segunda-feira, 16 de abril de 2012

Guiné 63/74 - P9754: O Cancioneiro de Gandembel (7): Do Hino de Gandembel ao poema épico Os Gandembéis (Parte VII) (Idálio Reis)



Guiné >  CCAÇ 2317 (1968/69) > Ponte Balana > "O pequeno destacamento foi um bastião na defesa de uma ponte que a engenharia militar recuperaria, mas que também acabaria por ruir" > Álbum fotográfico de Idálio Reis > Foto 422 > "Aproveitando os restos da antiga ponte, davam-se belos mergulhos para banhos retemperadores"











Guiné > Região de Tombali > Gandembel > CCAÇ 2317 (8 de abril de 1968 a 28 de janeiro de 1969) >  Mais fotos do álbum de Idálio Reis (**)...  

Fotos: © Idálio Reis (2007) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


1. Última parte (Canto IV) de "Os Gandembéis", poema de autoria coletiva (mas com forte contributo do poeta João Barge, 1944-2010), escrito em 1969, que retrata a epopeia da CCAÇ 2317 em Gandembel e Ponte Balana (*), recolhido e reproduzido pelo nosso camarada e amigo Idálio Reis [, foto atual, à esquerda], engenheiro agrónomo reformado, residente em Cantanhede, ex-Alf Mil At Inf da CCAÇ 2317, no seu livro A CCAÇ 2317 na guerra da Guiné: Balana / Ponte Balana, edição de autor, 2012 (il, 256 pp.). 

 Este livro é mais uma peça (fundamental) para a historiografia da guerra colonial na Guiné; o seu lançamento será feito no Palace Hotel, no próximo dia 21, no âmbito do VII Encontro Nacional da Tabanca Grande. 



Sinopse: Depois de sair de receber ordens para abandonar Gandembel, em 28 de janeiro de 1969, a CCAÇ 2317 passa por Aldeia Formosa e fixa-se em Buba, sede do COP 4 (comandado na altura pelo major Carlos Fabião). Em 14 de maio de 1969,  deixa Buba e segue, de avião, para Nova Lamego, região do Gabu, onde irá terminar a sua comissão sete meses depois. Ali foram, finalmente, "gente feliz, sem lágrimas"... E ai tiveram tempo e talento para escrever Os Gandembéis.


(...) "A Companhia sai para a Guiné, com 158 homens: 5 oficiais, 17 sargentos, 35 cabos e 101 soldados. A bordo do Uíge, a 10 de Dezembro de 1969, sob o comando de um único oficial [, o Alf Mil Idálio Reis,] , chegam à unidade mobilizadora, o RI 15 de Tomar, 121 militares, com 11 sargentos, 29 cabos e 80 soldados; ficaram na Guiné, para a entrega do material, 1 alferes e 3 sargentos" (...).

Balanço das baixas: (...) "Há as perdas: 9 mortos (1 alferes, 1 furriel e 7 soldados), 18 evacuados para Lisboa (7 feridos graves, 5 por doença e 6 feridos menos graves), e 4 não regressam por mudança de Companhia. Há ainda 2 elementos, que saem antecipadamente: 1 cabo — o nosso Lamego — e o Comandante de Companhia, para continuar a sua carreira militar como oficial superior de Infantaria" (...)" [Os feridos evacuados para o HM 241, em Bissau, ao longo de 23 meses de comissão, são estimados em cerca de 40].

2. Sobre a autoria desta genial paródia aos Lusíadas, o Idálio já nos revelou aqui um segredo, no 1º poste desta série: (...) "É uma obra que o apaziguador tempo de Nova Lamego proporcionou. Os seus autores, são anónimos e humildes. De todo o modo, faço-te a revelação: um deles, foi o malogrado e inesquecível João Barge (***), um filólogo de escol, e que decerto seria a única pessoa capaz de emprestar tanta arte e sensibilidade à sua pena. Ainda que tivesse surgido em Gandembel, nos finais de outubro/princípios de novembro [de 1968], e num período em que se vivia já numa situação de mais alívio, teve a ajuda de um dos pioneiros da Companhia, um ex-furriel que ao tempo já era professor primário"... Falta-nos, a ele, Idálio, revelar o nome do segundo autor, o furriel da CCAÇ 2317 que já na altura era professor primário... (LG)


Canto IV

I
Deixando Buba, enfim, do doce rio
E tomando a mala já arrumada
Fizemos desta terra certo desvio.
E para evitar qualquer cilada
O Dakota tomámos, suave e frio,
Fazendo boa viagem e descansada:
Melhor é fazer uma viagem de avião
Que andar a pé de arma na mão.
II
Gabú se chama a terra aonde o trato
De melhor alimento mais florescia
De que tinha proveito grande e grato
O soldado que esse reino possuía.
Daqui à Metrópole, por contrato,
Não falta muito tempo à Companhia.
Por toda a parte um grito se apregoa:
“D´ora a sete meses estamos em Lisboa”.
III
Aqui, sublime, o descanso estava em cima,
Que a nenhuma parte se sustinha;
Daqui o fim da guerra sempre anima
O soldado que Nino, furtado tinha.
Logo após ele leve se sublima
A feliz mudança, que mais azinha
Tomou lugar junto do Batalhão
Mas continuamos a dormir no chão.
IV
Fulas são todos, mas parece
Que com gente melhor comunicavam:
Palavra alguma dele se conhece
Entre a linguagem sua que falavam,
E com pano delgado, que se tece
De algodão, as cabeças apertavam;
Com outro que de várias cores se tinge,
Cada um as vergonhosas partes cinge.
V
Já néscios, já da guerra desistindo
Uma noite, de amor prometida,
Nos aparece de longe o gesto lindo
Da negra Bajuda, única, despida.
Como doidos corremos, de longe abrindo
Os braços para aquela que era vida
Deste corpo, e começámos os olhos belos
A lhe beijar, as faces e os cabelos.
VI
Formosas são algumas e outras feias
Segundo a qualidade for das chagas,
Que o veneno espalhado pelas veias
Curam-no às vezes ásperas triagas.
Ao pescoço e nos braços trazem cadeias
De contas feitas com sábias magas.
Elas, que vão do doce amor vencidas,
Estão a seu conselho oferecidas.
VII
Alguns, por outra parte, vão topar
Com bajudas despidas que se lavam;
Elas começam súbito a gritar,
Como que assalto tal não esperavam.
Umas, fingindo menos estimar
A vergonha que a força, se lançavam
Nuas por entre o mato, aos olhos dando
O que às mãos cobiçosas vão negando.
VIII
Todas de correr cansam, bajuda pura,
Rendendo-se à vontade do inimigo;
Tu de mim foges para a mata escura?
Quem te disse que eu era o que te digo?
Deixa-me ir contigo nesta aventura
E no capim vem sentar-te comigo.
Já que desta vida te concedo a palma
Espera um corpo de quem levas a alma.
IX
Já não foge a bela bajuda tanto,
Por se dar cara ao triste que a seguia,
Como por ir ouvindo o doce canto,
As namoradas mágoas que dizia.
Volvendo o rosto já sereno e santo,
Toda banhada em riso e alegria,
Cair se deixa aos pés do vencedor,
Que todo se desfaz em puro amor.
X
Oh! Que famintos beijinhos na testa,
E que mimoso choro que suava!
Que afagos tão suaves, que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã e na sesta,
Que amor com prazeres inflamava,
Melhor é experimentá-lo que julgá-lo;
Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo.
XI
Ao fim de tanto amor e falsas guerras
Finalmente chegou a hora desejada;
Das gentes nos despedimos e destas terras
Com furiosos gritos e alegria desusada,
Por voltarmos às metropolitanas serras,
Pois temos a comissão terminada.
Não se indigne o herói nem a Pátria querida
Que por seu nome, aqui muitos deram a VIDA.




Guiné > Região de Gabu > Cansissé > CCAÇ 2317 (Gandembel, Ponte Balana, Buba e Nova Lamego, 1968/69) > Julho de 1969 > Foto do álbum de Idálio Reis: "Foi na fonte de Semba Uala, que os nossos corpos se retemperaram de energias abaladas. Também, com exasperados desejos, se buscavam encontros de encantos (...)  Junto à parte oriental da povoação, situava-se a fonte de Cam-Sissé (Semba Uala), com data de construção de 1959. Era conhecida vulgarmente pela Fonte dos Fulas. (...)" (****)

 Foto (e legenda): © Idálio Reis (2006) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.

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Notas do editor:


(*) Vd. último poste da série > 12 de abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9735: O Cancioneiro de Gandembel (6): Do Hino de Gandembel ao poema épico Os Gandembéis (Parte VI) (Idálio Reis)


(**) 10 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2172: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/69) (Idálio Reis) (11): Em Buba e depois no Gabu, fomos gente feliz... sem lágrimas (Fim) 

(...) Vd. postes anteriores desta série (Fotobiografia da CCAÇ 2317):

16 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1530: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (1): Aclimatização: Bissau, Olossato e Mansabá.

(...) A CCAÇ 2317 chega a Bissau a 24 de Janeiro de 1968. Uma aclimatação de 2 meses, o quanto bastou para enveredar por um sinuoso rumo, a uma fatídica zona do Sul da Província. Aí, num local estranho da região do Forreá e apenas no efémero prazo de 11 meses, houve lugar às facetas mais pérfidas da guerra, em que do mito e do mistério sobrou só o nome: Gandembel/Ponte Balana (...).

9 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1576: Fotobiografia da CAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (2): os heróis também têm medo

(...) Após o Treino Operacional, a Companhia segue rumo ao Sul da Província. Poucos dias em Guileje, para então nos coagirem a ir para as cercanias do "corredor da morte", a fim de se construir de raiz, um posto militar fixo, em Gandembel e Ponte Balana Em Guileje, a guerra não se fez esperar, e dolosamente começou a insinuar as suas facetas mais pérfidas, com as ocultas ciladas montadas na vastidão dos nossos olhares e a espreitarem o horror a todo o instante (...).

12 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1654: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (3): De pá e pica, construindo Gandembel.

(...) Em Gandembel, vinga a insensatez, a obrigarem-nos a penar um inextinguível tempo de arrastados sacrifícios. Do período mediado entre o início da construção do aquartelamento e a chegada da energia eléctrica, a 9 de Maio (...) O dia 8 de Abril de 1968 alvoreceu para um conjunto de homens inquietamente sós, desunidos de um futuro confiante, porque, por mais que se procurasse predizer, não lhes era possível reconhecer se se podia atingir. Um imenso manto de silêncio ali estava especado, com secretas sombras negras a envolver-nos (...).

2 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1723: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (4): A epopeia dos homens-toupeiras.

(...) Instalação e início da construção do aquartelamento de Gandembel. Ilustração fotográfica: Incluí o período de tempo entre 8 de Abril de 1968 - partida de Guileje para Gandembel e início da construção do aquartelamento de Gandembel - e a chegada da energia eléctrica, a 9 de Maio de 1968 (...).

9 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1743: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (Idálio Reis) (5): A gesta heróica dos construtores de abrigos-toupeira em Gandembel.

(...) Instalação e início da construção do aquartelamento de Gandembel (continuação) > Ilustração fotográfica: Incluí o período de tempo entre 8 de Abril de 1968 - partida de Guileje para Gandembel e início da construção do aquartelamento de Gandembel - e chegada da energia eléctrica, a 9 de Maio de 1968 (...).

23 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1779: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (6): Maio de 1968, Spínola em Gandembel, a terra dos homens de nervos de aço.

(...) A generosidade de um punhado de gente jovem, onde os ecos dos seus ais de desespero e dor, não ressoavam para além da região do Forreá. Gandembel/Ponte Balana, de 9 de Maio a 4 de Agosto. (...) A época plena das chuvas aproximava-se, começava a fazer surtir os seus benéficos efeitos, o que para nós incidia muito especificamente na água que o rio Balana pudesse debitar. Este, logo que retomasse alguma capacidade de vazão, significaria que a tão ansiada água já abundaria, e as restrições ao consumo que tinham prevalecido até então, evolavam-se no tempo (...).

21 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1864: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (7): do ataque aterrador de 15 de Julho de 1968 ao Fiat G-91 abatido a 28.

(...) Os ataques e flagelações mantinham-se a um ritmo praticamente diário, a que nos íamos habituando, pois que a generalidade das detonações era resultado da acção de morteiros 82, e a maioria das granadas continuava a deflagrar na periferia. Os morteiros ainda não estariam devidamente assestados, e tornava-se necessário e urgente ter que acabar as obras do aquartelamento, com condições mínimas de segurança (...).

8 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1935: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (8): Pára-quedistas em Gandembel massacram bigrupo do PAIGC, em Set 1968.

(...) Uma longa vida em Gandembel suspensa da decisão do Comandante-Chefe. E ante tantas adversidades, num ápice tudo se esfuma da forma mais indigna: o abandono. Gandembel/Ponte Balana, de 4 de Agosto às vesperas do Natal de 1968. (...) A catástrofe de 4 de Agosto foi demasiado punitiva e voraz, criando um profundo sentimento de perda. E, atendendo às circunstâncias com que nos deparávamos no quotidiano, reconheci na pungente dor do luto, que a Companhia perdia temperamento e vivacidade, com as vontades a fenecerem. (...) A deslocalização de um permanente efectivo de pára-quedistas foi fundamental para o surgimento de uma fase de muita maior tranquilidade, que resultou numa acentuada diminuição belicista por parte do PAIGC (...).

19 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1971: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (9): Janeiro de 1969, o abandono de Gandembel/Balana ao fim de 372 ataques

(...) Seria uma lembrança do Natal, que se aproximava? Não o foi, pois que até lá não recordo qualquer confronto, mínimo que seja. Pelo Natal, dada a solenidade do dia, chegam 2 helicópteros: um trazendo o bispo de Madarsuma, vigário castrense das Forças Armadas e um repórter do extinto Diário Popular, de nome César da Silva; outro, com Spínola e elementos do Movimento Nacional Feminino. (...) À alvorada do dia 28 [de Janeiro de 1969], o armamento pesado é desactivado, a bandeira nacional é arriada, o gerador é colocado num Unimog, e eis que partimos em definitivo de Gandembel, passámos por Ponte Balana (ali ao lado) a buscar o grupo que aí estava e seguimos para Aldeia Formosa. (...)

18 de Setembro de 2007>Guiné 63/74 - P2117: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (10): O terror das colunas no corredor da morte (Gandembel, Guileje)

(...) As colunas de reabastecimento para Gandembel / Ponte Balana. Tanta ousadia cerceada no passo incerto, e a folha fustigada pelo sopro de um fornilho, já não encontra outro sítio para cair, senão em corpos dilacerados (...).

(...) As colunas de reabastecimento que se contextualizam com Gandembel, ficaram gravadas nos caminhos do desalento, do pesadelo e horror. E por isso, procuravam protelar-se até soar o grito da clemência, pois os bens essenciais estavam a esgotar-se, e o espectro da fome, em forma de um tipo de alimentação quase intragável, pairou algumas vezes em Gandembel.E esta desapiedada e frustrante sensação de um forçado isolamento, também contribuiu em muito para o alquebramento das forças físicas e morais, tão vitais para ousar enfrentar com denodo as vicissitudes que se nos deparavam quotidianamente.

(...) Restar-me-á apenas tentar alinhavar o último capítulo, que se prende com a permanência da Companhia em Buba, e que se prolongou até 14 de Maio de 1969 (...).


(***) Sobre o nosso camarada João [Paiva Rodrigues] Barge (Aveiro, 2/4/1944-Leiria, 5/12/2010) sabíamos pouco:




(i) Aveirense de nascimento, já tinha publicado em 1964 o livro de poesia "Para lá do teu silêncio" (Aveiro, Livraria Borges, 54 pp).


(ii) Foi professor efetivo da Esc Sec Francisco Rodrigues Lobo, em Leiria;


(iii) Foi também docente, da área de Ciências Sociais, na Escola Superior de Educação / Instituto Politécnico de Leiria;


(iv) Vi algures por aí também um outro título, de poesia, "A Gramática do Sossego" (desconheço o ano de edição, e a editora);


(v) É autor de "Registos", juntamente com Miguel Homem e Orlando Cardoso (Leiria, Gato Preto, 1981).

Vd. também poste de 7/12/2010, P7399 [ Guiné 63/74 - P7399: In Memoriam (66): A morte dolorosa de um dos últimos homens a chegar a Gandembel, o ex-Alf Mil João Barge (1944-2010)]
(****) Vd. postes sobre a estadia do grupo de combate do Idálio Reis, em Cansissé, no Gabu:


12 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P953: Cansissé, terra de encantos mil (Parte I) (Idálio R
2317, Julho de 1969)

2 de agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1016: Cansissé, terra de mil encantos (Parte III) (Idálio Reis, CCAÇ 2317, Julho de 1969) 

Guiné 63/74 - P9753: O Nosso Livro de Visitas (132): Não se preocupem se não der notícias - só estamos sem eletricidade porque o gasóleo acabou! (Anabela Pires, Iemberém, Cantanhez)

1. Mensagem da nossa amiga Anabela Pires [, foto à direita]::

De: Anabela Pires &
anasgp@gmail.com>

Data: 16 de Abril de 2012 08:14

Assunto: Não se preocupem se não der notícias - só estamos sem eletricidade porque o gasóleo acabou!

Para: Família, amigos(as), ex-colegas, ex-vizinhos:


Olá, a todos! É só para dizer que se receberem menos notícias minhas não estranhem nem se ponham a imaginar coisas ruins!

Acabou-se o gasóleo que sustenta as nossas 4 horas de luz por dia e a água no depósito! Portanto, estamos novamente sem luz e sem água nas torneiras (aqui em casa tenho 2 no WC o que é muito bom). Isto significa que é mais difícil recarregar a bateria do computador. A minha amiga francesa que mora a 3 km e tem painel solar leva-me o PC e põe-o a carregar mas tudo isto demora mais tempo e posso estar por isso mais "ausente".


Como alternativa posso comprar uns litros de gasolina e pedir à Satu que ligue o gerador do restaurante para carregar os aparelhos. Mas o dinheiro também se acabou - está em Bissau à espera de transporte para cá chegar. Não sei quando vem o carro, era para ter vindo na 6ª feira, mas com os problemas em Bissau ..... aguardamos. Bem, esta do dinheiro é um bocadinho brincadeira pois a Satu certamente me emprestará dinheiro se eu precisar!

Eu estou bem. Ontem fui nadar na Ria (aqui chamada Rio) ladeada pelos mangais! Abençoados sapatos de windsurf que a Leninha me deu para ir aos lingueirões na Ria de Faro! Sem eles não poderia andar aqui nesta ria que tem o fundo todo de lodo. A água estava tão quente que nem deu para refrescar! Era preciso nadar mais para o meio para apanhar água fresca mas a corrente tinha alguma força e não podia arriscar muito. A piada é que os 2 jovens que estavam comigo, quando iam mais para o meio queixavam-se da água fria! Não há dúvida, tudo depende daquilo a que os nossos corpos estão habituados.

Bem, já disse umas larachas (isto escreve-se assim?) e agora vou deixar-vos.

Beijos e abraços para todos


Anabela

2. Comentário do editor:

A nossa tabanqueira Anabela  (uma "mulher de armas", no dizer do seu amigo JERO) já nos tinha dito que estava bem, que em Iemberém, a seis horas de carro de Bissau, estava tudo "supercalmo". Há coisa de uma semana atrás, estive a ler, por alto uma cópia do diário que ele está a escrever desde que chegou a Iemberém, e mandei-lhe a seguinte mensagem, a 10 do corrente:  "Parabéns pelo sucesso da tua adaptação em terras da Guiné e de Tombali. Já dei uma vista de olhos pelo teu diário. Belíssimos apontamentos, grande capacidade de observação, notável sendibilidade sociocultural... Talento literário não te falta... Vamos ter livro... Não queres mandar alguns excertos para o blogue, eventualmente expurgados de referências mais pessoais ou íntimas ?... Há malta, muita malta, que conhece a região, do tempo da guerra e da paz... e que tem colaborado com a AD... Podia abrir uma série para ti... Pensa nisso.  Boa continuação, muita saúde. Um Alfa Bravo (ABraço). Luis".

PS - No sítio da AD - Acção para o Desenvolvimento, ver aqui uma reportagem do primeiro dia de trabalho da Anabela, em janeiro passado, na tabanca de Catesse.
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Nota do editor:

28 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9673: O Nosso Livro de Visitas (131) ): Antonio Vaz, 75 anos, lisboeta, ex-cap mil, CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69: A Tabanca Grande é um fenómeno sem paralelo, que me deixa abismado e surpreendido

Guiné 63/74 - P9752: Notas de leitura (352): "Pátria Porque Nos Abandonas? - Sofrimentos de Uma Guerra", de Lino de Freitas Fraga (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 6 de Março de 2012:

Queridos amigos,
As imagens do nosso blogue polvilham-se nestas páginas em que um lutador de direitos entrevista veteranos e colhe o relato das suas vivências. Perpassa nestas páginas a tenacidade e o orgulho muito próprio dos açorianos, há aqui a incompreensão de muita gente pela falta de apoios a quem sofre e não tem recursos para promover, com dignidade, a qualidade de vida. Há relatos de partidas e chegadas, vidas interrompidas, o calvário dos hospitais.
Um combatente condecorado, na sua humildade, refugia-se no sentimento do coletivo da sua tropa.
Nos Açores é assim.

Um abraço do
Mário


Pátria, porque nos abandonas? 

Beja Santos

Um antigo combatente, nado e criado no extremo de Portugal (Ilha do Corvo) deitou-se à obra de entrevistar veteranos de guerra, açorianos, publicou essas peças em dois jornais e depois vazou-as em volume. Assume-se como um homem de causas, está presentemente polarizado pela dignificação dos combatentes, pela trasladação dos restos mortais de um outro corvino e pela criação de uma delegação da Associação dos Veteranos de Guerra. “Pátria porque nos abandonas?, Sofrimentos de uma guerra”, por Lino de Freitas Fraga, Publiçor Editores, 2012.

O móbil da escrita de Lino Fraga não é escrever histórias da guerra mas sim o de captar experiências e sofrimentos dos antigos combatentes e das suas famílias. A saudade do açoriano tem um corpo próprio, uma densidade específica, houve mesmo quem lhe tivesse desabafado: “As saudades eram tantas que me queimavam o peito, por vezes quase não aguentava, cheguei a pensar em suicidar-me, com um tiro na cabeça”. Vamos passar em revista o que depuseram os combatentes da Guiné.

Jaime Moniz de Andrade partiu para a Guiné em Setembro de 1970, tirou o IAO no Cumeré e seguiu para a região de Bula, teve uma comissão muito dura. Nunca esqueceu a despedida da família e da noiva. Quando regressou em 1972 nunca mais foi o mesmo, sofre de ansiedade e pânico, foge dos ajuntamentos e é muito sensível aos estrondos. Sofre presentemente de uma neurose ansiosa crónica. Deplora a falta de apoios e de uma maior compreensão para esta calamidade do stresse de guerra. Na Guiné tocava viola para alegrar os colegas, hoje continua a tocar nas cerimónias religiosas.

Dionísio de Almeida Ferreira foi mobilizado na especialidade de condutor, em Setembro de 1970 partiu para a Guiné. Dionísio esteve envolvido nalgumas refregas, é uma pessoa bem-disposta, um extrovertido. Quando foi mobilizado, não disse nada aos pais, só informou a noiva e uma irmã. No dia do embarque partiu à socapa. Na doca, já dentro do navio, teve a grande surpresa de avistar a irmã e a noiva. Não se conteve, desceu a correr o portaló e despediu-se dos entes queridos. Nunca esqueceu este momento. É um excelente músico, toca às quintas-feiras num lar e aos domingos numa igreja.

Úrano Calisto das Neves fez recruta no Alfeite, tirou a especialidade de radiotelegrafista. Nasceu em Valença do Minho, gostou dos Açores, aqui lançou a âncora. Foi mobilizado para a Guiné em 1965 e foi colocado na Rádio Naval de Bissau. Participou em operações de fiscalização em lanchas e viveu vários confrontos com o inimigo. Chegou a ser ferido sem gravidade no rio Corubal. Nunca esqueceu o dia 30 de Março de 1966, andava numa lancha no rio Cacine, foi violentamente atacado e durante o combate o comandante de fragata deu-lhe ordem para pedir apoio aéreo e colega de Bissau mandou-lhe a seguinte mensagem: “Já nasceu a tua filha”. Calisto sofre de pesadelos e emociona-se facilmente, anda medicado pelo médico de família. Também deplora a falta de apoios aos antigos combatentes.

Gilberto de Sousa (ou Gilberto de São Roque) foi para a Guiné em Fevereiro de 1969, seguiu para Bigene. O dia mais negro da sua vida foi 2 de Agosto de 1969, em plena noite participou numa patrulha de reconhecimento. “Quando já estava tudo pronto para sair, abateu-se uma forte tempestade e é precisamente no momento de um forte relâmpago que se dá o rebentamento da granada que estava na bazuca que eu tinha na minha mão”. Os danos foram terríveis, um morto e dez feridos, e entre eles o Gilberto, que ficou sem as duas pernas. E começava assim o calvário de um jovem 21 anos, casado e com um filho de 7 meses. Colocou as próteses na Alemanha, mas nunca se adaptou. Já teve três AVCs e têm-lhe sido retirados apoios na assistência médica e medicamentosa.

Filipe Cordeiro, do Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas, é veterano da guerra da Guiné. Foi mobilizado para a Guiné em 1972 como furriel miliciano com o curso de operações especiais. Viu muita desgraça à sua volta, em Tite e Nova Sintra. Ficou ferido numa flagelação em 5 de Setembro de 1972 em Nova Sintra e foi submetido a intervenção cirúrgica para lhe retirarem vários estilhaços. Regressou aos Açores depois do 25 de Abril. É hoje um sindicalista bem-disposto e considera que ultrapassou os traumas da guerra.

José Francisco da Silva Dias tirou o curso de operações especiais e o curso de minas e armadilhas e foi mobilizado para a Guiné como furriel miliciano no início de 1967, partiu para Bula, a seguir esteve em Bambadinca e fez operações no Leste. Depois, por motivos disciplinares, foi transferido para Catió e mais tarde para Buba, Guilege e Gadamael, experimentou o duro, nunca mais esqueceu aqueles jovens a morrerem e a chamarem pelas mães e pelas noivas. Também nunca mais esqueceu uma operação de abastecimento a Madina de Boé, encontraram a guarnição física e psicologicamente arrasada.

Tiago Luís Macedo Melo partiu para a Guiné em Agosto de 1970, mais tarde, após o IAO, foi para a zona de Mansoa. Durante um patrulhamento uma granada rebentou no meio do grupo e o Tiago ficou sem as pernas. Pediu para o matarem, os camaradas não consentiram. “Os momentos mais violentos, mais tristes e dolorosos foram quando voltei sem as pernas e vi a minha noiva no aeroporto e depois a chegada a casa”. E relata, sempre emocionado: “Quando cheguei aqui à freguesia e o meu pai me viu sair do táxi correu para mim e queria pegar-me ao colo, lavado em lágrimas”. Em Dezembro de 2008 teve um AVC e ficou paralisado do lado esquerdo. E não esconde o seu desânimo: “Eu deixei tudo, o amor da minha vida, meus pais, irmãos, amigos, a minha terra e partes do meu corpo e do meu sangue nos matos da Guiné para honrar e defender a minha Pátria. É muito triste, agora que eu necessito de ajuda, a minha Pátria me vire as costas”.

Moisés Pereira da Luz teve uma história igual à do Tiago Macedo Melo, no referido rebentamento ficou muito estilhaçado, foi operado no Hospital de Bissau e depois transferido para o anexo de Campolide onde esteve internado 21 meses. Tem hoje uma mão imobilizada. Nunca esquece a visita que a irmã lhe fez em Lisboa, custou-lhe enfrentá-la naquele estado. Acho que recuperou psicologicamente graças ao apoio da família.

Frédy, nome fictício, foi um dos participantes na operação “Mar Verde”. Em Fevereiro de 1970 tirou o Curso de Oficial da Reserva Naval, no Alfeite, foi colocado na Escola de Fuzileiros onde tirou a especialidade de Fuzileiro Especial. Mobilizado para a Guiné, seguiu para as ilhas de Bolama e Soga, foi aqui que decorreu a preparação, em total secretismo, da invasão de Conacri. Descreve a operação e mais adiante relatou outros momentos marcantes, nessas emboscadas e nesses combates viu morrer camaradas a seu lado.

E, por último, Gil de Frias Sousa, tirou o Curso de Sargentos Milicianos e foi transferido para o Curso de Oficiais Milicianos, seguiu para a Guiné em Janeiro de 1966, foi destacado para a proteção aos trabalhos da estrada entre Mansoa e Mansabá. Mais tarde foi com a sua companhia para Teixeira Pinto. Numa operação o alferes Frias de Sousa lançou-se em perseguição do inimigo e apreendeu material de guerra. Foi-lhe atribuída uma Cruz de Guerra. O momento triste da sua vida foi quando se despediu dos seus camaradas e amigos que durante mais de dois anos tinham sido a sua família.

Fica aqui o registo das conversas que Lino Fraga teve com combatente da Guiné, em todos estes textos sente-se o seu tem de protesto pelo abandono a que estão votados os veteranos de saúde precária.

O nosso blogue imiscui-se neste livro do princípio ao fim, há ali fotografias nossas e o meu querido amigo Humberto Reis tem honras de primeira página. E está lá também a rampa de Bambadinca, a maior rampa da minha vida.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9750: Notas de leitura (351): "Adeus até ao meu regresso", de Mário Beja Santos: "um invulgar e dificilmente classificável livro" (Carlos Matos Gomes)

Guiné 63/74 - P9751: FAP (67): Os meus STRELAs. Factos e opiniões. (António Martins Matos)

1. O nosso Camarada António Martins de Matos (ex-Ten Pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74, hoje Ten Gen Pilav Res), enviou-nos em 5 de Abril a seguinte mensagem. 

Caros amigos 

A revista Mais Alto publicou nos seus números 392 e 393 dois artigos sobre os mísseis STRELA na Guiné e Moçambique. 

Por saber que dentro de 50 ou 100 anos esses textos serão tidos pelos “historiadores” da época como a “verdade” do que efectivamente aconteceu (ou não fossem eles publicados em revista oficial) e porque esses textos contêm falhas, lacunas, omissões, testemunhos de quem nem sequer passou pela Guiné, ou tendo por lá passado não esteve minimamente envolvido no tema, apenas repetindo o que ouviu contar..., por tudo isto.... resolvi escrever o que vivi desde o seu aparecimento em 20MAR73 até 10FEV74, data em que regressei à Metrópole (era assim que então chamávamos a este cantinho à beira mar plantado). 

Refiro apenas o que aconteceu “in loco” durante o período, quanto a dados referentes a decisões de Estado Maior em Lisboa, não confirmo nem desminto, não estava lá para saber o que discutiram ou decidiram, se é que decidiram alguma coisa, já que nunca tivemos qualquer informação do que se passaria nas altas esferas. 

Alguns dos acontecimentos já serão do conhecimento público, inclusive descritos nesta tertúlia, outros nunca terão sido revelados, as minhas desculpas se repito algo que já foi dito é apenas para encandear os acontecimentos numa sequência lógica. 

Um último reparo, em devido tempo e por não concordar com o que foi publicado, escrevi (por duas vezes) ao Director da revista Mais Alto, referindo as falhas do artigo e oferecendo-me para dar a minha modesta contribuição no sentido de dar um maior rigor ao documento... 

Não obtive qualquer reposta, pequenina que fosse. 


Os meus STRELAs 
Factos e opiniões 

No início de 1973 havia alguns rumores que a guerra se iria intensificar, que o PAIGC iria passar a dispor de armas mais sofisticadas, entre elas mísseis terra-ar,…. tão só informações semelhantes a tantas outras, nada de palpável que justificasse pela parte da Força Aérea (FAP) uma conduta diferente do até aí exercido. 

A FAP voava em todo o território da Guiné sem qualquer restrição, passávamos horas a sobrevoar o que “outros” chamavam de “áreas libertadas”, em busca de alvos camuflados debaixo do arvoredo, em voos a baixa altitude e baixa velocidade e, apesar de estarmos ao alcance de qualquer arma ligeira, sempre sem sermos incomodados. 

Ao contrário do apregoado por alguns nossos amigos, não havia (nunca houve) qualquer tabanca libertada e visível do ar, a pouca população controlada pelo PAIGC limitava-se a viver escondida na mata, algumas áreas cultivadas eram o único vestígio da sua presença. 

A área que me tinha sido atribuída para patrulhamento e identificação de eventuais alvos era a zona norte da Guiné, fiz inúmeros voos de DO-27 sobre o Morés e a Caboiana, às voltas e mais voltas à procura das tais “áreas libertadas”, nunca tive qualquer problema. 

A pergunta que desde logo se impõe..., se chegávamos a voar a cerca de 50 metros da copa das árvores, porque razão não nos alvejavam? 

Tínhamos uma regra que, pelos vistos, o PAIGC acatava, se disparassem um tiro contra uma aeronave não demorava mais de vinte minutos até essa área ser completamente bombardeada. 

Era assim em toda a Guiné, fosse no Choquemone, Morés, Caboiana ou Cantanhês. 

A 20Março73 uma parelha de Fiat G-91 que efectuava o patrulhamento ao longo da fronteira norte foi alvejada por algo que os pilotos (Tcor Brito+Ten Pessoa) não conseguiram identificar, tampouco souberam de onde tinha partido o disparo, apenas um rasto de fumo no ar, o assunto acabou por ser esquecido. 

Dois dias depois o Furriel M, pilotando um DO-27 e com a missão de dar o apoio semanal aos quartéis do sector a norte do rio Cacheu, foi alvejado por algo que identificou como tendo sido um disparo de RPG. 

De imediato informou as Operações da BA-12 do sucedido, tendo estas decidido enviar para o local a parelha de alerta dos Fiat G-91. 

Esta parelha era composta por mim e pelo Ten M, os nossos aviões armados com foguetes e metralhadoras. 

Chegados ao local e após uma troca de informações via rádio com o piloto do DO-27, logo se tornou evidente que o disparo não podia ter sido de RPG, tinha sido efectuado da orla da mata e, a acreditar no reporte, o projéctil tinha percorrido uma distancia superior a 1000 metros. 

Decidimos ir disparando alguns foguetes e metralhadoras ao longo dessa orla de mata e na direcção Norte até que, junto da fronteira, fomos subitamente surpreendidos por reacção inimiga com dois disparos bem diferentes dos habituais, dois traços de fumo branco acabaram por passar perto dos nossos aviões. 

Com as munições entretanto esgotadas mas sentindo que havia necessidade de uma maior reacção, solicitámos que Bissau enviasse ao local uma segunda parelha de Fiat´s. 

Apenas um avião acabou por chegar em reforço, pilotado pelo Cap PF. 

Este piloto fez alguns disparos na direcção por nós indicada até que, quando efectuava a recuperação de um passe de metralhamento, nos apercebemos de um novo disparo, algo descrevia uma trajectória em direcção ao Fiat G-91. 

Tornou-se desde logo evidente que o “projéctil” tinha uma trajectória curva, como se procurasse perseguir o avião, só não embatendo na aeronave pela manobra de recurso in extremis efectuada pelo piloto. 

Ainda assim e como fosse sentido um estremecimento fora do normal, o piloto ficou com a ideia de ter sido atingido, regressando a Bissau com a maior das cautelas. 

Já aterrado verificou-se não ter havido qualquer estrago, concluímos que o estremecimento da aeronave teria sido provocado pela velocidade e respectiva “onda de choque” do foguete. 

Desta missão concluímos dois dados de alguma importância, o projéctil seguia em busca do alvo, corrigindo a sua trajectória no ar e a sua velocidade era superior à do som. 

Este terá sido o momento em que, a serem aceites as informações dos pilotos e recordando os rumores de que novo armamento do PAIGC estaria a chegar, tudo poderia ter sido diferente. 

Infelizmente as chefias da altura não aceitaram estas conclusões, insistindo na teoria absurda de um simples “foguete”, um RPG mais potente, com maior alcance mas sem ser direccionável. 

Em 25Março73 o Ten Pessoa foi abatido nas imediações do Guileje. (G-91 nº5413) 

A guerra tinha-se intensificado e era evidente que o apoio aos quartéis com metralhadoras e foguetes já não surtia o efeito desejado, necessitávamos de uma melhoria imediata no armamento, nada de exorbitante, apenas a substituição das metralhadoras 12,7 por canhões de 20 ou30milímetros. 
Enquanto os nossos requisitos não eram atendidos tínhamos encontrado uma solução à portuguesa, os dois pilotos de alerta passavam a dispor de quatro aviões preparados para saírem em 10 minutos, dois na versão normal, foguetes e depósitos de combustível nas asas, e dois em que os depósitos exteriores de combustível e os foguetes eram substituídos por bombas, reduzia-se o tempo em voo de 1:30 para :50 minutos mas aumentava-se o poder de fogo. 

Esses quatro aviões estavam sempre completamente inspeccionados, armados e prontos a descolar, os mecânicos tinham-nos preparado, o piloto só tinha que entrar e pôr em marcha. 

Desta maneira, em função da ameaça esperada e partindo do pressuposto de que o pedido era claro e preciso, os pilotos escolhiam quais os aviões a voar, com a configuração mais adequada.
Em casos omissos ou pouco claros, um dos pilotos seguia no avião com maior autonomia, avaliava a situação e, via rádio, dizia qual o tipo de aeronave que o segundo piloto deveria utilizar. 

O segundo avião chegava à área cerca de 10 minutos depois e podia largar de imediato o seu armamento, a sua menor autonomia era compensada pelo facto de todas as ambiguidades terem entretanto sido resolvidas pelo seu parceiro. 

Naquele dia o pedido do Guileje não era claro, apenas referiam que tinham sido alvejados, não se sabia de onde, nem com que arma, descolou um piloto no avião de maior autonomia, o outro ficou a aguardar para saber qual o avião utilizar. 

À chegada ao Guileje o primeiro piloto contactou o quartel mas nunca chegou a transmitir para Bissalanca o resultado da sua avaliação. 

De inicio ficou a dúvida se o avião se teria despenhado devido a uma eventual avaria ou se teria sido abatido, já que se sabia da existência de antiaéreas posicionadas no território vizinho, mesmo junto à fronteira. 

Durante o resto do dia foram feitos vários voos na região, não houve qualquer reacção IN, a localizaçãodo do piloto ocorreu já ao fim da tarde, razão pela qual a operação de resgate só veio a acontecer na manhã seguinte. 

No dia seguinte aconteceu um facto curioso, uma parelha de T-6 (Furriéis M e F) que patrulhavam a área mais a norte viu-se de repente alvo de alguns disparos da “tal arma”, os disparos feitos de frente para as aeronaves. 

Não intimidado com estes disparos, o Fur F largou todos os seus foguetes no local de onde tinham partido os disparos inimigos, causando eventualmente as primeiras baixas nas equipas Strela. 

Um dos dados que referiu à posteriori foi que “o foguete” era de cor vermelha! 

Em 28Março73 foi abatido o Tcor Almeida Brito (G-91 nº5419) 

Tendo sido recebida a informação de que Nino Vieira se estaria a deslocar numa picada junto à fronteira Sul, foi a razão para a saída imediata de uma parelha de Fiat G-91 (Tcor Brito+Cap PF). 

Os aviões percorreram em voo baixo a referida picada, nada encontraram, regressaram pelo mesmo percurso, o número 1 foi abatido, o seu avião explodiu em pleno voo, um segundo disparo em direcção ao número 2 falhou o alvo. 

Mais tarde concluiu-se que a “arma” teria sido disparada por detrás e teria entrado no escape do avião, mais dois dados a juntar à informação sobre a nova arma, ... precisão e velocidade. 

Escusado será relembrar que a morte do Tcor Brito, foi um rude golpe no moral dos pilotos, para além de ser o piloto mais experiente na Guiné, era igualmente o nosso Comandante. 

Outro factor que nos afectou negativamente foi a decisão de não se tentar recuperar o seu corpo, os pára-quedistas estavam desde logo prontos a seguir para a zona mas, como o General Spínola de momento não estava em Bissau (estaria em Bolama) , o Brigadeiro que o substituía limitou-se a dizer “aguardemos pela chegada do nosso General”. 

Tal decisão valeu-lhe uns “mimos” em português vernáculo proferidos pelos presentes, a excelência corou mas não reagiu, nada se alterou. 

Quando mais tarde o Gen Spínola chegou à base e perguntou porque não se tinha saído para a missão já era demasiado tarde, a noite a chegar. 

Na manhã seguinte aconteceu algo inexplicável, foi decidido nada decidir, assim o corpo do Tcor Brito ficou uns vinte anos abandonado nas matas da Guiné. 

Um mau exemplo destruidor do moral dos presentes estava ali, para quem quisesse ver, se não se recuperava o corpo de um Tenente Coronel, Comandante do Grupo Operacional, muito menos vontade haveria para eventualmente recuperar o dos Tenentes, Alferes, Furriéis, ...

Entretanto continuávamos a tentar descobrir que arma era aquela, várias reuniões tiveram lugar a fim de se tentar compilar a informação até aí encontrada e que era escassa: 

Supersónico, alcance 1000 metros, pintado de vermelho. 

A grande dúvida continuava a ser o descobrir se o foguete era dirigível ou não, os pilotos a dizerem que sim, as chefias que não. 

Alguém estabeleceu a primeira “directiva”, passam a voar acima de 1000 metros, nessa altitude não há qualquer problema. 

Dito e feito. 

Em 06Abril73 foram abatidos o Fur Baltazar e o Maj Mantovani, tendo igualmente desaparecido o Fur. Carvalho. 

Não se soube como o Fur Baltazar foi atingido, transportava alguns passageiros, o seu avião já foi encontrado destruído no meio da mata. 

No caso do Fur Carvalho tampouco se soube se foi abatido, crê-se que sim, mas o seu avião nunca foi encontrado, com ele desapareceram igualmente os seus passageiros. 

Já o Maj Mantovani foi abatido à vista de todos, voava entre Bigene e Guidage e acima dos 1000 metros na suposta área de segurança, um “foguete” saiu da mata, apontou ao seu avião, rapidamente percorreu mais de 2000 metros e fê-lo explodir. 

Nessa tarde os pára-quedistas trouxeram o que era suposto ser os restos do disparo de um “foguete”. 

Não foi preciso muito para que as explicações das chefias caíssem por terra, estava ali à vista de todos que as alhetas dianteiras do “foguete” tinham movimento, mexiam!!!!!! 

Agora já não havia dúvidas, a arma era um míssil com sistema de direcção autónomo. 

No dia seguinte ocorreram vários acontecimentos dignos de realce: 

- Um piloto de Fiat G-91 recusou-se a voltar a voar. 

Esta recusa associada às recentes baixas tornaram a situação alarmante, restavam apenas 5 pilotos de G-91 disponíveis, 2 Coronéis (os Comandantes da Zona Aérea e da Base), 1 Major (Oficial de Operações, 1 Capitão (Comandante de Esquadra) e 1 Tenente. 

- Um piloto de AL-III arranjou uma maneira simples de acabar a sua comissão de serviço, dando um tiro numa perna. 

- Alguns pilotos recusaram-se a voar enquanto não lhes fosse explicado que arma era aquela.

Estavam os acontecimentos neste estado quando de súbito e sem que ninguém o esperasse, apareceu nas Operações do GO-121 um documento de origem americana com a T.O (Technical Order) do míssil soviético SA-7 GRAIL, designado com o código NATO de “STRELA”. 

Pelo documento constatamos que esta arma tinha sido introduzida há pouco tempo na guerra do Vietnam, as forças americanas tinham sofrido inúmeras baixas enquanto não tinham identificado o míssil, o documento continha todas as informações necessárias para o seu estudo e como se deveriam estabelecer as respectivas medidas de protecção. 

Das suas características sobressaía o alcance, 3,5 quilómetros, a altitude em que era efectivo, de 15 a 1.500 metros, velocidade 1,4 superior à do som e sistema autónomo de guiamento por infravermelhos. 

Não acredito em milagres, mas que os há... há. 

Não havendo nessa época internet ou fax, ainda hoje passados que são 39 anos não consigo perceber como o documento apareceu assim, de repente e do nada, não sendo milagre a única explicação é ter estado na gaveta de alguém a “marinar”. 

Foi preciso morrerem pilotos, mecânicos, enfermeiros, militares do Exército, para que finalmente soubéssemos que arma nos alvejava e pudéssemos estudar as respectivas contra-medidas. 

Nos dois dias seguintes praticamente não houve voos, estudaram-se as manobras que melhor poderiam proteger as aeronaves. 

Algo sobressaiu de imediato, ao contrário do que tinha sido “decidido” anteriormente, 1000 metros de altitude era precisamente a zona em que as aeronaves estavam mais expostas. 

Chegámos à conclusão que o míssil poderia ter um alcance até 4.000 metros e que tinha de ser disparado com um angulo mínimo de 5 graus em relação ao solo, caso contrários caia aos pés do atirador. 

Possuía duas espoletas, uma de impacto e outra de influência, não era necessário colidir com o alvo para se dar a explosão, bastava-lhe passar perto da aeronave. 

Uma conclusão importante e que não vinha no manual era o facto de não ser pintado de vermelho conforme alguns pilotos tinham referido, a cor vermelha que alguns tinham visto era tão só a chama do foguete propulsor quando visto de topo, ou por outras palavras, quando este vinha ao nosso encontro. 

Logo estabelecemos uma regra de ouro, quem avistasse o fumo branco do seu disparo podia ficar descansado, o míssil não lhe era dirigido, já quem o visse como uma bola vermelha podia estar certo que, se nada fizesse, esse seria o seu dia. 

Compilando todos os dados entretanto adquiridos conseguimos elaborar algumas contra-medidas, a saber: 

1. Nas suas deslocações em zonas suspeitas ou junto às fronteiras, todos os aviões passavam a voar abaixo de 60 ou acima de 3000 metros; 

2. O apoio fogo aos quartéis passava a ser feito com bombas em vez de metralhadoras e foguetes; 

3. Os T-6 terminavam a sua participação na guerra pois dada a sua baixa velocidade não conseguiam furtar-se a um disparo do míssil; 

4. Em função da ameaça, os quartéis da Guiné receberam uma nova classificação de Seguros, Médios e Inseguros; 

5. Quartéis Inseguros eram os situados junto à fronteira e onde houvesse movimentação confirmada do PAIGC, onde uma aeronave pudesse ser alvejada do próprio país vizinho. 

Caíram nesta classificação Guidage, Buruntuma, Guileje e Gadamael. 

6. O apoio logístico a estes quartéis ficava confinado ao quartel Médio mais próximo; 

7. Os quartéis Médios ou Seguros passavam assim a funcionar como o que hoje se designa de HUB Aeronáutico. 

8. Os DO-27 tinham 2 hipóteses, ou voavam abaixo de 60 metros, ou descolavam e subiam à vertical de um quartel Seguro, voavam a 3.000 metros até um outro quartel do mesmo tipo, descendo à sua vertical. 

9. Os AL-III evitavam áreas descampadas ou de grandes bolanhas, já que enquanto estivessem a voar sobre a floresta estariam seguros. 

Na prática todos os pilotos de DO-27 optaram por passar a voar baixo o que, minorando o risco do míssil, trazia um perigo acrescido. 

Foi assim que tivemos aeronaves a baterem em ramos de árvores ou entrarem rios adentro, caso de um ALIII a chegar a Cacine cheio de água, ou a foto do Mais Alto, onde, devido a uma falha de motor (e não de um míssil) uma aeronave DO-27 acabou por amarar perto da ilha do Como. 

Cabe aqui referir um ponto importante e que tem sido usado amiúde para denegrir a FAP ou justificar o injustificável, nunca o General Spínola deu ordem ou a FAP se recusou a ir buscar um ferido grave, fosse onde fosse, imprescindível era o conhecimento de que o ferido era mesmo grave, já que por vezes tal não se verificava. 

Para que conste, deixei algumas vezes de almoçar para ir buscar feridos supostamente graves e que apareciam pelo seu pé, prontos para ir de férias. 

Com as baixas entretanto verificadas (Tcor Brito e Ten Pessoa abatidos e Ten M “doente”), era evidente que os restantes pilotos de Fiat G-91 estavam numa situação delicada, era humanamente impossível manter o ritmo de 3 voos diários, a Esquadra estava reduzida a dois pilotos. 

Alguém em Lisboa decidiu enviar alguns pilotos de reforço a fim de tentar minorar o esforço exigido, esperávamos alguém que já conhecesse a Guiné, posteriormente constou-nos que não haveria voluntários, lá acabou por aparecer um piloto, o Cap BA, conhecia Moçambique mas nunca tinha estado na Guiné, manteve-se connosco cerca de 3 meses, o tempo da FAP se tentar recompor. 

Durante esse verão acabaram por chegar 7 novos pilotos, vinham suprir as baixas entretanto verificadas (3), e os que tinham terminado o seu tempo normal de comissão (2). 

Nesta matemática do deve-haver ficávamos a ganhar, tinham saído 5 pilotos e chegavam 7. 

Só que não foi bem assim, dos 7 recém chegados tivemos de imediato 3 baixas, 1 por “doença inesperada” e 2 por se terem ejectado logo durante as suas missões iniciais (Cap W e C). 

Estas duas ejecções ocorreram ambas durante operações na zona norte, uma sobre o Morés (G-91 nº5416) e outra junto ao Tancroal (G-91 nº5409), mas nada tiveram a ver com os mísseis ou antiaéreas, tão só falhas mecânicas, ambos os pilotos foram recuperados. 

Com a aplicação das contramedidas estudadas e não obstante o PAIGC ter disparado cerca de 60 mísseis, a FAP apenas teve mais um avião abatido, a 31 Janeiro74, (G-91 nº5437) na região de Canquelifá-Copá, tendo o piloto, Ten Gil, sido recuperado na manhã seguinte. 

Estes são os factos ocorridos em terras da Guiné entre Março73 e Fevereiro74. 

Passemos agora às opiniões, como alguém disse, cada um tem a sua. 

No meu entender o míssil Strela influenciou de algum modo a guerra mas não teve o papel determinante que alguns lhe querem dar. 

O seu sucesso limitou-se ao período de incerteza, quando não se sabia qual o tipo de arma com que o PAIGC nos flagelava. 

Após a sua identificação e estudo das respectivas características passou a ser considerado pelos pilotos como uma arma não mais perigosa que uma antiaérea, nada mais, reacção semelhante tinha igualmente acontecido com os pilotos americanos no Vietnam. 

O que na Guiné mudou foi o modo de operar dos Fiat G-91, passaram a voar mais alto, não por receio da ameaça (como é hábito os mais mal informados dizerem) mas sim pela necessidade de ter de se efectuar uma picada acentuada (60º) para a largada do armamento, as bombas daquela época só podiam ser largadas dessa maneira. 

Se por um lado o voar mais alto trouxe algum desalento entre as nossas tropas, já que deixaram de ver os aviões, por outro lado o apoio às mesmas foi altamente melhorado, as bombas de 750 libras eram efectivas num raio de 250 metros. 

Só quem não as ouviu a detonar (às vezes bem perto dos quartéis) podem tentar vender a ideia que o tiro de metralhadoras ou foguetes seria mais eficaz. 

Ao longo de todo o conflito a missão da FAP foi sempre a mesma, o apoio aos quartéis, logístico, sanitário ou de fogo. 

No caso dos apoio-fogo, para os pilotos era sempre imprescindível o conhecimento de quatro variáveis a saber 

- De onde tinha partido o ataque; 

- Com que armas; 

- Há quanto tempo; 

- Se (e onde) havia tropa fora do quartel. 

A partir de Março 73 e face a uma certa desorientação terrestre fomos forçados a ter que alterar a estratégia de operação, passando a contactar menos os quartéis e indo mais ao “estrangeiro”, os ataques a Kumbamori e Kandiafara disso são exemplos. 

Já a estratégia do PAIGC foi sempre a mesma, baseada nos conceitos da guerra de guerrilha de Mao Tse-Toung, a saber: 

- Quando o inimigo avança, nós retiramos! 
- Quando o inimigo faz alto, nós flagelamos! 
- Quando o inimigo tenta evitar a batalha, nós atacamos! 
- Quando o inimigo retira, nós perseguimos! 

Foi assim durante toda a guerra na Guiné. 

Foi assim em Guidage, Guilege, Gadamael, ……. 

Em conclusão: 

Ao fim e ao cabo e por mais voltas que tentem dar para justificar um ou outro lado da contenda, na Guiné nada foi inventado, ... 

Tudo se passou conforme vem descrito nos compêndios da especialidade. 

Abraços 
AMM 
Ten PilAv da BA12
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Nota de MR: 

Vd. último poste desta série em: 

21 DE FEVEREIRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P9513: FAP (66): Buruntuma: lá no cu de Judas... o famoso ataque de 13 horas (em 27/2/1970), as represálias aéreas de Spínola (27 /11/1971 ) e a caça aos MIG imaginários (1973) (António Martins Matos / Luis Borrega / José Matos Dinis)