sexta-feira, 11 de março de 2011

Guiné 63/74 - P7926: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (81): Na Kontra Ka Kontra: 45.º episódio




1. Quadragésimo quinto episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 10 de Março de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


45º EPISÓDIO

Um dia, encontrando-se Magalhães Faria a almoçar com o filho na “D. Berta”, chega o Dionildo e de chofre diz-lhe:

- C… sabe quem está ali em baixo à porta? A sua primeira mulher.

O filho do Magalhães Faria arregalou os olhos e este ficou lívido.

- E sabe quem está com ela? Aquela bajudinha muçulmana que nasceu em Madina Xaquili, quando lá estávamos e a quem puseram o nome de Sextafeira. Agora está uma mulheraça.

Um NA KONTRA inusitado.

Magalhães Faria não teve como fugir à situação criada pelo Dionildo. Tentou explicar ao filho que era uma brincadeira do Dionildo mas teve que descer ao rés do chão e ir ter com a Asmau e a Sextafeira. Conversaram uns minutos, o suficiente para ficar a saber que a Asmau estava casada, que tivera sete filhos dos quais um morreu, e que vivia em Bafata. Tinha vindo visitar a Sextafeira que vivia com os pais em Bissau. Se Sextafeira estava uma mulheraça no dizer do Dionildo, Asmau com os seus 36 anos, bonita como sempre foi, agora bem vestida, com uma pujança física de fazer inveja até a Sextafeira, podia por a cabeça à roda a qualquer mortal. Se a pôs ou não a Magalhães Faria não se ficou a saber. Despediram-se e aparentemente tudo ficou na mesma.

Com o Dionildo é que as coisas não ficaram na mesma. A Sextafeira mexeu com ele. Um autêntico amor à primeira vista. Fizeram promessas de se tornarem a encontrar.

Decorrem alguns dias até que a guerra parece novamente instalada em Bissau. Ouvem-se tiros, rebentamentos e mais tarde, como sempre acontece, os boatos. A pretexto de uma tentativa de golpe terá sido feita uma nova depuração, e, inexplicavelmente, mais uma vez de balantas por balantas. Ambos, pai e filho, começaram a acusar a instabilidade que agora se estava a viver e resolvem regressar a Portugal.

No Porto, tentando refazer a sua vida profissional Magalhães Faria cria uma pequena empresa de transitários, privilegiando os transportes para a Guiné, destino pouco explorado. Parecia que a África, ou melhor a Guiné, ou porventura ainda a Asmau não lhe saía do pensamento.. O Dionildo passa a ser o seu “braço direito”.

Magalhães Faria não se sente bem a viver só, sem uma mulher a seu lado.

Conhece entretanto uma senhora brasileira com quem vem a casar depois de um curto namoro. Logo na viagem de núpcias, passada no Brasil, entusiasma-se com o país e, chegado a Portugal, prepara as coisas no sentido de o Dionildo ficar à frente do negócio. Parte novamente para o Brasil acompanhado da mulher para, com o apoio do sogro brasileiro, iniciar nova vida profissional. Mantém-se lá alguns anos, com vindas regulares a Portugal.

Magalhães Faria vai a Brasília e visita a Catedral.

O Rio de Janeiro foi visita obrigatória para Magalhães Faria.

Magalhães Faria e a terceira mulher
no Cristo Rei.

Estabelecido a setenta quilómetros de S. Paulo, em Santos, cidade muito interessante com praia ao longo de uma avenida que faz lembrar Copacabana, tem oportunidade de conhecer toda a zona sul do Brasil. Visita as Cataratas de Iguaçú, vai à capital, Brasília, percorre a estrada marginal até ao Rio de Janeiro, passando pela maravilhosa cidadezinha de Parati com as suas casas tipicamente coloniais portuguesas.

Magalhães Faria e sua mulher apreciando a Baía de Santos

Porém, talvez um chamamento semelhante ao da negritude africana, agora a negritude brasileira faz com que esteja por períodos muito curtos em Portugal. Esta negritude vai novamente fazer mudar a sua vida. Agora é a sua mulher que se afasta, não aguentando as duplicidades. Magalhães Faria vê-se de novo em situação de KA KONTRA, semelhante à anteriormente vivida em Portugal.

A história repete-se e da mesma forma não quer também ficar dependente do agora ex-sogro. Regressa a Portugal e assume novamente a direcção da sua empresa, que vinha sendo gerida pelo Dionildo.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 10 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7919: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (80): Na Kontra Ka Kontra: 44.º episódio

Guiné 63/74 - P7925: Historiografia da presença portuguesa em África (41): A Carta de Chamada (A. Rosinha / A. Branquinho / C. Cordeiro / M. Joaquim / J. Amado / A. Guerreiro)





A escolinha do nosso tempo... Ou melhor, do final dos anos 30, princípios de 40... Ao cima as fotos do Presidente da República, Marechal Gomes Carmona  (1869-1951) e do Presidente do Conselho Prof Doutor António Salazar (1889-1970)... 



 




Por cima do quadro preto (no meu tempo era maior e tinha um estrado), uma cópia do cartaz, da autoria do pintor Martins Barata (1899-1970), "A Lição de Salazar", de 1938 (que se reproduz aqui, a cores), com a seguinte legenda: "Deus, Pátria e Família, a trilogia da Educação Nacional"... Fazia parte de uma série de 7 cartazes de propaganda política, de diferentes artistas plásticos, criados com o objectivo de comemorar os 10 anos de governo de Salazar (1928-1938), e distribuídos por todo o país, e nomeadamente, nas escolas. Era então ministro da Educação Nacional o Prof Doutor Carneiro Pacheco (1887-1957), um dos ideólogos do Estado Novo, fundador da Mocidade Portuguesa.


Ainda alguém se lembra da escolinha ? Do cartaz de Martins Barata já não, mas da sala de aula da minha escola primária, sim (na Lourinhã, era um das das 100 Escolas mandadas erigir na 2ª metade do  Séc. XIX pelo benemérito Conde  Ferreira)... bem como da menina de cinco olhos que não aparece na foto... O mobiliário escolar não mudou muito em vinte anos (as carteiras eram as mesmas), se comparado com o período de 1954-1958 em que andei na escola primária. Já não me lembro se aprendi a tabuada através do ábaco, mas penso que não... 

Sobre a "carta de chamada", convirá dizer que é um instrumento administrativo que continua a ser usado pelos serviços de migração de muitos países (incluindo a catual República Popular de Angola)...  (LG)



Fotos: Luís Graça (2010)... (Com a devida vénia... aos organizadores da Exposição "100 Anos de Património: memória e identidade – Portugal 1910-2010; local: Palácio Nacional da Ajuda, Galeria de Pintura do Rei D. Luís I; Lisboa, 30 de Setembro a 21 de Dezembro de 2010; Comissário Científico: Dr. Jorge Custódio... Uma iniciativa do IGESPAR com o apoio da Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República).
 
1. Comentários sobre a "Carta de Chamada" (poste P7917) (*):


(i) António Rosinha


(...) Para evitar a burocracia da Carta de Chamada havia uma solução, era pagar as viagens de ida e volta, com direito a receber a devolução das viagens de regresso, quando passassem seis meses ou um ano, conforme as informações sobre a adaptação à nova terra.

Também era dispensada a Carta de Chamada, a quem casasse por procuração com um residente nas colónias. Foi um meio usado com muita frequência.

Quem era a favor de uma forte ocupação branca das colónias, principalmente Angola, condenava a política de Salazar em que este se contradizia, em que ao mesmo tempo que dizia que era tudo Portugal, e ao mesmo tempo tinha que haver a tal Carta de chamada.

(...) o homem que assinou a minha Carta de Chamada para eu emigrar para Angola, foi assassinado no Norte de Angola nos massacres da UPA. O Norte de Angola, zona cafeeira, podia considerar-se provavelmente que era a única área verdadeiramente colonizada com missões, escolas e uma economia cafeeira importante. (...)


(ii) Alberto Branquinho


(...) Que engraçado vir alguém lembrar a Carta de Chamada (para Angola, mas também, para Moçambique).


Lembro-me perfeitamente de durante os meus tempos de escola primária passados na minha vila, no Alto Douro, haver um colega de turma que esteve durante muito tempo à espera que o pai recebesse a tão aguardada "carta", para poderem zarpar para Lisboa para "apanharem o paquete". Lembro-me que ele já tinha toda a documentação necessária para a transferência de escola, dizer que já tinham as "passagens" e toda a trouxa empacotada para partirem... só o raio da "carta" nunca mais chegava. (...)


(iii) Carlos Cordeiro

(...) Só para lembrar que, até 1970, vigorava o sistema de barreiras alfandegárias entre o continente e os Açores e ENTRE AS PRÓPRIAS ILHAS DOS AÇORES, mesmo às integrantes do mesmo distrito! Só a lei 5/70, depois de mais de um século de lutas contra a a injustiça, veio resolver a injustiça: "É livre a circulação de mercadorias nacionais ou nacionalizadas entre as ilhas adjacentes e entre estas e o continente, cessando quaisquer direitos, impostos ou encargos de natureza semelhante que actualmente a restringem".  (...)

Só mais esta curiosidade: Em 1946, foi constituído nos Açores o "2.º BII 18", o "Batalhão Açoriano". Era constituído por perto de mil militares, cerca de 800 dos quais dos Açores. Dirigiu-se para Nova Lisboa.
E agora, do Livro de José M. Salgado Martins, Regimento de Guarnição n.º 2 (Ponta Delgada, 2011), uma passagem importante:


"Embora a missão primária do 'Batalhão Açoriano', que curiosamente foi render o ''Batalhão Açoriano', fosse a de garantir a soberania portuguesa em Angola, subjacente a esta tarefa estava a ideia de que estes militares (praças), finda a comissão de serviço militar, permanecessem no território como colonos. Esta ideia, já defendida pelo governador de Angola, general Norton de Matos, e continuada pelo ministro das Colónias (Marcello Caetano) visava estancar a emigração para o estrangeiro, aumentar a escassa população branca (e, se possível, especializada) e "recolonizar" os extensos, férteis e vazios territórios do planalto central angolano (...).


Segundo o testemunho do general Altino Pinto de Magalhães, um dos subalternos do batalhão, a preparação dos militares para a sua futura função de colonos prevaleceu sobre a preparação e actividades militares. Neste sentido, foi atribuída uma pequena porção de terreno a cada um, a fim de praticar as técnicas de agricultura e facilitava-se a prática de ofícios especializados (mecânicos, pedreiros, carpinteiros, etc). Ainda com este objectivo, foram desenvolvidas numerosas actividades de aproximação com as entidades civis e população em geral, intenção altamente facilitada pelo afável e integrador das gentes açorianas (...).


Com a mudança do ministro das Colónias, esta política de povoamento foi abandonada, com a justificação da falta de verbas do fundo do Ultramar que apoiava a estada do batalhão, pelo que o seu regresso foi abruptamente decidido [regressam em Dezembro de 1947] (...)
Regressaram 917 militares, tendo 65 permanecido em Angola...".


(iv) Manuel Joaquim

(...) Meu pai emigrou para Moçambique em Setembro de 1959, um amigo convenceu-o a fazê-lo. À partida, para lá das despesas normais de transporte, teve de fazer um depósito de 6.000$00 (garantia para o "devolverem" a Lisboa se não se cumprissem certas condições, não sei quais).Reparem: era carpinteiro e, na altura, cobrava 40$00 por dia de trabalho. Esse depósito, podemos dizer que equivaleria aos rendimentos de 150 dias de trabalho. Arranjou quem lhos emprestasse e lá foi. 


Tinha de pagar as dívidas pois estava empenhado até ao pescoço (filhos a estudar, "pagantes", no colégio Marquês de Pombal tinham-lhe secado a carteira). (...)  Pombal, um concelho de 1ª classe, no centro litoral do país, na Linha do Norte com estação da CP, só começou a ter ensino público para além da 4ª classe na 2ª metade da década 1950/60!  (...).

Mais, sabem que no meu ano (oficial) de incorporação,1962, de todos os mancebos da minha freguesia só dois tinham mais que a 4ª classe?!!! Pois, era eu (no início da carreira de professor primário) e o F. Raimundo (estudante de medicina). Salazar já governava há 30 anos (ou mais)!

Ainda uma nota: meu pai esteve pouco mais de um ano em Moçambique. Contou-me que ganhava 200$00 por dia mas o(s) seu(s) colega(s) preto(s), também carpinteiro(s)como ele, recebia(m) 80$00(!) e uma ração de farinha (para o almoço?). Achava natural que houvesse diferença no salário mas assim tão grande incomodava-o, disse-mo. Não sei se foi por isso que se passou para a África do Sul. Ao menos aqui eram racistas e assumiam a atitude (isto digo eu). (***)


(v) Juvenal Amado


(...) E se ele [, Salazar,] tem deixado Angola ser colonizada, desenvolver-se, se acima de tudo tem ele próprio acreditado na sua propaganda de uma nação de igualdade racial, talvez a história fosse outra.(...) Talvez a guerra não tivesse chegado a rebentar se o desenvolvimento fosse abrangente.


Bem,  eu nisto não acredito. Ia haver mais tarde ou mais cedo problemas entre os colonos e os nativos, aliás como aconteceu na África do Sul. Mas Angola já seria uma grande potência económica e tudo se haveria de revolver como se resolveu mais a Sul. Talvez não fosse necessária 13 anos de guerra, para depois regredirem com uma guerra civil de mais 30. (...)


(vi) Alberto Guerreiro [, leitor, não membro da Tabanca Grande]


(...) Se "ele" [, Salazar,] e os chefes militares daquela época, tivessem aprendido com o que se passou sete anos antes, com os Franceses na Indochina, o que se passava na Argélia e no Congo Belga mais o sonho do Katanga, ter-se-ia evitado muitas vergonhas... Excesso de confiança? O mundo estava a entrar numa nova era, se havia movimentos de libertação, financiados e acicatados (por quem? todos nós sabemos), para depois irem eles para o poleiro, como não haviam de bater à porta de Portugal? O resultado está à vista. (...) (**)
______________


Notas de L.G.:


(*) Vd. poste de 9 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7917: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (13): Emigração para as Colónias, só com Carta de Chamada

(**) Último poste da série > 19 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7146: Historiografia da presença portuguesa em África (40): António Silva Gouveia, fundador da Casa Gouveia, republicano, representante da colónia na Câmara dos Deputados, na 1ª legislatura (1911-1915) (Parte IV) (Carlos Cordeiro) 

(***) Vd. a entrevista da investigadora Cláudia Castelo, autora do livro Passagens para África. O Povoamento de Angola e Moçambique com Naturais da Metrópole (Porto, Afrontamento, 2007), que resuiltou da sua tese de doutoramento em Ciências Sociais pelo ICS -Instituto de Ciências Sociais, ebtrevista essa publicada no sítio do Observatório da Emigração (OEm), e já aqui citada em tempos no nosso blogue:(...) "só em 1962 é que a emigração para as colónias se tornou completamente livre. A pessoa decidia que ia e, desde que tivesse dinheiro para pagar a passagem, podia ir. Mas isto, só a partir de 1962.

"OEm - Até lá o que é que era preciso?

"Até lá, quem quisesse ir, se que não cumprisse determinados requisitos - e os requisitos eram ter estudos superiores, determinados rendimentos ou propriedades/empresas no destino - não podia ir sem pedir autorização ao Ministério. Como é que as pessoas geralmente faziam? As pessoas que não constavam desse quadro muito restrito? Tinham que ter uma carta de chamada de alguém que vivesse nas colónias e a pessoa que estava no destino tinha de se responsabilizar por dar trabalho ou assegurar a subsistência de quem estava a chamar. Isto fazia-se muito em família, ou pessoas das mesmas aldeias, das mesmas terras. E então o Ministério podia autorizar. O Estado queria prevenir, ou queria impedir, que fossem para as colónias colonos pobres que não tivessem emprego no destino e que, de certa forma, passassem uma má imagem do colonizador; como alguém que fosse para as colónias e depois andasse lá a pedir, que não tivesse eira nem beira, que tivesse de ir para o asilo ou que tivesse de ser remetido outra vez para a metrópole - e isso aconteceu também. E isso depois era a expensas do governo colonial, o que também saía caro.


"Até muito tarde houve a insistência, da parte dos governadores coloniais, para que não se abrisse completamente a emigração para as colónias, para impedir também a chegada de pessoas que não tivessem depois forma de subsistência. Porque pessoas que não tivessem determinadas qualificações escolares, ou formação profissional, acabavam por ir concorrer com os nativos, cuja mão-de-obra era praticamente gratuita.

"Portanto, e voltando às motivações, estas devem ter sido muito diversas. É claro que nas pessoas que foram para os colonatos rurais, a motivação seria mesmo fugir a condições de vida muito difíceis na metrópole. Eram jornaleiros, pessoas que viviam uma vida muito dura e que tinham ali o sonho de virem a ser proprietários de uma pequeníssima parcela de terra porque o que lhes era concedido eram quatro hectares. Mas a esmagadora maioria dos colonos seria, de facto, movida pela possibilidade de ascensão social e, no destino, realmente havia essa capacidade de atracção, sobretudo com a alta cotação dos géneros coloniais e, depois do início das guerras coloniais, com o acelerado desenvolvimento económico que Angola e Moçambique tiveram. Angola, salvo erro, era o segundo exportador mundial de café e isso permitiu um desenvolvimento muito notório da economia.

"No final dos anos 50 e dos anos 60, todos aqueles planos de fomento dirigiram muito dinheiro ao desenvolvimento das infra-estruturas e ao desenvolvimento económico e social daqueles territórios e, então, pessoas com altas qualificações, nomeadamente pessoas licenciadas, ou mesmo pessoas com os estudos liceais, médios, jovens que acabaram os seus cursos, viram ali uma possibilidade de emprego e uma situação económica e social bastante favorável" (...).


Guiné 63/74 - P7924: Parabéns a você (226): Artur Soares, ex-Fur Mil Mec Auto da CART 3492 (Tertúlia / Editores)


PARABÉNS A VOCÊ

11 DE MARÇO DE 2011

ARTUR SOARES

Caro camarada Artur Soares*, a Tabanca Grande solidariza-se contigo nesta data festiva.

Assim, vêm os Editores, em nome de toda a Tertúlia desejar-te um feliz dia de aniversário junto dos teus familiares e amigos.

Que esta data se festeje por muitos anos, repletos de saúde, tendo sempre por perto aqueles que amas e prezas.

Na hora do brinde não esqueças os teus camaradas e amigos do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, que irão erguer também uma taça pela tua saúde e longevidade.

__________

Notas de CV:

Postal de aniversário de autoria do nosso ilustre ilustrador Miguel Pessoa

(*) Artur Soares foi Fur Mil Mec Auto da CART 3492/BART 3873, que esteve no Xitole entre 1972/1974

(*) Vd. poste de 11 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5970: Parabéns a você (86): Artur Soares, ex-Fur Mil Mec Auto da CART 3492, Xitole, 1972/74 (Os Editores)

Vd. último poste da série de 10 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7923: Parabéns a você (225): Agradecimento de Fernando Chapouto, ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 1426

quinta-feira, 10 de março de 2011

Guiné 63/74 - P7923: Parabéns a você (225): Agradecimento de Fernando Chapouto, ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 1426

1. Mensagem de Fernando Chapouto, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCAÇ 1426 que entre 1965 e 1967 esteve em Geba, Camamudo, Banjara e Cantacunda, com data de 2 de Março:


AGRADECIMENTO

Quero agradecer a todos os ex combatentes camaradas e amigos pelos parabéns* que me dirigiram por mais um aniversário são só apenas 68 anos e 12 meses penso que me não enganei nas contas se alguém duvidar que me desculpe e para o ano se ainda por cá andar faço 70 e vocês que vejam.


Mas agora desfazer as dúvidas quanto ao dia dos meus anos, vejam:


Pois é, o que se fazia naquela época para não pagarem a multa de 2$50, mas agora se quisesse repor a verdade teria que pagar bem mais.

Oficialmente é o B.I. que conta em casa é o dia verdadeiro do nascimento que é 17FEV, porque só dão prenda e parabéns uma vez.

Para todos os ex combatentes um forte abraço
Fernando Chapouto
Ex-Fur Mil OE
CCaç 1426
Guiné 1965/67
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 1 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7881: Parabéns a você (223): Fernando Chapouto, ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 1426 (Tertúlia / Editores)

Vd. último poste da série de 8 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7908: Parabéns a você (224): António Marques Lopes, Coronel DFA (Reformado), ex-Alf Mil da CART 1690 e CCAÇ 3 (Tertúlia / Editores)

Guiné 63/74 - P7922: Efemérides (62): Op Lança Afiada, triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, 8 a 19 de Março de 1969 (Torcato Mendonça)

1. Mensagem do Torcato Mendonça [, foto à esquerda], a quem em tempos pedi um  depoimento sobre a sua participação na Op Lança Afiada, na sua qualidade de Alf Mil Art, CART 2339 n(Mansambo, 1968/69):


Um abraço a todos. Vai uma nota devido á data e à Lança Afiada. Devido a ela, vai um escrito. Logo escreverei sobre a Operação.
Não é fácil.

Em 8 de Março de 1969, o Agrupamento Norte e a 10, dois dias depois, o Agrupamento Sul, deram início à maior Operação feita no Leste e uma das maiores feitas na Guiné.

A essa operação foi dado o nome de Lança Afiada. Fazem agora 42 anos (*).

- Foi maior pelos meios humanos empregues: cercq de 1300 homens;

- Pelo número de dias, onze;


- Pelos meios empregues, pela zona onde decorreu: margem direita do Rio Corubal, do Xitole àconfluência com o Geba no Xime e daqui a Mansambo e, pela estrada, até ao Xitole;

- Maior ainda pelas elevadas temperaturas:  39º, 43,6º à sombra e 40º a 70º ao sol;

- Maior pelo elevado número de evacuados: 132 (22 feridos e 110 por insolação, doença ou outras causas);

– Menor pelos resultados, apesar do esforço de todos e da completa destruição das bases e do apoio logístico ao IN, em toda essa zona.

Mas aquele recuperou rápido. Há muito que se preparava para nos receber.

Estive lá e tentarei sobre ela escrever. Fui um dos evacuados, durante dois dias. Tenho certa dificuldade em fazê-lo mas irei tentar.

A todos os que nesta operação participaram, de qualquer maneira, o meu Abraço. (**)

Torcato Mendonça
__________

Notas de L.G.:


(*) Total dos efectivos empregues (n=1291) na Op Lança Afiada, que decorreu durante 10 dias: a) Militares: 36 oficiais; 71 sargentos; 699 praças; b) Milícias: 106; c) Guias e carregadores 379. Comandante: Coronel Hélio Felgas.


Vd I Série do nosso blogue, postes de:

15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII: Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas


9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli


14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal

(**) Último poste da série > 9 de Março de 2011> Guiné 63/74 - P7916: Efemérides (60): 4 de Março de 1972, uma data trágica para a família pára-quedista: 6 mortos e 12 feridos, em Gampará, na margem esquerda do Rio Corubal (Victor Tavares, CCP 121/BCP 12, 1972/74)

Guiné 63/74 - P7921: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (14): Celebrando os meus 25 anos

1. Mensagem José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 7 de Março de 2011:

Caros Camaradas
Eis o aniversário que mais me marcou em toda a vida. Foi o 25.º e muito
gostaria eu de o voltar a viver.

Um abraço do
Silva da Cart 1689


Memórias boas da minha guerra (14)

Celebrando os meus 25 anos

Embora me considere amigo de festas, a verdade é que não sou muito de aniversários. E então, tratando-se dos meus, nem se fala. Todavia, como o meu 25.º aniversário foi agradavelmente marcante, sinto vontade de o partilhar.


Cais de Impungueda, Cufar

21.Fev.1968 (Excursão e convívio)

A CART 1689 seguiu em coluna militar de Catió para Cufar. O destino era participar na Op Diabo Negro, nas matas de Nhere e Melinde, na zona de Bedanda. Além da nossa CART 1689, participaram a CART 1687, a CCAÇ 6, Pelotões de Milícias n.ºs 140 e 143 e uma Esq. de Canhões S/R.

Chegados a Cufar, toca a “partir mantenha” com os nossos irmãos da CART 1687, ali “enclausurados” desde o início até ao fim da comissão. Não me lembro do jantar, mas recordo bem (até pelas fotos “indecorosas”, apanhadas em flagrante “delitro” e não publicáveis, para não ferirem susceptibilidades), que foi uma farra até às tantas. Entre aquela malta do mesmo Batalhão 1913 (CARTs 1687 e 1689) havia, ainda, outras ligações através dos Rangers Paz, Branquinho, Nora e Silva, que cedo aceleraram o ambiente.

Eu sabia que iria fazer os 25 anos durante esta Operação. Podia ter solicitado uma atenção ao Capitão para ser dispensado. Mas não o fiz. Por três razões:
Primeiro, porque nos 10 meses passados, ainda não tinha falhado uma única Operação.
Segundo, porque sentia que o meu pelotão precisava de mim, por razões que não convirá aqui referir e
Terceiro, porque gostava de combater medos e superstições.

Não disse nada e entreguei-me à farra como se estivesse a descarregar emoções para uma partida sem regresso. E, parece, que não estava só nesse sentimento.


Passagem por Nhere

22.Fev.1968 (Turismo fluvial e passeio turístico pelos arredores)

As tropas entraram em LDGs no cais Impungueda, rumo a Bedanda. Num barco da coluna fluvial seguiam, à vista de todos, 6 caixões novos (para as possíveis “necessidades”), como mandavam as estatísticas, pois, segundo os programadores de tais Operações (cómoda e seguramente instalados em Bissau), Operação em que não morressem, pelo menos 4 militares, não era uma grande Operação.

A saída de Bedanda, a pé, e já em progressão para combate, estava apontada para as primeiras horas da madrugada e era preciso dormir um pouco, até porque, o desgaste da noite anterior já se fazia sentir. Cada um procurou dormir à sua maneira. Porém, o calor húmido, o cheiro a suor e sem mosquiteiro, colocou-nos à mercê dos milhões de mosquitos, que são os habitantes predominantes destas regiões do sul, depois do anoitecer. Ora, como é óbvio, isso não facilitava nada o desejado repouso. Eu já havia dado voltas e mais voltas, tentando dormir e não via maneira de me safar. Foi então que, ao ver iluminados pelo luar, os caixões (já descarregados do barco), tive a ideia de me meter dentro de um para fugir aos mosquitos.
Assim fiz. E para poder respirar, deixei o canto direito da cabeceira do futuro morador, ligeiramente aberto e “filtrado” com o lenço que costumava trazer ao pescoço. Assim consegui dormir um bom bocado.


Cambança com águas baixas

23.Fev.1968 (Hotel, caminhada, e caça com visita guiada)

O Mafamude, com os seus cento e tal quilos, que não conseguia dormir, veio fumar um cigarro cá para fora, sentando-se em cima do caixão. E como a tampa não estava bem assente, ele ajustou-a. Quando o ar me começou a faltar, não devo ter levado muito tempo a reagir. Nessa altura, já o Mafamude ressonava de bruços sobre o caixão. Acordei aflito e comecei a bater fortemente no tecto da improvisada “suite”, até que o Mafamude, estremunhado, perdido de sono e assustado, levantou-se e gritou:

- F... Já nem os mortos me deixam dormir em paz!

Tentou-se um itinerário diferente do utilizado em Operações anteriores mas, como os guias se desorientaram, rumou-se a sul, para apanharmos a estrada Bedanda – Guilege.

Durante as progressões, passamos por várias clareiras e esperava-se a todo o momento o contacto com o IN, o que, estranhamente, não aconteceu. A frente da coluna atingiu o trilho de Nhere – Caboxanque, por volta das 10h30 e pelas 13h00 fazia-se a abordagem de Nhere, que estava abandonado. Após a sua destruição, fomo-nos instalar próximo dos acessos de Guilege e de Caboxanque, até que, por volta das 17h00, o avião (PCV) deu ordem para o regresso para Bedanda. Penso que o IN não nos contactou, talvez devido à grande dimensão e aparato bélico das NT.

Os guias, que anteriormente não sabiam o percurso, eram agora uns exímios caminhantes. Numa bolanha estavam vacas a pastar e, em poucos segundos, começou o ataque às vacas, de metralhadora, por parte dos milícias, que, de faca de mato em punho, logo acorreram para um animal, caído, furado de balas. Tal como as formigas apareciam imediatamente quando deixávamos cair um lata de conserva, assim esses milícias caíram sobre a vaca. Não levou dois minutos até que cada milícia reaparecesse na coluna com o seu pedaço de vaca às costas, a escorrer sangue ou fezes. Cena incrível! Eu levava uma pequena máquina fotográfica e consegui captar alguns instantâneos.

Porém, adiante, numa cambança, a maré estava muito cheia e não me apercebi da profundidade. Chegando-me a água ao pescoço e molhada a máquina, as fotos ficaram estragadas.
Chegados a Bedanda, foi só festejar. Quando fui dormir, “ela”, a “Ricardina”, envolveu-me de tal ordem que não me lembro de mais nada. Que rico aniversário!


Havia motivos para festejar

24.Fev.1968 (Relax e serviço de voluntariado)

A manhã ia alta quando oiço uns gritos de criança. Mal abri os olhos, vejo-me na enfermaria, em cima de uma maca e o Enfermeiro a aviar os doentes nativos.

- Senhor Doutor - disse ele virado para mim – tem aqui uns casos para resolver.

E eu, meio atordoado ainda, levei uns tempos a decidir o que fazer. Levantei-me a custo e abeirei-me da zona de consultas.

- Então, que problemas temos hoje? – disse eu, mostrando interesse e competência para ajudar.

E seguiram-se várias consultas que, quanto a mim e, ao contrário do que as “más línguas” possam ter dito, só ajudaram os doentes e o Enfermeiro, que se queria ver livre deles rapidamente. Lembro-me de algumas:

- Dotor corpo está musse. Pergunto-lhe: - Em que trabalhas? Mim cá trabalha. Só leva o criança na mãe na bolanha pescar – responde ele.

- Então, se não fazes puto e estás cansado, estás f..... Oh Enfermeiro, dê uma injecção a este gajo, para ele arrebitar.

- Dotor a mim ter manga de frio – dizia outro. - Chega-te para uma fogueira: - respondi. - Sim mas sempre frio nas costa: - respondeu ele.

Então, receitei-lhe:

- Olha, faz outra fogueira e coloca-te no meio das duas.

Quanto às mulheres grandes, com micoses nas mamas caídas e às bajudas, com micoses na catota, receitei sempre a composição 1214, que dava para tudo, até para queimar os tomates. E a nossa tropa que o diga.


25.Fev.1968 (Lar doce Lar)

No regresso a Catió, por Cufar e Camaiupa, não houve problemas. Nem percebemos como foi possível, pensando nos riscos que passávamos quando efectuávamos este tipo de deslocações. Chegado a “casa”, lido o correio, tomado o colossal banho, oiço as queixas do meu macaco que andava em litígio com o nosso “senhorio”, o Capitão (da CCS) “Ternicotim Ternicotão”. Dizia ele em idioma sagui:

- O f.d.p. do capitão continua a querer expulsar-me. - E, na esperança de que eu lhe fosse pedir contas, salta-me para o ombro e acompanha-me até à messe onde, com os habituais camaradas, participámos em mais uma sessão de gastronomia, garbosamente preparada pelo nosso “Doutor Berguinhas”, à custa de mais um cabrito apaixonado pela nossa “Princesa”.(Ver Post 6795).


Nota: 
Se algum elemento pertencente aos agrupamentos militares aqui referidos, vier a fazer qualquer alusão aos sacrifícios e tal e tal e tal, que sofreu durante esses dias “maravilhosos”, julgo que deve ser objecto de participação criminal. Espero também que nenhum deles tenha sido louvado exclusivamente por nos ter acompanhado, quer dizer, ter acompanhado a CART 1689 por estas andanças.

Silva da CART 1689
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7864: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (13): Dom Quixote de Lapin

Guiné 63/74 - P7920: Notas de leitura (215): Jardim Botânico, de Luís Naves (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Março de 2011:

Queridos amigos,
Continua a saga deste belo romance*, a primeira surpresa da colheita de 2011. Recomendo-o vivamente a todos. Tem nervo, os bons ingredientes de um prosa maturada, imagens eloquentes e impressivas.
Luis Naves está de parabéns e o nosso espaço luso-guineense também.

Um abraço do
Mário


Jardim Botânico (2):
Um belo romance português sobre o conflito guineense de 1998-1999


Beja Santos

Aquela guerra, no todo ou em parte incompreensível para os diferentes viajantes que viajam aglomerados até Bafatá, aproxima seres ziguezagueantes à atracção dos polos. Daniel quer à viva força voltar a Bissau, tem documentos escondidos em casa, é a sua esperança em refazer a vida numa mina na Serra Leoa. Ferreira Gomes, seu sócio e antigo combatente, anda desesperado à procura de Lila, a criança por quem se apaixonou. Ana, a médica russa, está completamente perdida entre pôr-se à disposição dos feridos ou enlear-se numa relação com Daniel. Em Bafatá, não há sinal de Lila, Ferreira Gomes está desnorteado, nem suspeita da infidelidade de Lila com Daniel. O doutor Fonseca, antigo secretário de Estado, parte, tal como Nelo Justino. Ana fica a ajudar um grupo de trabalhadores humanitários. Chega e junta-se ao grupo António Sequeira, um jornalista influente que trabalha num dos grandes diários de Lisboa. A expedição a caminho de Bissau irá recomeçar, Ana está presa por Daniel, conta-lhe episódios da sua vida íntima, mas sente uma indiferença do lado de Daniel. Com as estradas cortadas, em poder dos homens do Governo e da Junta, há que recorrer à imaginação, encontrar picadas que permitam chegar a Mansabá. Refeito o grupo, viaja-se na torreira do sol, cada um guarda no íntimo pensamentos intransmissíveis. Tem aqui lugar um esplendido diálogo sobre uma pseudo-organização humanitária especializada na troca. Alguém num país rico consegue comover a opinião pública mostrando imagens de um país em estado calamitoso. Faz-se um peditório e compram-se mantimentos, por exemplo 10 toneladas de comida e paga-se o transporte para o país afectado.

Instala-se um mecanismo altamente perverso: “Com esse dinheiro, podiam ter comprado 30 toneladas no destino, mas a comida vem de fora, é sempre comprada a produtores dos países ricos e a bom preço. Depois do transporte, os alimentos são oferecidos, mas a maior parte vai parar a comerciantes locais. Apenas uma pequena quantidade chega às pessoas pobres. Esses alimentos caídos do céu podem fazer mais mal que bem, porque só enchem as barrigas enquanto os países ricos estiverem comovidos. Muitos camponeses deixam de trabalhar nos campos, já que o alimento é gratuito”. O jornalista António Sequeira está perplexo e pergunta se essa organização humanitária não distribui comida. Não, está especializada na troca, trocam caju dos camponeses por sacas de arroz. É aqui que começa o negócio: “No mercado internacional, uma tonelada de arroz custa 100 dólares; uma de caju custa 700. Se trocar à razão de um por um, o seu lucro será de 600 dólares por tonelada. Se arroz for comprado com doações, então é um negócio que não pode falhar”. Já se saiu de Mansabá, espera-os o imprevisto, improvisam pontes, Ferreira Gomes aproveita para rememorar o tempo em que ali combateu durante a guerra colonial. Nisto, encontram homens da Junta, gente andrajosa, não dá para acreditar que os exércitos governamentais estejam a ser escorraçados por estes mendigos. Os viajantes acabam por chegar, já próximo de Bissau, a um clube de caça, gerido por Júlio de Sousa. Este empresário tem consciência de que o seu negócio chegou ao fim, aproveita a chegada do grupo para delapidar as últimas reservas, organiza-se uma festa, não vai ficar nada para a primeira força militar que se apoderar do clube de caça. Num relance, apercebemo-nos que todos estes homens e mulheres passaram uma esponja sobre o seu passado, teimam ferozmente em agarrar-se ao presente. Dão-se explicações banais para aquela guerra absurda. O jornalista Sequeira, que aqui chegou impreparado, dá um palpite: “O que está em causa é uma questão de personalidades. O chefe de um dos grupos está descontente com o que lhe calhou e o outro não quer dividir. Quando um deles morrer, o que sobrar prevalece”.

Luis Naves traça aqui o retrato de um jornalista presunçoso, fútil e pesporrente capaz de dizer com ar de grande conferencista. Júlio também quer dar uns palpites e acrescenta: “A África tem três lacunas principais: energia, comunicações e água. Cada um destes problemas está relacionado com os outros. Se houvesse mais água potável era preciso que existisse abundância de combustível para os motores dos poços e para a purificação dessa água. Como não há energia, os transportes ficam caros e, sem transportes, não há comércio e toda a gente é pobre. O que acontece aqui é indiferente para as potências mundiais”.

Continuando a peroração, Júlio considera que o drama da Guiné é estar rodeado por antigas colónias francesas, embriagado continua o seu discurso: “Este continente tem poucas saídas para o mar e poucos portos de águas profundas. Por isso, sempre esteve isolado. Era difícil entrar e sair. A partir de qualquer ponto de África, a 100 quilómetros da costa há zonas quase inacessíveis, planaltos de savana ou florestas tão densas como muros. A paisagem só depende da latitude e da abundância de chuvas”. Esboça, por último, um quadro da Guiné, dos seus recursos e procura uma justificação para a tirania política de Nino e da sua classe apoiante.

De manhã, feitas as despedidas, o grupo retoma a viagem. Chegou o momento do autor nos apresentar a Junta no seu cerco a Bissau: “Os rebeldes tinham instalado um posto de controlo a um quilómetro da aldeia de Nhacra. Passada a jangada de João Landim, depressa se alcançava a confluência das duas estradas que se dirigiam para o interior, uma para Norte e outra para Leste. Percorreram a boa velocidade o troço entre a jangada e a aldeia e, ao longo da estrada, não havia ninguém à vista. Foi assim que chegaram ao cruzamento, onde depararam com um ajuntamento de refugiados que enchia a praça e se prolongava pelas ruas de acesso. As pessoas pareciam petrificadas numa contemplação. Eram aos milhares, amontoados junto a vários edifícios coloniais de um piso… As pessoas olhavam para eles e afastavam-se, sem emoção, sem um sorriso, sem um lamento. Olhavam, apenas, como se já não olhassem, e abriam para os intrusos um caminho estreito.

Quando saíram de Nhacra, a caminho de Bissau, a estrada ficava outra vez vazia, até ao ponto de controlo da Junta. Ali, formava-se uma espécie de praça de portagem… Cinco negros ameaçadores estavam sentados num banco corrido, como estivessem na paragem de autocarros. As AK-47 eram brinquedos que eles mexiam à vontade, quase sem propósito, todas com aspecto de velhas armas tiradas do depósito, mas com dois carregadores presos por fita adesiva, à maneira guerrilheira”. E veio a ordem, não podiam passar.

Enceta-se uma conversa a roçar o surreal, ali perto, no aeroporto, ouvem-se estrondos, há quem conjecture que rebentou um paiol, a partir daquele momento os rebeldes estariam perdidos. Os viajantes regressam a Nhacra, a multidão de refugiados ali estava, numa ansiedade assustada. Nisto, para surpresa de todos, reaparece Maria Adília, a mulher do ramo de flores com quem tinham viajado de Dakar até Bafatá. Rebenta uma discussão, Ana é criticada por Ferreira Gomes, Daniel parece indiferente a tudo, Ana fica ainda mais magoada com tanta falta de companheirismo. Anoitece, os viajantes têm o futuro em suspenso. Neste momento, Luís Naves tem uma das descrições capitais do livro, Ana, na escuridão passeia-se naquela multidão que dormia ao relento: “Eram pedaços, curtos relances da desgraça terrível que se abatera. Milhares estendiam-se, e a amálgama de corpos quase parecia fazer parte da natureza, uma espécie de vegetação estranha, tão parada. Corpos deitados, sentados, corpos amontoados, em esculturas bizarras que a luz congelava. Novos relâmpagos iluminavam o céu e a sua luz efémera tombava tragicamente sobre a ausência de esperança. Até que restou apenas o ruído dos trovões, o vento a acelerar, numa zanga, o povo deitado, como que morto ou fundido com a selva, e os imensos castelos de nuvens, numa fúria”.

Na manhã seguinte irá recomeçar a tentativa de alcançar Bissau.

(Continua)
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 5 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7902: Notas de leitura (213): Jardim Botânico, de Luís Naves (1) (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 8 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7913: Notas de leitura (214): Jardim Botânico, de Luís Naves (Francisco Henriques da Silva)

Guiné 63/74 - P7919: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (80): Na Kontra Ka Kontra: 44.º episódio




1. Quadragésimo quarto episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 9 de Março de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


44º EPISÓDIO

Neste espectacular NA KONTRA o Dionildo conta a sua história:

Depois de o Alferes ter ido embora de Madina Xaquili e devido à pressão do PAIGC, passou a andar aterrorizado. Logo no primeiro ataque à tabanca, conhecendo o caminho para Bambadinca, resolve desertar. Contorna Galomaro de forma a não ser visto e em Bambadinca, apanha boleia de uma coluna que vai para o Xime com pessoal e material para embarcar numa LDG, com destino a Bissau. Numa situação como esta não era costume os próprios camaradas perguntarem pelas Guias de Marcha. Chegado a Bissau, junto do Cais da Amura onde as lanchas costumavam atracar, logo verificou que na Ponte Cais estava também o navio Uíge, de transporte de tropas. Soube que o barco ia partir à noite e pensou embarcar. Se bem o pensou melhor o fez. Apesar de ser o único militar a bordo vestido de camuflado, ninguém lhe perguntou o que quer que fosse, também pelo facto de irem no barco muitos militares de rendição individual. Ele seria mais um. Passada uma semana, desembarcava em Lisboa. Veste-se à civil com roupa que levava num pequeno saco e ruma ao Porto apresentando-se ao trabalho na empresa onde tinha trabalhado antes de ir para a tropa, a empresa do agora sogro do nosso Magalhães Faria. Passados precisamente quarenta dias aparece-lhe na empresa a Polícia Militar que rapidamente o mete num avião rumo a Bissau, agora com Guias de Marcha para a sua antiga Companhia, sediada em Madina Xaquili. Como perspectiva tinha outra comissão, a começar agora. Com o contínuo agravar da situação, passados poucos dias é planeada uma operação de alto risco, com a intervenção de um Pelotão de Comandos helitransportados e, para a qual, se pediram voluntários. O Dionildo viu ali uma possibilidade de limpar a sua “folha militar” e ofereceu-se. Tudo correu muito melhor do que esperava e até veio a ter um louvor. Retiraram-lhe o castigo e regressou à Metrópole com a sua Companhia. E o Dionildo termina dizendo:

- E aqui estou na empresa onde sempre trabalhei Senhor Faria.

– Magalhães Faria, Faria há muitos.

1990. Passaram 20 anos. Tinha havido a revolução de Abril. Deu-se a descolonização. Houve algumas convulsões na sociedade portuguesa. Embora readquiridas as liberdades a vida das pessoas não melhora substancialmente.

Quanto a Magalhães Faria as coisas não correm pelo melhor com a sua mulher. Não entrando em pormenores considerados íntimos nem considerando que tinham vinte anos de vida em comum ele, não suportando mais a situação artificial em que vive, escolhe o melhor momento e resolve divorciar-se. Os dois filhos do casamento, como já são crescidos compreendem perfeitamente o acto do pai.

Pouco tempo depois, por não querer estar dependente do pai da sua ex-mulher, começa a pensar em mudar a sua situação profissional. Para ganhar tempo e pensar bem na decisão a tomar, resolve fazer umas férias.

Na agora Guiné-Bissau não deixou de haver também convulsões políticas, inclusive com derramamento de sangue, muito sangue se pensarmos nos guineenses que serviram as tropas portuguesas. Em 14 de Novembro de 1980 e na sequência da política dos “burmedjus” de Luís Cabral, Nino Vieira, um papel, assume o poder. Em 1985 num considerado pseudo golpe, são fuzilados vários elementos ligados ao poder, entre eles Paulo Correia e Viriato Pã, conceituados balantas. Em 1990 são depurados mais balantas na continuação da mesma política de agradar às outras etnias. É neste ano que por causa da pressão internacional, o Presidente Nino anuncia a abertura democrática que se concretizará em 1991 com a revisão da Constituição.

É a pensar numa certa estabilização existente na Guiné, face à anunciada democratização, que Magalhães Faria, como que inoculado por um vírus, sente o chamamento de África. Pensa então numa ida a Bissau ver “in loco” como estão as coisas e se haveria alguma hipótese de montar lá um negócio. O recente divórcio muito contribui para isso. Combina ir com seu filho mais velho, proporcionando-lhe assim umas férias, e leva consigo o seu amigo de longa data, Dionildo.

Bissau, época seca. Chegados a Bissau são estabelecidos vários contactos. Magalhães Faria costuma reunir-se com os seus conhecidos no Café Restaurante da “D. Berta”, único local onde se sente à vontade, para além do Hotel. O Dionildo, pelo seu carácter mais extrovertido, já tinha estabelecido imensos contactos com vista ao que lhe pareceu, quer a ele quer a Magalhães Faria, ser uma boa oportunidade: Verificam que todos os transportes de pessoas e mercadorias eram feitos à custa de carrinhas de 8/9 lugares, conhecidas por toca-toca, transformadas para levarem o dobro de passageiros. Também de imediato verificam que essas carrinhas têm muita procura. Daí a congeminar um plano de trazerem viaturas usadas de Portugal e ganhar de sobra para viver, foi um passo.

Um dia, encontrando-se Magalhães Faria a almoçar com o filho na “D. Berta”, chega o Dionildo e de chofre diz-lhe:

- C… sabe quem está ali em baixo à porta? A sua primeira mulher.

O filho do Magalhães Faria arregalou os olhos e este ficou lívido.

- E sabe quem está com ela? Aquela bajudinha muçulmana que nasceu em Madina Xaquili, quando lá estávamos e a quem puseram o nome de Sextafeira. Agora está uma mulheraça.

Um NA KONTRA inusitado.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7915: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (79): Na Kontra Ka Kontra: 43.º episódio

quarta-feira, 9 de março de 2011

Guiné 63/74 - P7918: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (40): Teixeira Pinto - Lusco-fusco em Capó

1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 7 de Março de 2011: 

Amigo Vinhal
Tudo bem contigo?
Mais um pouco de “Viagem…” que fecha uma etapa e vai dar lugar a um outro ciclo diferente, agora mais calmo e seguro, para a maioria da Companhia.
Para todos o meu abraço com votos de saúde e força para enfrentar freimas desta vida
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (40)

Teixeira Pinto – lusco-fusco em Capó

Capó - Momentos de descanso - “messe”

Naquele “cú-de-judas” solitário que era Capó, o tempo ia passando desfiando-se o dia-a-dia em rotinas rotativas de segurança aos trabalhos, máquinas e estradas, picagem, serviços, patrulhamentos de proximidade, emboscadas nocturnas… enfim.

Desse quase mês e meio que por lá penámos, poucas recordações retenho. Para além da agradável “visita” da “bela donzela” (Post 7833 - 21 FEV 2011) e do terrivelmente picante ataque de abelhinhas na mata (Post 4031 - 14 MAR 2009), ficaram no entanto mais algumas, como por exemplo as refeições serem reforçadas com proteínas, coisa que estranhei e não consumi a princípio mas logo aceitei e naturalmente deixei de ligar a essas larvas vivas que se desprendiam do “tecto de palmeidur” e iam caindo no prato durante as refeições, sendo apanhadas sem pejo juntamente com a comida por utensílios que as carreavam, como “complemento proteico”, para as entranhas do tubo digestivo.

Recordo as idas à latrina situada fora das barreiras sempre acompanhado da minha amiga, não fosse o diabo apanhar-me com as calças na mão.

Capó - Com o Alf Mil Barros

Recordo ficar impressionado e estupefacto ao avistar na estrada, aquando de uma ida a Teixeira Pinto, um idoso(?) a “transportar” as “bolsas tomatais” numa espécie de carrinho de mão, tal o tamanho descomunal das mesmas, provocado, julgo, por elefantíase (?!)

Recordo uma ou duas escapadas ao Cacheu onde o amigo e conterrâneo Júlio César “trabalhava” e apaparicava com petiscada à maneira, onde o camarão, - ao que me parece saber, apanhado no rio à noite com rede e lanterna - e o belo chouriço, e outros de origem caseira, eram reis e oferecidos com prazer, numa confraternização apreciada, alegre e normalmente bem regada. O pior era a hora de regressar ao “burako” que nada apetecia.

Recordo picagens e seguranças aos trabalhos na estrada, sob um calor abrasador que obrigava a racionar a água do cantil e em que a poeiraça impregnada com suor se colava ao corpo como se argamassa fosse, criando uma sensação indefinida de picadas e mal estar.

Recordo um fim de tarde em que estando a jantar, fomos surpreendidos por rebentamentos e matraquear que nos fizeram correr a ocupar posições.
Pela segunda vez alguém deitou a mão à minha amiga sempre à mão - o que não foi consentido - e dirijo-me para a “parada” onde está alguém com o morteiro tentando perceber para onde fazer fogo.
O pessoal passa lesto em várias direcções para as posições defensivas e dou-me conta do Fur Chaves (Obelix), impávido e sereno ali perto, em campo aberto e em pé, a afiar um pequeno pau com o seu canivete.

Capó - E no final, tudo o fogo levou.

O primeiro ataque vem do lado da estrada e vai-se prolongando. É pedido apoio pesado mas do Bachile não há alcance. Os tiros acabam para passado pouco tempo retornarem. Lanço uma granada de morteiro e fico com a mão direita como uma bola. A granada na certa e inadvertidamente estaria com as cargas suplementares. É pedido apoio aéreo, sem muita convicção de confirmação e utilidade, dada a hora. Surpresa, somos atendidos e pouco tempo depois surgem nos céus os Fiat que estariam de regresso a Bissau (?) e que às nossas indicações descarregam metralha em voos picados, numa espectacularidade de movimento e cor ao lusco-fusco a que ainda não tinha assistido e difícil de esquecer.

A batalha como que acaba, para se assistir ao espectáculo encenado neste anoitecer de 30 NOV 71 de, como “festa” antecipada de despedida daquelas paragens, que se viria a concretizar a 6  de Dezembro com ida para Teixeira Pinto e a 7 para Bula, de novo, desta vez com destino base aos reordenamentos de Augusto Barros, João Landim e Mato Dingal.

Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7833: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (39): Teixeira Pinto - Capó e a bela donzela

Guiné 63/74 - P7917: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (13): Emigração para as Colónias, só com Carta de Chamada







Fotos de: Luis Graça, 2010. (Com a devida vénia ao autor, Manuel Botelho,  o artista plástico português, nascido em 1950,  que mais se tem interessado pela guerra colonial e que já tem utilizado materiais do nosso blogue)...

Título da obra: "Matchbox: Portugal is not a small country" [ O autor ter-se-á inspirado em material cartográfico, publicado sob o título Portugal não é um país pequeno em Lisboa, s/d,  pelo Secretariado da Propaganda Nacional,  sob a direcção literária de Henrique  Galvão (1895-1970). Mapa a cor, com 55 x 38 cm, escala circa  1:13000000. No canto inferior direito contém a seguinte legenda: "Superfícies do Império Colonial Português comparadas com as dos principais países da Europa"].


 
Esta obra do pintor, arquitecto e professor de belas artes Manuel Botelho,  neto do grande pintor Carlos Botelho (1899-1982), esteve exposta em Res Publica 1910 e 2010 face a face. Exposição organizada pelo CAM/FCG [, Centro de Arte Moderna / Fundação Calouste Gulbenkian] em parceria com a Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República. Piso 0 e 01 do edifício central da sede da Fundação e jardim. Lisboa, 8 de Outubro de 2010 a 16 de Janeiro de 2011. Curadoria: Helena de Freitas e Leonor Nazaré.  (LG).




1. Mais um pensamento do nosso Mais Velho António Rosinha, enviado em mensagem do dia 7 de Março de 2011:


Caderno de notas de um Mais Velho (13) > Emigração para as colónias e a "Carta de Chamada" . Por que Salazar não deixou "europeizar" em força as colónias?


A Carta de Chamada  consistia em um termo de responsabilidade assinado por um comerciante ou um funcionário público residente na colónia, a responsabilizar-se por um candidato à emigração, o que fazia que muita gente que,  não tendo familiares ou amigos para assinar essa carta, desistia e ia para a América ou Brasil onde tinha parentes que o mandavam ir.


Escreve-se tanto sobre Salazar, muitas coisas não passam mesmo de deduções de quem escreve, pois o homem nunca se abriu muito, que podemos perguntar a nós mesmos, e falava-se efectivamente, porque Salazar viu tanta gente ir para o Brasil e EUA, nos anos 50, e não encaminhou essa gente para Angola, Guiné e Moçambique.


Exceptuando os militares ou funcionários em comissão de serviço, ou deportados para o Tarrafal, Salazar só deixava ir par as colónias, colonos, selecionados, ou emigrantes com carta de chamada como se fossem para o estrangeiro.


Isto nos anos 50 do outro século, no imediatamente antes da guerra do ultramar, ou seja, já estavam em marcha as independências francófonas e anglófonas, e Agostinho Neto, Amílcar, Luandino Vieira, etc. já tinham ideias formadas.


Havia várias dificuldades para se emigrar para as colónias portuguesas, até que apareceu a guerra do ultramar em 1961, acabando a maioria das complicações. A partir dessa data já não era preciso ter um familiar em Angola para o mandar ir.


Não recorrendo a documentos, falando apenas de casos popularmente conhecidos ou propalados, houve casos como o Zé do Telhado [, 1818-1875,] que foi para Angola como degredado [em 1861] e, recorro a este exemplo, porque foi um processo usado pela Justiça durante séculos para punir criminosos e simultaneamente ajudar à colonização por portugueses.


Ainda durante a chamada 1.ª República, foram pensados uns colonatos em Angola para serem enviados colonos brancos para esses lugares, portanto era uma maneira de se emigrar com a família para as colónias por convite, ou aliciamento, ou como quisermos interpretar esse processo.


Salazar também usou esse processo do colonato, mas no caso de Angola não foi muito numerosa essa emigração, como às vezes se ouve em certos escritos, e no caso da Guiné, penso que nem existiu essa prática. Em Angola havia o colonato da Cela no planalto central e Capelongo junto do Cunene, os que verdadeiramente chegavam a formar uma pequena vila rural portuguesa.


Quem foi muito apologista da emigração branca para Angola, de uma maneira maciça, foi o célebre anti-salazarista General Norton de Matos [, 1867-1955], muito conhecedor de Angola devido aos anos passados lá como governador e outras atividades políticas dedicadas ao ultramar.


Sobre Norton de Matos, fundador da cidade de Nova Lisboa (Huambo),  em Angola, diziam muitos africanistas angolanos que tinha ele uma visão de desenvolvimento para as colónias, que,  a ser seguida a política dele, transformava Portugal e as suas colónias numa grande potência económica.


Alguns mais entusiastas por Angola, até imaginavam uma capital portuguesa em Nova Lisboa.


Mas, diziam os africanistas e antisalazaristas, que o Salazar atrofiava as ideias dos portugueses empreendedores, usando processos e burocracias atrasadas.


E aí, aparece a burocracia da CARTA DE CHAMADA, da qual Salazar não abria mão. Acompanhada de outras burocracias como vacinas, registo criminal e três contos e quinhentos por cabeça, para viajar de porão. Não sei se crianças, normalmente muitas, pagavam por igual.


Para evitar a burocracia da Carta de Chamada havia uma solução, era pagar as viagens de ida e volta, com direito a receber a devolução das viagens de regresso, quando passassem seis meses ou um ano, conforme as informações sobre a adaptação à nova terra.


Também era dispensada a Carta de Chamada, a quem casasse por procuração com um residente nas colónias. Foi um meio usado com muita frequência.


Quem era a favor de uma forte ocupação branca das colónias, principalmente Angola, condenava a política de Salazar em que este se contradizia, em que ao mesmo tempo que dizia que era tudo Portugal, e ao mesmo tempo tinha que haver a tal carta de chamada.


Também se dizia que Salazar não deixava colonizar e desenvolver fortemente Angola, por medo de os brancos fazerem como os da Africa do Sul, isto é, abandonar o "pobre rectângulo".


Já se ouvia antes da guerra bocas como aquela em que Angola valia a pena, mas a Guiné e Cabo Verde era só prejuízo, e outras coisas deste género. Mas não era o Salazar que dizia isso, antes pelo contrário, o que transparecia era que nem um centímetro quadrado era para ceder.


Isto eram conversas à mesa do café, sem medo da PIDE, à vontade, em toda a Angola, menos nuns certos cafés da baixa de Luanda onde circulavam uns tantos popularíssimos inspectores da dita policia, conhecidos de todos os frequentadores habituais. Em Luanda, toda a gente se conhecia, não sei explicar como, mas era assim mesmo.


Penso que PIDE tinha instalações apenas em Luanda, no resto de Angola nunca ouvi falar, a não ser depois de 1961.


Antes de a guerra começar, já era conhecido o petróleo de Angola, os diamantes, o algodão, o café, o cobre etc, e aquilo que hoje ouvimos sobre o que as riquezas angolanas estão a fazer, desde ter mantido uma guerra de quase 30 anos, e hoje dá trabalho a milhares de chineses, brasileiros e portugueses, pergunta-se muita gente, porque Salazar não criou riqueza, desenvolveu, ocupou... com aquela riqueza toda à mão de semear.


Mas ninguém que escreve sobre Salazar tenta outra explicação para o impedimento de um grande povoamento europeu, que não fosse o medo de perder o controle e haver uma independência.


E, porque depois de tantos anos que passaram, sabendo que Salazar não fazia nada sem ser tudo bem pensado, não será de imaginar que haveria naquela cabeça certezas bem desastrosas, com as piores consequências de uma qualquer independência, havendo uma enorme ocupação europeia?


Para já, tenho a dizer que conhecendo a Guiné como conhecemos, em que a capital era numa ilha, Bolama, e cidades com direito a esse nome era Bissau e Bafatá, bem diminutas, todos consideramos que Portugal nunca fez grande colonização, nem asfalto, nem escolas, mas apenas uns postos administrativos espalhados em grandes áreas.


Se alguém pusesse em dúvida o nosso direito a considerar a Guiné, colónia portuguesa, não sabemos num caso de conflito, se não aconteceria o mesmo como Goa e depois com Timor.


Mas se a Guiné estava naquele atraso em 1963 que todos conhecem, talvez leiam pela primeira vez, mas Angola, proporcionalmente estava várias vezes mais "isenta" de qualquer colonização. Isto vi eu, porque conheço exaustivamente as duas ex-colónias. Para isso, não tive tempo de viajar para lá de Olivença, pelo que não me considero europeísta.


Para dar um exemplo dessa falta de colonização, refiro a quantidade de asfalto em Angola em 1961: havia asfalto nas principais ruas das principais cidades; mas nas estradas, viajava-se em asfalto de Luanda a Catete, aproximadamente 70Km, entre Benguela e Lobito, 20Km, um troço experimental de asfalto de 30Km, entre Lucala e Camabatela, e acabou.


O resto eram picadas e jangadas, ou seja, como exemplo ir de Lisboa a Paris, (de Luanda ao Cazombo) íamos de asfalto até Pegões, daí em frente preparávamo-nos com alimentação, roupa, combustível para semanas em tempo seco, e para meses em tempo de chuva até chegar a Paris.


Qualquer colonização europeia que se encontrasse no caminho não passava de comerciantes isolados ou chefes de posto, sem comunicação rádio, e se tivessem um jeep Willys, era um luxo.


Quando se chegava a uma capital de distrito ou a uma missão católica ou protestante, aproveitava-se para reabastecer combustíveis gerais e actualizar novidades.


Como Salazar sabia melhor que ninguém que de 1933, quando fica com as rédeas do poder na mão, até 1961 não tinha ocupado nem desenvolvido as colónias (Uns anos antes de Salazar, Lisboa não acendia as luzes em Lisboa por falta de dinheiro para o carvão que vinha da Inglatera). Salazar sabia também que dando muita visibilidade às riquezas angolanas ficava sem "passada" para acompanhar os ventos da história, que era mais tufões do que vento.


Ninguém tinha o mais pequeno respeito pela "nossa missão colonizadora", e desde os tripulantes de barcos nórdicos até aos americanos que aportavam em Luanda a carregar café, algodão, etc, dia e noite os guindastes em movimento, achavam escandaloso, ridículo, e com uns brandys no bucho perguntavam-nos na cara se não tínhamos vergonha de ser tão pequenos e pobres, e explorar aquela terra tão grande e rica.


Hoje vemos os americanos a gozar com a compra dos submarinos pelo tal de Portas e vemos o que se passa hoje com os nossos europeístas a serem gozados em Berlim e Bruxelas por causa dos orçamentos, porque tal como antes, hoje também queremos dar passadas maiores que as nossas pernas, e todos acham que é um descaramento querermos ser do clube dos grandes.


Podemos hoje conjecturar que as dificuldades portuguesas de há 50 anos eram historicamente das mais complicadas dos nossos 800 anos, (os 800 anos foram lembrados em Berlim, recentemente à Frau Merkel) e que Salazar usou de muitas manhas para atingir os fins.


E podemos conjecturar que,  graças à Carta de Chamada, provavelmente no 25 de Abril houve um número inferior a um milhão de portugueses retornados. O que seria se não fosse essa Carta que Salazar cuidadosamente exigia?


Será que Salazar não previa um fim de império? É que os estudiosos portugueses falam sempre do que Salazar nos obrigava a enfrentar: emigração, manter as colónias, manter uma agricultura arcaica e uma pesca controlada pelo Tenreiro, uma indústria insignificante, etc. e uns direitos sociais miseráveis, mas esses estudiosos já estão a tempo de escrever que há muitas dúvidas hoje, qual o perigo de darmos passadas maiores que as nossas pernas.


E esses estudiosos de Salazar já estão a tempo de escrever que a ditadura ganhava vida com as dificuldades que lhe eram criadas com casos como as revoltas nas colónias, o assalto ao Santa Maria por Henrique Galvão e, até quando Humberto Delgado foi assassinado, a ditadura aproveitou para espalhar que a oposição (os do contra, como se dizia), é que o atraiçoou e o conduziu a uma cilada.


Escreve-se sempre que estes casos "abanavam os alicerces da ditadura" mas não era essa a sensação, e hoje vemos que Salazar cai da cadeira em 1968 e apenas em 1974 se dá o "o fim do império e da ditadura".


Não estou com isto a armar-me em salazarista, mas considero que o papel de Salazar no que toca ao assunto colonial, que ele também herda de uma maneira muito complicada, não é analisada de uma maneira isenta de preconceitos, nem os que apoiam nem os que condenam o Botas.


E, aquilo que hoje é dado como ponto assente sobre o pensamento de Salazar, que estava ultrapassado e isolado internacionalmente, é fácil de mostrar o contrário.


Termino para dizer que o homem que assinou a minha CARTA de CHAMADA para eu emigrar para Angola, foi assassinado no Norte de Angola nos massacres da UPA.


O Norte de Angola, zona cafeeira, podia considerar-se provavelmente que era a única área verdadeiramente colonizada com missões, escolas e uma economia cafeeira importante.


Um abraço e desejo boa disposição aos editores para continuarem com ânimo


Anº Rosinha
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Nota de CV:


Vd. último poste da série de 8 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7744: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (12): Os guineenses apenas assumem o idioma português como língua oficial