sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9288: Notas de leitura (318): Literaturas da Guiné-Bissau, Cantando escritos da história (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Novembro de 2011:

Queridos amigos,
Nada conheço de mais actualizado sobre os novos rumos da literatura da Guiné-Bissau.
É lastimável que a generalidade dos autores aqui referidos não apareça nas nossas livrarias, sendo inequívoco que alguns deles são escritores de elevada qualidade e credores da nossa atenção. Margarida Calafate Ribeiro e Odete Costa Semedo estão de parabéns, encontraram uma boa paleta de colaboradores que permitem descodificar a premente questão do uso do étnico, do veicular e do português na construção literária, qual é a marca de água desta nova literatura e no contexto da africanidade, para onde está a evoluir o romance, a poesia e o teatro, por exemplo.
Ninguém que seja um curioso pela cultura guineense pode ignorar esta rosa de ventos.


Um abraço do
Mário


Literaturas da Guiné-Bissau*:
Os nomes que se impuseram depois do conflito político-militar 1998-1999

Beja Santos

A reflexão multifacetada que diferentes autores e estudiosos da literatura da Guiné-Bissau oferecem no importante livro “Literaturas da Guiné-Bissau, cantando os escritos da história”, tendo como organizadores Margarida Calafate Ribeiro e Odete Costa Semedo (Edições Afrontamento, 2011) gira no essencial sobre a identidade destas vozes, a sua força temática, os seus principais géneros e o reportório e caracterização dos escritores que conseguem superar todos os escolhos para ver os seus trabalhos publicados.

A estudiosa Teresa Montenegro utiliza o termo fogo como uma constante metafórica da escrita guineense. O fogo como luz e fulgor, chama em movimento ou entusiasmo; um fogo descontrolado que pode destruir os campos e afastar a caça, este fogo, neste caso significa morte, dor e punição. Um fogo presente na forja dos ferreiros, ligado à febre, à mente delirante, à cólera ou à paixão. A estudiosa faz a evocação deste fogo que queima em sentido figurado, do fogo destruidor que vai até à noite do passado histórico e que tem a ver com a derrota dos Mandingas ou dos Bijagós, a representação do feiticeiro está igualmente ligada ao fogo e são inúmeras as fábulas da tradição oral guineense onde o fogo tem um papel central.

Outra estudiosa, Íris Maria da Costa Amâncio destaca dois eixos de tensão no processamento da literatura dramática guineense onde a escolha da língua é uma questão de fundo: a língua étnica, a língua franca ou a língua oficial. Até à independência, a literatura guineense propendia para uma visão eurocêntrica, segue-se uma fase em que o ardor nacionalista e independentista usou o português como fala exclusiva; com a independência, o teatro ou as representações teatrais tradicionais orientaram-se para o uso do crioulo, foi um período fértil até de adaptações de clássicos (caso do Macbeth, de Shakespeare) recorrendo a velhas questões tribais, na linha de Brecht (o acontecimento deve ser narrado de forma que o espectador, diante da acção, assuma um posicionamento, tome decisões).

No virar do século, um acontecimento dramático fez inflectir a comunicação pela literatura: um conflito que dividiu os apoiantes de Nino Vieira e a Junta Militar, que levou à expulsão de forças senegalesas e provenientes de Conacri, à diáspora de muita gente que vivia na região de Bissau e cujas cicatrizes ainda estão mal curadas. Todo este sofrimento veio avolumar contradições da consciência histórica e fazerem romper novos procedimentos estéticos. Odete Costa Macedo é o primeiro nome que se avantaja neste novo panorama com dois livros de contos Soneá e Djênia. Uma editora independente, a editora Ku Sin Mon irá ter um papel relevante no estímulo a estes novos escritores como Carlos-Edmilson M. Vieira, Marinho de Pina e Waldir Araújo. A poesia ganha novo fôlego com Manuel da Costa, Rui Jorge Semedo, Filomena Embaló, Tomás Soares Paquete, Tony Tcheka e consagra-se definitivamente no romance Abdulai Sila, autor dos romances Eterna Paixão, A última tragédia e Mistida, bem como da peça teatral As Orações de Mansata.

Alguns nomes como Félix Sigá e Conduto de Pina vinham já de uma anterior busca de identidade e confirmaram-na depois da tremenda convulsão que foi o conflito político-militar a que se podem também juntar nomes como Nelson Medina, que usa frequentemente o crioulo.

Num estimulante ensaio, Laura Cavalcante Padilha faz uma análise dos romances de Abdulai Sila, um romancista que usa magistralmente o pensamento de Amílcar Cabral e o seu legado, os códigos do período colonial, transpondo os estereótipos da dominação branca para a nova classe possidente, repescando, dentro destas representações da violência colonial imagens do animismo e da feitiçaria. Prosseguindo dentro desta saga histórica, Abdulai Sila critica a nova classe dirigente e as instâncias neocoloniais para, em Mistida denunciar toda a precariedade do tempo presente, a nação à deriva e sem nenhum sentido de identidade. A autora do ensaio fala mesmo em trilogia, fica entreaberta a porta seja para a esperança seja para a continuação da violência.

O livro permite a Abdulai Sila que fale na primeira pessoa do singular, dá margem para que se sinta a inquietação africana em que se mesclam poesia e romance, como neste parágrafo:

“Quero gritar por ti, mas a dor não me deixa, mãe. Mãe, tenho um punhal de dois gumes espetado no peito, que me impede abraçar-te. Por isso, mãe, deixa o meu outro eu, aquele que mantive imune, procurar asilo no teu ventre. E se me perdoares, mãe, se me esqueceres, ficarei à espera de mim. E no teu próximo parto, mãe, eu serei eu mesmo. Para que esse amor que tenho, essa profunda paixão pela vida, não fique reduzida a uma mera e fútil recordação”.

Carlos Lopes, hoje Subsecretário-Geral das Nações Unidas, é outra das vozes fortemente críticas da moderna literatura guineense, seguramente o texto escolhido para o apresentar neste caleidoscópio denota o cansaço pelo aparato político baseado na argumentação de que os outros políticos são sórdidos, enfim a chamada roupa suja e em que vence o que ele designa por partido dos surdos:

“Eu já não posso mais. Esta família passa a vida a discutir heranças, falam da casa e bens com tal paixão e ódio que nem parecem irmãos do mesmo sangue. São capazes de discutir penicos, travessas, almofadas e qualquer dia até os restos do frigorífico, como se as suas vidas dependessem completamente destes bens deixados (…) digam-me só meus caros como é que julgam esta família? Acham um exagero eu estar a dizer que sinto vergonha que ninguém respeita a memória daqueles que lutaram para que fossemos gente? (…) Não se pode aceitar que quase 10 anos depois de os pobres estarem debaixo da terra ainda se revolva mais do que o estrume das suas vidas: o pai devia ter feito isto… a mãe devia ter feito aquilo… se eles tivessem dividido tudo não era preciso esta confusão… Mas falando disso se calhar a questão não é a divisão, porque eles, verdade seja dita, não fizeram mais do que pensar no presente sem nunca imaginar que não nos íamos entender à volta dos bocados deixados”.

Temos, por fim, a carta aberta de uma bidera abstencionista aos que querem mandar na Guiné, da autoria de Fafali Koudawo, reitor da primeira universidade guineense, investigador emérito. Depois de se apresentar como bidera de peixe, propõe-se dizer algumas verdades aos dois candidatos presidenciais, quer falar em nome dos filhos, antes que seja tarde de mais e diz desabridamente:

“Neste momento, a maioria das pessoas que falam connosco dizem que o país vai de mal a pior. Eles pensam que os políticos não dizem a verdade e não pensam no povo. Eu penso como eles. Pois, vivo o retrocesso do país diariamente. Por exemplo, quando comecei a escola em Bor, havia salas de aulas e mesmo uma residência para alguns professores. Agora, a maior parte da escola está feita de kirintin. É a maior escola de barracas da capital, a poucos quilómetros do centro da cidade (...) Como posso ir votar se ninguém me convence que vai realmente mudar a minha vida e dar esperança aos meus filhos? Em 2000, eu votei em Koumba Yalá porque acreditava que, finda a guerra, o país iria ter uma alternativa. Em 2004, eu escolhi Cadogo porque eu tinha visto o descalabro que levou as pessoas a não receberem os seus ordenados durante quase um ano, em 2002-2003. Em 2005, votei em Nino Vieira porque ele representava a autoridade que devia acabar com o deslize para a anarquia. Em 2008, votei no PRID, cujos candidatos nos disseram que iriam ajudar Nino a reconstruir o país. Hoje, tenho muitas dúvidas sobre a seriedade da fala dos políticos. Hoje, estou com medo porque a violência é a linguagem que mais se ouve no país”.

Para quem pretende aprofundar conhecimentos sobre o que se passa com a literatura da Guiné-Bissau, não há que hesitar, este livro é abrangente sobre as formas de inovação e o sofrimento que atravessa todo o discurso literário guineense.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 26 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9270: Notas de leitura (316): Literaturas da Guiné-Bissau, Cantando escritos da história (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 28 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9283: Notas de leitura (317): Vie et enseignement de Tierno Bokar - Le Sage de Bandiagara, de Amadou Hampaté Bâ (Cherno Baldé)

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9287: Excertos do Diário do António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (2): As duas passagens de ano: Canchungo, 1972/73, e Cufar, 1973/74

1.  Do nosso camarada e amigo, António Graça de Abreu (AGA), publica-se mais dois excertos do seu Diário da Guiné, 1972/74, a partir do ficheiro em word que serviu de base à publicação do livro Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp). 

Trata-se de duas "passagens" de fim de ano/ano novo: a de 1972/73 (em Teixeira Pinto ou Canchungo, na região do Cacheu, a noroeste) e a de 1973/74 (em Cufar, na região de Tombali, no sul). O estado de espírito de um homem, ao entrar no ano da peluda, já não era o mesmo do periquito, desembarcado em Bissau, 18 meses antes, em 24/6/1972 (*)... O AGA era Alf Mil, Secretariado, Serviço de Pessoal, do CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74).

Ao AGA e e à sua família lusochinesa só posso desejar os melhores votos para 2012: saúde, paz, sabedoria, esperança... Aqui, do sossego do antigo do Convento de Nossa Sra. do Carmo, do Séc. XVII, hoje hotel rural, Freixinho, Sernancelhe, em pleno coração das Terras do Demo, com um Alfa Bravo do amigo e camarada LG.

(...) Canchungo, 27 de Dezembro de 1972

Ontem vi um filme de Claude Chabrol, A mulher infiel. Deve ser obra menor dentro da cinematografia do francês, mas que diferença das habituais pepineiras que costumam colorir o écran do Cine-Canchungo!

Estou a ler Os Maias, a velocidade de cruzeiro. Grande Eça! Que prosa, o encadeamento dos personagens e que gente, o Carlos, o Ega, a Maria Eduarda, o velho Afonso da Maia! Foi preciso vir para a Guiné para ler Os Maias! Já está aqui ao lado A Ilustre Casa de Ramires, à minha espera. Depois de Eça de Queirós quem será capaz de escrever melhor, de cinzelar tão bem a língua portuguesa e de lhe misturar diamantes e pérolas? 



Canchungo, 28 de Dezembro de 1972 

Ainda os livros. Os Maias já estão, que delícia!

Leio também Textes et Chansons de Jacques Prévert e Boris Vian, uma antologia emprestada pelo Cravinho, o meu novo companheiro de quarto. De Prévert:

La vie est une cerise, 

La mort est un noyau,
L’amour un cerisier.


Leio ainda os Contos do Autómato, outra vez Moravia. Ler, pensar, questionar, aprender. Livros não me faltam. Agora veio a oferta do Movimento Nacional Feminino aos soldados de Portugal, oito obras para cada um. Havia gente que não estava interessada em ler, então, por vias travessas, acabei por arrepanhar dezasseis livros. Alguns não têm interesse, outros vão-me ajudar a fluir melhor por dentro do tempo da Guiné. Tenho a Eugénia Grandet, do Balzac, A Queda do Albert Camus, a Aparição do Virgílio Ferreira, Fernão Lopes, Régio, uma Antologia de Poesia Brasileira, até tenho Cervantes.

Refugio-me nos livros. O padre António Vieira dizia que os livros são como os cães, os melhores amigos do homem. 


Canchungo, 1 de Janeiro de 1973

Ontem à noite houve corrida de São Silvestre organizada pela Acção Psicológica do CAOP 1. Às nove e meia da noite, tínhamos noventa figurões equipados, com postura de grandes atletas, a dar três voltas à avenida principal. Fui assistir na companhia do alferes Paiva, da 38ª de Comandos [1]. 


Mas ele tinha outra ideia, sub-reptícia, fixa. Quase em segredo, queria-me mostrar a sua namorada (?) libanesa, uma mulher assustadora, solteira, com quase cinquenta anos convencida que tem vinte e dois, e que atrai os homens. Vive no centro da vila, na praça Dr. Oliveira Salazar com a família de comerciantes vindos do Líbano. Como é que esta gente veio parar à Guiné? A senhora pinta o cabelo  - uma tenebrosa cabeleira loira,  -  pinta os olhos, pinta os lábios, pinta as unhas, pinta tudo. Usa uns brincos de folheta vindos de Salamanca, Espanha – diz ela, – tem a cara envelhecida coberta de cremes e pós. É um mamarracho digno de exposição. O Paiva, pouco mais de vinte anos garbosos e valentes, conduziu-me até casa dela, queria que eu a conhecesse. A mulher recebeu-nos como se tivessem chegado dois príncipes da Pérsia. Cumprimentei-a e vim educadamente embora. O alferes Paiva, Comando, capaz de todos os gestos heróicos, ficou lá a desmaquilhar suavemente a dama libanesa. 

À meia-noite, em casa do capitão Pancada abriram-se umas garrafinhas de Magos e de champanhe. O Pancada e o alferes Gamelas têm consigo as esposas, simpáticas, bonitas, ambas de nome Helena. Estavam felizes, dançavam enlaçados, beijavam-se. Na sala havia mais quatro homens casados com as mulheres em Portugal. Olhávamos uns para os outros, mastigávamos em seco, sorumbáticos, tristes. Éramos o alferes Teixeira, um excelente rapaz do Batalhão 3863, o alferes Tomé, meu companheiro de quarto, o furriel Rodrigues também do Batalhão, e eu. 

Depois do “réveillon chez Pancada”, o Tomé foi ainda beber com os alferes Comandos – não sei se o Paiva já voltara do seu sortilégio libanês, – e regressou às tantas ao quarto, a gatinhar, a gritar a frase do costume “Tirem-me daqui, tirem-me daqui!” 

Canchungo, 3 de Janeiro de 1973

A 3 de Janeiro de 1974, ainda nesta guerra. Mais trezentos e sessenta e cinco dias a preencher sei lá com quê. Haverá dias pavorosos, outros mais lassos e pacatos, enfim o tempo manda, temos de passar por dentro dele. 


De hoje a um ano, eu pequeno, ignorado, na Guiné mascarada, massacrada, quero continuar lúcido, a lutar por mim e contra mim - contra os meus defeitos, - a não combater ninguém. Mais velho, mais gasto, mais cansado. (...)

[1] Para a história da 38º. Companhia de Comandos, ver Resenha Histórico Militar das Campanhas de África (1961-1974), Lisboa, Estado Maior do Exército, 1988 a 2002, 7º vol., tomo II, pag. 536.

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(...) Cufar, 28 de Dezembro de 1973 

Retratos dos dias, sementes em chão calcinado, rios cinzentos e sangue vermelho a escorrer pelas margens.

Eram sete da manhã quando os Fiats picaram sobre Cufar e foram largar as bombas aqui ao lado, a uns quinze quilómetros, sobre a aldeia de Santa Susana, controlada pelos guerrilheiros. Depois, durante quase todo o dia foram chegando a Cufar homens, mulheres e crianças estilhaçadas pela guerra, os muitos feridos do bombardeamento sobre Santa Susana. 

Ao alvorecer, bombardeámos aquela pobre gente, depois, a partir do fim da manhã, tudo fizemos para os tratar, para lhes salvar as vidas. 

Os portugueses têm bom coração. 

Cufar, 30 de Dezembro de 1973 

Inevitável, a guerra actua sobre mim. Tenho dormido horrivelmente mal, mas quem é que consegue dormir bem com quase vinte e quatro horas de rebentamentos constantes, de todo o tipo, à sua volta? Ando mais nervoso, descontrolo-me e grito com mais facilidade, eu que por norma sou uma pessoa tão calma! Pois, o coração bate mais perto da boca, mexe-me com a sensibilidade. Faço um esforço, procuro o auto-domínio e a serenidade. Tem de ser, não me posso deixar destruir. 

Cufar, 31 de Dezembro de 1973 

Aquela história da irmã pequenina da Maria, a minha lavadeira, fez com que eu arranjasse uma grande amiga. A miúda, em língua mandinga, chama-se Nandi Camará e adoptou o nome português de Mariana. Afinal tem só sete anos, se eu tivesse oito ou nove anos queria-a para minha namorada. É uma menina bonita, tem uns olhos grandes de veludo, redondos como a lua cheia. Quando fui a Bissau tratar dos dentes, a Nandi pediu-me para eu lhe trazer uma camisa. Comprei-lhe um vestidinho, um brinquedo e dois pratinhos de esmalte colorido com os respectivos talheres que lhe ofereci no dia de Natal. Reagiu com uma alegria que eu desconhecia numa criança, cantava modinhas que não entendi, dava saltos à roda de si própria. Nunca ninguém lhe oferecera um brinquedo. Trouxe também um saco cheio de balões e uns ursinhos de peluche para os outros miúdos da tabanca da Nandi. É fácil fazer felizes estas crianças de Cufar que vivem tanta guerra e nem uma escola têm para aprender a ler. 

Cufar, 1 de Janeiro de 1974 

Chegou o ano da “peluda”!

Entrei pelo réveillon dentro ao som de milhares de tiros e rajadas de G 3. 


O meu coronel [, comandante do CAOP1,] havia dado ordens ao capitão da companhia dos açoreanos e a toda a tropa de Cufar para que, ao chegar da meia-noite, ninguém disparasse um único tiro. Falou em dez dias de prisão para o energúmeno que tivesse a ousadia de pegar na espingarda e fizesse fogo. 

À meia-noite menos dez começou o fogachal. Os açoreanos [, da CCAÇ 4740,] saíram das suas tabancas às dezenas, armados, com as G 3 apontadas para o céu e vá de despejar carregadores após carregadores. Ao soar das doze badaladas – que ninguém ouviu até porque não soaram badaladas nenhumas, - tínhamos apenas o matraquear constante das armas ligeiras que quase levantavam Cufar do chão. Uma festa! Por todo o lado, havia tiros à solta. Os rapazes, bêbados, tontos de desvairo, não disparavam apenas para o ar. 1974 também é para eles o ano da “peluda” e quase se podiam ver balas cruzadas a rasar as nossas cabeças. Felizmente ninguém foi atingido. O meu coronel manteve-se quietinho no seu quarto, ninguém deu por ele. 

Se as bebedeiras são o pão nosso de cada dia, neste fim do ano foi demais. Eu também ando a beber mais do que devo, é fácil uma pessoa enfrascar-se e vou explicar como é, basta contabilizar a rotina do dia. Ao almoço, ao meio-dia, o pobre repasto é acompanhado com vinho, às quatro da tarde, por causa do calor, bebe-se uma cerveja, às sete, ao jantar, marcha mais meio litro de vinho, depois enfia-se um café e uma aguardente, às nove ou dez, há petisco, por exemplo umas chouriças assadas, bebem-se mais umas cervejas e no fim, para atestar, sorvem-se lentamente uns copos de whisky.

Chegou 1974. É a sequência irreversível dos dias. Em breve partirei, estes açoreanos regressarão igualmente a casa, outros rapazes oriundos dos quatro cantos de Portugal virão para a Guiné. Até quando?

Cufar, 4 de Janeiro de 1974 

Ontem de manhã acordei com mais um tremendo “embrulhanço”, os rebentamentos uns atrás dos outros. Era a estrada Cadique-Jemberém. Ainda na cama pensei: “Lá estão mais pobres desgraçados a morrer!” Era verdade, dois soldados mortos do batalhão de Cadique, os corpos destroçados (**). Vieram para Cufar e, como de costume, aqui foram metidos nas urnas junto com um fuzileiro que esperava por caixão há dois dias e já cheirava mal. O cangalheiro vestiu o fato de madeira e chumbo aos três. Já ninguém estranha muito, estamos habituados, a vida continua. Mas porque diabo é que o rodopio dos mortos e feridos passa sempre por Cufar?... 

Tenho constatado que em muitos de nós existe um prazer sádico, mórbido em ver mortos e feridos. Faço parte do grupo. Há qualquer coisa de macabro no ser humano, talvez uma silenciosa nostalgia da morte que nos aguarda a todos. 

Ontem, ao fim da tarde, quando o cangalheiro metia os três rapazes nos caixões, ao ar livre, no largo no centro de Cufar, juntaram-se à volta umas dezenas de mirones, brancos e negros. Um furriel pegou numa G 3 e ameaçou disparar sobre os curiosos se não desaparecessem imediatamente. Assisti a tudo, parado, insensível como um boneco de gesso, a cinquenta metros de distância. (...)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 24 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9262: Excertos do Diário do António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (1): O Natal de 1973, em Cufar, na véspera da Op Estrela Telúrica...

(**) Julgo que nesta altura (e até Fevereiro de 1974) estava em Cadique a madeirense CCAÇ 4942/72

Guiné 63/74 - P9286: (Ex)citações (170): As colónias portuguesas antes da Guerra (3): Guiné e Cabo Verde - Notas finais (José Brás)

1. III e última parte do trabalho do nosso camarada José Brás (ex-Fur Mil, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68), intitulado As Colónias portuguesas antes da guerra.


 AS COLÓNIAS PORTUGUESAS ANTES DA GUERRA (3)

GUINÉ E CABO VERDE

A descoberta da Guiné aconteceu em 1446 por Nuno Tristão, morto pelos habitantes que sempre deram luta renhida à presença dos portugueses.
Tem uma superfície de 36.125 Km, cerca de um terço da de Portugal.

A penetração e a exploração começaram a partir das Ilhas de Cabo Verde e as primeiras operações de comércio de escravos realizou-se através de cabo-verdianos que iniciaram, talvez assim o seu estabelecimento no território, evidentemente, porque Cabo Verde havia sido objecto de povoamento anterior ao início do da Guiné.

No século XVII havia já alguns centros de europeus no litoral, sempre em luta com os africanos.
Os ingleses que vinham cobiçando os resultados dos portugueses através de cabo-verdianos, quiseram apossar-se da Guiné, chegando a instalar-se na Ilha de Bolama de onde saíram em 1879, por arbitragem do Presidente americano Ulisses Grant.
Como exemplo da luta que as populações locais sempre deram à presença dos europeus, a etnia Papel só foi submetida em 1916.

É um território quase plano com poucas e pequenas elevações mas com uma rede hidrográfica intensa e complexa, cruzado por rios, canais, zonas alagadas e tarrafo.
Não possui as riquezas das outras colónias portuguesas, nem em variedade nem em quantidade, ainda assim, com alguns recursos suficintemente importantes para atraírem grupos capitalistas portugueses, americanos, holandeses e mesmo japoneses.
Arroz, oleaginosas, madeiras de boa qualidade, são alguns dos produtos em exploração.
A pesquisa e a concessão de petróleo foi entregue a americanos e a bauxite a um grupo holandês.



NOTAS FINAIS

EXPLORAÇÃO DO TRABALHO E DAS RIQUEZAS

A característica principal do capitalismo internacional que intervém num processo colonial, é sem dúvida, a exploração das riquezas existentes, aliada à exploração da força de trabalho local, com maior ou menor formação técnica e profissional, conforme a política e o desenvolvimento económico do País colonizador, neste caso, Portugal, o mais atrasado de todos os seus vizinhos europeus como já se disse e nem carece de grandes provas confirmá-lo, uma mão de obra africana e mesmo branca de fraca ou nenhuma formação técnica.
Acresce e agrava esta situação nas colónias portuguesas, o facto da existência de uma sociedade fortemente dividida e marcada em termos de hierarquização social, tendo à cabeça os técnicos e administradores coloniais enviados de Lisboa e os quadros técnicos e gestores das grandes sociedades e companhias monopolistas nacionais e estrangeiros; em segundo lugar os chamados “brancos de segunda”, portugueses já nascidos nos territórios africanos, exploradores de pequenas roças ou postos comerciais na costa ou no interior, e trabalhadores indiscriminados actuando no comércio, nos transportes, na construção civil, etc.; mais abaixo na escala os mestiços que trabalhavam nos escritórios da Administração Pública ou privada e empregados de comércio; depois ainda os negros assimilados, já possuidores de BI de cidadão português; finalmente os indígenas sem quaisquer direitos excepto o de prestar trabalho barato e obrigatório, às claras ou mais ou menos mascaradamente.
Desse modo, o topo vivia da exploração do esforço branco de segunda, este do terceiro , quarto e quinto escalões, a par da exploração brutal de todos pelas grandes empresas monopolistas na área da agricultura e das minas, sobretudo.


MONOPÓLIO COMERCIAL E EXPORTAÇÃO DE CAPITAIS

Outro direito de que se arroga o capital internacional no caso colonial para vender os seu produtos a preços e com lucros superiores às cotações mundiais, e para se apropriarem das matérias primas a preços inferiores ao custo, é o do privilégio de monopólio comercial.
Caem neste caso os produtos minerais, o café, o chá, o açúcar, as oleaginosas, o arroz, a madeira, etc., das explorações e exportações dos territórios africanos para o exterior, e do de outros produtos do exterior para África, como o aço, máquinas e utensílios, viaturas automóveis, que, devido ao atraso económico de Lisboa, são colocados pelo capital exterior, deixando a Portugal apenas alguns produtos difíceis de colocar no mercado internacional, como os tecidos de algodão e o vinho.
Não me parece de grande necessidade demonstrar que a prática do colonialismo, seja ele qual for, é o da exportação das mai- valias e dos lucros, quer através dos produtos estratégicos, quer dos capitais gerados.
Vale a pena, por exemplo, comparar aqui os dividendos distribuídos aos accionistas das sociedades anónimas com sede em Portugal, quer na parte do capital monopolista nacional, quer na parte do capital imperialista internacional, no ano de 1956.

Em Portugal…………….9,87%
Nas Colónias………….19,95%

Estes números parecem bastar para entender o que se diz acima, sobretudo se comparássemos as produtividades do trabalho no Continente e nas Colónias, bastante mais baixo este, apesar do atraso de toda a economia portuguesa em relação à das outras potências coloniais.


INVESTIMENTO

Tornar-se-ia fastidioso aprofundar aqui a importância do capital financeiro actuando nas Colónias, o carácter primitivo da economia, e o auto-financiamento, mas ainda assim, pelo seu significado, abordar a questão do investimento público, realizado quase sempre às custas do individamento externo e para colocar ao serviço das grandes sociedades anónimas e companhias concessionárias monopolistas, praticamente de borla.
De facto, as obras realizadas nessas operações, têm pouco a ver com as necessidades do território, face ao seu estágio de desenvolvimento, mas mais com as necessidades das grandes empresas colocadas no terreno.
São obras na área dos transportes internos, nos portos, na hidroeléctrica e na prospecção geológica, postos depois ao serviço do capital monopolista, na verdade sem retribuição e pesando na parte dos custos financeiros do Orçamento de Estado durante anos, em juros e amortizações.


CONCENTRAÇÃO DE CAPITAIS

Outra das características coloniais de Portugal é a enorme concentração dos capitais em presença em África, praticamente em meia dúzia de trusts internacionais, directamente, através de participações em bancos portugueses ou através da proliferação de empresas pertencentes de facto aos mesmos grupos de capitais internacionais, quase sempre aliados na criação de grandes conglomerados que actuavam nas Colónias portuguesas, no Katanga, na Rodésia e na África do Sul, capitais americanos, belgas, ingleses, franceses e alemães, algumas vezes suecos e dinamarqueses e até, como num caso na Guiné, japoneses.

Conclusão (apressada)
Aqui chegados, embora fique muito aquém do que poderia, parece-me dispensável continuar este trabalho porque:

1.º - O que se inclui é mais do que suficiente para provar o que afirmei no comentário ao poema do camarada Juvenal Amado, isto é, os interesses que se defendiam nas colónias portuguesas no início e durante a guerra colonial, eram estrangeiros, de capital financeiro, colonialistas e imperialistas, nos objectivos e práticas de exploração da mão de obra barata e do saque de matérias primas estratégicas e altamente lucrativas, bem como de alguns grupos portugueses da mesma natureza e objectivos, nomeadamente a CUF, o BNU e o BES, e ainda um pouco o Banco Burnay, tudo agravado pela circunstância do não aproveitamento de mais valias e lucros no desenvolvimento de Portugal Continental, pelo seu estágio de potência colonial profundamente atrasada, e pela natureza do seu regime político dos últimos 50 anos;

2.º nem ser objectivo deste trabalho aprofundar história, provas e elementos mais alargados e ainda que fosse, não me bastarem as ferramentas que pessoalmente possuo;

3.º apesar do gozo que me deu pesquisar e juntar elementos, estar isto a tornar-se uma espécie de gozo masoquista, já farto de estar aqui enrolado no sofá, na recuperação cardíaca, trabalhando como mouro e em más condições, com papelada espalhada à minha volta.

Não abandonarei a tarefa, porém, sem referir, ainda que escassamente, os grupos portugueses em presença significativa a à altura dos grupos exteriores, a CUF, na Guiné através da sua filial, a casa Gouveia) por vias várias, e nas outras colónias, em muitos outros e importantes sectores, em especial pela via financeira, intervindo associado no sector mineiro, na agricultura, nos transportes, o BES, o Banco Burnay, peão às ordens de capitais belgas (e americanos através destes) e franceses e o Banco Nacional Ultramarino, sempre como grupos monopolistas.

José Brás

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Notas:

(1) Gulf Oil Company, de Delaware, dominada pelo magnata Mellon, “rei dos alumínios”
(2) Societé General de la Belgique, trust financeiro criado em 1906 por Leopoldo II, com 65 filiais espalhadas pelas colónias portuguesas, Katanga e Tanganica nas mais variadas actividades, dos minérios aos caminhos de ferro,em algumas associada ao Banque L’Union Parisienne e com com Banco Burnay, sua ponta de lança na África portuguesa
(3) Anglo-American Corporation of South África, trust formado numa aliança de capitais americanos do Banco Morgan, do grupo inglês Opepnheimer. Os magnatas americanos Guggnheim, “rei do estanho” e Thomas F. Ryan, a companhia dos diamantes belgo-americana Forminière e a Sociedade Anglo-Belga Union Minière du Haut Katanga, associaram-se na Diamang
(4) Tanganika Concessions, fundada em 1899 por Cecil Rhodes por encargo da British Soud África Co. (família Oppenheimer) para explorar o urânio, o cobre e outros minerais
(5) British South África Company da família Openheimer
(6) African Consolidating Investments Corporation de capital americano do milionário Schelsinger que reside na África do Sul e preside a 107 sociedades.
(7) T.D. Horning com sede em Londres com várias filiais, como a Refinaria Colonial, em Lisboa; a Companhia do Comércio de Moçambique; a Sociedade de Chá Oriental; a Sociedade Agrícola de Malange (Angola) e controla a Agência Colonial de Moçambique, a Agência Comercial e Marítima e a Sociedade Industrial do Ultramar
(8) Franley, Bobone and Co + Hambro’s Bank com capitais ingleses e dinamarqueses que controla a Sociedade Agrícola do Madal, fundada em 1904 pelo Príncipe do Mónaco
(9) Lever Brothers & Unilever, trust inglês com estabelecimentos em Bissau, Bafatá, Bolama, Farim, Binta, Olossato e Bissoram.


Referências:

- Cester Bowles, “África, Challenge to América”
- William Top, “O Valor do Trabalho dos Assalariados Africanos”
- George Boulanger, “O Trabalhador Africano”
- Edition du Seuil ,Presence Africaine, “Le travail en afrique noire”
- Cunha Leal, “Incrível Sonefe” empresa algodoeira de Benguela, 1958
- - Boletim da Associação Industrial de Angola
- Statistical Year Book ONU
- Boletim Estatístico de Angola
- Armando Castro, “O Sistema Colonial Português (meados do século XX)”, 1962
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Nota de CV:

Vd. postes da série de:

27 de Dezembro de 2011 Guiné 63/74 - P9278: (Ex)citações (167): As colónias portuguesas antes da Guerra (1): Introdução e Angola (José Brás)
e
28 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9282: (Ex)citações (169): As colónias portuguesas antes da Guerra (2): Moçambique (José Brás)

Guiné 63/74 - P9285: História da CCAÇ 2679 (45): Um aniversário em Bajocunda (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 27 de Dezembro de 2011:

Olá Carlos, boa noite,
Ainda agora vivemos o Natal, e já deixo escapar a baba pelo canto da boca, só de pensar no magnífico almoço de aniversário que tive em Bajocunda. Envio-te uma presunção de relato desse evento, com liberdade para decidires sobre o destino a dar-lhe.
Anexo duas fotografias tiradas no Silva. Uma delas tem quatro personagens, a saber da esquerda para a direita: Zé Tito, Pedro Dinis e Marino. A outra é da frontaria.
Desejo-te, e ao Tabancal, que o ano de 2012 possa surpreender-nos pela positiva.

Abraços fraternos
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (45)

UM ANIVERSÁRIO NA GUINÉ

Decorria o mês de Dezembro do ano da graça de 1970. Os dias sucediam-se com o caracteristico calor húmido, o capim ainda alto, e as tarefas normalmente atribuídas ao Foxtrot, o Pelotão a que honrosamente pertenci, tudo numa rotina sobre a qual pairava o perigo e a impertinência militar que nos tolhia o apetite turístico. A população procurava abrigo nas sombras dos alpendres das três lojas de Bajocunda, onde também se exercita o múnus dos alfaiates. Situavam-se as lojas num cotovelo do que poderemos chamar a rua principal (resultando da fusão dos acessos que para sul se dirigiam ao Gabú, e na direcção oeste ligava a Pirada), que marginava a parada, e em frente à messe virava para a pista, na direcção de Copá, conservando nesse local algumas mangueiras de bom porte. A última loja do lado direito, era também a residência do casal Silva, que ali exercia a actividade comercial.

Aquela loja era a melhor apetrechada para as vertentes do comércio que ali se praticava. Nas traseiras, o Senhor Silva possuía um espaço de quintal, onde também provocavam frescas sombras duas ou três copas frondosas de outras árvores, e proporcionavam um ambiente ameno para três ou quatro mesas, onde se podia abancar. Era, por isso, um lugar apetecível para tomar uma cerveja, quiçá acompanhar a beberagem com um petisco. Na cozinha triunfava um cozinheiro africano que teria aprendido com arte a movimentar-se entre sertãs, tachos e panelas. O interior dividia-se entre a residência do casal e a loja, onde havia um colorido de produtos e materiais que se amontoavam, ou pareciam cair do tecto, e uma quantidade de gente falava e reclamava nos seus vagares sobre as virtudes dos artigos em venda, ou sobre o quotidiano da aldeia enquanto aguardavam atendimento.

Em Dezembro conjugaram-se os astros para que eu tivesse nascido no Monte Estoril, mesmo em frente à residência do Comandante Rosales. Para alegria dos meus pais, e do Sr. Salazar que, assim, passaria a contar com mais um jovem para as necessidades militares da nação. Essas necessidades já contavam quase vinte e dois anos, e o mancebo parecia dar-se bem em África, e andar com aquela estrelinha que lhe garantia a sorte nas voltas que a guerra impunha. Vinte e dois anos era uma linda idade, e estava mesmo a merecer uma celebração. Face às circunstâncias teria que pagar umas "piquininas" a quantos me surpreendessem naquele evento. Mas o que eu queria mesmo, era comer, banquetear-me com algum petisco de truz.

Havia, porém, uma possibilidade para frustração deste projecto: a normal actividade operacional que poderia obrigar-me a uma deslocação fora do arame, que não fosse uma coluna ao Gabú, um lugar onde era possível apreciar uma refeição diferente, como no restaurante que frequentava à saída para Sónaco/Pirada, onde costumava alambazar-me com um guisado de coelho (ou de gato, tendo em conta a insalubridade do clima e as dificuldades de distribuição logística, dedução coroada pelo facto de aquele ser o único restaurante a disponibilizar o petisco). Mas fui cauteloso, de tal modo me revelava determinado a comemorar a data, e com o capitão fiquei a saber que, naquele dia, o meu Pelotão não sairia do aquartelamento. Fantástico! Ora, nesses dias dedicava-me à preguiça, e só uma aparição do IN poderia perturbar o "dolce fare niente".

Na véspera do dia D, com a cautela e discrição que se exige para as mais importantes operações, fui falar ao Sr. Silva no sentido de garantir a minha bela refeição, uma auto-prenda com que congeminava regalar-me. Que sim, poderia contar com ele, e combinámos um galo de fricassé (que poderiam ser dois, se houvesse necessidade), especialidade de que o cozinheiro se safava com mérito. Imaginem só o requinte: um galo de capoeira, alimentado com os restos da cozinha, mais umas folhas e algum milho, com carne fibrosa... à antiga!

No entanto, ainda que fosse bastante glutão, a comemoração só o seria se devidamente testemunhada. Ora, o resto da furrielada estaria ausente de Bajocunda no desempenho das tarefas de que eu me sentia liberto. No entanto, os meus amigos e conterrâneos; o Zé Tito e o Pedro, o primeiro que engenheirava reordenamentos, e o segundo que assistia à lenta morte das viaturas e costumava apresentar-se com borrões de óleo no corpo e na roupa, esses estavam garantidamente na localidade. Que boa circunstância, poderíamos partilhar duas pernas, duas asas, dois peitos, e dois... perdão, não cabe aqui fazer referências aos finalmentes, e um vinhinho do Dão que naqueles trópicos nos fez sentir deuses.

E foi assim que festejei o meu aniversário, em data que não vale a pena precisar porque já passou (se bem me lembro), e não descortino leitores com vontade para me oferecerem prendas retardadas. Não tenho qualquer dúvida em referir aquela como a melhor e mais saborosa refeição que tive na Guiné, de tal modo que dela me recordo algumas vezes. E dou os parabéns ao cozinheiro, onde quer que ele esteja, porque fricassé daquele apuro não voltou a passar-me pela gorge.

Na foto, da esquerda para a direita: Zé Tito, Pedro, Dinis e Marino

Frontaria da casa do senhor Silva
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 23 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9259: Notas de leitura (315): De Campo em Campo, por Norberto Tavares de Carvalho (José Manuel Matos Dinis)

Vd. último poste da série de 11 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9026: História da CCAÇ 2679 (44): Uma coluna reforçada a Copá (José Manuel Matos Dinis)

Guiné 63/74 - P9284: Parabéns a você (359): Luís F. Moreira, ex-Fur TRMS da CCAÇ 2789 (Guiné, 1970/72)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9274: Parabéns a você (358): José Pedro Neves, ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 4745 (Guiné, 1972/74)

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9283: Notas de leitura (317): Vie et enseignement de Tierno Bokar - Le Sage de Bandiagara, de Amadou Hampaté Bâ (Cherno Baldé)

1. Mensagem do nosso tertuliano Cherno Baldé*, com data de 27 de Dezembro de 2011:

Caro amigo Carlos Vinhal,
Juntamente envio um pequeno excerto do livro de Amadu Ampaté Ba, dedicado ao seu mestre Tcherno Bokar Tall de Bandiagara (Bandjagara). Se acharem que não destoa e tem interesse para publicação, então não exitem, se for o caso contrário, também não há mal nisso. Esta minha iniciativa vem na linha e a propósito da recente publicação de um excerto do livro do Sr. Augusto Schwarz, pai do Eng. Pepito sobre o Cherno Rachid de Quebo que numa publicação anterior já se tinha referido ao Tcherno Bokar de Bandiagara.

Com os melhores cumprimentos,
Cherno Baldé

PS: Eu sei que o blogue privilegia escritos e trabalhos pessoais ainda não publicados mas não resisti à tentação de contribuir na divulgação de uma mensagem e de um ideal de paz e amor fraternal entre os homens de todas as religiões e de todas as regiões do mundo num período em que a violência e a conquista de territórios coloniais fazia furor entre as potencias do mundo.


AS TRÊS LUZES

(…) O olho (‘ayn) que se encontra no fundo de cada homem precisa de uma luz para ver o mundo na sua verdadeira essência e, sobretudo, para perceber as realidades divinas. Mas nem todos os caminhos são acessíveis a toda a gente.

Um dia, estando ele (Tcherno Bokar) a falar (com os seus alunos) sobre a noção da luz (nur em árabe), fiz-lhe a seguinte pergunta:

- Tcherno, quantas luzes místicas existem?

-Oh meu amigo, respondeu ele, eu não sou o homem que viu todas as luzes, não obstante, posso falar-te de três luzes simbólicas:

A primeira é a que tiramos da matéria sólida quando a friccionamos, pondo-a em combustão. Esta luz, assim obtida, não pode aquecer e iluminar senão um espaço bem limitado. Ela corresponde, simbolicamente, à fé das massas, dos indivíduos pouco evoluídos na escala mística. A este nível, os adeptos não podem ir p’ra além da imitação (taqlid) e da letra. A obscuridade da superstição envolve-os, o frio da incompreensão fá-los tremer. Eles ficam encolhidos num cantinho da tradição onde fazem o mínimo de barulho possível. Esta luz é aquela que anima os crentes quando ainda se encontram no degrau da fé dita Sulbu (solida).

A segunda luz é a do sol. Ela é superior à primeira no sentido em que ela é mais vasta e mais potente. Ela ilumina tudo o que existe sobre a terra e o aquece. Esta luz simboliza a fé de grau médio na via mística. Assim como o sol, ela dissipa as trevas logo que entra em contato com elas. É uma fonte vivificante para todas as criaturas. Ela simboliza as luzes que detêm os adeptos no degrau místico da fé dita Sa’ilu (liquida). Da mesma forma que o sol ilumina e aquece todos os seres que, desde este momento, são irmãos, os adeptos que conseguiram chegar a esta luz media, vêm e tratam como irmãos tudo o que vive debaixo do sol e recebe a sua luz. Eles não menosprezam a primeira luz, em virtude da sua função preparatória indispensável, mas eles já não são como os insectos que dançam a volta duma chama de fogo onde, às vezes, se queimam. A primeira luz, assim como aquela que a simboliza pode, dependendo das circunstâncias, ser apagada ou reacendida; pode ser transportada de um lugar a outro; dito de outra maneira, ela pode mudar de forma e de potência, enquanto que a segunda luz mantém-se fixa e imutável na sua perenidade, como a do sol. Ela virá sempre da mesma fonte e continuará igual a si mesma através dos séculos.

A terceira luz é aquela que nos chega do centro da existência; é a luz de Deus. Quem se atreverá a descrevê-la? É uma obscuridade mais brilhante que todas as luzes juntas. É a luz da verdade. Aqueles que têm a felicidade de aqui chegar perdem a sua identidade, transformam-se no que poderia ser uma gota de água caída no (rio) Niger, ou ainda num mar infinitamente mais vasto em extensão e profundidade. Neste grau, Jesus transformou-se no espírito (Santo) de Deus, Moisés no seu interlocutor, Abraão no seu amigo e finalmente, Mohammad (Mahomet) no sêlo das Suas missões na terra.


OS TRÊS GRAUS DA FÉ

Tendo refletido sobre o que tinha acabado de ouvir, perguntei-lhe de novo:

-Tcherno, quantas formas de fé existem, afinal?

Oh meu irmão, respondeu, não sei ao certo. A fé não é quantificável como os membros de um agregado familiar, nem mesurável como a distância de Bandiagara a Mopti. Não se pode pesá-la como o milho de Bankassi ou as frutas do mercado de Dourou. Para mim, a fé é a soma da confiança que temos em Deus e o grau (nível) da nossa convicção e é, também, a fidelidade para com o nosso criador. A fé aquece-se ou se esfria; ela varia de acordo com as pessoas e segundo os meios.

Para simplificar, esquematizo a fé da maneira seguinte: A fé Sulbu, a primeira, que chamei de fé sólida; a fé Sai’lu, a secunda, que chamei de fé liquida; e finalmente a fé ghazyu, a mais subtil, que é como um vapor gasoso.

1. O primeiro grau da fé convém ao comum dos mortais, as massas, aos marabuts agarrados a letra. Esta fé é sustentada e canalizada pelas prescrições impostas por uma lei tirada dos textos revelados, sejam eles judaicos, cristãos ou muçulmanos. Nesse estádio, a fé tem uma forma precisa; ela é intransigente, dura como a pedra, de onde tiro o seu nome.
A fé no grau Sulbu é pesada e imóvel como uma montanha. Se for preciso ela prescreve (decreta) a guerra pelas armas, a fim de preservar o seu lugar e se fazer respeitar.

2. A fé Sa’ilu (liquida) é a fé dos homens que trabalharam e enfrentaram com sucesso as provas do Sulbu, da lei rígida que não admite compromissos. Estes homens triunfaram sobre as suas próprias fraquezas (defeitos) e se engajaram na via que leva à verdade. Os elementos desta fé Sa’ilu resultam do conhecimento; eles reportam-se das veracidades, venham donde vierem, sem considerações de origem ou de antiguidade. Estas veracidades, recolhidas e agrupadas, formam um corpo animado de um movimento perpétuo, duma constante marcha para frente, uma marcha de moléculas de água que brota do fundo das montanhas, escorrem através de diferentes solos, acumulam-se nos obstáculos, depois engrossam ribeiras e rios para, finalmente, desaguar no oceano da verdade divina. Esta fé, assim como o seu símbolo liquido, elimina os defeitos da alma, desgasta as rochas da intolerância e espalha-se em toda a parte, tomando sempre a forma do seu recipiente. Ela penetra os humanos segundo a configuração do seu terreno moral. A fé Sai’lu educa (disciplina) o adepto, fá-lo um homem de Deus capaz de entender e de apreciar a voz de todos os que falam do criador. Ela é vivificante, ela pode solidificar-se e tomar a forma de (grelle) granizo quando for preciso tratar de almas que ficaram no degrau (nível) primário da fé. Ela pode sublimar-se e elevar-se em forma de vapor como a fé Ghaziyu, nos céus da verdade. Ela estabelece o regime da cidadela de paz onde o homem e os animais convivem lado a lado, onde os três reinos vivem na irmandade. Aqueles que a possuem elevar-se-ão contra a guerra.

3. A fé ghaziyu (gasosa) é o terceiro e último grau. É o apanágio de uma elite dentro da elite. Seus elementos constituintes são tão puros quanto libertos de qualquer peso material que os pudesse reter na terra, eles se elevam como fumo no céu das almas puras. Aqueles que chegam a este nível de fé adoram Deus na verdade e numa luz incolor. A verdade divina floresce nos campos do amor e da caridade.

Nota:
Tierno Bokar Saalif Tall (1875/1939) nasceu em Ségou (actual Mali), foi fundador de uma escola corânica (zaouia) em Bandiagara (pais Dogon) para onde a família se tinha mudado após a entrada das tropas francesas em Ségou. Famoso pela sua mensagem de tolerância religiosa e de amor universal foi vitima de uma querela entre facções religiosas rivais envolvendo também o poder colonial francês que não conseguiu reconhecer a profundidade da mensagem de amor e de paz de Tierno Bokar. Antes da sua morte, um dos seus maiores desgostos resultava da constatação do declínio da espiritualidade e do papel cada vez mais crescente do dinheiro na vida das pessoas da sua época.

Referencia:
Excerto extraído do livro de Amadou Hampaté Ba : "Vie et enseignement de Tierno Bokar, le Sage de Bandiagara", Editions : Points (inedit sagesse).

Traduzido do francês por mim (Cherno Baldé), especialmente para o Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (Tabanca Grande) e peço desculpas ao autor e a todos por quaisquer erros ou insuficiências que resultarem dessa tradução.

Bissau, Dezembro de 2011.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 25 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9266: O nosso sapatinho de Natal: Põe aqui o teu pezinho, devagar, devagarinho... (9): Votos de um novo ano, prenhe de esperanças renovadas, com duas sugestões de leitura (Cherno Baldé)

Vd. último poste da série de 26 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9270: Notas de leitura (316): Literaturas da Guiné-Bissau, Cantando escritos da história (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P9282: (Ex)citações (169): As colónias portuguesas antes da Guerra (2): Moçambique (José Brás)

1. Parte II do trabalho do nosso camarada José Brás (ex-Fur Mil, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68), intitulado As Colónias portuguesas antes da guerra.



AS COLÓNIAS PORTUGUESAS ANTES DA GUERRA (2)

 MOÇAMBIQUE

Moçambique situa-se quase em frente a Angola mas na outra costa do continente africano, numa situação e estrutura de organização económica e social idêntica à de Angola pelo que dispensa grandes notas.

Território com uma linha de fronteira complexa, em resultado da movimentação de múltiplos interesses de potências europeias, Moçambique tem uma superfície, no qual em um seu quarto caberiam Portugal, Bélgica, Holanda e Suíça, com 3.784 km de fronteiras terrestres e 2.795 de linha de costa.

Bartolomeu Dias estabeleceu aqui o primeiro entreposto europeu em 1507.
Em 1890 a Inglaterra apresentou um ultimatum a Portugal, exigindo o reconhecimento dos seus direitos às vastas regiões entre Moçambique e Angola acabando com o sonho português de domínio de um vasto Império nessa zona de África e deitando mão às enormes riquezas em minerais preciosos e outras, entregue pela Inglaterra a grandes sociedades companhias monopolistas criadas por Cecil Rhodes.

Como Angola, também Moçambique é atravessado por numerosos e importantes rios como o Zambeze, o Limpopo, o Save e o Rovuma, grandes fontes de irrigação e de potencial hidro-eléctrico.
Possui muitas regiões propícias à criação de gado, sabe-se que apenas os americanos conhecem o verdadeiro potencial das suas jazidas minerais, sobretudo a partir de 1953, quando a Minneapolis Longyeer a da Aero Service Corporation, procederam a aturadas prospecções.
Conhece-se a existência, pelo menos de, zircónio, turmalinas, fluorite, cromo, bauxite, titânio, volfrâmio, berilo, moscovite, cassiterite, lepidoite, vanádio, carvão, grafite, amianto, magnetites de grande teor de ferro, sal-gema, ouro e urânio.

Em 1950 o recenseamento da população indicava a existência de 5.738.911 indivíduos, entre os quais 91.954 (1.6%) não autóctones, população superior a Angola apesar de território menor, porque o negócio da escravatura que se exerceu intensamente na costa ocidental, não aconteceu na costa oriental.

Em 1955 a população não africana era de 118.691 habitantes distribuídos da seguinte forma:


Os caminhos de ferro têm em Moçambique uma grande importância, não apenas ao serviço da economia interna mas sobretudo das potências imperialistas vizinhas, na União Sul-Africana, nas Rodésias e no Congo Belga, partindo da costa marítima para o interior a fim de garantir o escoamento dos produtos coloniais.
De Norte a Sul, são também numerosos os portos de mar, desde os de reduzida dimensão, aos médios, como Porto Amélia e Nacala, e aos de grande dimensão, como os de Lourenço Marques e da Beira, garantem o tráfego dos países vizinhos.


(Continua)
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 27 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9278: (Ex)citações (167): As colónias portuguesas antes da Guerra (1): Introdução e Angola (José Brás)

Vd. último poste da série de 28 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9280: (Ex)citações (168): A Tabanca Grande, onde todos se reunem à volta da fogueira das memórias (Joaquim Mexia Alves)

Guiné 63/74 - P9281: Memórias da CCAÇ 617 (1): A batalha de Bissau de Janeiro de 1964 (João Sacôto)




1. Em mensagem do dia 26 de Dezembro de 2011 o nosso camarada João Sacôto* (ex-Alf Mil da CCAÇ 617/BCAÇ 619, Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66), enviou-nos esta história que passa a constituir a primeira Memória da CCAÇ 617 neste Blogue.



MEMÓRIAS DA CCAÇ 617 - 1

A BATALHA DE BISSAU DE JANEIRO DE 1964

(Como a inofensiva prática de um hobby esteve prestes a dar em grande tragédia)

Nos primeiros dois meses a CCAÇ 617 que substituiu a CCAÇ 274, ficou em Bissau, dependendo operacionalmente do BCAÇ 600 e ainda com a missão de efectuar patrulhas e rusgas com pequenos grupos (Secção ou Pelotão) no sub-sector de Quinhamel as tabancas situadas ao longo da estrada Bissau - Biombo, assim como fornecer algumas escoltas, tendo inclusive, uma Secção tomado parte na grande "Operação Tridente" realizada na Ilha do Como e que instalou uma CCAÇ no Cachil.

Desembarque no Cachil, Ilha do Como Princípio de Dezembro de 1965
Foto: © João Sacôto (2011). Todos os direitos reservados

A minha CCAÇ 617 ficou instalada no Quartel General em Santa Luzia e a messe dos oficiais era ali mesmo ao lado (hoje hotel 24 de Setembro).
Os alferes da Companhia, faziam serviço no Quartel General (Oficiais de Dia e Oficiais de Prevenção).

Logo na primeira semana de chegada à Guiné, ainda maçaricos, estando o meu camarada ALF Santarém de Oficial de Dia e eu de Oficial de Prevenção, combinámos revesarmo-nos na ida à messe para jantar, tendo-me cabido a mim o primeiro turno. No regresso ao QG, para substituir o Santarém, deparo com uma cena trágico-cómica: O meu camarada e amigo Santarém de capacete na cabeça e de G3 ao ombro gesticulando aflito e aos gritos dizia-me: Forma imediatamente o Pelotão de Intervenção e vai para o Laboratório Militar que eles estão a ser atacados e já telefonaram várias vezes a dizer que se não receberem reforços rapidamente, serão todos massacrados.

Apreensivo, nem sabia onde ficava o dito Laboratório Militar, lá formei o Pelotão.
Rapidamente começaram a chegar ao QG vários militares vindos da baixa, com relatos de grandes ataques e tiros por todo o lado. Felizmente, alguns oficiais já batidos e de patentes superiores tomaram a iniciativa de se deslocarem à baixa de Bissau em auto-metralhadora para uma melhor análise da situação, tendo eu ficado em standby, com o meu Pelotão.

O que na realidade aconteceu, foi que um soldado condutor-auto do nosso Batalhão, resolveu ir praticar o seu hobby para o cais do Pigiquiti (pesca à linha), para o que ali se deslocou num Jeep. Ao fazer uma manobra no cais para regressar ao Quartel, acabou por cair à água. Uma patrulha que se encontrava no cais, deu uns tiros na direcção do Forte da Amura, para pedir socorro, estes por sua vez, julgando estarem a ser atacados ripostaram, envolvendo também o pessoal do Quartel dos Fuzileiros. Estava a guerra desencadeada, com o pessoal do Laboratório Militar entre fogos e alarmados pedindo urgentemente socorro ao Quartel General.

Tendo-se esclarecido o motivo daquela situação caricata, tudo voltou rapidamente à normalidade, saldando-se o ocorrido na morte de um militar, o infeliz soldado-pescador.

Um abraço camarada do,
João Sacôto
Ex-Alf Mil
CCAÇ 617
Guiné - 1964/1966
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 20 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9240: Tabanca Grande (312): João Gabriel Sacôto Martins Fernandes, ex-Alf Mil da CCAÇ 617/BCAÇ 619, Catió, Ilha do Como e Cachil (1964/66)

Guiné 63/74 - P9280: (Ex)citações (168): A Tabanca Grande, onde todos se reunem à volta da fogueira das memórias (Joaquim Mexia Alves)

1. Em mensagem enviada para publicação, o nosso camarada Joaquim Mexia Alves*, ex-Alf Mil Op Esp/Ranger da CART 3492/BART 3873, (Xitole/Ponte dos Fulas); Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), 1971/73, expressa a sua opinião quanto ao cabimento de publicações no nosso Blogue, como é exemplo o trabalho do nosso camarada José Brás no Poste 9278**:



A TABANCA GRANDE

Há uns anos atrás, (já não sei bem quantos), descobri este espaço de memórias de combatentes da Guiné.

Foi logo desde o início um deslumbre para mim, e sobretudo um bálsamo para feridas guardadas, (algumas contadas a outros sem serem compreendidas), e uma oportunidade para me relacionar mais e melhor com aqueles que podiam entender a minha linguagem, (porque a viveram), quando falava da guerra da Guiné.
E aqui fui lendo e contando tantos episódios que a cada um de nós tocaram, nessa “aventura” involuntária, (que nada teve de romântico ou de romance), mas sim de uma realidade muito dura e difícil de se viver.

Aqui troquei argumentos sobre aspectos da guerra, (ganha ou perdida), critiquei alguns textos pela sua dureza fria e sem, (para mim), sentido, sugeri atitudes, recebi conselhos, enfim, vivi a guerra da Guiné, (de tão difícil memória), com aqueles que a viveram e dela têm a vivência e o conhecimento que os torna meus camarigos e eu camarigo deles.

Aqui fiz humor, aqui publiquei versos, aqui exprimi opiniões, e, também, me ri com o humor dos outros, me entusiasmei com a sensibilidade escrita dos camarigos e reconheci para meu conhecimento, opiniões de outros.

Este era, para mim, um espaço de troca de vivências da guerra, fossem elas dos tempos da dita, ou daquilo que ela tinha marcado e ainda marca, nos homens que a viveram.
Tão serenamente como me era possível, fui chamando a atenção ao fundador e editores, para o perigo, (quanto a mim), de se deixar que a politica, fosse ela de que lado fosse, tomar conta deste espaço, remetendo-o para uma mera troca de ideias políticas, (com mais ou menos razão), em detrimento do espaço de troca de experiências vividas ou ainda a viver da guerra da Guiné.
É que, no meu entender, espaços para essa discussão politica existem “às cabazadas” por aí, mas lugares de memórias vividas da guerra no plural, (ou seja com o concurso de muitos), nem por isso.

Com toda a estima, com toda a amizade, com todo o respeito, (inerente obviamente às duas anteriores), que me merece o José Brás, este texto que escreveu, (não o crítico, nem o discuto), não deveria ter aqui lugar, não pela escrita, mas pelo conteúdo que sai da vivência da guerra, para as razões politicas da mesma, e aí, meus caros camarigos, há tantas opiniões válidas com aqueles que as quiserem escrever.
Este texto pode “inaugurar” uma fase deste espaço, em que os textos sobre a guerra propriamente dita serão relegados para segundo plano, porque textos destes têm forçosamente mais respostas, (comentários), do que aqueles que nos tocam apenas a nós combatentes, enquanto tal.

Que seria agora se alguém escrevesse um texto defendendo a politica ultramarina de Salazar, como um sério entrave à expansão sino-soviética em África e no mundo?
Ou se começarem a fazer comparações entre quem manda em quem, em quem é mais colonialista que outrem, e por aí fora?

Repito, espaços desses há muitos por aí, e, (mais uma vez quanto a mim), esta Tabanca Grande só tem a perder se enveredar por tal caminho, e ele, o caminho, está agora definitivamente aberto.
Deixa de ser uma Tabanca Grande onde todos se reúnem à volta da fogueira das memórias, para passar a ser um “parlamento” onde todos falam, mas nunca se encontram.
E, claro, posso estar enganado, mas muito franca e pessoalmente, não foi para ver e estar num espaço assim que tanto me empenhei e dediquei.

Por aqui me fico, esperando ver e ler mais experiências da guerra e do que ela ainda marca nos combatentes, do que experiências politicas que têm o condão de muito mais dividir do que aproximar.
Já sei que alguns virão dizer que tudo é política, etc. e tal, e eu volto a afirmar que espaços desses há os por aí “às toneladas”, (uns mais sérios do que outros, obviamente), mas espaços colectivos como este de memórias de guerra, há muito poucos ou quase nenhuns, sobretudo com o dinamismo que a Tabanca Grande pode ter.

Não interessam recordes de membros, de textos, ou de comentários, interessa sim um espaço onde os combatentes da Guiné saibam que podem contar as suas experiências, vivendo também as dos outros, encontrando-se em verdadeira camarigagem.

Um abraço para todos do
Joaquim Mexia Alves
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Notas de CV:

- Título do Poste da responsabilidade do editor

(*) Vd. poste de 7 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9150: Memória dos lugares (165): Polibaque, na estrada Jugudul-Portogole-Bambadinca (Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil, CCAÇ 15, Mansoa, 1973)

(**) Vd. poste de 27 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9278: (Ex)citações (167): As colónias portuguesas antes da Guerra (1): Introdução e Angola (José Brás)

Guiné 63/74 - P9279: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (3): Fragmentos Genuínos - 1


1. Em mensagem do dia 22 de Dezembro de 2011 o nosso camarada Carlos Rios (ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66), enviou-nos um extenso trabalho a que chamou "Fragmentos Genuínos" que começamos hoje a publicar, integrado na sua série Fragmentos da minha passagem pela tropa.



FRAGMENTOS GENUÍNOS - 1

O Singular acto de escrever nunca pode ser um esforço solitário e, sempre que possível, para mim um incipiente e ineficiente transmissor de factos e actos praticados, ou que me chegaram ao conhecimento verbalmente ou através de escritos, rocambolescos alguns, pungentes outros e ainda demonstrativos de verdadeiras iniquidades praticados por alguém e agora passados à prosa e dos quais com a devida vénia aos seus autores bem como textos e fotografias que me tornam extremamente grato ao Arquivo Histórico Ultramarino e outra instituições, ouso transcrever.

Há muitas pessoas que embora ausentes fisicamente aqui permanecem no meu sub-consciente estruturando e moldando a minha maneira de ser e pensar e a quem devo agradecer por ter conseguido reunir a energia, vontade e capacidade para levar a bom termo a tarefa a que me propus. Existem como é óbvio inúmeras e variadas formas de homenagear a intervenção e omnipresença dessas pessoas, pelo que imaginei mostrar-lhe o meu agradecimento e gratidão tão só pelo facto de existirem no meu Universo.

No topo da lista esta é claro a minha grande mulher, Fernanda, uma ribatejana dos sete costados (teimosa, resmungona, exigente, obstinada), mas a companheira de eleição para qualquer homem e que me mantém atento e concentrado em todos os aspectos realmente importantes da vida.

O meu filho, a minha nora, disponível e amiga que me presentearam com as maiores riquezas que um homem pode sonhar, as minhas adoráveis netas. E ainda os meus caros camaradas e amigos que tiveram que ao longo dos anos sofrer e participar numa horrenda guerra, prestando a mais sentida homenagem aos mortos e feridos daquele malfadado teatro de horrores, não esquecendo de daqui mandar um abraço de solidariedade aos sofredores de traumas e stress pós traumático com um desejo de incentivo nas suas vidas.

Também aos amigos da área da literatura e cultura pelos conselhos e apoio que me souberam transmitir.
A todos o muito obrigado!



As recordações dos momentos de rigidez, maus tratos e prepotências que eram coisa corrente, e marcaram primordialmente o período de cumprimento do serviço militar na metrópole, porquanto do que se tratava era de preparar, “homens para defender a pátria” no entender e dizer dos “instrutores”; elementos esses de que vim a fazer parte; fui colocado como monitor em Tavira na CISMI; (durante a recruta em Santarém morreu afogado no Tejo um camarada de outro pelotão), fazem aumentar o sentimento de desânimo e tristeza que alastra na despedida e adeus aos entes familiares e à terra que agora fazemos de bordo do Niassa a caminho da barra e no meu caso, começando já a sentir uma profunda nostalgia ao avistar no horizonte os locais da minha vivência; Caxias, Paço de Arcos etc…

No cais da Rocha do Conde de Óbidos

A partida era um momento tormentoso e tão emotivo que muitos sucumbiam em transes dramáticos. Para quantos não era um adeus definitivo aos melhores de todos nós, os jovens.
Quase todo o pessoal se encontrava na amurada do lado direito do barco e empoleirada em tudo quanto era sitio para um emotivo doloroso e incerto adeus. É indescritível o ambiente de ansiedade e inconformismo que quase se tornava palpável no ar. Não suportei a angústia que se instalou em mim e fui postar-me sorumbático e silencioso no Bar e remoer recordações.

Já em pleno oceano sentado no exterior na área da popa do navio espraiando o olhar pelo horizonte rememorei o período de tempo que passei na bonita agradável e acolhedora cidade de Tavira, onde para além de ter tirado a especialidade, me mantive como monitor do CISMI, o que me ocupou de Abril de 1964 até Junho de 1965, de tal maneira que já comentávamos eu e os meus companheiros que não iríamos para as colónias. Sonhos de jovens incipientes e desconhecedores dos mecanismos da instituição para onde tínhamos sido arrancados do seio das famílias. A população era afável e hospitaleira, principalmente em relação aos que se mantinham depois de terminados os obrigatórios cursos. O único senão encontrava-se nas degradadas e exíguas instalações do CISMI e na qualidade da alimentação. O problema era de tal ordem que espalhados por toda a cidade, haviam quartos alugados em casas particulares onde dormia e fazia a sua vida uma percentagem elevada de militares. Havia uma espécie de osmose entre um determinado estrato da população e os militares. Não me lembro durante este largo espaço de tempo de ter havido por parte dos comandos uma negativa aos pedidos de pernoita no exterior a qualquer militar. Creio que no pequeno quartel não haveria espaço minimamente decente para os cerca de seiscentos homens que ali chegaram a estar colocados.
A cidade vivia muito social e economicamente do meio militar

Paisagem da Cidade de Tavira

Havia uma notória falta de emprego e concomitantemente naquela época, entre parte da população a ilusória ideia de que os milicianos eram gente de posses, ideia que recolhi das prolongadas e agradáveis conversas que tive com a minha hospedeira e suas jovens auxiliares, dado que a senhora onde aluguei o quarto e passei a maior parte dos tempos livres, tinha um atelier de costura. Aqui passei bons e felizes dias que compensavam todas as agruras e passagens mais difíceis, no quartel. Poucas vezes me desloquei a casa, pudera; tinham que se pagar as viagens, o que se tornava assaz difícil depois de ter de pagar o aluguer do quarto. Num intervalo entre os dois cursos de que fui monitor e que coincidiu com a Páscoa (aproximadamente quinze dias), aqui me mantive, sendo tratado por todos como um filho e não só. Aqui, neste agradável ambiente externo alguns acontecimentos no quartel ajudaram, a que se fosse começando a moldar o cérebro deste jovem que julga hoje no ocaso da vida ser uma criatura que pretende ter como principal factor estruturante um profundo sentido de humanidade e solidariedade.

A minha pátria é o Mundo. A minha nacionalidade é a humanidade.

Uma das actividades de Tavira – As salinas

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 19 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9235: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (2): Miniautocarro civil detona mina anticarro em Encheia

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9278: (Ex)citações (167): As colónias portuguesas antes da Guerra (1): Introdução e Angola (José Brás)

1. Damos hoje início à publicação de uma série de três postes contendo um trabalho do nosso camarada José Brás (ex-Fur Mil, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68), intitulado As Colónias portuguesas antes da guerra, "prometido" num dos seus comentários feitos no Poste 9225*:

Dizia então José Brás:

E voltando ao meu amigo Graça Abreu, a que prometi dar nomes e números dos verdadeiros colonialistas donos de quase tudo o que era economicamente importante nas nossas colónias de África, rectifico:

Vou realizar o trabalho que poderá ser aqui publicado apenas se os editores do blogue assim o entenderem, para que os antigos soldados portugueses entendam o logro da "defesa da Pátria" quando mataram e morreram.

Como resposta a qualquer desejo de AGA, acho agora que o trabalho não valerá a pena, senão no prazer que a mim próprio dará, e esse ficará comigo e com os amigos.
José Brás



AS COLÓNIAS PORTUGUESAS ANTES DA GUERRA (1)

INTRODUÇÃO

Este trabalho foi entendido desde o início como uma forma de demonstrar a natureza da verdadeira Pátria que os soldados portugueses iam defender quando partiam para as ex-colónias de Angola, Moçambique e Guiné, matar, morrer e desbaratar toda uma vida no caso dos feridos em combate ou noutras circunstâncias derivadas, quando deficientes físicos e/ou psicológicos.

Tal objectivo do autor resulta de uma sua afirmação sobre a natureza internacional do capital principal nas grandes empresas, sociedades anónimas e Companhias concessionárias presentes nas colónias portuguesas nos vários sectores da economia, nomeadamente a extracção mineira, os transportes, caminhos de ferro, material circulante, portos marítimos (importantes no escoamento das matérias primas desde os locais de extracção até aos portos de embarque) a agricultura e pescas, pequena indústria instalada e o comércio, interno e import-export.

Dizia eu, também, da crónica dependência de Portugal do capital financeiro do exterior, quer directamente o Estado para a realização de obras públicas, como ferrovias e outras vias de penetração, pontes, portos, no Continente e nas Colónias, quer através dos estabelecimentos bancários nacionais, nomeadamente o Banco Espírito Santo e em especial o Banco Burnay, verdadeira testa de ferro dos capitais estrangeiros em áreas estratégicas do ponto de vista económico, no Continente e nas Colónias, quer para apropriação de matérias primas importantes na indústria transformadora internacional, quer do ponto de vista do objectivo de acumulação de reservas para garantia futura, em especial, americanas.

Esta característica da formação e constituição dos capitais titulares de acções e de percentagens do capital das várias Sociedades Anónimas, quase sempre Sociedades Anónimas, e Companhias Concessionárias de carácter monopolista que recebiam concessões de vastas áreas para explorar em exclusivo os sectores mais importantes em presença, ou garantir prospecção para reserva sigilosa e utilizável no futuro, deve ser tida em conta porque quase sempre mascarava a verdade proveniência do capital titular das empresas e das instituições públicas ou privadas portuguesas.

Por isso, deve duvidar-se, mesmo nos casos em que o capital principal das sociedades e companhias parece português, se realmente o é.

Além disso, dada a natureza parasita da intervenção económica nas colónias, montada na existência de uma imensa mão de obra completamente desqualificada e de baixa produtividade mas de salários extraordinariamente baixos, apostada apenas na produção e exportação de mais valias e enormes lucros, esta acabava por tornar-se como um peso mais a travar o desenvolvimento do Continente, aproveitando tais mais valias e investindo tais lucros, não na criação de condições para produção de riqueza real no País, mas em sectores pouco reprodutivos, tecnologicamente pobres, e em actividades de esbanjamento e luxo de uns tantos, aliás, na senda do que acontecera com as enormes fortunas provenientes da actividade na sequência das descobertas e, já hoje e de novo como uma fatalidade, com a enorme soma de fundos da adesão a à União Europeia.

Esta situação só foi escamoteada às centenas de milhares de jovens embarcados, por uma propaganda ideológica agressiva que apelava a uma obrigação patriótica no exemplo dos antigos heróis portugueses, e pela afirmação de uma Pátria pluri-continental e multirracial, atacada por interesses estrangeiros, quando, justamente, era estrangeira a mão que rapava de Angola o petróleo, os diamantes, o ferro e muitos outros produtos minerais e agrícolas, para transformação imediata nos países em presença e lançamento no mercado, ou para constituição de reservas estratégicas, todos geradores de lucros muito superiores aos que teriam noutros locais devido à natureza especial do colonialismo de um País muitíssimo atrasado, em comparação com os seus vizinhos continentais, a mesma estrangeira que, simultaneamente, armara no Norte de Angola a UPA para a chacina.

Para ter uma ideia dos atrasos nacionais, no Continente e nas Colónias, em matéria de economia, e das disparidades em relação a outras Colónias e outras potências coloniais, uma ideia ainda que ténue, basta saber por exemplo, como informa Basil Davidson, que era negro o maquinista do troço ferroviário no espaço congolês, substituído por um português branco quando entrava no troço angolano, porque o salário deste emigrante das Beiras ou de Trás-os-Montes ou de outra qualquer das províncias portuguesas do Continente, era ainda mais baixo do que o do negro do Congo.

Assim, entremos na esquematização muito simplificada e muito aquém da informação disponível para demonstrar a verdadeira e mais funda realidade, ainda assim, a meu ver, claramente suficiente para provar muito mais do que o que eu houvera dito no referido comentário ao poema do Juvenal, afirmando ser muito pouco portuguesa a Pátria que roubou a vida a quase 10.000 jovens, deixado estropiados quase 20.000 e, de algum modo diminuídos, muitas mais dezenas de milhar, suscitando com isso, pelo menos uma reacção contraditória.


ANGOLA

Situada no coração da África negra, com fronteiras de mais de 6.400 Km, 4.837 Km com o Congo Belga, a Rodésia do Norte e a Bechuanalândia, 1.650 Km de costa marítima, 1.770 Km do Luvo, a Norte, ao Cunene, a Sul no comprimento, e uma largura aproximada desde foz do Cunene atá ao Cuando, a Leste, tudo, numa superfície aproximada às de Espanha, França e Inglaterra juntas.
Descoberta a sua costa no século XV por Diogo Cão, as suas fronteiras actuais resultam de alterações significativas ao longo dos tempos em acordos e conferências internacionais que, como é óbvio, nunca tiveram em conta os interesses das populações locais, dividindo muitas vezes etnias e até, dentro destas, tribos.
É atravessada por grandes e extensos rios, com imensas bacias hidrográficas e enorme potencial energético, objecto de estudos realizados sob a direcção da ECA –European Cooperation Administration e encomendados a organizações americanas sob hipoteca de exploração.
No seu espaço geográfico abrigam-se potencialidades extraordinárias, desde logo as do sub-solo, como os diamantes, o ouro, o petróleo, asfaltos, carvões betuminosos, mica, manganés, estanho, fosfatos, sal-gema, vanádio, zinco, ferro, mercúrio, volfrâmio e urânio.
É igualmente muito rica em produção animal, como cera e mel, em regiões propícias à criação de gado e de matérias-primas como as oleaginosas, café, açúcar, fibras vegetais e madeiras.

Em 1950 a sua população era a seguinte, resultado de senso administrativo, ainda que com larga possibilidade de erro por desinteresse das autoridades locais a quem convinha ter disponíveis e sem controlo muita mão de obra para alugar aos recrutadores:


Em 1956 a situação era a seguinte:


A distribuição por etnias do total da população, em 1950, refere o total da população africana por 13 principais, mais 1,296 de portugueses do ultramar, 5.794 estrangeiros e 2.796 indeterminados.
Angola deixou de ser considerada colónia em 1951 e passou designar-se como Província Poruguesa Ultramarina, embora nada tivesse mudado de facto na estrutura social e administrativa, apesar da leitura do Art.º 148 da Constituição. No fundo era o Governo de Lisboa que tudo decidia através do Ministério do Ultramar e dos organismos corporativos, copiados da Itália de Mussolini, o Grémio do milho, as Juntas de Exportação do Algodão, do Café e dos Cereais.
Muito importantes são os seu 3 Portos de Mar principais, sobretudo o do Lobito e o de Luanda, sendo ainda de importância crescente o de Moçâmedes, recém-construído.


(Continua)
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 18 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9225: (Ex)citações (166): Gostei dos que… gostaram e gostei, juro que não menos, dos que não gostaram (José Brás)