sábado, 26 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9097: Porto de Abrigo (Carlos Rios) (2): A nossa estada em Fulacunda

1. Segundo episódio de "Porto de Abrigo", as memórias passadas a escrito pelo nosso camarada Carlos Luís Martins Rios*, ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66.


PORTO DE ABRIGO - II

A nossa estada em Fulacunda

Durante o tempo de permanência na colónia tivemos contacto com a tremenda realidade de uma guerra no que do pior pode acontecer. Enterrámo-nos nas bolanhas, dormimos em buracos escavados à pressa, abrigámo-nos à sombra das árvores esguias e altas, bebemos a chuva escorrida entre as folhas ou chupámos as gotas de um punhado de lama amassada, bem como em muitas operações ao romper da madrugada lambíamos a humidade acumulada nas folhas do capim, tal era a sede, fome e cansaço acumulados por longas e tremendas caminhadas feitas sob o efeito da ansiedade e do medo, porque não dizê-lo; chegámos a caminhar 36 horas consecutivas alimentados a ração de combate e sendo diversas vezes flagelados por emboscadas do IN; o nosso sangue para além de ser derramado em profusão por alguns queridos camaradas, foi ainda sugado pelos mosquitos; o paludismo foi contraído por alguns de nós; o nosso suor e algumas vezes, as nossas lágrimas ajudaram a molhar a terra ressequida. Andámos dezenas e dezenas de quilómetros em picadas ou abrindo clareiras na mata espessa com o nosso próprio corpo; conhecemos as tabancas; falámos com as pessoas e entendemo-las num português incipiente, com ajuda de meia dúzia de expressões na língua local e até através da linguagem universal do gesto; pegámos ao colo tantas crianças, ajudámos a matar a fome de tantos homens e mulheres. Mas também matámos. Também morremos, e principalmente sofremos com a omnipresença da nossa vida dos nossos entes queridos; quanta nostalgia!
Sim! Porque as coisas mais lindas ou horríveis que nos marcam ou emocionam não podem ser vistas ou tocadas mas sim sentidas pelo coração.

Deslocados para o Quartel de Santa Luzia, ali recebemos directamente o armamento de outra Companhia que estava de regresso a Portugal, ali se entrecruzaram dois grupos de homens cujos estados de espírito eram perfeitamente antagónicos; enquanto entre nós reinava a ansiedade e a contrariedade, nos nossos camaradas vivia a descompressão e a expectativa do regresso.

Ainda me lembro das palavras ditas em tom de grande amizade pelo furriel que me antecedeu e me entregou a arma: - Toma lá oh periquito, aqui tens a formosa, vê se a tratas bem porque vai ser a tua melhor amiga.

Por entre a vozearia ouvia-se a espaços: vai pró mato periquito.

Começava a tomar contacto com um infindável e curioso léxico novo e utilizado pelo pessoal durante o tempo ali passado a par com imensas frases e palavras do crioulo e de dialectos gentílicos.

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Embarcados em lanchas LDM ou LDG, não tenho já a certeza, lá partimos para o nosso local de destino. É o primeiro contacto com a realidade da misteriosa e esmagadora mata, a viagem pelos canais circundantes e por último pelo rio Corubal. Além da intranquilidade interior e ansiedade permanente, a viagem decorre tranquilamente numa linda paisagem envolvente até que chegamos ao porto de desembarque localizado a 4 quilómetros, por uma assustadora picada em péssimo estado até Fulacunda, onde se encontra instalado o Quartel, um rectângulo rodeado por arame farpado com edifícios da antiga colonização – é uma sede de circunscrição – onde foram instaladas e construídos abrigos subterrâneos e postos de sentinela em pontos estratégicos da cerca. Ainda há um Posto de Correio e um comerciante branco – o Sr. Pires – que vive sozinho. Existe no exterior bastante população, e a sensivelmente 100 metros, uma pista de aterragem, onde está instalado um posto avançado apetrechado com uma metralhadora Breda e que está permanentemente ocupado por uma Secção. As únicas ligações são o já falado porto de embarque, onde curiosamente vem carregar e descarregar uma barcaça com todo o tipo de géneros para nós e a população, da qual alguns elementos também se fazem transportar naquele meio e o aeródromo. Nas chegadas e partidas da mesma um Pelotão da Companhia monta a segurança, francamente, não creio, o barco nunca teve o mais pequeno problema, haver necessidade da mesma. O único problema havido teve a ver com um militar nosso que se meteu no rio e ia a ser levado pela maré, valeu-lhe a generosidade e valentia do recém-chegado Alf. Mil. Rui Ferreira que o resgatou às águas já a mais de 50 metros do local onde se encontrava. Começava a aparecer a valentia, voluntariedade e humanidade de um líder nato. A população dedicava-se nos limites da zona capinada envolvente ao quartel, ao cultivo de mancarra (amendoim) e proliferava a pesca; enfim um conjunto de actividades que francamente nunca entendi.

O chefe da tabanca (aldeia) era Tenente de 2.ª Linha, havia muitos pela Guiné, Não participava em nenhuma actividade em que estivéssemos envolvidos, limitando-se como todos os que vim a conhecer, a passear pela tabanca e arredores uma ridícula fardeta. Creio hoje que era um método criado pela administração de subornar e dividir as populações já tribalizadas e em conflitos. Havia na Guiné mais de trinta etnias, grupos e sub-grupos. Estes creio que eram mandingas e islamizados, praticando a poligamia. O nosso amigo Tenente tinha mais de uma dezena de mulheres.

Junto à saída para Lamane, local onde nunca nos deslocámos porquanto, segundo a Companhia de açorianos que fomos render, era local de perigoso acesso devido às fortes forças do inimigo, tanto na tabanca como em todos os acessos. Existia uma palhota pequena circular colocada no sitio mais agreste do aquartelamento onde se encontrava um elemento que também segundo os mesmos era um perigoso terrorista. Não sabia ou não queria pronunciar uma única palavra de português ou crioulo, segundo vim a saber, porque nunca me aproximei do local. Abaixo se vê imagem do local onde se manteve inamovível o elemento referido durante todo o tempo que aqui me mantive.

Durante a estadia aqui em Fulacunda dá-se o desaparecimento em combate da Alf. Nil. Vasco Cardoso e de mais cinco praças conforme explicito noutro local. Aqui perfeitamente angustiado e deprimido ouvi pela primeira vez, a canção de Zeca Afonso “Os vampiros” pela bela voz do meu camarada Ernesto Fernandes. Pela primeira vez também ouvi falar da coisa politica.


No porto um barco de cabotagem chegou. Depois da segurança montada um pequeno bote faz o transbordo de pessoas e mercadorias. A altura é aproveitada para umas banhocas.


Eis a barcaça que refiro e o local de onde o 610 foi arrastado pela corrente e o Rui Ferreira o foi pescar 50 metros mais abaixo. Na altura excedi-me e proferi uma série de imprecações dirigidas aos nossos rapazes sobre a sua imberbidade e falta de sentido de responsabilidade que punham em risco as suas vidas e dos seus camaradas. A intervenção do Rui foi de uma dificuldade e perigosidade extremas. Só quem conhece a força das águas na vazante naquele local pode aquilatar. Pouco tempo depois numa das correntes patrulhas feitas na estrada que conduzia a S. João, um dos nossos Pelotões sofreu uma tremenda emboscada que provocou o primeiro morto na nossa Companhia. Um sentimento de tremenda angústia e impotência me assaltou. Apenas me lembro que o corpo do desditoso camarada ficou toda a noite em improvisada câmara ardente. Poucos tiveram a coragem de o acompanhar. Os olhares de amargura eram visíveis não recordo mais qualquer actividade, que de facto houve.

Aspecto geral da tabanca.

O interior do aquartelamento em dia de grande temporal.

Assim se ia passando o tempo num isolamento total no coração de uma mata que já se apresentava hostil e perigosamente condicionante. Neste ambiente doentio na nossa pequena e isolada Fulacunda em situação de permanente angustia e omnipresente desconforto, o mais singelo desvio da rotina é acontecimento marcante, que preenche as conversas de vários dias. Talvez por isso mesmo, a importância que ganhava tudo o resto.
Foi-nos comunicado ser possível ver cinema o que parecia ousado admitir, mas em África muitas vezes é possível o impensável.

Tinha chegado, nunca soube como, uma figura típica, o sr. Machado, um septuagenário de longas barbas brancas que se dedicava a levar o cinema às povoações mais recônditas da Guiné, e dezenas e dezenas de anos de África já o tinham feito praticamente esquecer o seu cantinho natal em Trás-os-Montes. Personalidade forte que se propunha apresentar uma sessão de cinema ao ar livre para que toda a população também pudesse assistir. Nem mesmo a eclosão da guerra impedira que o sr. Machado continuasse a levar a sétima arte aonde quer que meia dúzia de pessoas pudesse pagar um bilhete. Isso acontecia, naturalmente, nas concentrações da tropa portuguesa. O Sr. Machado fazia questão em que se soubesse que ele não percebia nada de guerra nem de política. Ao princípio da noite, reforçada a vigilância e o patrulhamento da povoação, lá íamos para o cinema, muitos de nós sem sequer sabermos o nome ou o género de filme que íamos ver. O filme apresentado era já bastante antigo, mas qualquer um era susceptível de dispor bem um punhado de homens isolados há tempo nas matas africanas. Depois das peripécias da entrada no recinto, marcada pela preocupação do bom sr. Machado de assegurar que ninguém ia ver o seu filme à borla, eis-nos instalados a esmo pelo chão o que para a população era trivial, e à soldadagem permitia uma maior aproximação às bajudas, na esperança de que a animação na tela desviasse a atenção do barulho infernal do gerador ali muito perto. Poucos minutos depois do inicio da sessão e após um pequeno intervalo, levanta-se um coro de protestos, alguma coisa acontecera uma vez que não se entendia a historia que tinha começado muito expectante e deixara de fazer sentido. Não havia dúvida de que o bom do sr. Machado trocara as bobinas do filme e o que estávamos a ver não era sequencial. Aumentaram os protestos, forçando à interrupção do filme. Mas ele, teimoso, enfrentando a plateia, garantia que a sequência estava correcta, que já tinha passado dezenas de vezes aquele filme e que nós é que não percebíamos nada de cinema. É claro que a partir daí a história do filme perdera todo o interesse e alguns começaram a sair. O sr. Machado, que então já admitia o seu engano, esforçava-se por convencer que a troca não tinha importância, porque agora é que era mais bonito. Realmente só as circunstâncias e acompanhamento podiam explicar a razão porque uma percentagem dos homens ali se manteve até final! Passados que foram alguns meses depois de termos sido confrontados com a série se acontecimentos traumáticos a que faço alusão nas cópias de alguns blogues e de sentir na pele os efeitos dum clima de tremenda humidade e calor potenciadores de possíveis doenças, sujeitos muitas vezes em plenas bolanhas ou na misteriosa selva a apocalípticos vendavais, onde a chuva caía em cascatas e os relâmpagos ininterruptos em centenas de metros iluminavam a tremenda escuridão com uma claridade inacreditável. Lá emalámos novamente as nossas embembas e fomos embarcados com destino a Bissorã.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9082: Porto de Abrigo (Carlos Rios) (1): Dedicatória, início da vida militar e viagem para a Guiné

Guiné 63/74 - P9096: Parabéns a você (345): Jorge Teixeira, ex-Fur Mil Art da CART 2412 (Bigene, Guidage e Barro, 1968/70)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9086: Parabéns a você (344): António (Tony) Levezinho, ex-Fur Mil da CCAÇ 2590 e CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71)

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9095: Se bem me lembro... O baú de memórias do Zé Ferraz (6): Não matem a bajudinha...

1. Texto de José Ferraz  (ex-Fur Mil, Op Esp, CART 1746, Xime e Bissau, 1968/70;  radicado nos EUA há desde 1970):



(i) Falando de acção psicossocial, de que sempre fui partidário, lembrei-me que durante uma operação de penetração ao sul do Xime, aprisionámos 2 elementos IN (*).

Depois de interrogados, guiaram-nos a uma tabanca IN. Fizemos um assalto e durante esse combate ferimos uma miúda, bajuda, com um tiro por detrás do joelho que lhe destroçou a patela [ ou rótula].
- Mata a miúda... - disse alguém.
- Não mata nada - disse eu [, que estava a comandar o pelotão].

E ordenei ao meu pessoal para fazer uma liteira, trazendo a bajuda para o Xime de onde foi posteriormente helitransportada para o hospital em Bissau. Oxalá ainda seja viva.


Nem tudo na guerra é destruição. Talvez alguém dos meus tempos no Xime se lembre deste episódio.

(ii) Mas ainda a respeito desta bajudinha do Xime, alguém que não tenha estado nesta situação, é capaz de não perceber o que me levou a fazer o que fiz.... Por outro lado,  se alguém que tenha estado  lá comigo se lembrar [deste episódio], seguramente dirá que o tempo que levámos a preparar a liteira, deu tempo ao IN para começar a mandar morteiradas para dentro da tabanca e tiroteio de armas ligeiras como eu nunca tinha visto. De facto, poderia ter causado sérios problemas, mas graças a Deus tudo correu bem.

A minha intenção é apenas a de dizer publicamente que nós, no mato, e em situações de perigo, tínhamos coração e respeito pela vida humana, nem sempre tudo era ronco e destruição de tudo por onde pássavamos - a [alegada política da] "terra queimada".

José Ferraz (**)

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Notas do editor:



(*) Muito provavelmente) trata-se da Op Baioneta Dourada, iniciada em 2 de Abril de 1969, às 0h00, com a duração prevista de dois dias, e com o objetivo de "se completarem as destruições dos meios de vida na área, executadas quando da Op Lança Afiada [8-18 de Março de 1969], na região de Poindon".

As NT eram constituídas por dois 2 destacamentos:

(i) Dest A: CART 1746 (Xime) (a 3 Gr Comb) + CCAÇ 2314 (Fulacunda ou Tite) (1 Gr Comb);

(ii) Dest B: CCAÇ 2405 (Galomaro) (a 2 Gr Comb) + CCAÇ 2314 (Fulacunda ouTite) (1 Gr Comb).

Podemos publicar, oportunamente, um excerto do o relatório desta operação, em que foi capturado um elemento IN,  desarmado. Na exploração imediata de informações dadas pelo prisioneiro, o Dest A fez uma batida à zona, surpreendendo "9 homens sentados acompanhados de 2 mulheres" (sic).  Aberto fogo, foram capturadas as duas mulheres, feridas. Os restantes elementos fugiram, com baixas prováveis.

Entretanto, "ao serem prestados os primeiros socorros às mulheres feridas, um grupo IN de efectivo não estimado flagelou as NT durante cerca de 6 minutos com LGFog, mort 60 e cerca de 6 armas automáticas", sem consequências para as NT.

(Fonte: BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70. História da Unidade. Cap II, pp. 78/79).


(**) Último poste da série > 24 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9090: Se bem me lembro... O baú de memórias do Zé Ferraz (5): O desenrascanço... na justiça militar!

Guiné 63/74 - P9094: Notas de leitura (305): Dois Anos de Guiné - Diário da Companhia de Caçadores 675, por Fur Mil Oliveira (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Outubro de 2011:

Queridos amigos,
Neste diário de JERO aprende-se muita coisa sobre o que era o Norte da Guiné em 1964, há mesmo observações indisfarçáveis de que aquelas regiões entre Binta, Farim e Guidage eram deficientemente percorridas, a ponto de não se transitar por viatura, antes de chegar a CCAÇ 675 nem se saia de Binta. Dá para pensar. É um diário riquíssimo, o furriel enfermeiro é porta-estandarte daquele entusiasmo que se torna compreensível lendo este diário correspondente ao primeiro ano da comissão.
Não percebo como é que este documento histórico esteve aferrolhado a sete chaves. Temos aqui matéria para o JERO se justificar…

Um abraço do
Mário


Um documento histórico, o Diário da CCAÇ 675, o Diário de JERO (2)

Beja Santos

A CCAÇ 675 está altamente mobilizada, maior entusiasmo não pode haver. JERO faz o balanço de um mês na zona, num mês percorreram 22 itinerários numa extensão de cerca de 250 quilómetros a pé e 90 viaturas.

Recorde-se que o autor se apaga no colectivo: “É de assinalar que entretanto e depois do primeiro golpe de mão a Cansenhe, onde tivemos o nosso primeiro morto e encontrámos forte resistência do inimigo, voltámos à região dois dias depois, destruindo a tabanca e um grupo de 30 casas de mato. No dia seguinte, abrimos o itinerário para Farim onde desde há uns tempos não passava tropa, levantando 31 abatizes. Parecia difícil de acreditar que soldados que um mês antes só tinham ouvido tiros em carreira de tiro, num clima difícil, numa terra em tudo diferente do que até então estavam habituados, tivessem conseguido varrer autenticamente uma zona infestada de um inimigo aguerrido e numeroso que nunca tinha sido verdadeiramente incomodado por tropa.

O 5 de Agosto é dia funesto para o capitão de Binta. Desta vez pretende-se ir até Santancoto, no limite do sector. Até ao cruzamento para Guidage não se sentiram dificuldades. Encontrou-se uma ponte destruída mas o obstáculo foi vencido. JERO escreve: “Antes de Banhima a mata fechadíssima que ladeava a estrada foi interrompida por uma bolanha por onde o caminho seguia, sobrelevando-a, durante cerca de uns trezentos metros. Era surpreendentemente bonita esta língua de água, ora negra ora esverdeada, que interrompia a floresta e de onde emergiam lindíssimas flores aquáticas de cores delicadas. Apetecia parar ali e observar demoradamente, entre o verde limoso da bolanha, as elegantes pernaltas de linda plumagem que passeando, bicada aqui, bicada acolá, arqueando o pescoço longo, iam procurando alimento entre as nuvens de insectos que sobrevoavam aquela água estagnada onde se iam cozendo ramos, folhas mortas e outros tantos detritos da floresta". “A progressão é penosa, todos caminham cientes de que o contacto está próximo. Chega um pequeno grupo inimigo, há uma intensa troca de fogo, retoma-se o quadrado, com os homens bem separados uns dos outros, centenas de metros à frente voltou a avistar-se um grupo inimigo, procura-se o contacto.

Aqui está um acidente: “Apesar de recomendado ao soldado do morteiro para ter cuidado com as árvores de grande copa que ladeavam a estrada, o seu excesso de zelo e ardor combativo para cumprir rapidamente a ordem e dizimar o grupo inimigo, levou-o a disparar a morteirada com tal precipitação que a granada foi rebentar num ramo alto de uma árvore do lado esquerdo, crivando de estilhaços o lado direito onde se encontrava nosso capitão e alguns soldados”. O “capitão do quadrado” cai ferido, um jato de sangue saia do ombro esquerdo, foi prontamente socorrido, estancou-se a hemorragia e caminhou pelo seu próprio pé para a coluna-auto. O capitão continuou a dar ordens e centenas de metros à frente o inimigo emboscado atacou. A resposta é enérgica. Numa prosa contida, o cronista dos acontecimentos volta a registar: “Quando seguíamos na região de Santancoto, surgiu dos lados de Binta o helicóptero pedido para a evacuação do nosso capitão. Montada a segurança em círculo, o helicóptero desceu. O momento que se seguiu não mais será esquecido por todos aqueles que o viveram. Alguns daqueles homens de camuflado que poucos quilómetros atrás tinham zombado das balas inimigas, desprezando a morte com um sorriso altivo nos lábios, choravam agora como crianças despedindo-se do seu capitão. Não menos comovido, este, deixava correr livremente pelo seu rosto marcado pelo sofrimento, lágrimas de que um homem não se envergonha. Todos queriam pegar na maca para o transportar até ao helicóptero; um despia o casaco camuflado para lhe aconchegar melhor a cabeça na maca do helicóptero, outro dava-lhe o seu concentrado de frutos da ração de combate para comer pelo caminho; outro ainda quase que o obrigava a beber água do seu cantil. Todos lhe queriam tocar, apertar a mão, desejar-lhe as melhoras para que voltasse depressa”. O texto continua, tem toda a dignidade para um dia enfileirar, por mérito próprio, numa antologia que fale da solidariedade na guerra.

A actividade operacional não irá abrandar, aliás a malta da companhia recebeu com regozijo a notícia de que o “capitão do quadrado” conhecia melhoras, o estilhaço não tinha atingido o pulmão esquerdo. Fez-se uma nomadização em Guidage, sob o comando interino do alferes Foitinho efectuou-se um golpe de mão a Canicó, foram abatidos quatro inimigos e capturados dois canhangulos. Logo a seguir patrulharam as matas da região S. João e Sansancoto. Para o fim do mês efectuou-se uma operação de colaboração com a CCAV 487, de Farim. Mais guerrilheiros abatidos. Em 30 de Agosto, JERO rejubila: “25 dias depois do dia fatídico em que foi ferido com gravidade, voltou ao seio da 675 o nosso comandante de companhia sendo recebido por todos com a mais sincera alegria, todos o rodeavam dando-lhe mais uma vez a certeza de ter em cada subordinado um colaborador leal e um amigo que o seguem com dedicação e confiança totais. E partem todos para o Oio, numa operação em que colaboravam com mais duas companhias. O inimigo fugiu, deixando baixas. No balanço de Agosto, JERO escreve, abrindo espaço para acontecimentos de Setembro: “Logo após a operação do Oio, em 2 do corrente, dois grupos de combate chefiados pelo nosso capitão fazem um golpe de mão na região Faer, fazendo ao inimigo mais uma baixa confirmada e destruindo dez casas de mato. Dois dias depois voltou-se à região de Canicó, para acabar de destruir a tabanca e bater as matas vizinhas.

A CCAÇ 675 criou o seu jornal de parede “O Sabre”. O soldado A. Perfeito aproveita para saudar o regresso do “capitão do quadrado”: “Não quisemos deixar de usar estas colunas para lhe testemunhar toda a amizade e gratidão que lhe votamos; que estas palavras simples de um soldado não sejam vistas como adulação mas que através delas se conheça a amplitude de um sentimento que ninguém quer esquecer”.

Binta é atacada em 14 de Setembro, no ínterim a companhia andou em bolandas escoltando viaturas civis para Guidage, saídas em coluna auto até Santancoto, encontra-se uma tabanca que é destruída, etc. Foi um ataque de pouca monta, na retirada as forças do PAIGC incendiaram algumas moranças abandonadas a cerca de um quilómetro de Binta. Como já vem sendo hábito, a tropa reage e vai emboscar, ficará conhecida no diário como a emboscada na serração. E logo a seguir ocorre um episódio a que JERO vai chamar “a noite mais longa”, um patrulhamento a Simbor e Buborim, a moral da tropa está elevada, vão colaborar com a tropa de Bigene, lá vão pela noite escura, passou-se à formação do quadrado e aproximam-se da bolanha de Buborim. Um soldado precipita-se, dispara a arma e denuncia a presença da tropa. O contacto com o inimigo ocorre pouco depois: “Penetrámos numa zona de arbustos à esquerda de uma tabanca.

Registaram-se ainda alguns tiros isolados do inimigo e fez-se uma bazucada de fumos para a tabanca”. Gente de Farim apanhou algumas bicicletas que trouxe como ronco, estava vingada a visita, através de flagelação do dia 14, a Binta. Cada dia da semana tem a sua designação lá na companhia: Domingo é o dia da bandeira; segunda é a antevéspera do correio; terça é a véspera do correio; quarta é dia do correio; dia de São Comprimido; sexta tem estatuto de sexta-feira e sábado é véspera da bandeira e saída do correio. Está-se em pleno na época das chuvas, as ruas de Binta desapareceram sobre autênticos regatos. E assim se chegou ao mês de Outubro.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9071: Notas de leitura (304): Dois Anos de Guiné - Diário da Companhia de Caçadores 675, por Fur Mil Oliveira (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P9093: O Nosso Blogue em Números (24): A propósito da sondagem dos 3 milhões: Para mim o blogue está bem e recomenda-se (Manuel Joaquim)



1. Resultados da nossa última sondagem, que decorreu entre 18 e 23 do corrente... Recorde-se aqui a questão que era colocada à votação dos nossos leitores, membros ou não da Tabanca Grande:

Sondagem: Tendo em conta as minhas expetativas iniciais e a minha experiência de utilização, hoje, com 3 milhões de visitas, o nosso blogue está...

 Havia 7 hipóteses de resposta, por esta ordem: 

1. Muito melhor; 2. Melhor; 3. Bom; 4. Nem bom nem mau; 5. Mau; 6. Pior; 7. Muito pior.

O total de respondentes foi de 161,  reveladora de uma boa adesão e participação dos nossos leitores, tendo em conta a experiência passada. Cada leitor só podia votar uma vez no mesmo computador (podendo embora mudar de opinião,  ao longo dos seis dias em que decorria a sondagem).

A leitura a fazer dos resultados é simples e dicotómica:

- Menos de 20% (n=31) têm uma opinião negativa sobre a forma e o conteúdo do blogue: está mau, pior ou muito pior;

- 77% (n=124) têm, em contrapartida, uma positiva do blogue: está bom, melhor ou muito melhor...

Agradecemos, muito sinceramente, a todos aqueles que quiseram associar-se ao nosso esforço para continuar a fazer mais e melhor, neste espaço que pretende ser de todos os camaradas e para todos os camaradas que estiveram no TO da Guiné, grosso modo entre 1961 e 1974... Agradecemos, muito em especial, aos que quiseram manifestar publicamente a sua opinião, dando a cara e fundamentando a sua opinião. Hoje publicamos mais um desses comentários, enviado pelo nosso camarada Manuel Joaquim.

2. Manuel Joaquim [,ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67]


“Tendo em conta as minhas expetativas iniciais (grandes e excitantes) e a minha experiência de utilização (experiência nula), hoje, com 3 milhões de visitas, o nosso blogue está BOM.”

Porquê o “Bom”? Ora, porque acho que mantém um nível bom, a raiar o muito bom, e não me sinto mais satisfeito do que quando aqui entrei. Estou muito satisfeito. Maior valorização implicaria da minha parte conhecer melhor as condições da sua realização e, principalmente, perceber o que poderia melhorar tendo em atenção o universo dos seus membros e a média da sua satisfação global.


Desejo que possa haver uma melhor organização do blogue mas sobre este assunto não me pronuncio porque ... não sei o que dizer, percebo pouco desta matéria. Estou muito limitado na área de informática para opinar sobre tal. 

Quanto ao que é publicado ou que pode ser ou não publicado, não quero entrar na expressão dos meus estados de alma. Tanto aceito que tais publicações se venham a limitar a relatos específicos de ações de combate, ou similares, como aceito (no caso, prefiro) que o critério de publicação se alargue à vivência global dos participantes, tanto passada como presente. Para mim, campo aberto! 

Somos membros de um grupo, tendo como base termos sido combatentes numa guerra. A tendência natural, num grupo, é tentar conhecer a personalidade de cada um dos seus membros, independentemente de nos sentirmos mais ou menos próximos de cada um.

Sendo assim, só uma total liberdade de expressão e de opinião permite que nos possamos conhecer melhor. É óbvio, diria obrigatório, que ofensas de caráter estão fora deste meu conceito de participação. Neste caso, sim, deverá existir impedimento. De resto, quem sou eu (quem somos nós) para julgar alguém que não tem a minha verdade, que viu (vê) as coisas de modo diferente, que não tem o mesmo sentido que eu tenho dos meus valores de comportamento pessoal, social ou político? 

Na natureza, uma das bases da sua conservação é a sua diversidade e eu penso que o mesmo se aplica ao comportamento humano. Como disse o nosso camarigo Rui Silva (P9055) isto não deve ser "amen e sim senhor». A acontecer tal, este blogue daria o “berro” dentro de algum tempo (pouco?) e deixaria de ter o grande valor memorialista que atualmente tem. 

O que é que posso mais sugerir? Podemos tentar não alargar o âmbito dos temas dos nossos posts, temas estes que devem ter como raiz a nossa vivência de combatentes. E mais uma coisa , para mim muito importante, que haja respeito mútuo. Respeito ideológico, respeito social (somos todos iguais), respeito pelas capacidades de expressão de cada um (quais erros de ortografia ou de gramática, qual quê, aqui não interessam nada!) e respeito pela “verdade de cada um”. 

Respeito não é concordância. Discutam-se as divergências, as opiniões, mas haja elevação e alguma humildade nessa discussão. Respeitemo-nos, a começar por nós próprios.

Eu, por mim, respeito todas as opiniões, concorde ou não com elas, com as que me emocionam ou com as que me irritam. E respeito quem as emite. Seja “patriota” ou não, tenha sido combatente heróico ou simplesmente cumpridor dum mínimo eticamente exigido ou seja do tipo de “anda lá tu, que a minha mãe não me criou para isto”. Seja (tenha sido) defensor do regime político de então ou seu adversário, veja a “guerra ganha” ou a “guerra perdida” ou ache que ninguém ganhou nada, todos perderam (ou ganharam?).

Voltando ao inquérito. O que é que está bem ou não?

Apetece-me dizer que o blogue se mantenha como está. Para mim “está bem e recomenda-se”. Mas, para não dizerem que não tenho ideias (!), vou ter a coragem de causar desagrado a alguns camarigos. É só isto (só?!): que se deixe de fazer edição de posts de aniversário. 

Eu explico com o meu próprio comportamento, pois não encontrarão aí qualquer comentário meu, com exceção de um dedicado ao Luís Graça, o qual de certo modo era uma maneira de dar os parabéns à Tabanca, isto é, a todos os seus membros na pessoa do seu fundador. 

Poupava-se espaço, aligeirava-se a consulta do blogue, ouso dizer que se acabava com comparações idiotas de quem tem mais votos de parabéns. No blogue somos todos iguais e todos os seus membros são meus amigos, mesmo que não os conheça. Digo, para oficialmente saudar no blogue um seu membro teria depois de o fazer com todos, no respetivo aniversário! Não acho razoável. 

Desculpem mas acho que seria suficiente a publicação, como já se faz, da data de aniversário na margem esquerda da página e, então, cada um de nós (temos uma listagem) enviaria a mensagem a quem quisesse e nos termos que achasse melhores.

Desculpem este parlapié sem qualquer valor para fazer subir a cotação deste grande centro de convívio memorialista, de que tanto gosto. Acabo repetindo o que já aqui disse, há tempos: preciso de todos vós, velhos combatentes membros deste blogue, nele escrevendo ou, simplesmente, o lendo. Gosto das opiniões duns, gosto assim assim ou não gosto das de outros, algumas emocionam-me, outras passam-me ao lado e outras até me revoltam as “tripas”. 

Pessoalmente conheço poucos mas são-me todos queridos, uns mais que outros como é natural. E não desejo mais do que saber que estão vivos e ter o prazer de vos sentir “vivos” participando neste blogue.

Um abraço e um “muito obrigado” a todos

Manuel Joaquim
23/11/2011
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Nota do editor:

Último poste da série > 22 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9078: O nosso blogue em números (23): Mensagens dos nossos camaradas Carlos Filipe, Fernando Barata e José Barros

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9092: (Ex)citações (158): Homenagem aos nossos mortos não tem data! É quando um homem quiser! (António Matos)


1. O nosso camarada António Matos, ex-Alf Mil Minas e Armadilhas da CCAÇ 2790, Bula, 1970/72, enviou-nos a seguinte mensagem:

Homenagem aos nossos mortos não tem data! É quando um homem quiser!

Camaradas,

Para lá duma forte comoção que me invadiu o coração em dia de greve geral a qual me permitiu dedicar o tempo "à limpeza" de muito lixo acumulado no computador, descubro inadvertidamente este texto nos meus arquivos que me sobressaltou pela saudade, pela dor e pela juventude passada...

Fiquei confuso sobre a oportunidade de uma re-publicação mas isso deixo ao critério dos editores e o que decidirem está bem decidido.

Dizia eu em 2008 :

Cá volto eu outra vez nestes primeiros contactos de Tabanca, recordando outras tabancas lá por terras de poucas saudades, onde deixei muita da pureza da minha meninice, alguns dos amigos que fiz desde os Arrifes em Ponta Delgada e que tinha jurado trazê-los de volta ao colo das suas Mães, aos abraços enternecedores dos Pais, aos beijos das namoradas...

Tal não se concretizou e hoje, ao ver os rostos daqueles que eram meninos, confrange-me o sofrimento incalculável de quem tenha recebido um telegrama a anunciar uma morte por actos de bravura em defesa da Pátria !!!!

Caramba, muitos dos nossos camaradas morreram tão simplesmente por serem os homens errados, no sítio errado à hora errada!

Muitos de nós não tinham tido sequer tempo de interiorizarem o quanto essa Pátria ( que hoje os esquece em favor de outros que seguem para missões de meia dúzia de meses e a troco de belas fortunas ), lhes pediu, de borla, para que fossem heróis na medida das suas forças!

Caramba, eu vi miúdos a chorar na caserna com saudades dos seus familiares !

Caramba, eu vi miúdos a baterem-se com uma heroicidade contagiante pela defesa do camarada em apuros que lhe estava ao lado!

Caramba, eu vi miúdos a fazerem frente a um contingente de guerrilheiros liderados pelo Nino Vieira!

Caramba, eu vi miúdos a caírem nas minas e a ficarem decepados!

Caramba, meus caros, eu vejo, todos vemos, o abandono a que esta Pátria nos relegou!

Não, não faço parte de qualquer associação de apoio aos ex-combatentes; nunca me disponibilizei a engordar as filas de manifestantes que se propõem zelar pelos interesses de todos nós; nunca expus publicamente o meu desencanto com os sucessivos (des)governantes que têm passado pelos corredores dos Passos Perdidos numa atitude de vil desrespeito por esta geração que é a minha; mas agora, do alto da palhota da minha Tabanca, tento compreender o meu tempo e as novas gerações onde já pontuam os meus filhos, os meus netos, e os filhos e os netos dos meus camaradas de armas.

Os tempos deram uma grande cambalhota e os valores alteraram a sua ordem hierárquica.

Hoje pertencemos a uma geração que sendo sobrevivente a uma guerra, assiste à transformação do paradigma da vida.

Hoje há filhos a morrer antes dos pais pelas mais diversas razões: droga, uso indevido de armas, acidentes viários, gangsterismo, AVC's, stress, incertezas profissionais, etc., etc., etc.

Duvido que esta juventude tenha alguma simpatia pelo conhecimento desta aventura africana na qual os seus pais se envolveram.

Têm tanto com que se preocupar...

Enfim, em dia de todos os mortos, rendo-me à memória de todos aqueles que partiram dirigindo às respectivas famílias o meu sentido silêncio já que as palavras teimam em não sair pelo nó que se forma na garganta.

Voltarei mais tarde para me dedicar também às ocasiões que nos faziam rir.

E foram muitas...

Abraços,
António Matos
Alf Mil Minas e Armadilhas da CCAÇ 2790
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

15 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9046: (Ex)citações (156): A recensão a Pami Na Dondo foi feita não ao livro mas à pessoa do autor (Mário Fitas)


Guiné 63/74 - P9091: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (48): Como a publicação do Diário da CCAÇ 675 fez reencontar dois camaradas quase meio século depois (Manuel Joaquim)

1. Comentário do nosso camarada Manuel Joaquim, ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67, deixado no Poste Guiné 63/74 - P9071: Notas de leitura (304)...:

Olá JERO!

JERO, o Fur. Mil. com quem passei umas horas, muito agradáveis, de um dia de outubro de 1965, no seu quartel de Binta.

Saído de Bissau por mar, subi o rio Cacheu até Farim, em serviço de segurança a dois batelões com abastecimentos às tropas sediadas nas margens do rio Cacheu.

Em Binta fui tão simpaticamente recebido que o facto me ficou na memória. Talvez, também, por ter folheado um livro que um certo furriel me apresentou, livro que me fez crescer água na boca e que virou tema de conversa prolongada. Perante a minha apetência pela obra a resposta veio logo: "não podes levar porque a sua matéria é confidencial". O livro tinha sido escrito por ele e editado recentemente. Relatava o percurso da CCaç 675, no seu 1.º ano de comissão.

Este encontro ficou-me gravado na memória e, quanto ao tal furriel, nunca mais o vi e esqueci o seu nome. Até que, por obra e graça desta Tabanca, ele aparece aqui e, ao identificar-se como autor deste "diário", fez-me recordar o nosso encontro. Ao contactá-lo, teve a gentileza de me oferecer um exemplar fotocopiado. Posteriormente adquiri a sua recente obra "Golpes de Mão's" de que gostei muito.

Meu caro JERO, meu caro camarigo,
um grande abraço.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8778: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (47): De Cassiano Reginatto (Brasil) para o Mário Beja Santos, com pedido de sugestão de livros

Guiné 63/74 - P9090: Se bem me lembro... O baú de memórias do Zé Ferraz (5): O desenrascanço... na justiça militar!

1. Mais uma história do José Ferraz (ex-Fur Mil, Op Esp, CART 1746, Xime e Bissau, 1968/70; era filho de um oficial da Marinha, e está radicado nos EUA há desde 1970):


Quando prestava serviço na CCS/QG em Bissau, uma vez por mês tinha que prestar serviço como sargento da guarda na prisão do QG (à direita da porta d'armas do dito quartel), guarda de honra em funerais locais e ainda montar segurança no Pidjiguiti ao navio de abastecimento quando atracado nas suas fainas.


Numa dessas missões estava eu com a minha secção a bordo do Carvalho Araújo quando um soldado me veio informar que o condutor do jeep que me estava designado, estava no porão de vante com uma grande bebedeira (era Balanta). Fui pelo convés até esse porão, olhei para dentro e vi que o grupo de estiva,  ao carregar a rede de estiva,  tinha partido um das centenas de caixas de uísque e estavam,  todos eles,  a festejar. Entre eles algums dos meus soldados (manga de ronco).


À hora do almoço tinha que ir à messe de sargentos comer e o condutor bêbado... Como tinha carta militar,  nem sequer pensei que o que aconteceu em seguida me iria criar tantos problemas. Pus o condutor no assento do passageiro e conduzi o jeep do cais, passei pela messe a caminho da Companhia de Transportes do QG onde deixei a viatura e pedi outro condutor.


Nunca mais pensei nisso. Dias depois fui chamado ao gabinete de um alferes da CCS/QG para prestar declarações no âmbito de um auto de averiguações  que me tinha sido levantado quando um furriel me tinha visto a conduzir esse maldito jeep. Fui falar com o tenente coronel, chefe da justiça, que por acaso conhecia o meu pai, e expliquei-lhe a alhada em que estava metido (, a dois meses antes de acabar a minha comissão).
- Eu não posso acabar com o inquérito mas deixe-ver o que é que se pode fazer.

Dias depois dei-me conta que este assunto não andava nem desandava e o tempo a fugir e a minha data de embarque a aproximar-se... Dois dias antes do meu embarque para Lisboa,  o bendito tenente coronel chama-me ao seu gabinete e diz-me:
- O nosso furriel foi condenado a 12 dias de prisão disciplinar agravada pelo CCM [, Comandante do Comando Militar,], pelo que na ordem do dia de amanhã sai a ordem de que se apresentou no QG para começar a cumprir essa pena...

Continuou o bendito TC:
- Depois de amanhã, no seu dia de embarque, vai sair na ordem desse dia o seguinte: 'Saiu hoje da prisão do QG o furriel etc., etc,  depois de cumprir a sua sentença,  etc., etc.'... 

E prosseguindo:
- O nosso furriel faz as malas e... aqui está a tua guia de marcha... Embarcas, ficas muito caladinho e boa viagem!...  Não te esqueças de dar os meus cumprimentos aos teus pais.
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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P9089: A minha CCAÇ 12 (21): Maio de 1970: Chega o BART 2917 que vai render o BCAÇ 2852 (Luís Graça)




Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (1969/71) > os craques da bola... A gloriosa equipa de futebol de onze donde se destacam, entre outros os nossos tabanqueiros Joaquim Fernandes (ex-Fur Mil At Inf, o primeiro, de pé, a contar da direita), o Tony Levezinho (ex-Fur Mil At Inf,, o terceiro, na primeira fila, a contar da direita), o Arlindo Tê Roda (ex-Fur Mil At Inf, o quinto, na primeira fila, a contar da direita), e o João Rito Marques ( nosso cabo quarteleiro, 1º Cabo Manutençã de Material, que vive hoje em Sabugal)...  Ainda na segunda fila, o terceiro a contar da esquerda, em tronco nu, é o 1º Cabo At Inf Carlos Alberto Alves Galvão (, que vive na Covilhã, e continua ligado ao associativismo desportivo).

O 1º Cabo Manuel Alberto Faria Branco (, que pertencia à 3ª secção do 2º Gr Comb, a secção do Tony Levezinho; está para entrar há um ano para a Tabanca Grande...); o 1º Cabo Escriturário (e tocador de acordeão) Eduardo Veríssimo de Sousa Tavares (, morada atual desconhecida);  e o Sold Arménio Monteiro da Fonseca (, vive no Porto, é taxista, um grande morcão, um cromo, um grande camarada) são os restantes jogadores da primeira fila; estou a reconhecer (, mas já não me lembro do seu nome,) o guarda-redes, um dos nossos soldados africanos...

Fardados, de pé, na segunda fila, da direita para a esquerda, 1º Sargento Cavalaria Fernando Aires Fragata (que foi depois fazer o curso de oficiais de Águeda, se não me engano; dei-lhe explicações de português; não sabemos se é vivo e onde mora); o 2º Sarg Inf Alberto Martins Videira (, vive ou vivia em Vila Real); 2º Sarg Infantaria José Martins Rosado Piça (,vive ou vivia em Évora; deve estar com 78 ou 79 anos; rezo pela sua saúde);  e o 1º Cabo José Marques Alves (que pertencia  à 2ª secção do 2º Gr Comb, a secção do Humberto Reis, que chamava "Afredo" ao Alves)... Entre o Videira e o Piça, estão dois camaradas da CCAÇ 12, que de momento não sei identificar: o que está fardado sei que era um soldado condutor auto... Talvez o nosso cripto e tabanqueiro GG (Gabriel Gonçalves) me possa dar uma ajuda... ( E acaba de nos ajudar, dizendo que o soldaddo condutor auto é o Alcino Braga, um camarada de cinco estrelas, um condutor responsável, discreto, impecável, de quem guardo as melhores recordações!... Tantas viagens que fizemos juntos!, Obrigado, GG; um abração, Alcino!).

Na segunda foto, a da jogatana da bola, reconheço o Roda e o Levezinho (de calções vermelhos). O terceiro elemento, da linha de ataque, tanto pode ser o Joaquim Fernandes  (Fur)  como o Francisco Magalhães Moreira (Alf Op Esp) (inclino-me mais para a esta segunda hipótese)...

Fotos: © Arlindo Roda (2010). Todos os direitos reservados


A. Continuação da série A Minha CCAÇ 12 (*)
por Luís Graça




Fonte:


História da Companhia de Caçadores 12 (CCAÇ 2590): Guiné 1969/71. Bambadinca: CCAÇ 12. 1971. Policopiado
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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P9088: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (29): Quando o destino cruel desabafa a sua ira

1. Mensagem de José da Câmara* (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de 23 de Novembro de 2011:

Meu caro amigo Carlos Vinhal,
Junto um pequeno trabalho para fazeres dele o que entenderes melhor.

A história, a sua crueldade intrínseca, foi vivida por muitos de nós. Naquelas alturas os segundos contavam e eram dramáticos. Jubilávamos quando o nosso esforço e sacrifício eram recompensados. Chorávamos quando víamos o destino cruel ser mais forte que a nossa vontade. Do que não podemos ter dúvidas é que num caso ou no outro sempre, mas sempre, cumpríamos com o nosso dever humano e militar.

Amanhã, dia 24 de Novembro, é dia de Acção de Graças nos EUA. Ao longo dos anos habituei-me a compreender, a respeitar e a participar nesta grande festa da Família Americana. Aqui fica o meu convite para que tu e todos os nossos amigos da Tabanca, celebrem comigo o dia do Thanksgiving.

Um abraço amigo,
José Câmara


Memórias e histórias minhas (29)

Quando o destino cruel desabafava a sua ira

Ao fim da manhã do dia 17 de Junho de 1971, a coluna da CCaç 3327 deixava para trás o seu último acampamento na Mata dos Madeiros e um grupo de elementos das Transmissões agora protegidos por outras forças de intervenção. Pelo caminho fez uma breve paragem no Bachile para pegar os militares e nos haveres da secretaria, tendo seguido em direcção à Ponte Alferes Nunes. Esta que, recentemente, sofrera algumas reparações tinha uma estrutura forte, mas o seu tabuleiro, por ser estreito, requeria alguns cuidados, sobretudo com as viaturas mais pesadas. Daí a perda natural de algum tempo na sua travessia.
Mas que importava isso, se depois da ponte entrávamos no paraíso comparado com o inferno que tinha sido a nossa vivência nos últimos meses?

A meia tarde, a coluna entrava na avenida principal de Teixeira Pinto e, finalmente, cruzava a Porta de Armas do quartel sediado naquela vila. Ali receberíamos a primeira grande desilusão do dia. Pela indisponibilidade de instalações, foi-nos ordenado que montássemos o nosso bivaque na parada grande que ficava em frente aos edifícios de Comando e Serviços. O solo guineense continuaria a ser o lençol onde se deitariam os nossos corpos ansiosos por um descanso condigno.

Estávamos a findar a nossa tarefa quando nos apercebemos que ali fazíamos parte de uma outra guerra. Um clarim soou o toque de Ordem. A verdade é que os nossos corpos, depois de cerca de trinta e seis horas de actividade, precisavam mesmo de descanso e os nossos estômagos de serem reconfortados com aquela ração de combate que esperava por nós.

Como quase sempre fazíamos, eu e os militares da minha Secção sentámo-nos juntos para darmos início ao nosso repasto. Para além do ambiente social normal dessas ocasiões, aproveitávamos para trocarmos entre nós as conservas que cada um mais gostava. Já tínhamos aberto algumas latas quando o clarim voltou a soar. Desta vez, o som era mais angustiante, o som do formar piquete.

Era certo que o 4.° GComb, o meu grupo, estava de serviço mas, acabados de chegar àquele quartel, aquele toque não devia ter nada a ver connosco. Como estava enganado!

Alguém gritou:
- Furriel Câmara mande formar o grupo de combate! - A ordem tanto pode ter vindo do Comandante do Pelotão, o Alf. Mil. Francisco Magalhães ou directamente do Comandante da Companhia. Para o caso pouco importava. Tudo era feito com disciplina compreensível, sem atropelos.

Os soldados que me acompanhavam ainda tentaram um pequeno protesto. Tinham alguma razão, estavam exaustos e eu também.
Apenas disse:
- Vamos! - A ordem simples não deixava margem para dúvidas. A verdade é que aqueles rapazes, habituados à minha maneira de ser, devem ter percebido na minha voz que eu não agoirava nada de bom e assim era. Naquele momento, o meu coração estava na Mata dos Madeiros e nos camaradas das Transmissões que deixáramos lá de manhã. Felizmente que essa suspeita não se materializou, mas a verdade é que a noite que se aproximava seria longa e muito dolorosa.

Acampamento na Mata dos Madeiros. O Posto de Transmissões estava na tenda montada à esquerda.

Com o Pelotão formado e pronto para receber ordens, fomos informados que houvera um acidente grave na CCaç 2637/BII18, adida ao BCaç 2905, precisamente aquela que iríamos substituir nos Destacamentos de Teixeira Pinto. Um soldado caíra de uma viatura e sofrera um traumatismo craniano grave. Hoje, a esta distância no tempo, não me recordo em qual dos Destacamentos.

Na pista de Teixeira Pinto uma avioneta aguardava a chegada do sinistrado para a evacuação, mas devido ao adiantado da hora poderia ter que levantar voo e regressar a Bissau antes da chegada daquele. Infelizmente foi o que aconteceu e, como alternativa, fizemos uma coluna a Bissau para evacuar o sinistrado.

Honra seja feita a muitos soldados e graduados da minha Companhia que se voluntariaram para fazerem parte da coluna de evacuação que partiu para João Landim. Nesse trajecto foram vistas patrulhas de segurança nocturnas saídas do Pelundo, Có e Bula. A todo aquele aparato de forças bem poderia chamar-se, com toda a propriedade, um aparato de solidariedade humana e militar, só possíveis num exército bem formado, capaz e disciplinado.

Em João Landim, fizeram a travessia do rio Mansoa o sinistrado e uma força suficiente para a sua segurança até ao Hospital Militar. O resto da coluna aguardou o regresso daquela força.

Cerca das duas da manhã, já no dia 18 de Junho de 1971, os militares e as viaturas que tinham ido até ao Hospital regressaram e com eles a notícia que nenhum de nós gostava de receber. O Soldado sinistrado Agostinho Lopes Miranda, natural da Ribeira Seca, Ilha de São Miguel, sucumbira aos ferimentos recebidos no acidente.

Cabisbaixos e pesarosos regressámos a Teixeira Pinto. Os céus, em solidariedade com a nossa tristeza, juntaram as suas fortes e grossas lágrimas às nossas. Tínhamos a consciência do dever cumprido, infelizmente, atraiçoados por uma força muito mais forte que a nossa vontade.

Chegados ao quartel completamente encharcados, exaustos e abatidos pelo drama a que acabáramos de assistir, procurámos refúgio nas nossas tendas inundadas pelas chuvas que caíam insistentemente.

O despontar dos alvores da madrugada não conseguiu trazer luz à escuridão que cobria os nossos jovens corações. Para nós a noite tinha sido muito longa.

No meio do oceano Atlântico, quem sabe se no mundo da emigração, para uma família ficava o vazio deixado pela ausência eterna do seu soldado. Que partira nas vésperas do seu regresso a casa.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 18 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9059: Memória dos lugares (163): Mampatá saúda Mampatá (António Carvalho / José Câmara / José Eduardo Alves / Mário Pinto)

Vd. último poste da série de 30 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8964: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (28): Quando os segredos da guerra se tornam em surpresas

Guiné 63/74 - P9087: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (25): O Zé Maria ou as cambanças da nossa geração



1. Em mensagem do dia 20 de Novembro de 2011, o nosso camarada José Ferreira da Silva* (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta sua boa memória de guerra.

Memórias boas da minha guerra (25)

O Furriel Zé Maria ou Cambanças da nossa geração

O regresso da Bairrada, é sempre pesado. A comida é boa, a pinga é forte e os companheiros de mesa “jogam muito” no incentivo ao consumo. Por isso, não são precisos muitos quilómetros para que um homem tenha que encostar, a fim de passar pelas brasas.

Meia horita depois, acordo mal disposto e com a cabeça tonta. Confesso que estou pior do que quando encostei naquele pequeno espaço, à sombra de um chorão vimeiro. Só um café me pode salvar. Olho em frente e reparo que há ali um, a poucas dezenas de metros.

Encosto-me ao balcão e mando vir o café. Ainda não estava servido e sinto-me envolvido por uma carícia exuberantemente cheirosa e bem “charmosa”.
- Meu bem, você não quer mais nada, além do cafezinho? - segredou-me ao ouvido a brasuca, bem abonada, encostada a mim.
- Não. Tenho que trabalhar e estou ainda cheio do almoço. – respondi-lhe.
- Mas, meu bem, você se está afastando de mim, porquê? Minha nossa, sou tão ruim, assim? Você não quer mesmo mais nada? – insistia ela, com a voz melosa, ao mesmo tempo que fazia roçar todas as suas saliências frontais pelo canastro deste pobre velho.
- Não! Nada disso! Por sinal és bem boa, carago! Sabes, é que já estou velho e cansado para outras coisas. – Voltei a responder.
- Olha meu bem, você não brinca comigo, não? Tira isso de sua cabeça, meu bem. Você não é coisa de se desperdiçá, não. Goza tua vida, meu bem, porque você é muito garboso e é uma pena você si chamá de velho. Te cuida, porque você tem muito para .

Ao mesmo tempo que me libertei, dirigi-me para a saída do café. Foi quando, a custo, me apercebi que entrara um indivíduo que não me era estranho. Quando o fito, ele reage logo:
- Olha o Silva. Que andas por aqui a fazer?
- Vim almoçar com um cliente e amigo, da Bairrada. Mas o meu alambique já não tem estofo para tanto.

Olha, lá em Catió, Cabedu, Canquelifá, Bissau etc etc, aquilo era uma máquina, a evaporar o álcool. Agora… agora, estou a emborcar cafés para poder regressar a casa.
- E tu, estás bem? Ainda trabalhas com o teu irmão? – perguntei
- Sim, está tudo na mesma. Tal e qual como há tempos quando estivemos a conversar.

O Zé Maria, fez a guerra da forma mais pacífica possível. Fazia unicamente o indispensável e exigível e procurava sempre evitar apertos ou quaisquer excessos. Era conhecido pelo Furriel Sorninha.
Por outro lado, evitava abrir-se ou falar de assuntos relacionados com a sua vida privada. Digamos que não era gajo de convívio ou de se puxar para a borga. Um gajo porreiro mas muito fechado.
E foi cá, em longas conversas, que tive a oportunidade de o conhecer melhor.

Depois da guerra, ainda frequentou o Instituto de Engenharia mas não resistiu à onda libertina do final dos anos sessenta. Rumou Europa fora, poisou em Paris, juntou-se a grupos “hippies” comunitários e andou por todo o lado, perfeitamente integrado naquele ambiente de novos ideais e de velhos prazeres. Foi até ao extremo.

O tempo passava rapidamente e as ressacas também. Quando se apercebeu de que já não estava a sentir a mesma alegria inicial e que já não estava a aproveitar nada desse tempo, resolveu iniciar o regresso.
Ainda trabalhou numa empresa pública mas, não habituado à disciplina, acabou por “encostar” na empresa do irmão (fabrico de bicicletas), onde se sentia à vontade e onde pôde por a render todas as suas capacidades.

Casou, teve um filho e tem levado a sua vida equilibrada e livre de sobressaltos. Por outro lado, gosta de manter os seus pequenos vícios (pesca, caça e um ou outro convívio restrito).

- Por que estás aqui, se moras lá mais para diante? – perguntei.
- Trabalho ali ao fundo e este é o café que tenho mais próximo. Estou de passagem. Fui buscar a “roullote” ao mecânico, porque vou aproveitar a ponte de Sexta-Feira, para ir até lá baixo com a patroa. Eu gosto disso e ela ainda mais. Queres ver, a máquina?

- Boa tarde Senhor José Maria e companhia. – saudou uma mulata que nos cruzou.
- Boa tarde Dona Miquelina. – respondeu o Zé Maria
- Estás ligado a estas gajas? – perguntei surpreendido.
- Não! Nem pensar! Simplesmente, levo a minha vida normal e trato toda a gente por igual. – respondeu
- E digo-te mais, admiro esta fulana que passou. Já é avó, vem de Gaia trabalhar, mas deixa o neto no infantário todos os dias, onde o recolhe ao fim da tarde. A filha deixou o companheiro tóxico-dependente e está desempregada. Ela vê-se ainda mais negra a lutar pela vida.
- Então, pode ser minha vizinha? - perguntei.
- Não sei de que zona é, mas não te admires nada se a vires ser tratada lá como uma senhora. Parece que faz constar que trabalha em Santa Maria da Feira, numa fábrica de calçado. Coitada, veio de Angola convencida que encontrava o pai. A mãe dissera-lhe que ele vivia junto do Tejo e que toda a gente o conhecia por Sargento Bigodes.

Em Lisboa, fez uns biscates nas limpezas domiciliárias mas, como era muito jovem e já muito jeitosa, não demorou muito tempo a ser apanhada no ambiente de vida fácil. Diz que viveu com um chulo que lhe fez a filha e que, logo que pôde, fugiu com ela para o norte.

- Sempre que passo ali na recta, vejo várias na margem da estrada. E algumas ainda muito jovens. Agora está calor, mas no inverno metem dó – disse eu.
- Sim, andam aí mais, mas vão-se alternando. No inverno, são menos. Tenho pena delas. No dia 24 de Dezembro passei aí, vi a Miquelina com uma amiga, uma desengonçada, junto de uma pequena fogueira e pensei: - Hoje é Natal, porque não fazer uma boa acção? Fui ao restaurante “As Cubatas”, trouxe de lá uns frangos picantes e mais umas coisitas, armei a mesa na “roullote” e mandei-as entrar. Encostámos com a traseira ao sol e virados para o Rio Vouga, comemos e bebemos, até fartar. Foi uma tarde espectacular! Gostei imenso! Não imaginas a alegria que vi naquelas pessoas.

Falámos, falámos, rimo-nos de tudo e de todos. A determinada altura, já melancólica, diz a Miquelina: - Não sei porquê mas agora que estou tão bem, sinto uma saudade enorme de f.....!
- O quê? – Espantámo-nos.
- Sim, de f....! De f..... a sério! F...... por amor!!! – Continuou
- Oh meu Deus, há quantos anos que não sei o que é isso!!!

Silva da Cart 1689
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 18 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9056: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (10): O grande choque (2)

Vd. último poste da série de 1 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8844: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (24): Os Bravos do 13.º Pelotão sob o Comando do Furriel Montana

Guiné 63/74 - P9086: Parabéns a você (344): António (Tony) Levezinho, ex-Fur Mil da CCAÇ 2590 e CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9081: Parabéns a você (343): José Romeiro Saúde, ex-Fur Mil Op Esp da CCS/BART 6523 (Gabú, 1973/74)

Sobre o Tony Levezinho, vd. aqui mais referências no nosso blogue.