 ruma a Fulacunda e a CCaç 1421, do Jaime, segue para Mansabá, via Mansoa.

Julgo que a 20 e poucos de Setembro/65 a notícia cai na 1419 e atinge-me violentamente: "O Jaime morreu! Como? Porquê?"

Fico por aqui, estou a chorar.


3. O comentário do Veríssimo Ferreira, publicado no dia 16 Fevereiro, pelas 14h00.
Caro Ernesto. Triste mas mesmo muito triste fiquei e estou ao ler este facto, pois que me atinge directamente. Eu estava lá com a minha secção. Como lá fui parar não sei mas estava em Mansabá nessa altura e fui convocado para ir aprender convosco nessa operação e em Manhau o v/comandante nomeou-me para ir à frente naquele local e o Feijão ir-me-ia dando indicações como se actua no mato, mas este (O Feijão) disse: não, este gajo é maçarico vou eu à frente e a secção dele atrás da minha. Assim foi e lá morreu ele por mim.

Algum tempo mais tarde confessei isto a um irmão que trabalhava num daqueles barcos que iam Bissau, não sei se o "Rita Maria" se o "Manuel António" e chorámos juntos. Ainda recordo também as palavras duras daquele v/comandante e dirigidas não sei se prá mata se para o céu lá mesmo em Manhau e após aquele triste desenlace. Tenho mais a dizer sobre isto e um dia espero que possamos conversar. Para já diz-me só uma coisa que me tem baralhado todos estes anos: O alferes Carvalho estava ou não a comandar Manhau, nessa altura embora nessa noite lá não estivesse?

O meu contacto é verissimoferreira@sapo.pt

Fur Mil da Ccaç 1422.

Um abraço e obrigado.


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Notas de M.R.:

Ver também sobre esta matéria o poste:

15 de Fevereiro de 2011 >
Guiné 63/74 - P7793: Memórias de Mansabá (6): Aquele Manhau (Ernesto Duarte)

Guiné 63/74 - P7797: Notas de leitura (203) Estudos Sobre o Tifo Murino na Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Fevereiro de 2011:

Queridos amigos,
A Tina Kramer, que em tempos pediu a ajuda do blogue por razões do seu doutoramento (em preparação) em que vai abordar as memórias dos ex-combatentes dos dois lados, já chegou a Bissau e procede às primeiras investigações. O seu intérprete é o Abudu Soncó.
A Tina promete escrever mais tarde no blogue as suas impressões de viagem. Oxalá que seja bem sucedida e traga dados inéditos sobre as memórias que ali coligimos no nosso blogue.
Junto fotografias que tirei de um daqueles livros horríveis em que se dissecam ratos à procura de tumores, enquanto folheava o livro na Feira da Ladra até me senti agoniado. Depois veio a recompensa, estas pequenas preciosidades que junto.
O livro para o blogue.
Cada vez que vejo estas imagens muito belas de solidariedade como as da tabanca de Matosinhos, penso sempre que podíamos promover a venda destes livros para fazer mais filantropia com quem tanto precisa. Talvez esta sugestão pegue: às sextas-feiras à noite fazermos leilões de dádivas a pensar num objectivo concreto.

Um abraço do
Mário


O Bairro do Pilum, com Bissau ao fundo, há mais de 60 anos

Beja Santos

O comandante Sarmento Rodrigues é o governador que introduz a viragem naquela Guiné praticamente desconhecida na sede do Império. Não só transforma Bissau numa cidade colonial moderna como imprime a nível do conhecimento transformações que, sem exagero, foram inacreditáveis para o espírito da época. Basta pensar no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, nas infra-estruturas abarcando a meteorologia, o combate à doença do sono, o hospital civil, as múltiplas missões científicas, desde as geo-hidrográficas como as zoológicas. Tudo está identificado, António Duarte Silva no seu importante estudo intitulado “A Invenção e a Construção da Guiné-Bissau” documenta inequivocamente esta governação modelar onde se procurou subtrair a Guiné e a sua história do tratamento folclórico e exótico, repondo-a no eixo da civilização.

Foi sobretudo no período do conflito político-militar de 1998-1999 que se perdeu parte significativa do acervo documental que é património do país, tal foi a barbárie da presença senegalesa no INEP (e não só). Várias instituições têm procurado restaurar parte dos danos, pude assistir a uma exposição denominada “Raízes” e onde se mostravam fotografias que antes de intervenção estavam seriamente danificadas e que faziam parte do arquivo fotográfico do INEP.

Dentre os estudos científicos deste período áureo, desencantei na Feira da Ladra um livro que interessa aos especialistas em medicina veterinária “Estudos sobre o Tifo Murino na Guiné Portuguesa”, é seu autor um importante cientista da época João Tendeiro. Como é evidente, não vamos aqui analisar o tifo murino, uma doença infecto-contagiosa dos ratos susceptível de atingir o homem. Na época, esta questão de saúde pública era preocupante atendendo à falta de higiene e saneamento básico. O que acontece é que no interior da obra, para além dos cadernos revelando corpos ao microscópio, para além dos gráficos e imagens de ratos infectados, o autor exibe fotografias de inegável interesse como os arredores de Bissau (caso de Intim e Pilum de Baixo), a fotografia do Laboratório de Veterinária e Indústria Animal bem como a Granja Agrícola e Pecuária de Pessubé, na época a vanguarda experimental no domínio agrícola, foi aqui que Amílcar Cabral começou o seu trabalho quando chegou à Guiné, em 1952.

Mostram-se as fotografias que devem ter sido tiradas na época da missão, na segunda metade dos anos 40. O Pilum de Baixo (ou Cupelum) estava fora de Bissau, a Granja tem um aspecto familiar, parece que ao tempo não havia grandes problemas com a densidade demográfica…

Por se tratar de uma pequena raridade, fica a pertencer ao blogue.

Arredores de Bissau – Pilum de Cima

Caminho para o Pilum. Ao fundo, Bissau

Bairro indígena da Granja Pecuária de Pessubé
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Nota de CV:

Vd. poste de 12 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7769: Notas de leitura (202): Política Cultural Portuguesa Em África O Caso da Guiné-Bissau, de Mário Matos e Lemos (Mário Beja Santos)