domingo, 13 de março de 2011

Guiné 63/74 - P7936: Os açorianos também migraram para o Ultramar (José da Câmara)

1. Mensagem de José da Câmara* (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 12 de Março de 2011:

Meu bom e caro amigo Carlos Vinhal,

Não desapareci e estou arrepiando caminho, como se dizia nas terrinhas açorianas. Espero que estejas bem na companhia de teus entes queridos.
Em seguida vou mandar-te uma pequena história, talvez um comentário muito alargado ao que o A. Rosinha escreveu sobre as Cartas de Chamada para o Ultramar. O artigo que escrevo precisa da tua ajuda e que é o seguinte:
Faz o search a este blogue

http://kabiaka.blogspot.com/2007_08_13_archive.html

e retira a história (São Jorge do Katofe ou a Décima Ilha) para completar o meu artigo. Julgo que este artigo tem muito interesse histórico pois apresenta factos, dados, nomes, pareceres, documentação fotográfica etc.

Reconheço duas coisas: o que escrevo é pesado e alguém pode tentar chamar a si alguma provocação da minha parte. Longe de mim tal pensamento, pois a minha intenção única é mostrar que outras pessoas tinham outra forma de viver e sentir o Ultramar, neste caso Angola.
[...]
Também reconheço que o artigo, bastante inclinado para Angola, tem pouco a ver com a Guiné mas poderia muito bem ter-se passado ali.

Se entenderes que não tem interesse para o blogue eu aceitarei como sempre a tua decisão.

Um abraço muito amigo do
José


Os açorianos também migraram para o Ultramar

Caros amigos,

O António Rosinha no P7917: Emigração para as Colónias, só com Carta de Chamada**, fez algumas considerações que atraíram a minha atenção. Porque sou emigrante e porque sei o que é uma carta de chamada. Porque ainda sei que cada caso é uma vida e cada vida é uma história. E cada história depende dos protagonistas que a viveram.

No meu caso a carta de chamada passou por documentos de petição, contracto de trabalho e termo de responsabilidade originados no país de acolhimento, os Estados Unidos da América.

Em Portugal, mais concretamente na ilha do Faial, Açores, para obter o passaporte português tive que fazer inspecção médica à qual não faltou o Raio X, vacinação e análises sanguíneas, e ainda o registo criminal e licença militar. Esta, a título de informação, custou-me a módica quantia de 1.060$00, uma exorbitância para o tempo, e depois de ter cumprido o meu dever para com a Nação. Não me queixo pois era igual para todos.

Com o passaporte português no bolso, lá fui para São Miguel para mais um Raio X, análises sanguíneas e inspecção médica feita em clínica reconhecida pelo consulado dos EUA, requisito essencial para obter o visto daquela nação.

Já nos Estados Unidos da América, o meu primeiro acto oficial foi adquirir o cartão da segurança social para poder trabalhar. O segundo, sorte endiabrada a minha, foi ir à Câmara Municipal de Stoughton inscrever-me no Departamento de Recrutamento Militar.

Francamente, eu que tinha aprendi na minha escola da Fazenda das Lajes das Flores, Açores, que o meu país, Portugal, ia do Minho ao Algarve e dos Açores a Timor, confrontava-me agora com a possibilidade de ter que marcar passo num exército que, na altura, nada me dizia.

Mas não é da minha experiência humana, da minha carta de chamada, que vos quero falar.

O nosso camarada Carlos Cordeiro, em dois comentários ao Post do nosso amigo “Mais Velho”, apontou algumas das barreiras que, constantemente, nos eram impostas nos Açores pelo governo da nação. E, em termos militares, acrescento mais uma: os Sargentos do QP vindos do continente para os Açores tinham direito a subsídio de guarnição, mas já o inverso não acontecia.

Estas e muitas outras barreiras eram impostas a todos os recantos do país, desde que não fizessem parte do rectângulo português europeu. Certamente que as províncias ultramarinas, tal como os Açores e a Madeira, sofreram com esses constrangimentos. Não duvido que em recantos do Portugal Continental houvesse outro tipo de barreiras. Mas nem por isso nos sentíamos menos portugueses, certamente muito mais pobres.

A nossa força, enquanto Nação, está na procura intransigente da verdade, nua e crua. Ela será tanto mais forte quanto mais límpida for a sua história. Todos nós somos peças fundamentais desse puzzle.

Aqui, em Stoughton, conheço aqueles que foram para as províncias por carta de chamada, aqueles que foram a convite do governo, aqueles que ficaram por lá após o serviço militar e aqueles que lá nasceram. Todos eles com histórias contadas e por contar. Refizeram as suas vidas. Não se queixam nem recriminam. A vida continua.

Tudo razões para me ter interessado de sobremaneira por aquilo que o nosso amigo Mais Velho, o Rosinha, escreveu. Ele, tal como nós, serviu o exército em Angola e para além disso teve experiências riquíssimas de conhecimento e circunstâncias, que lhe foram proporcionadas pelos seus afazeres profissionais em Angola e na Guiné.

Hoje, com o devido respeito por ele e por todos vós, permitam-me que vos apresente uma história vivida por alguém que um dia sonhou com uma Angola diferente, possivelmente com uma Angola independente. O seu autor, Vicente de Matos, natural de São Jorge, foi um dos açorianos que migrou para aquela ex-provincia ultramarina portuguesa.

O artigo é uma lufada de ar fresco, apaixonante, extraordinário na sua beleza sentimental e histórica. Não se vislumbra uma palavra ofensiva a quem quer que seja ou a qualquer situação ou instituição. Quando muito a mágoa pela visão de uma terra vivida e amada reduzida a escombros. Isso é evidente nas fotografias que ilustram o artigo.

Com a devida vénia ao blogue MUKANDAS DO KABIAKA


Artigo originalmente publicado em ATLÂNTIDA, VoI. XLVI, 2001, adaptado por Lúcio Flávio da Silveira Matos, filho do autor, engenheiro civil, a viver no Brasil, no Estado de Santa Catarina [Vicente Teixeira de Matos que, em 2007, à data da publicação do poste, tinha 87 e residia em Angra do Heroísmo, ilha Terceira, Açores].
S. JORGE DO KATOFE
OU A DÉCIMA ILHA DOS AÇORES

VICENTE TEIXEIRA DE MATOS*

“Dos nossos olhos até à hora da nossa morte nada fará desaparecer aquele brilho húmido e doce que se acende, quando a recordamos.” (Vicente Matos)

"Quem lembra, prevalece..." (Lindolf Bell)

A Décima Ilha dos Açores, assim crismada pelo jornalista director da ANI, o terceirense Dutra Faria, é a pequena história de gente açoriana, rija e trabalhadora, espalhada "como quem não quer a coisa" pelos vales cir­cundantes do Rio Katofe e seus afluentes, atravessados pela estrada Luanda/Huambo, a 364 km da primeira e a 245 km da segunda destas cidades. No Sub Planalto de Benguela, a cerca de 1300 metros de altitude e à distância média do mar de 200km, no Concelho de Kibala, distrito de Kuanza Sul, Província de Angola.
Hesitei anos até reduzi-Ia a escrito: mas aquelas mulheres e aqueles homens, modestos e sofridos, e aquelas ruí­nas trágicas e dramáticas merecem que deles fique memória!... E assim, já tão longe daquela ardente mocidade, a minha consciência não ficaria tranquila sem lhes prestar este mais que modesto preito. Aos mortos e aos vivos, aço­rianos humildes, que lançados no meio do agreste mato angolano, rodeados de mil dificuldades, com parcos meios, edificaram aquela singela utopia!...

Antecedentes - As nove ilhas dos Açores, situadas em pleno Atlântico - O Grande Mar Poente - entre a Europa e a América, são, como sabemos, caracterizadas por um clima instável, varridas por ventos e brumas, ciclones e sismos; clima propício a diluir realidades, parir fantasmas e recriar sonhos de partir e de voltar!...
Nos fins dos anos vinte, do século que acaba de findar, quando começa esta memória, os destinos emigratórios dos ilhéus - Brasil e América do Norte - estavam saturados. Do Canadá, ainda, não se falava; havia de procurar-se outros destinos. As ilhas continuavam limitadas: "gente quanta queiram" em terra escassa, cortada pelo mar infindo e por velhas barreiras económicas e sociais. Por informações e histórias de quem lá servira ou trabalhava, começava a falar-se do Ultramar Português que, de terra de degredados e doenças mortais, se poderia transformar em "terra quanta queiram", apta a produzir riqueza desbravando o mato, sem prejudicar o legí­timo desenvolvimento dos povos nativos. Por exemplo, Angola teria sete habitantes por km2 contra mais de cem nas ilhas.

Início da Emigração - Em 1929, três jovens lavradores da Ilha de S. Jorge (Norte Grande), de nomes João Alves de Oliveira, Emílio Dias e André Alves de Olveira, irmão do primeiro, resolveram tentar a sua sorte em Angola. Foram recomendados a um jorgense - Tenente Bettencourt, deportado por razões políticas e na altura exercendo comércio na Vila da Kibala. Viriam a desembarcar em Porto Amboim (Benguela a Velha), o mais próximo do seu destino, para o qual se dirigiram numa camioneta de carga antiga, como mais uns fardos, através das terras vermelhas do Amboim, ubérrimas produtoras do café do mesmo nome, estrada barrenta de orografia muito acidentada, na qual os carros se atascavam, para desespero dos seus ocupantes. Por fim, lá chegaram a casa do seu conterrâneo. Seguidamente fizeram sociedade com o capitão Diogo Sandão, reformado e antigo pacificador daquela região, onde possuía uma fazenda, nos arre­dores da Vila. Aí, começaram nova fazenda, em terrenos contíguos, que iriam apelidar de Norte Grande. Efectuaram desbravamentos para sementeiras de milho e café e iniciaram a criação de gados bovino e porcino.

Família de Emílio Dias (Kimbaça para os nativos), 1 dos 3 pioneiros, com o primeiro tractor adquirido pela lavoura no Katofe.

Colonização - Passados cinco anos, adaptados à terra e ao clima, resolveram os três lançar-se, por sua conta e risco, estabele­cendo-se a 17 km da Kibala, junto à estrada de Luanda/Huambo, às margens do Rio Katofe; em vales de boas ter­ras para sementeiras de milho e arroz e boas pastagens para a criação de gado; fundando também um pequeno comércio, que servia de apoio e financiador da agricultura. "Boas terra para tudo, menos para os homens", opina­vam os entendidos! Na verdade o clima era duro e a terra infestada de mosquito e malária. No entanto, aqueles homens eram corajosos, não estavam dispostos a desertar! Contudo, em 1941, pelo Natal, pagaram o seu primeiro e doloroso tributo, falecendo o André Oliveira vitimado pela biliosa palúdica, que, naquela época, não perdoava...
Porém, dez anos passados - 1945 -, já possuíam lavouras de milho, de arroz, pomares e hortas e uma manada de cento e tal bovinos, dezenas de porcos e um pequeno rebanho de cabras e ovelhas; matéria prima para célebres caldeiradas de cabrito e borrego! Possuíam ainda dois moinhos hidráulicos, os únicos na área da Kibala, mercê de um açude construído no Rio Katofe, que ainda fornecia água para regar o arroz. Do rebanho de bovinos, exploravam as vacas leiteiras, cujo leite era aproveitado no fabrico de manteiga e queijo, vendidos nas vilas dos arredores.
Em 1945 admitiram um novo sócio, Vicente Teixeira de Matos, bem mais jovem, de uma família jorgense da Ribeira Seca, radicada nos arredo­res da cidade do Huambo.

O autor com 18 anos no final dos estudos no Liceu de Angra do Heroismo, quando desistiu de prosseguir estudos universitários no curso de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa e resolveu viajar para Angola.

O autor logo após a sua chegada a Angola.

O autor quando do serviço militar como furriel miliciano, em Nova Lisboa, Huambo, antes de ir para o Katofe.

O autor - Kilamba para os nativos - já na lavoura do Katofe com o trator Massey Harris da firma Oliveira & Dias.

O autor e a sua família extensa, em 1954. Da esquerda para a direita: José Teixeira de Matos (pai), Noémia da Silveira (madrasta), Vicente Matos, Zeca Matos (filho no colo), Maria Bernardete (esposa), Lúcio Matos (filho, no colo), Estêvão Silveira Coelho (sogro), Noémia de Fátima (irmã cassula), Laudelinda Cabral (sogra) e Arnaldo Silveira Coelho (cunhado).

Vicente Matos, em 1955, aos 35 anos, com dois dos seus sete filhos do Katofe.

Em 1946, chegou a Angola um Batalhão Expedicionário açoriano que, desmobilizado em 1948, deixou vários dos seus elementos em Angola, dos quais quatro vieram juntar-se ao embrião do povoamento açoriano no Katofe.
Por essa mesma altura, desembarcaram em Angola duas famílias com filhos que se dirigiram igualmente a Katofe, com a intenção de aí se radicarem. Estas chegadas vieram despoletar a ideia latente da criação de uma entidade patrocinadora do nascente povoamento.
Assim, os organizadores lembraram-se que a palavra cooperativa significava cooperar = trabalhar juntos - sem precisarem de se estender às origens dos "Pioneiros de Rochdale" - 1844, - bastando os exemplos da sua ilha natal - S. Jorge, para se organizarem de forma a apoiar os associados, em funções tão vastas como construir tudo a par­tir dos alicerces: casas, desbravamentos, compras de gado bovino, valas de enxugo e rega, fábrica de lacticínios, Igreja, Escola, Posto Sanitário, tudo o necessário para fazer funcionar uma urbe, espalhada num raio de quilómetros.
 Em 26 de Setembro de 1949, no Cartório Notarial da Comarca de Nova Lisboa (Huambo), foi assinada a escri­tura de fundação da Cooperativa de Colonização Agro-Pecuária "A Açoreana", com sede em Katofe, área do Posto Sede de Concelho de Kibala. Os Estatutos da Cooperativa foram publicados no Boletim Oficial da Província da Angola, III Série, no 48, de 1 de Dezembro de 1949. Foram dezanove os fundadores.
Os Estatutos possuíam um parágrafo (cap. I art. 2o e seu parágrafo sexto) muito sintomático e por isso o trans­crevo: "Difusão entre os nativos da região, dos benefícios conseguidos pela Cooperativa, na medida do possível e seja do interesse deles; como conhecimentos agro-pecuários, assistência sanitária, etc., atendendo ao espírito de colaboração que caracteriza a colonização potuguesa". Isto se cumpriu até ao fim!
Os povoadores que vinham chegando dos Açores, uns mais outros menos, eram portadores das poupanças e do produto da venda dos seus haveres, decididos a tudo investir na terra feiticeira da Angola... Em primeiro lugar, construíram as pequenas casas, que muitas vezes começavam por uma casa de côlmo em estilo nativo, e adquiriam algumas cabeças de gado bovino. Num caso, houve quem começasse com duas vacas leiteiras.
Sendo crescente o número de povoadores em S. Jorge do Katofe, a Cooperativa requereu ao Governo de Angola a concessão de um empréstimo de mil contos, com pagamento escalonado por quinze anos, para serem investidos na compra de gado bovino, a distribuir aos sócios fundadores. Em Dezembro de 1951 foi concedido o empréstimo pela Junta de Comércio Externo e iniciada a compra de gado bovino no sul de Angola.
O rebanho, de algumas centenas de cabeças, depressa atingiu mais de um milhar e a consequente subida da produção de lacticínios. Assim, na época, Angola viria a transformar-se de total importadora em exportadora.
Em 1950/1951, festejaram-se os primeiros nascimentos e baptizados de jorgenses de S. Jorge do Katofe, raízes lançadas em boa e generosa terra, penhores do futuro desta iniciativa de açorianos, que não parava de crescer.

Os primeiros filhos açórico-angolanos do Katofe, lamentavelmente, espalhados por Portugal, Brasil, EUA e Canadá.

O pioneiro Emílio Dias na eira de secar o milho com alguns rebentos açórico-angolanos, Lúcio Matos, São Dias, Idalina Dias, Zeca Matos, Maria Ângela Dias e Linita Dias (da esquerda para a direita).

A assistência religiosa foi desde o início prestada pela Missão Católica de Kibala, numa casa particular. Em 1 de Setembro de 1952, Sua Excelência Reverendíssima o Arcebispo de Luanda, benzeu a primeira pedra da pequena capela, que viria a ser dedicada ao padroeiro S. Jorge pelo mesmo Arcebispo, em 1954. Esta capela viria a ser reconstruída mais duas vezes, transformando-se numa bela igreja, que não envergonhou os seus construtores. Deve assinalar-se que alguns povoadores contribuíram para estas obras com quantias superiores às que dispende­ram nas suas próprias casas. Não negando a sua generosidade e a sua fé! Nela seriam baptizados e depois cris­mados os seus descendentes e continuadores. Nela acabariam por casar alguns dos novos jorgenses.


Igreja de S. Jorge do Katofe: primeira reconstrução, em Dia de Pentecostes, e segunda reconstrução, em 1970.

Alguns dos jovens do Katofe em dia de casamento, no início dos anos 1970.

A igreja depredada atesta a destruição e a desolação trazidas pela guerra insana (2003).

Em 1952, a pedido da Cooperativa, o Estado legislou a criação de uma Reserva do Estado, de 52.000 hecta­res, onde se implantariam as fazendas dos povoadores e se reservariam os terrenos para uso comunitário das aldeias nativas, como era norma do seu direito consuetudinário. No futuro viriam a ser, mais ou menos, 20.000 hec­tares para fazendas e 32.000 hectares para aldeias, os primeiros completamente aproveitados em 1975.
A fim de exemplificar o crescimento económico da Cooperativa e seus associados, à falta dos números que todos os anos eram publicados nas contas da Cooperativa (o único que conservamos, impresso, é o de 1961), socorro-me de escritos do "Diário Insular" de Angra, quase todos da pena do citado jornalista Dutra Faria, "padrinho" do crisma da Décima Ilha dos Açores. Estas crónicas, assim como conferências nas Casas dos Açores de Lisboa e Rio de Janeiro, eram produtos das suas visitas a S. Jorge do Katofe, em 1951 e 1954, e de informações epistolares.
Assim, no ano de 1949 - ano da fundação - assinala-se uma pequena produção de 1.804 kg de manteiga e queijo, no valor de 82 contos. O número de gado existente era de 400 cabeças.
Já em 1955, seis anos depois, a produção era de 6.000kg de manteiga e queijo, no valor de 311 contos, a que corresponde uma multipliçação quase por quatro vezes. Assinale-se a existência de mais de 2.000 bovinos.
Em 1958, a nove anos da existência da Cooperativa, assinale-se uma produção de 16.000 kg de lacticínios, no valor de 711 contos, a existência de 2.582 cabeças de gado, e a venda de 360 bovinos de corte, no valor apro­ximado de 500 contos.
No ano de 1961, há a registar uma produção de lacticínios de 28.000 kg, num valor de 1.313 contos; respectivamente, aumen­tos de 26 e 32% em relação a 1960, demonstrativos do progresso anual e da valorização dos produtos. Note-se que o leite foi pago aos associados a 2$60/litro, quando em 1974, treze anos depois, ainda era pago a 3$00.
O gado bovino sofreu novo aumento em 1961, arroladas que foram 4.133 cabeças (aumento anual de 33%) pela Missão de Inquéritos Agrícolas de Angola, sendo 3.978 cruzadas nativo/holandês/schwitz, 145 schwitz puras oriundas do sudoeste africano e 10 touros fornecidos pelos serviços oficiais. Pesados na balança da Cooperativa foram 404 bovinos, que deixaram 652 contos.
"Para mal dos nossos pecados", o Colonato Estadual da Cela tinha o centro a escassos 62km, e era forte demais a ambição de integrar o nosso povoamento livre - liberdade conquistada a duras penas e trabalhos - para ser absor­vido pelo "Golias Estadual", num singular socialismo de estado. Na Cela, o Estado investira mais de um milhão de contos, a ponto de transportarem para a Vila de Santa Comba uma igreja igual à de Santa Comba Dão. O Estado tudo fornecera aos colo­nos da Cela: casas, terras preparadas, gado, máquinas agrícolas; tudo apoiado por uma burocracia asfixiante. A comparação com o "pequeno David" era chocante, envergonhando Golias e seus mentores!
Os povoadores açorianos e a sua Cooperativa sempre primaram por colocar acima de tudo o seu trabalho, iniciativa e liberdade pessoais contra a mediocridade e burocracia.
Em 1958 foi inaugurada a Escola Primária e nomeada professora própria. Nessa inauguração, foi oferecido, pelo Senhor Governador Geral um instrumental para a filarmónica em formação, com "a prata da casa" abrilhan­tando as Festas do Divino Espírito Santo!
Estava programado e em breve veríamos a sua construção: o Posto Sanitário e a colocação de um enfermeiro, que iria prestar uma assistência diária a todos os habitantes da região, sem excepções.

Progresso - A década 1960/1970 foi um tempo de progresso assinalável. Passaram os tempos duros e difíceis, que Dutra Faria assinalou assim: "Em 1951 o velho Faustino possuía 2 vacas, 1 junta de bois, 1 carro de bois igual aos dos Açores; em 1954, possuía 80 cabeças de gado bovino e 1 moto nova, e podia matar 1 porco todos os meses."
"Estes descobriram também a sua Ilha! Sem uma palavra de retórica. Silenciosamente. Humildemente. Sem um gesto de propaganda, estes açorianos fizeram maior, no que lhe cabia, o mundo lusíada. Levando as vacas para o pasto, mungindo o leite, batendo a manteiga, fabricando o queijo. Podando as macieiras e os araçaleiros. Plantando as couves e os inhames, semeando o milho. E fazendo o sinal da cruz, ao sentarem-se à noite, exaustos, mas satis­feitos consigo próprios, diante de um grande prato de sopa de abóbora e batata doce, polvilhada de canela."
Em 1960, foi colocado em S. Jorge do Katofe, um ajudante de pecuária, que faria as vacinações do gado e todos os outros tratamentos que não exigiam a presença do médico veterinário, colocado na sede do Distrito, abran­gendo uma área tão grande como Portugal Continental.
Este apoio oficial foi imprescindível, ao mesmo tempo em que os povoadores desenvolviam e ensaiavam novos maneios dos rebanhos: tanques banheiros para banhos carracícidas semanais ou quinzenais, parqueamentos com arame farpado, de todo o perímetro das fazendas e sua divisão em parques, ensaios de forragens e desbravamen­tos totais ou parciais.
A Junta Provincial de Povoamento enviou para Katofe uma brigada, chefiada por um agrimensor, a qual tinha por missão medir e legalizar as fazendas, ao mesmo tempo tendo em conta os terrenos das aldeias nativas. Principiou pelas fazendas já estabelecidas no perímetro da já referida Reserva do Estado, abrangendo um raio de 20 km, englobando os vales do Rio Katofe e seus afluentes Mussoe, Kangombe, Kianza, Mussanza e outros, rodea­dos pelas cordilheiras de nomes de sabor africano, Iengo, Tongo, Midanda, Kassamba, Mussanguir, que, em dias friorentos de cacimbo (brumas nocturnas e matinais) ou em noites deslumbrantes de luar, pareciam deixar entrever a silhueta da sua ilha distante...
À medida que terminava o trabalho de campo, por despacho do Secretário Provincial do Fomento Rural, eram publicadas no Boletim Oficial de Angola as concessões provisórias, até que os concessionários comprovassem o total aproveitamento, prazo em que eram emitidos os alvarás definitivos, de plena posse. Já emitidos em 1975.
A requerimento da Cooperativa, os Serviços de Obras Públicas construíram o Internato Escolar, gerido por moni­tores educativos, destinado a receber alunos matriculados na Escola, cujos pais viviam em fazendas distantes da povoação, além de alguns de outras áreas com o mesmo problema.

A Escola e o Internato Escolar durante o interregno da guerra civil, em 1991.

Pelo Governo do Distrito foi executada a obra de abastecimento de água potável à povoação, com distribui­ção ao domicílio.
Igualmente o Secretário Provincial das Obras Públicas mandou aproveitar o antigo açude do Rio Katofe e res­pectiva vala de conduta de água, cedido graciosamente, a fim de mover uma turbina hidroeléctrica para fornecer electricidade à povoação. O Engenheiro Abecassis, antigo Governador do Distrito de Angra, tinha experiência aqui obtida. Os últimos dois melhoramentos raramente existiam em Angola em povoações de igual categoria, per­mitindo aos habitantes uma muito melhor qualidade de vida. À sombra destes nasceram vários outros: casas de habitação, como segunda casa de alguns fazendeiros; pensão-restaurante muito afamada, oficina de reparação de carros e tractores; dois cafés, três casas comerciais, além da Cantina de Cooperativa, três casas para funcio­nários do Estado. Além da Escola, Posto Sanitário e Posto Veterinário, já referidos. O pequeno mas actuante Colonato Açoriano de S. Jorge do Katofe continuava não só em frente em desenvolvimento económico, mas tam­bém em progresso sócio-cultural.
E, como pólo cultural, foi reconstituída e acrescentada a chamada Casa do Espírito Santo, no Largo da Igreja, onde desde os anos cinquenta se realizavam as grandes e seculares Festas do Divino Espírito Santo; das promessas, da alegria, da abundância, da solidariedade! Da Terceira Pessoa, que é o "Rei da Alegria"! Nela vi deslizarem as lágrimas de saudade, a um engenheiro natural da Praia, perante a Benção das Esmolas, iguais às da sua infância!...

Aspecto da última Casa do Espírito Santo em 2003, apresentando as marcas da destruição e abandono.

Na Casa do Espírito Santo, sentavam-se à primeira mesa cerca de mil pessoas! Como diziam os camionistas que percorriam as estradas de Angola, S. Jorge do Katofe era a única terra da Província onde se comia e bebia de graça durante o período das Festas, em boa e alegre companhia. Chegaram a abater-se uma dúzia de bois.
Destas Festas testemunhou o Bispo Angolano, de etnia bantu, que presidiu às Festas, D. Zacarias Kamuenho, hoje Arcebispo de Lubango, e no jantar festivo afirmou: "Li e estudei os Evangelhos, e a história dos ágapes tradicionais dos primeiros cristãos; mas nunca julguei que existisse em pleno Séc. XX, tal manifestação de fraternidade cristã."
Voltemos porém um pouco atrás no tempo. No fim da década de sessenta, esfumado o sonho de levantar uma fábrica de lacticínios em Katofe, com o apoio imprescindível do Estado, deliberou-se que o leite produzido pelos sócios da Cooperativa fosse incorporado na Fábrica da Cela, a 40 km, pertença do Estado; esta em breve seria transferida para uma sociedade privada, recém criada, a Empresa de Lacticínios de Angola - E.L.A., cujas acções pertenciam: 50% aos lavradores/produtores de leite, que livremente as adquiriam; 40% à firma do ramo Martins & Rebelo, muito conhe­cida nos Açores e no Continente; e 10% à Junta Provincial de Povoamento, como fiel de balança. Do Conselho de Administração da E.L.A. veio a fazer parte, como produtor e accionista, o presidente de "A Açoreana". No início dos anos setenta, a E.L.A. mandou construir, à ilharga do Rio Katofe e fronteiro à povoação, um moderno posto de recep­ção de leite, com todos os requisitos mais modernos de refrigeração e higienização, ímpar no espaço português, que em breve forneceria leite de primeira qualidade à Central Leiteira de Luanda, prestes a ser inaugurada.
A Cooperativa "A Açoreana", com a sua Cantina, continuava a fornecer aos seus associados rações para as vacas leiteiras e tudo o mais que necessitassem a preços módicos, além de todo o apoio logístico necessário.
Muito se havia progredido: dos primeiros pagamentos anuais de 49 contos, atingia-se uma média superior a 1.000 contos mensais, quantia muitas vezes superior. Na terra de Angola o horizonte do progresso não tinha limi­tes: quem produzia 10, 50 ou 100 seria capaz de atingir os 1.000! O mesmo espírito se conseguiu implantar em S. Jorge do Katofe! O apoio do Estado não servia como muleta, mas como alavanca ao espírito de iniciativa, traba­lho e boa administração dos escassos recursos da Cooperativa e dos seus associados. Obra de compreensão pluri­racial, de progresso técnico e desenvolvimento, se possível mais perfeito à medida que o tempo passava, e, por necessidade, muito mais barato que outras formas de socialismo de estado, nesse tempo existentes em Angola.
Será que o povoamento implantado em S. Jorge do Katofe não possuía defeitos e falhas? Como obra de homens, modestos ainda por cima, teria a sua cota parte de insuficiências; porém passou o tempo de as apontar, ultrapassadas por dolorosos acontecimentos.
O desenvolvimento não era só económico, mas igualmente sociocultural. Saídos da Escola de S. Jorge do Katofe, muitos dos seus filhos espalhavam-se já pelos liceus de Angola, e já oito deles frequentavam a novel Universidade de Luanda e o Seminário Arquiepiscopal, em variados cursos - Letras, Veterinária, Medicina, Engenharia Civil, Teologia e Filosofia - prontos a contribuírem para o progresso da sua pequena terra e da grande Angola! Mesmo hoje, com o desenvolvimento da educação, será difícil que uma freguesia açoriana de 600 habi­tantes possua o mesmo ratio de universitários!...

Histórias - Como episódios significativos das vivências na Décima Ilha resumo alguns:
I - A tia Maria do Rosário, oitenta e tal anos ainda rebitesos, todos os dias, pela tarde, rezava o seu terço. E uma bela tarde tanto andou que se perdeu no mato, só sendo encontrada ao outro dia. Daí em diante, a tia Rosário sempre lembrava às visitas a noite em que as onças (leopardos) não conseguiram comer a velhinha, trepada numa árvore e protegida pelo rosário de Nossa Senhora.
II - Nos anos cinquenta, visitava S. Jorge do Katofe um jornalista suíço. A certa altura, disse para o seu acompa­nhante: «Uma autêntica paisagem do Minho!» Foi-lhe explicado que as mulheres e homens que remodelaram esta nova paisagem eram descendentes de várias origens, entre elas o Minho!...
III - De visita à Décima Ilha, um agrónomo, jorgense por sinal, depois de ver, observar e fotografar, desabafou: «Fora das nossas ilhas, nunca vi paisagem que tanto me lembrasse os Açores!»
IV - Bastante conhecido em Angola, o Eng.o Boaventura Gonçalves, terceirense, exímio construtor de estradas, hoje falecido, necessitou baixar ao Hospital de Luanda para tratar da saúde. Acabou por constatar que muitos dos empregados nativos eram da zona de Kibala/Katofe, os quais lhe falavam dos tchindeles (europeus), que começavam a desbravar e povoar a zona de onde eram naturais. Os "sulianos" eram boa gente, pagavam sem­pre os prejuízos do seu gado nas lavras e até, numa dificuldade, emprestavam dinheiro às suas famílias. O Eng.o Boaventura, conterrâneo dos "sulianos", passou a ser mimado, chegando a enciumar os outros doentes!
V - Uma bela noite de luar africano, feiticeiro, a povoação foi acordada por urros tremendos. Não sendo zona de leões, na manhã seguinte verificou-se ter sido atacado um curral perto e morta uma nema (novilha). Só podia ser leão... e alguns caçadores amadores resolveram fazer uma mutala em cima de uma árvore sobranceira ao curral, e ao cair da noite trataram de subir à árvore, o último de "bofes à boca", pois já sentiam uma restolhada!... Seguiu-se uma autêntica fuzilaria e os habitantes saíram à rua a espreitar os resultados da guerra... Em breve chegaria uma carrinha trazendo o leão, bicho imponente, motivo de fotos e falatório!... A fêmea viria a ser envenenada numa fazenda próxima, depois de matar outro bovino. Do episódio ficaram até hoje as tro­vas do poeta popular, mestre de viola e animador de tantas noites de chamarritas e bailhos, mestre João da Luz, há anos falecido na Terceira.

Fim do sonho - Estamos no ano decisivo de 1974: 25 de Abril, suposta alvorada de esperança, dado que em S. Jorge do Katofe todos estavam de acordo com a independência, para todo o povo angolano; de paz, ordem e progresso. Por coin­cidência, nesse mesmo dia deslocou-se à Administração do Concelho uma delegação de lavradores com as suas carrinhas carregadas de leite, a fim de pedir ao Governador do Distrito a sua interferência junto do Governo, com vista à subida do preço do leite dos 3$00/litro para um preço que compensasse o produtor. Aí tivemos conheci­mento do que se passava em Lisboa, nesse dia.
Em 26 de Setembro de 1974 comemoram-se as Bodas de Prata da Cooperativa “A Açoreana”; um tempo muito curto na vida de um povo, mas tempo de alegria, de reflexão e progresso imparável. Como corolário, a Junta de Povoamento acabava de ligar todas as fazendas com estradas rurais com pavimento de laterite, levando à estrada principal asfaltada, ao Posto de Lacticínios e à povoação.
Porém, a partir dos meados do ano de 1975, os açorianos do Katofe foram confrontados com a dura, amarga e triste realidade: a independência não seria calma e pacífica, como se antevira um ano antes. A gente de paz e de trabalho de S. Jorge do Katofe, como a maioria dos euro-angolanos, seria obrigada a abandonar tudo o que cons­tituía o seu mundo: os seus haveres, alguns trazidos dos Açores, os seus mortos, as suas próprias recordações, as suas vivências multiraciais. Com prejuízo de todo o povo angolano. No último dia da nossa estadia em Katofe, disse-nos um chefe de aldeia (soba) afro-angolano: “Vocês ainda têm uma terra para onde partirem, nós vamos ficar aqui a morrer de fome, de guerra e de doença!” Prova provada de que os euro-angolanos constituíam o cimento dessa Nação. Veja-se o que veio a acontecer até hoje com a trágica e irresponsável descolonização...
Em Agosto e Setembro inicia-se a partida: famílias inteiras através de Angola em direcção à África do Sul; de avião até Lisboa, para os Açores, Estados Unidos, Venezuela, Brasil e Canadá. Diáspora de gente lusíada em busca de oásis de Paz!...
Para trás ficava tudo, além do mais cerca de 20.000 cabeças de gado bovino; para dali a um ano serem ape­nas 600, até que nada mais sobrou!

Homenagem - Não posso encerrar esta memória sem lembrar os já falecidos, dos dezanove associados fundadores da “A Açoreana", em Angola: João Alves de Oliveira, o afamado João do Katofe, e também João Leal, coração maior que o corpo, sócio n.o 1, o primeiro a ser sepultado no cemitério do Katofe, quando até aí se fazia na Kibala a 15 km. Ainda, em Angola: José do Rosário, José Leal de Oliveira e Braúlio Teixeira de Matos. Nos Açores: João Faustino da Silveira, José Teixeira de Matos, José Lopes dos Santos e João Bettencourt. Na Califórnia: Emílio Dias, Manuel Herculano de Matos, António Alves de Sousa; e na Costa Leste norte-americana: João Rodrigues. Doze dos dezanove. Não seria possível mencionar mais nomes, dos que se inscreveram ao longo dos anos, mas aqui fica a minha homena­gem simples mas sincera a essas mulheres e homens - jorgenses de escol!
Em memória de todos, ouso transcrever os versos do poeta angolano Vieira da Cruz:


COLONO

A terra que lhe cobriu o rosto
e lhe beijou o último sorriso,
foi ele o primeiro homem que a pisou!

Ele venceu a terra que o venceu.
Ele construiu a casa onde viveu...
Ele desbravou a terra heroicamente,
sem um temor, sem uma hesitação
- terra fecunda que lhe deu pão
e lhe floriu a mesa de tacula...

Foi arquitecto e foi também pintor,
porque pintou de verde a sua esperança...

Esculpiu na própria alma um sonho enorme,
Por isso foi também grande escultor!

O que aprendeu foi Deus que o ensinou,
lá na floresta virgem, imensa catedral,
onde tanta vez ajoelhou!

E assim a Décima Ilha dos Açores se foi incrustando na bruma da memória, vivência que foi realização plena, saudade que perdurará...
Permitam-me terminar, pela pena do grande poeta Fernando Pessoa: “Valeu a pena? Tudo vale a pena, se a alma não é pequena!...”.

Bibliografia
*Boletim Oficial de Angola - III Série, n.o 48 de 7/12/1949.
*Estatutos da Cooperativa "A Açoreana", S.C.L.R.L.
* Relatório Impresso e Contas de 1961.
*Apontamentos, exposições e escritos contemporâneos dos acontecimentos.
*Jornal "Diário Insular" de 25/11 /1954, 26/11/1954, 08/03/1958, 09/10/1958, 11/11/1958 e 28/06/1961.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 9 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7750: Homenagem à minha mãe na hora da despedida. Mãe, até amanhã! (José da Câmara)

(**) Vd. poste de 9 de Março de 2011 Guiné 63/74 - P7917: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (13): Emigração para as Colónias, só com Carta de Chamada

Guiné 63/74 - P7935: Álbum fotográfico de Vitor Raposeiro (Bambadinca, 1970/71) (6): O Joaquim Pina (Silves), o Arlindo Roda (Setúbal), o José Luís de Sousa (Funchal)... furriéis da CCAÇ 12 (1969/71)


Guiné > Zona Leste > Sector L1  > Bambadinca >  BART 2917 (1970/72) >  Na parada de Bambadinca, junto às instalações do comando, quartos e messes de oficiais e de sargentos.. Foto provavelmente de inícios de 1971... Reconheço, à direita, de óculos, o meu querido amigo José Luís de Sousa que tive o prazer (inesperado) de reencontrar na Rua do Bispo, no Funchal, há dois anos atrás... Era Fur Mil da CCAÇ 12. Os restantes seriam furriéis da CCS/BART 2917 de cujo nome não me consigo lembrar... Talvez o Benjamim Durães me possa dar uma ajuda, para além do Sousa (se me estiverem a ler...). 



Guiné > Zona Leste > Sector L1  > Bambadinca >  BART 2917 (1970/72) > Um dos quartos dos sargentos... Na foto reconheço, o Vitor Raposeiro em primeiro plano, o Pina (à direita) e o Arlindo Roda (à esquerda)... O Roda vive hoje em Setúbal tal como o Vitor. O Pina (Joaquim João dos Santos Pina)  julgo que continua na sua terra, Silves. Era ilusionista amador e tocador de viola. Bom rapaz, afável, discreto. Foi ferido em combate, e evacuado para o HM 241 em 14 de Janeiro de 1970, na decurso da Op Borboleta Destemida, na região do Xime). Pertencia ao 1º Gr Comb, comandado pelo Alf Mil Op Esp Francisco Magalhães Moreira (que era o homem de confiança do Cap Inf Carlos Brito, substituindo-o na intensa actividade operacional a que esteve sujeita a CCAÇ 12... O que é feito de ti, Moreira ?... Constou-me que arrumaste de vez o dossiê da guerra. Nunca mais te vi, depois de 1994, ano em que realizou o nosso primeiro encontro, em Fão, Esposende).



Guiné > Zona Leste > Sector L1  > Bambadinca >  BART 2917 (1970/72) > Bar de sargentos... O Vitor, à civil, de camisola preta; e o Sousa (CCAÇ 12), fardado, à direita... No meio em segundo plano, o nosso barman (um 1º cabo da CCS/BART 2917) que tanto nos aturou e muita sede nos matou... Já não me lembro do seu nome... Os outros dois furriéis, o 1º e o 3º sentados no bar, também não me lembro dos seus nomes.




Fotos: © Vitor Raposeiro (2009) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.

1. Continuação da publicação de uma selecção das  fotos do álbum do Vitor Raposeiro (ex-Fur Mil, Radiotelegrafista, STM, de rendição indiviual, que passou por Aldeia Formosa, Bambadinca, Bula e Bissau, 1970/72) (*). 

[ Fotos: Selecção / edição / legendagem: L.G.]

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Nota de L.G.:

sábado, 12 de março de 2011

Guiné 63/74 - P7934: Notas de leitura (217): Jardim Botânico, de Luís Naves (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Março de 2011:

Queridos amigos,
Não posso esconder o orgulho de vos ter trazido esta obra que merece constar nas vossas estantes. É um belo romance* em torno daqueles acontecimentos fatídicos que ainda hoje afectam o viver de um povo que nesses momentos terríveis voltou a pegar nas armas quando viu chegar tropas estrangeiras. E orgulho de um português que vê um compatriota escrever para dois países, duas culturas num só apelo à paz, denunciando as formas embrutecidas por onde a guerra se manifesta.

Um abraço do
Mário


Jardim Botânico (3):
Um belo romance português sobre o conflito guineense de 1998-1999

Beja Santos

“Acordaram cedo e gastaram algum tempo nos preparativos da última etapa da viagem, sem grande esperança de poderem passar para Bissau”. Mas tiveram uma surpresa quando regressaram à barricada ou posto de controlo montado pelos homens da Junta. Ali, havia sorrisos de triunfo, deixaram-nos passar a caminho do aeroporto. É uma descrição de grande recorte: “O jipe passou por uma estação de serviço, absurda e espatifada, saída de uma cena de filme apocalíptico. Não se vislumbrava vivalma, apena lixo amontoado. Alguns carros sem rodas jaziam nas traseiras, à toa, um deles capotara de pernas para o ar ou fora virado de propósito. E, no chão, havia grotescos objectos inanimados, como se fosse o espólio de um saque: a panela que alguém largara no chão, por não se aguentar mais transportar o seu peso; roupas rasgadas e sujas; e um cobertor a tapar a terra endurecida; um carro de bebés sem rodas; e, afastado, entre ervas altas, um pequeno tapete de pêlo, o cadáver de um cão, que um jagudi inexperiente já rondava, saltitando desajeitado no asfalto quente de acesso à gasolineira”. Os viajantes entraram na guerra ou no seu limiar, pois o aeroporto está altamente defendido, à barreiras móveis de arame farpado e, surpresa das surpresas, ali dentro pairava um espécie de paz adormecida. O jornalista bem tenta meter conversa com os militares, o que parecia impossível resultou numa excitação dos insurrectos que prontamente começaram a contar as peripécias dos últimos dias.

O jornalista procura o comandante mítico, acabou por conversar com o comandante Capacete de Ferro, o general estava na frente. À volta, há soldados a falarem russo, Ana descodificou que alguém estava a gabar-se de ter estrangulado um senegalês com as próprias mãos. Assim que se descobre que há uma médica no grupo, Ana é compelida a avançar para a enfermaria, uma miserável barraca com um cheiro insuportável. A carência de medicamentos é quase total. Ana apela para que os feridos sejam transferidos para o hospital de Canchungo. Nisto, os mísseis começam a silvar. Reaparece o doutor Fonseca, o secretário de Estado é um sério apoiante da Junta, é ele quem responde pelos contactos externos, redige comunicados, está ufano do papel que desempenha. Como num comício, vai descrevendo os seus grandes planos para o futuro da Nação: escolas, tribunais e fábricas, espalhar a felicidade por todos. E leva-os até à rádio Bombolom, a antena que liga os insurrectos a todo o país. Segue-se uma descrição alucinante de um território apocalíptico com material de guerra calcinado, corpos mumificados. A estação de rádio ficava a um quilómetro da frente de combate, perto do Poilão de Brá. Na rádio Bombolom a Junta lia os comunicados militares e exortava os antigos combatentes a juntarem-se à revolta. Os acontecimentos precipitam-se, reaparece Lila, a bajuda pela qual suspira Ferreira Gomes, aderiu à revolta, já nada a prende ao antigo amante. Os viajantes permanecem na base militar, Daniel está impaciente, quer ir ao interior de Bissau, está ali o seu tesouro escondido.

O autor dá-nos um inesquecível retrato do campo de batalha, a linha da frente é alucinante para ambos os contendores. Ferreira Gomes apresenta Daniel a Moreira, um antigo sócio. Numa atmosfera de completa depressão todos sonham à deriva. Os vínculos afectivos (imaginados ou não) vão-se deteriorando, sobretudo entre Daniel e Ana. Daniel afoita-se ao caminho para entrar na cidade cercada. No meio daquele atoleiro todo, fere-se numa queda, começa a arrastar-se com uma extensa ferida na perna direita. É um calvário que se irá agravando, mas consegue chegar a casa, graças à ajuda de João Leonardo, outro ex-combatente português. A tropeçar, febril, Daniel entra em Bissau: “A cidade era uma ruina disparatada. A artilharia não tinha destruído muitos edifícios. Havia um o outro telhado esventrado, uma casa incendiada, tinham tombado duas árvores numa rua, dispostas como se fossem uma barricada. Tudo mudara por causa da falta de gente, era como se Bissau, sem habitantes, fosse um cadáver abandonado numa vala. Um corpo apodrecido, sem danos de mutilações, mas mesmo assim inerte e despreocupado, morto por choque interno. No ar, pairava um cheiro difícil de definir. Os edifícios no centro mantinham-se quase intactos em relação ao que vira no dia da sua saída… E não se via uma alma de ser vivo. Como se na terra tivessem restado fantasmas de emboscada. Vagas de poeiras dançavam entre as esquinas. E as nuvens, em cima, que agoiravam chuva, densas e acasteladas, pareciam preparar-se para lavar de uma vez por todas os múltiplos pecados vagabundos.

A descrição do hospital de Bissau é dantesca, é um verdadeiro campo de morte. Sem possibilidade de se tratar, com a ferida coberta de pus, Daniel ruma até casa de Leonardo. E depois parte à procura do seu tesouro. Surpreendido, é recebido pelo velho Moleza, guarda e amigo. Não partiu, não tem para onde ir e exclama: “Ferida má, patrão!”. Retirado o seu tesouro, procuram, Daniel e Moleza, abandonar a cidade. É um caminhar delirante, Daniel vai perdendo a consciência. Chegaram a um braço do rio. É aí que Daniel, completamente desalentado, desiste dos papéis que o trouxeram até uma cidade abandonada onde as tropas governamentais resistem. Tudo parece perdido para Daniel, há aqui uma descrição que parece um de profundis: “Ficou ali estendido, sentia uma paz tranquila. As margens da clareira formavam um ciclo assimétrico de árvores, uma parede verde, que parecia um pomar abandonado. Havia palmares de dendém e cibe, as copas altivas de cabaceiras e uma arrogante tagarra que olhava a pequenez humana lá do alto, e ainda um poilão com sinais de amuletos. No miolo do descampado, erva alta, capim amarelado, que a brisa penteava. E canaviais e flores. Parecia-lhe flutuar no rio… Seria a febre? Uma orquídea, à distância da mão, um ventre encarnado, fulgurante, e pintas de tons à volta das pétalas vibrantes, como se alguém tivesse experimentado uma paleta infinita. Seria mesmo uma orquídea ou a explosão de uma nebulosa?”. No fantástico da guerra, naquele vórtice de brutalidade e destruição, aquele doente sofre mas contempla a natureza com um intenso lirismo. É nisto que surge Ferreira Gomes e o velho Moleza. A salvação está muito próxima, vieram soldados da Junta, tudo leva a crer que naquele naufrágio a vida renasce à luz de outros valores. Sim, nada há mais importante que poder recomeçar. Mesmo naquele exótico ponto do globo: “A estrada estava vazia. O calor tombava como fogo de morteiro. O céu ameaçava trovoada. E o barulho inesperado do barulho da carrinha, ao elevar-se na quietude da tarde, quebrou a magia e o tranquilo mistério daquele pedaço de jardim botânico”.

Não hesito em reafirmar que se trata de um belo romance, a primeira grande surpresa da literatura luso-guineense deste ano. Todo o absurdo daquela guerra que marcou o povo guineense como um ferrete está, em síntese, nestas pessoas, nestes ambientes, nesta correria vertiginosa, à revelia de um belo jardim botânico que merecia melhor sorte.

Este romance de Luís Naves passa a pertencer à biblioteca do blogue.
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Nota de CV:

(*) Vd. postes de:

5 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7902: Notas de leitura (213): Jardim Botânico, de Luís Naves (1) (Mário Beja Santos)
e
10 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7920: Notas de leitura (215): Jardim Botânico, de Luís Naves (2) (Mário Beja Santos)

Vd último poste da série de 11 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7929: Notas de leitura (216): Grande Reportagem, nº de Dezembro de 1993: Desaparecidos em combate, os portugueses que não voltaram da guerra: o caso do Victor Capítulo, da CART 1743, Tite, 3 de Fevereiro de 1968 (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P7933: Blogpoesia (114): Medalha???, dedicado a um soldado metralhado (Manuel Maia)

1. Mensagem de Manuel Maia* (ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine, 1972/74), com data de  10 de Março de 2011:

Caro Carlos,
Para colocares onde entenderes, se acaso considerares publicável.

abraço
manuelmaia


MEDALHA???

Rasgado por estilhaço assassino,
está o ventre dum soldado `inda menino,
há gritos lancinantes na picada...
Por mina, d`entre as armas, mais cobarde,
pisada em dia santo já à tarde,
seguida de emboscada encarniçada...

Auxílio lhe quis dar um camarada,
de pronto estraçalhado por rajada
Kalash corta cerce veleidades...
Em acto inesperado, outro soldado,
de pé, responde ao IN ali deitado,
ceifando duma vez "turras" vontades...

Soldado, medalhado terá sido?
Permitam que vos diga que duvido,
perfil de Rambo o dito não teria...
A bando pertencente, o militar,
p`ra guerra foi empurrado p`ra ganhar
as honras para o dólmen da chefia...

A quem das homenagens tenha o mando
requeiro, para mim e todo o bando,
medalha p`ra exornar fato melhor...
Milhares darão milhões a quem as der
que o povo as pagará, "se Deus quiser",
quinhentas mil ou mais, lucro é maior...

Se eu fosse o decisor nessa matéria,
tomando por verdade e coisa séria
assunto agora aqui epigrafado...
Por certo enjeitaria a comissão
tão usual em tratos da nação,
do submarino ao TGV pensado...
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 17 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7627: Blogpoesia (109): Saudades daquele tempo, ou Quisera eu... (10) (Manuel Maia)

Vd. último poste de 14 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7781: Blogpoesia (113): Mulher, minha irmã (Felismina Costa)

Guiné 63/74 - P7932: Tabanca Grande (269): Manuel Alberto Cunha Bento, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista do CAOP Teixeira Pinto (1969/71)

1. Em 5 de Março de 2011, o nosso camarada Manuel Alberto Cunha Bento (ex-1.º Cabo Radiotelegrafista do CAOP Teixeira Pinto - 1969/71), enviou-nos esta mensagem:

Boa tarde colegas
Só ultimamente tenho entrado no blogue, mas sinceramente como não sou nenhum perito em informática é-me muito difícil compreender como isto funciona. Agora que estou reformado e tenho vagar, vou tentar descobrir.


Vi as várias noticias do massacre no CHÃO MANJACO, onde os 3 Majores e Alferes foram assassinados. Eu pertencia ao CAOP, era Cabo Telegrafista e estava sempre em contacto com os referidos oficiais.

Alguém do Agrupamento lhes prestou uma homenagem por escrito e deu-me uma fotocópia que eu guardei nos meus arquivos, e que junto para ser inserida no blogue se acharem conveniente.
Gostava de encontrar os seguintes camaradas, que além dos referidos oficias, também faziam parte do CAOP:

Alf Mil Giesteira, Fur Mil Bento, o Lisboa, o Nunes, o 2.º Cabo Faria, José Carlos e outros que agora não me lembro, pois fomos todos em rendição individual e éramos cerca de uma dúzia.

Por agora é tudo. Aguardo noticias.

Cumprimentos
Manuel Alberto Cunha Bento
manuelben@gmail.com
Telem 969 609 701


2. Esta mensagem que deu origem ao poste 7909, por sua vez originou a que se segue, com data de 10 de Março, também do nosso camarada Manuel Bento, manifestando a sua vontade de ser apresentado à Tertúlia:


Boa tarde camaradas
Cá estou a enviar as fotos solicitadas para poder integrar a nossa tertulia.
Uma fota actual e outra do tempo que estive na tropa.
Mando outra com todo o grupo que estava em apoio aos Comandantes do CAOP, ou seja, Coronel Alcino e os três malogrados Majores, nas diversas especialidades.


Ao centro está o Alferes Giesteira e o Furriel Bento que havia estado numa zona de muita porrada, Guileje ou Gandembel. Quando tínhamos de o acordar, quer fosse de dia ou noite, dava cada salto na cama pensando que era um ataque.

Embarquei em Lisboa em 23 de Fevereiro de 1969, após um ou 2 dias fomos informados do tremor de terra , e desembarquei em Bissau no cais de Pindjiguiti a 01 Março, indo para Teixeira Pinto onde fiz toda a comissão.

Embarquei de regresso a 8 Abril de 1971, chegando a Lisboa a 16.

Sou natural do Marco de Canaveses, mas habito em S. Mamede Infesta, Matosinhos.

Por hoje é tudo
Um abraço
manuelben@gmail.com
telem 969 609 701


3. Comentário de CV:

Caro Manuel Bento, bem-vindo à nossa Tabanca Grande.
Instala-te no melhor lugar para poderes participar contando as tuas experiências enquanto combatente no Chão Manjaco. Tendo tu vivido de perto os trágicos acontecimentos do dia 20 de Abril de 1970, poderás por ventura acrescentar mais pormenores ao nosso dossiê, elaborado com a colaboração de alguns dos nossos camaradas, com especial relevo para o nosso tertuliano Afonso Sousa.

Poderás aceder a este dossiê através destas ligações (clica nas palavras sublinhadas):
Afonso Sousa
e
Três Majores

Poderás se assim o entenderes sugerir correcções e/ou acrescentar elementos.

Posto isto, esperando de ti a melhor participação possível da tua parte, deixo-te um abraço de boas-vindas em nome da tertúlia e dos editores.

Carlos Vinhal
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 8 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7909: O Nosso Livro de Visitas (106): Manuel Alberto Cunha Bento, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista no CAOP 1

Vd. último poste da série de 3 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7893: Tabanca Grande (268): Vitor Raposeiro, ex-Fur Mil, Radiotelegrafista, STM (Aldeia Formosa, Bambadinca e Bula, 1970/72)

Guiné 63/74 - P7931: Notas fotocaligráficas de uma viagem de férias à Guiné-Bissau (João Graça, jovem médico e músico) (5): Os encantos e as armadilhas das ilhas de Bubaque e Rubane (Bijagós), 11/13 de Dezembro de 2009 (Parte I)

















Guiné-Bissau > Arquipélago dos Gijagós > Ilhas de Bubaque e Rubane (a sudoeste da ilha de Bolama) > 12 de Dezembro de 2009 > Encantos e armadilhas... Alguns flagrantes... João Graça e o seu companheiro de ocasião, o cooperante espanhol Victor (a trabalhar numa ONG em Bafatá)...

Fotos: © João Graça (2009) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


Continuação da publicação das notas do diário de viagem à Guiné, do João Graça, acompanhadas de um selecção de algumas das centenas fotos que ele  fez, nas duas semanas que lá passou (*)... Nos cinco primeiros dias (de 6 a 10 de Dezembro de 2009) fomos encontrá-lo, como médico, voluntário, no Centro de Saúde Materno-Infantil de Iemberém (*). O fim de semana de 11 a 13 (6ª, sábado e domingo) de Dezembro de 2009, foi passado em Bubaque e Rubane (Arquipélago dos Bijagós). Um fim de semana bem merecido...

Por serem de todo ilegíveis ou fazerem referências muito pessoais a terceiros, optei por assinalar com parênteses rectos e reticências [...] certas partes do diário... Noutros casos, acrescentei, também dentro de parênteses rectos [ ], algumas notas da minha lavra, decorrentes das nossas conversas sobre esta viagem (memorável, para ele)... (LG)


11/12/2009, 6ª feira > Bissau-Bubaque (Bijagós)




7.1.Encontrei o Victor (espanhol, cooperante de uma ONG que trabalha em Bafatá), na rua com Alex e Ana. Viria a tornar-se uma excelente companhia nos Bijagós.


7.2. Encontro a Catarina Meireles [, médica, portuguesa, que já aqui publicou um belíssimo texto ecuménico sobre a tabanca de Tabatô e a cerimónia do Tabaski], deu-me os [seus] contactos, partiria nesse dia.


7.3. Barco, porto [ em Bissau]. Conheci a polícia R.... Agora o Governo está a pagar salários desde há um ano. “Droga no porto?” [, pergunto eu]. “Não, agora isso já não há!” [...].


7.4. Sobrinhos de Nino Vieira foram também [ no barco, para Bubaque]. Conheci-os. Muito simpáticos. Vivem no Barreiro e Seixal [, em Portugal,] mas bem. Patos, galinhas, galos, cordeiros, tudo junto com as pessoas. Música africana (afromandinga), em cima, no convés. Dancei.


7.5. Conheci Sara, médica belga dos Médicos do Mundo. Esteve no Congo alguns anos, está em África há 5 anos. Trabalha na Sida em Bafatá, Bubaque, Bissau. Salvador já fez este papel (Erasmus, 50 anos, Granada, Espanha). Eugénie, mais tímida, francesa, dos M. M. [Médicos do Mundo]. Esteve no Burkina Faso.


7.6. [Conheci também] E…, guineense dos M.M., administrador de formação, de óculos, [...] à intelectual. L…, guineense, enfermeiro dos M.M. […]. Estes falaram […] sobre as histórias do Kumba Ialá [...] e [deram] pormenores sobre a morte do Nino, [que terá sido]  avisado pelo 1º ministro mas não quis fugir [...]


7.7. Noite foi passada na discoteca de Bubaque, do sobrinho do Nino. Não há luz pública na ilha, nem água, mas há uma discoteca!  Fartei-me de dançar. Muito divertido. Africanos têm outro ritmo. [...]

[Continua]

[ Fixação / revisão de texto / selecção e edição de fotos / título: L.G.]

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Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 19 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7816: Notas fotocaligráficas de uma viagem de férias à Guiné-Bissau (João Graça, jovem médico e músico) (4): 10/12/2009, último dia de consultas em Iemberém e viagem de regresso (10 horas!) a Bissau

sexta-feira, 11 de março de 2011

Guiné 63/74 - P7930: Convívios (298): Almoço / Convívio do pessoal da CART 2716 (Xitole, 1970/72), dia 28 de Maio em Penafiel

1. Mensagem do nosso camarada José Martins Rodrigues (ex-1.º Cabo Enfermeiro da CART 2716/BART 2917, Xitole, 1970/72), com data de 11 de Março de 2011:

Caro Amigo Carlos Vinhal
Na tua qualidade de editor da “Tabanca Grande”, envio-te para publicação a informação referente ao XV Almoço Convívio da CART 2716.

Aceita um Cordial Abraço de Amizade.

P, Comissão Organizadora
José Martins Rodrigues
1º cabo Enfº da CART 2716

XV ALMOÇO CONVÍVIO da CART 2716
GUINÉ – XITOLE – 1970/72


José Martins Rodrigues, ex-1.º Cabo Enf da CART 2716, informa que o XV Almoço / Convívio da Companhia se vai realizar na cidade de Penafiel no próximo dia 28 de Maio.

A concentração será, a partir das 10 horas, no Campo da Feira junto do Destacamento da GNR, antigo RAL 5.
 

O Almoço será servido a partir das 13 horas no Restaurante Marisqueira Pérola do Vale, que fica na zona Industrial 2, junto do Intermarché.



EMENTA
Entradas – Pão, Azeitonas, Presunto com melão, Salgados variados, Pataniscas de bacalhau, Linguiça grelhada, Rojõezinhos e Moelas

Quentes - Canja de galinha, Bacalhau à Zé do Pipo e Cozido à Portuguesa

Sobremesas – Salada de frutas, Bolo de bolacha, Bolo de chocolate, Pudim caseiro e

Bolo Comemorativo

Bebidas – Vinhos Verdes e Maduros da Casa, Água, Cerveja, Café, Digestivo e Espumante doce e seco.

Preço p/ pessoa: 20 euros
Crianças – Dos 6 aos 10 anos pagam 50%

Faz a tua inscrição através de: 229 517 464 / 967 409 449 ou de jmrodrigues47@gmail.com
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7906: Convívios (213): Almoço/convívio do pessoal da CART 2519, dia 7 de Maio de 2011, no Moita do Ribatejo (Mário Pinto)

Guiné 63/74 - P7929: Notas de leitura (216): Grande Reportagem, nº de Dezembro de 1993: Desaparecidos em combate, os portugueses que não voltaram da guerra: o caso do Victor Capítulo, da CART 1743, Tite, 3 de Fevereiro de 1968 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Março de 2011:


Queridos amigos,

Nas minhas arrumações, encontrei este número da revista Grande Reportagem, tanto quanto me ocorre daquilo que leio diariamente no blogue ainda não se falou desta reportagem e da história do nosso camarada Vitor Capítulo (*), um dos libertados da operação Mar Verde.

Um abraço do  Mário

2. Do lado de cá, julgaram-no morto

por Beja Santos 

A revista Grande Reportagem, no número de Dezembro de 1993 tinha uma capa bem expressiva:
“Desaparecidos em combate, os portugueses que não voltaram da guerra”.

O texto era assinado por Fernanda Pratas, assim apresentado:

“Ficar sem um filho na guerra é uma mágoa que não se pode dizer. Muito menos em números, o mais absurdo dos instrumentos para traduzir a tortura de uma ausência forçada. Mas não é de paixões da alma que tratam as instituições. Para as Forças Armadas portuguesas, há um balanço da guerra colonial: 13 anos de campanhas de África, 8807 mortos, 30 000 deficientes. Os restantes 800 000 voltaram vivos e bem de saúde. Tudo resolvido, portanto. De uns, resta encomendar a alma e oferecer medalhas póstumas às crianças, a lembrar que o pai foi herói ao serviço da Nação. Aos estropiados, ajudas financeiras, a assistência do costume. E os outros? Quais outros? Desaparecidos? Isso não há, garantem. Dos nossos, ninguém ficou sem destino. Muitas famílias nunca viram os seus mortos, não têm mesmo a certeza se morreram. Mas que importa?”.

E sucedem-se algumas histórias. António Dias Neto, primeiro grumete da Armada, da Companhia de Fuzileiros nº 7, desapareceu no Rio Zaire. Não deram com o corpo, nem o dele nem o de dois companheiros. Comunica-se à família enlutada, aliás já em decomposição, os pais vão morrer poucos anos depois. Resta Edite, a irmã. Ainda se lutou pela pensão de sangue, os pais dependiam daquele rapaz de 23 anos. A namorada do desaparecido casou.

Desaparecido é sempre uma situação incómoda: prisioneiros, perdidos, desertores e mais algumas situações exóticas. A lógica militar é bastante linear ou quase: da guerra só resultam sobreviventes e cadáveres. Lidar com a situação de um desaparecido é bastante incómodo, nada comparável com um morto em combate ou um morto por acidente.

O escritor João de Melo, que foi Furriel Enfermeiro entre 1971 e 1973, refere-se a uma missão bem espinhosa que coube à sua Unidade: recuperar o corpo de um homem morto uns sete anos antes, enterrado no mato pelos colegas:

“Havia cartas militares com o lugar assinalado, mas a operação era para durar três dias e durou oito. Andámos perdidos, já sem ração de combate. Depois, lá descobrimos umas marcas em árvores, umas pedras no chão, era como que uma caça ao tesouro. Ao longe, víamos o Zaire e os movimentos da FNLA. Desenterrámos então um monte de ossos, sem botas nem roupas, só os ossos. Trouxemo-los para o nosso aquartelamento em sacos de tenda, lavámo-los e foram metidos dentro de uma urna selada, para a família. Esses casos não eram frequentes, normalmente não se deixavam os cadáveres no mato”.

A reportagem prossegue com o desaparecimento do Capitão Piloto-aviador Hugo Assunção Ventura, desaparecido sobre o rio Rovuma. Houve um patrulhamento no rio Rovuma, o T6 desapareceu, conforme depoimento do Furriel Semedo. Um mês depois do desaparecimento, veio da capital da Tanzânia a notícia de um avião encontrado junto ao rio. Em Fevereiro de 1976, chegou ao aeroporto da Portela uma caixa com o que restaria do cadáver: uma bota, uns ossos indistintos, bocados de tecido da farda e do lenço habitual dos pilotos. Sem crânio, não era possível determinar a identidade.





Victor Capítulo, o desaparecido que voltou

E estamos chegados à história de Victor Manuel de Jesus Capítulo, na altura da reportagem com 48 anos. Cá, foi dado como morto, mas voltou e deslumbrou a família. Antes da tropa era pescador em Sesimbra. Em 1967 viajou no barco Timor até à Guiné. Foi colocado na região de Tite [, na CART 1743]. A sua vida mudou na noite de 3 de Fevereiro de 1968, o seu quartel foi atacado, o Victor não se apercebeu do que estava a acontecer, apareceu-lhe pela frente um guerrilheiro que apontou uma arma aos três militares que estavam junto do aparelho da rádio (ele, o Operador de Cripto e o Comandante do Pelotão) cumprimentou-os e levou-os.

Depois de uma longa viagem foi levado para uma prisão em Kíndia, depois para Conacri, será aqui que Victor Capítulo irá conhecer o então Sargento Piloto-aviador Lobato. Serão todos libertados na Operação Mar Verde. Um oficial foi entregá-lo à família a Sesimbra. A reportagem mostra o Victor Capítulo na Guiné e agora (1993) em Sesimbra. À data da reportagem, o Victor dormia mal e precisava de acompanhamento médico. Não é fácil lidar com uma captura, ser interrogado, não saber o dia de amanhã. O Victor foi aquele desaparecido em combate que voltou e quebrou com uma mágoa que não se podia dizer.

Este número da revista Grande Reportagem passa a pertencer ao blogue. (**)
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Notas de CV:

(*) A captura do Victor e demais camaradas (António Júlio Rosa e  Geraldino Marques Contino)  já aqui foi objecto de "tratamento bloguístico", sob o poste de 12 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2095: PAIGC - Propaganda (3): A guerra dos números (A. Marques Lopes / António Pimentel)

(...) Excerto da notícia da captura do António Júlio Rosa e de mais 2 dos seus camaradas (Jornal Libertação, Fevereiro de 1968, página 3):

(…) Na área de Quínara (Frente Sul), no dia 3 de Fevereiro [de 1968], no decurso de um ataque a uma unidade colonialista que se instalara na tabanca de Bissássema, as nossas forças, comandadas pelos camaradas Fokna Na Santchu e Mamadu Mané, fizeram prisioneiros os seguintes militares portugueses: alferes miliciano de infantaria António Júlio Rosa, 1º cabo nº 093526/66, Geraldino Marques Contino, o soldado nº 034660/66, Victor Manuel de Jesus Capítulo, todos da companhia 1743, estacionada em Tite.

Nesta acção foram ainda postos fora de combate 16 soldados colonialistas. O restante da tropa inimiga fugiu para o campo fortificado de Tite, abandonando no terreno uma importante quantidade de material, entre os quais se contam 6 rádios de campanha de fabricação britânica.

De acordo com as normas do Partido, estes novos prisioneiros portugueses receberão o tratamento humano que lhes é garantido pelas convenções internacionais (...).



(**) Vd. último poste da série de 10 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7920: Notas de leitura (215): Jardim Botânico, de Luís Naves (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P7928: VI Encontro da Tabanca Grande, dia 4 de Junho em Monte Real (2): Vamos ter connosco a nossa amiga tertuliana Felismina Costa (A Organização)

VI ENCONTRO DA TABANCA GRANDE

4 DE JUNHO DE 2011

PALACE HOTEL MONTE REAL


Caros camaradas e amigos tertulianos, 
Foi com agradável surpresa que recebemos no dia 9 de Março a inscrição da nossa amiga Felismina Costa.

Julgamos tratar-se da primeira tertuliana não familiar de um ex-combatente que se junta a nós, o que desejamos não venha a constituir caso isolado, pelo contrário, seja um incentivo para que outras amigas nossas participem no Encontro da Tabanca Grande.
Não necessitarão de virem sozinhas, já que poderão fazer-se acompanhar de um ou dois familiares. Na nossa mesa cabe sempre mais um.

Aproveitamos para lembrar que as inscrições, 35 até à data, continuam abertas, não devendo os camaradas que têm intenção de participar deixar para muito tarde o manifestar da sua vontade. A pernoita, para quem precisar, deve ser marcada com antecedência para não correrem o risco de não haver vagas.

O que precisam de saber, no essencial, está no Poste 7840. Não esqueçam de no acto de inscrição dizerem se trazem acompanhante(s), indicando o(s) seu(s) nome(s), e dizerem de onde se deslocam. Caso queiram pernoitar em Monte Real, devem pedir a respectiva reserva.

Continuaremos por aqui à vossa disposição.

Pela Organização
Carlos Vinhal
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Nota de CV:

Vd. Primeiro poste da série de 22 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7840: VI Encontro da Tabanca Grande, dia 4 de Junho em Monte Real (1) Marcada a data para 4 de Junho de 2011 (A Organização)

Guiné 63/74 - P7927: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (27): O absurdo do monólogo a dois

1. "O absurdo do monólogo a dois". Texto enviado pelo nosso camarada Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), em mensagem com data de 9 de Março de 2011:


Guiné - Mansambo - CART 2339
Foto: © Torcato Mendonça (2011). Todos os direitos reservados.


ESTÓRIAS DE MANSAMBO II - 27

O Absurdo do Monólogo a Dois.


Sentados num tronco do velho abrigo, Tabanca ao fundo, ali onde, Mansambo/aquartelamento tinha começado, dois jovens, resguardando-se do calor à sombra da frondosa árvore, conversavam.
Jovens de idade incerta, rostos vincados e onde, certamente há muito os sorrisos não apareciam.
Olhavam duro ou vazio o nada e falavam baixo:

- Como está ele?

- Calmo agora. O enfermeiro já o tratou e os medicamentos começam a fazer efeito.

- Está a repetir-se muito. Vezes demais.

-Diga-me lá o que se passa com ele. Já na Metrópole lhe perguntei e nada disse.

-Não. Na Metrópole era outro assunto sem correlação com este. Eram problemas da vida privada dele. Prefiro não falar. Só tínhamos que informar de quando em vez. Lá, e depois aqui, o comportamento dele sempre foi estupendo e disposto a fazer os mais diversos trabalhos. Você sabe e nem vale a pena falar disso. Tanto assim que praticamente deixou de ser operacional. Era mais útil noutros lados.

-Já falou com o médico nisso tudo?

-Falei durante muito tempo. O médico disse-me pouco quanto a uma solução concreta, uma solução que me descansasse. Não me estou a intrometer em questões de saúde. Vejo a situação dele, como a da maioria dos soldados. Nós, graduados, já fomos uma ou duas vezes de férias. Saímos daqui, voltamos a ver casas, automóveis, luzes, ou, o mais importante, fomos até á Metrópole e voltamos a estar com família e amigos. Os soldados, a quase totalidade, não. O desgaste psicológico é bem maior. Mais nuns do que noutros, é certo. Mas a carga de desgaste é bem maior. Sentimos isso facilmente. Passamos muito tempo juntos, quase as vinte e quatro horas. Comemos igual e dormimos nos mesmos abrigos. As diferenças que existem são poucas, nesse aspecto. Lembra-se de termos caído numa emboscada e o morteiro não ter funcionado normalmente. Porquê? Porque ficaram, apesar de ter havido problemas com um joelho, aqueles dois homens assim estáticos? Já tinham, nessa data, tantas horas debaixo de fogo. Não reagiram bem. Aconteceu a eles. É normal. É humanamente normal. Humanamente. Nós, aqui, preocupamo-nos com o humanamente? Temos preparação para isso? Não.

-Falou com o médico nisso?

-Claro que sim. Foi ele que me alertou para esse aspecto humano. Ele tem preparação. Nós, aos poucos, muitos de nós ou a maioria, fomos perdendo a parte humana que tínhamos. Somos unidos, solidários, partilhamos alegrias e tristezas, medos mas, penso eu, cada vez, estamos mais duros e vazios. Olhe as caras e olhares. Você e eu não notamos. O médico, esse sim, nota e vai vendo as transformações operadas. Se não tem a especialidade de psiquiatra irá acabar. Colocou-me diversas questões e eu fui respondendo e colocando outras. Por isso falo assim. Falei deste caso, do outro que temos e até de mim.

- De si porquê?

- Porque ele colocou-me uma questão e eu recordei algo que se passou comigo. Quando apanharam, na fonte, aquele nosso soldado à mão, tínhamos acabado de almoçar com o Comandante do Pel Mi 103 o Alferes Uro Baldé, da Moricanhe. Depois de ser dado o alarme fomos à fonte e iniciaram uma primeira breve perseguição. Entrei, via rádio, em contacto com o Batalhão. De repente sentimos aquele estouro e soubemos ter sido uma mina. Você estava lá e safou-se por pouco. Quando depois fui apanhar o Alf. Uro Baldé para o pano de tenda, ajudado claro, vi restos do esparguete do almoço, as ervas à volta negras e cortadas, o cheiro adocicado do sangue. Tudo isso, aliado ao pouco tempo que tinha de Guiné, à raiva que sentia provocou em mim uma perturbação forte. Durante tempos, certos cheiros perturbavam-me e dormia mal. O Enfermeiro, temos sorte em ter um enfermeiro assim, deu-me comprimidos para dormir. Foi pior. Antes acordava sobressaltado. Depois não acordava e era pior. Parei logo e o uísque foi bem melhor. Passou. Não ligava e aos poucos foi desaparecendo. Mais tarde fui de férias a primeira vez e foi benéfico. Lá, na Metrópole, não sabem o que aqui se passa. Faz calor e há bichos… Por isso, não só, lhe falei da falta de férias dos soldados. Não só, Não só.

- Isto mexe demais connosco.

- Efectivamente. O que está a acontecer a este homem do nosso grupo, passa-se, segundo o que o médico diz e não concorda, com muitos. A receita dada pelo Exército é, segundo ele, comprimidos "LM" de "x+y" e não admitem outra solução mais. Se ele diz ser impotente para resolver o assunto que direi eu? Por isso, às vezes, sinto o regresso da tal humanidade. Pode não ser e já nem sei ao certo. Por quanto tempo mais? Aqui neste viver ou neste sobreviver que há a fazer? Muito pouco. Qualquer descuido, qualquer fraqueza pode ser fatal para muitos.

- Vamos estar mais atentos. Eu estarei e falaremos mais destes casos. Ainda se lembra de Évora, onde nos conhecemos?

-Claro que sim. Essa agora.

- Parece que foi há muito tempo. Mas você mudou muito.

- Mudamos todos…

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O militar que aqui falamos, de quando em vez, começou, de modo inesperado e não muitas vezes, a ter atitudes pouco consentâneas com a normalidade. De forma inesperada fugia gritando. Numa dessas vezes foi de encontro aos bidões de duzentos litros, cheios de terra, que protegiam os abrigos. Outra foi de encontro à primeira fiada de arame farpado. Feriu-se na cabeça na primeira vez e no corpo na segunda. Melhorou.
Num dia, que devia ser de festa pois era a entrada de mais um ano, por descuido ou pelo tremer dos geradores Lister ficou ferido, pensando nós ser com alguma gravidade. Evacuado no dia seguinte para o Hospital Militar em Bissau veio, muitos dias depois, a ser evacuado para o Hospital Militar em Lisboa.
Encontrei-o trinta e cinco anos depois. Se falamos do tempo militar não recordo. Falamos, isso sim, da vida actual. Os seus olhos irradiavam um brilho que me diziam estar bem com a vida. Aquele brilho que nós vemos, só nós vemos, sair dos olhos de dois ex-combatentes, dois camaradas.

**********

Hoje, ouço, leio, ou “sonho”, afirmações ditas, descritas, sopradas, ou, em conjunto produzidas e, mesmo sem o tal cheiro incomodam-me. Sinto desagrado. Um ligeiro desagrado. Mas nada digo. Começa a aborrecer.

Deviam ter respeito, mais respeito, por todos os que não voltaram, os que regressaram deficientes, os que só vieram em parte ou por outros que vão calando, falando entre ex camaradas de armas e nada mais exigem do que esse mesmo respeito. Só.

Porque:

- O stresse de guerra existe!
- O sofrimento de muitos deficientes é um facto!
- A guerra dura e violenta existiu!

A não resolução dos problemas, de tantos problemas desses ex militares, por quem de direito, há trinta e muitos anos para cá (1974/2011) ou desde a Índia até os dias de hoje, tem, para a definir uma palavra demasiado “feia”. Ficava mal aqui.
Mas há muito que devia ter sido dito: - BASTA!

O ABSURDO do monólogo a dois é isso mesmo.

A conversa existiu, não textualmente assim talvez, entre um furriel e um alferes sobre o ABSURDO de como certos militares, carentes de ajuda ONTEM e agora HOJE, ERAM e ainda SÃO tratados.

Fnd Mar/2011
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 10 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7922: Efemérides (61): Op Lança Afiada, triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, 8 a 19 de Março de 1969 (Torcato Mendonça)

Vd. último poste da série de 2 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7889: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (26): Chuva em noite escura

Guiné 63/74 - P7926: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (81): Na Kontra Ka Kontra: 45.º episódio




1. Quadragésimo quinto episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 10 de Março de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


45º EPISÓDIO

Um dia, encontrando-se Magalhães Faria a almoçar com o filho na “D. Berta”, chega o Dionildo e de chofre diz-lhe:

- C… sabe quem está ali em baixo à porta? A sua primeira mulher.

O filho do Magalhães Faria arregalou os olhos e este ficou lívido.

- E sabe quem está com ela? Aquela bajudinha muçulmana que nasceu em Madina Xaquili, quando lá estávamos e a quem puseram o nome de Sextafeira. Agora está uma mulheraça.

Um NA KONTRA inusitado.

Magalhães Faria não teve como fugir à situação criada pelo Dionildo. Tentou explicar ao filho que era uma brincadeira do Dionildo mas teve que descer ao rés do chão e ir ter com a Asmau e a Sextafeira. Conversaram uns minutos, o suficiente para ficar a saber que a Asmau estava casada, que tivera sete filhos dos quais um morreu, e que vivia em Bafata. Tinha vindo visitar a Sextafeira que vivia com os pais em Bissau. Se Sextafeira estava uma mulheraça no dizer do Dionildo, Asmau com os seus 36 anos, bonita como sempre foi, agora bem vestida, com uma pujança física de fazer inveja até a Sextafeira, podia por a cabeça à roda a qualquer mortal. Se a pôs ou não a Magalhães Faria não se ficou a saber. Despediram-se e aparentemente tudo ficou na mesma.

Com o Dionildo é que as coisas não ficaram na mesma. A Sextafeira mexeu com ele. Um autêntico amor à primeira vista. Fizeram promessas de se tornarem a encontrar.

Decorrem alguns dias até que a guerra parece novamente instalada em Bissau. Ouvem-se tiros, rebentamentos e mais tarde, como sempre acontece, os boatos. A pretexto de uma tentativa de golpe terá sido feita uma nova depuração, e, inexplicavelmente, mais uma vez de balantas por balantas. Ambos, pai e filho, começaram a acusar a instabilidade que agora se estava a viver e resolvem regressar a Portugal.

No Porto, tentando refazer a sua vida profissional Magalhães Faria cria uma pequena empresa de transitários, privilegiando os transportes para a Guiné, destino pouco explorado. Parecia que a África, ou melhor a Guiné, ou porventura ainda a Asmau não lhe saía do pensamento.. O Dionildo passa a ser o seu “braço direito”.

Magalhães Faria não se sente bem a viver só, sem uma mulher a seu lado.

Conhece entretanto uma senhora brasileira com quem vem a casar depois de um curto namoro. Logo na viagem de núpcias, passada no Brasil, entusiasma-se com o país e, chegado a Portugal, prepara as coisas no sentido de o Dionildo ficar à frente do negócio. Parte novamente para o Brasil acompanhado da mulher para, com o apoio do sogro brasileiro, iniciar nova vida profissional. Mantém-se lá alguns anos, com vindas regulares a Portugal.

Magalhães Faria vai a Brasília e visita a Catedral.

O Rio de Janeiro foi visita obrigatória para Magalhães Faria.

Magalhães Faria e a terceira mulher
no Cristo Rei.

Estabelecido a setenta quilómetros de S. Paulo, em Santos, cidade muito interessante com praia ao longo de uma avenida que faz lembrar Copacabana, tem oportunidade de conhecer toda a zona sul do Brasil. Visita as Cataratas de Iguaçú, vai à capital, Brasília, percorre a estrada marginal até ao Rio de Janeiro, passando pela maravilhosa cidadezinha de Parati com as suas casas tipicamente coloniais portuguesas.

Magalhães Faria e sua mulher apreciando a Baía de Santos

Porém, talvez um chamamento semelhante ao da negritude africana, agora a negritude brasileira faz com que esteja por períodos muito curtos em Portugal. Esta negritude vai novamente fazer mudar a sua vida. Agora é a sua mulher que se afasta, não aguentando as duplicidades. Magalhães Faria vê-se de novo em situação de KA KONTRA, semelhante à anteriormente vivida em Portugal.

A história repete-se e da mesma forma não quer também ficar dependente do agora ex-sogro. Regressa a Portugal e assume novamente a direcção da sua empresa, que vinha sendo gerida pelo Dionildo.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 10 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7919: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (80): Na Kontra Ka Kontra: 44.º episódio