sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10640: Notas de leitura (427): "África Misteriosa", de Julião Quintinha (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Agosto de 2012:

Queridos amigos,
Julião Quintinha foi premiado no Concurso de Literatura Colonial de 1928. Já publicara “Oiro Africano”, depois “Derrocada do Império Vátua e Mouzinho de Albuquerque”, logo a seguir veio esta “África Misteriosa”, mas não ficou por aqui.
Era criticado por ser imoral nas suas descrições, razão pela qual os seus livros estavam desaconselhados a senhoras, censurado pelas descrições de pretos e pretas nus e de porte lascivo e dissolvente.
Revela-se nestas páginas embriagado por mercados bizarros, moças seminuas e até por uma rapariga fula, limpa de pele doirada que lhe veio trazer um púcaro de barro e cujos seios pareciam invertidas taças moldadas e brunidas em ouro rosado…

Um abraço do
Mário


África misteriosa – A Guiné, por Julião Quintinha

Beja Santos

Julião Quintinha foi nome sonante do jornalismo e publicou um conjunto de obras entre a reportagem, as crónicas de viagem, as novelas e os opúsculos. Republicano e maçom, iria enfileirar na oposição a partir da ditadura, o seu nome aparecerá associado a candidaturas oposicionistas, como a de Humberto Delgado.

Em finais dos anos 20, permitiu-se a uma longa ausência para deambular pelas colónias da África Portuguesa. “África Misteriosa” é produto dessa longa deambulação. Quintinha tem uma escrita impressiva, lúbrica, politicamente contumaz, provocando e ajudando à reflexão. Saiu do cais de Alcântara, passou pela Madeira, deliciou-se a contar o que era a vida a bordo, percorreu pontos importantes de Cabo Verde e após 3 dias e 3 noites a bordo do “Congo” chegou à Guiné. Chegou inquieto, talvez não refeito do susto, houvera três noites de água e vendaval, agora era uma aragem quente, o piloto atento ao lodo desde a ponta de Caió, entrando pelo canal do Geba conduzido pela barca do piloto, assim descrito: “Um Neptuno negro de grande capacete e maior aparato, que conduz o navio ladeando os bancos de Arlette, São Martinho, Gambia, marcados a boias iluminadas”. É posto em terra por quatro remadores manjacos e descreve assim o encontro com a cidade: “Nas ruas sujas de Bissau cruzam os hercúleos Papéis, com cara e brincos de mulher, lenços berrantes toucando a carapinha e um farrapo à cinta maculando a escultural nudez. Correm, aos pulos, balantas, maliciosos ladrões, numa nudez obscena e de gorra vermelha. E arrastam-se preguiçosamente, os mandingas, intrujões e mercadores, rojando seus mantos árabes”. Não sabemos baseado em que dados mas Julião Quintinha fala em 12 raças, refere fulas de óculos, turbante e bules de cobre para as oblações, a cidade rescende a pântanos lodosos, tem qualquer coisa de gravura de jornal antigo.

O repórter passeia-se, parece que o estamos a ver a sair do cais do Pidjiquiti e a entrar na área hoje correspondente ao Bissau Velho: “Às portas dos bizarros estabelecimentos flutuam tecidos estrangeiros, sobre alpendres, os alfaiates fulas, cosem, à máquina, grandes peças da sua indumentária”. Ficamos igualmente a saber que estão ali à venda mel, frutos, mancarra, pãezinhos de arroz, mariscos, bacalhau podre, bolinhos de coco, carne com varejas e cola, mas também os mandingas vendem missangas e contas de mil cores, pulseiras e manilhas, cola e torrões de açúcar. Muita gente se passeia sob guarda-sol e anota: “Têm a paixão dos chapéus-de-sol, dos molhos de chave à cinta, cordas a tiracolo, búzios ao pescoço, lenços vistosos na cabeça, tudo ronco”. Um jovem mandinga pergunta a Julião Quintinha se na sua terra também há pretos e se a polícia dava porrada. O jornalista dirige-se para a Amura e encontra à porta a sentinela descalça e pilhas de granadas e não resiste a um toque de exotismo ou feitiço africano: “Ao largo cai uma lua triste no Ilhéu dos Feiticeiros, envolvendo as árvores sagradas onde os Papéis celebravam funerais aos seus chefes e ainda hoje, na lua de Março, as suas ceitas realizam os grandes ritos”. Então desabafa: "Só há pouco começamos a cumprir aqui a nossa missão colonizadora. Fizemos nestes cinco séculos de ocupação”. Está dado o mote para introduzir o descobrimento da Guiné, o negócio dos escravos, referindo mesmo que em 1690 a companhia de Cacheu e Cabo Verde fora autorizada a introduzir na Nova Espanha 10 mil toneladas de negros. Quanto a povoações, havia a registar Ponte da Cruz, nas margens do Buba e São Filipe no Cacheu, mais tarde Geba e Farim. Bissau era um palpável documento do desleixo nacional. Bolama era de recente data e nada depunha a favor do seu passado. Acresce que 500 anos não tinham chegado para uma pacificação que permitisse a europeus e indígenas trabalho e progressivo e consolador e assim remata: “Um vasto continente rebelde, selvagem, minado de febre, sem dinheiro, sem ordem, sem administração – eis a Guiné de há 20 anos”. Considera positiva a demolição das velhas e inúteis muralhas de Bissau, foi o ponto de partida para a expansão e o saneamento da cidade. Falando do capitão Teixeira Pinto, refere-o como o herói da pacificação do território, dizendo mesmo “Não encontrei nestas terras nome português venerado com mais carinho”.

O repórter vai viajar fora de Bissau, atravessam o Impernal e vão até Mansoa. Não se cansa de salientar a nudez dos corpos, corpos bronzeados e luzidios. De Mansoa vão até Farim, passam pela tabanca de Cutia e almoçam em Banjara, diz ele que sob um sol doente. Após uma viagem de cinco horas, já com as pupilas fatigadas da insistência monótona da sinfonia verde, chegam a Bafatá e, não sabemos quem lhe deu a informação, diz ser povoação vizinha do Senegal. É uma descrição colorida, impetuosa, é um discurso dos cinco sentidos. Ele tem ali uma entrevista com Vasco Calvete de Magalhães e falará também com Samba-Li, régulo de Bafatá, grande amigo dos portugueses, tenente de segunda linha, mas logo acrescenta que o maior chefe indígena da Guiné é Monjur, régulo do Gabu, com 70 anos, 100 mulheres e 5 mil cabeças de gado.

A próxima incursão será Bolama, com amplas praças, ruas alinhadas, sente-se um ambiente simpático de renovação. É singelo a anotar tudo quanto ouviu do governador, técnicos, colonos e funcionários: “Na Guiné ainda há muitíssimo que fazer, mas ela está bastante longe daquele pessimismo que a considerava uma zona de morte”. O haver muitíssimo que fazer é indispensável para melhorar a vida de 1 milhão (onde é que Julião Quintinha foi buscar este número?) de indígenas, havendo a deplorar que o problema sanitário está muito de se considerar resolvido, que é só a indústria estrangeira a abastecer os mercados e que faltam medidas de fomento. A Guiné é rica, ele não se cansa de observar. E o navio vai largar, ele despede-se de Bolama à luz dos relâmpagos de uma colossal trovoada. Em Bissau, Julião Quintinha tomará o “Guiné” para rumar até São Tomé e Príncipe.

Não podemos ficar insensíveis ao que é dito implícito e explicitamente. A Guiné está a dar os seus primeiros passos como território pacificado e digna de ser tratada como Guiné Portuguesa.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10621: Notas de leitura (426): O meu serviço cívico na Guiné, em 1991 (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P10639: Parabéns a você (491): António da Costa Maria, ex-Fur Mil Cav do Esq Rec Fox 2640 (Guiné, 1969/71) e Ernesto Ribeiro, ex-1.º Cabo da CART 2330 (Guiné, 1968/69)

Um abraço especial do editor de serviço para estes dois aniversariantes em Leça da Palmeira
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10624: Parabéns a você (490): Jorge Cabral, ex-Alf Mil Art.ª, CMDT do Pel Caç Nat 63 (Guiné, 1969/71)

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10638: Agenda cultural (231): VISITAS GUIADAS Exp. Álbum de Memórias - Índia Portuguesa 1954.1962


1.  Recebemos o seguinte pedido de publicação enviado pela Sra. Maria Cecília Cameira (Sala de exposições Padrão dos Descobrimentos):

Exmos. Senhores, agradecemos a divulgação das visitas guiadas à exposição Álbum de Memórias Índia Portuguesa / Scrapook of Memories Portuguese India, 1954.1962, para o mês de Novembro.

Com os melhores cumprimentos,
Maria Cecília Cameira 


ÁLBUM DE MEMÓRIAS – ÍNDIA PORTUGUESA
SCRAPBOOK OF MEMORIES – PORTUGUESE INDIA
1954.1962

Padrão dos Descobrimentos
Visitas Guiadas – Novembro 2012

11 NOVEMBRO, 11.00PRISIONEIROS DA MEMÓRIA HISTÓRICA
PATRÍCIA OLIVEIRA – OP

11 NOVEMBRO, 15.30PRISIONEIROS NUM MUNDO EM MUDANÇA
BRUNO BERNARDES – OP

18 NOVEMBRO, 11.00PRISIONEIROS DAS POLÍTICAS DE ESTADO
TERESA FURTADO – OP

25 NOVEMBRO, 15.30PRISIONEIROS DAS CULTURAS CRUZADAS
ANA FILIPA GUARDIÃO – OP

As visitas deverão ser previamente marcadas e estão sujeitas a confirmação

Preço: 03.00€
Reduções: Professores; Estudantes; Membros da Associação Nacional dos Prisioneiros de Guerra; Membros do Observatório Político

Inscrições:
T. 213 031 950

Padrão dos Descobrimentos | Egeac, E.E.M.
Av. Brasília, 1400-038 Lisboa
Tel. 213 031 950 | Fax. 213 031 957

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Nota de MR:

Vd. último poste desta série em:

8 DE NOVEMBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10636: Agenda cultural (230): Lançamento do livro "Sobreviventes", de Lúcia Gonçalves e Cristina Freitas, dia 15 de Novembro de 2012, no Auditório Prof. Alexandre Moreira - Hospital de Santo António, Porto

Guiné 63/74 - P10637: Blogpoesia (305): África... (J. L. Mendes Gomes)



Guiné > Região de Tombali > Iemberém > 9 de dezembro de 2009 > 18h51 > O anoitecer no Cantanhez.

Fotos: © João Graça (2009). Todos os direitos reservados.


Escrito ao som de My African Dream- Kimi Scota

África das selvas e das pradarias, 

Sem fim... Das altas serras nevadas, 
Te canto, enfim.

Quero unir-te. 
Nesta terra de negros brancos,
E de brancos e negros,
Onde os rios escorrem do centro,
Para poente e oriente,
Para o norte e para o sul,
No centro, 
Estamos todos contigo,
África,
Todos somos África.
Acabem as guerras, irmãos,
deem as mãos,
Entreguem os corações 
E sejamos para sempre
Os irmãos que nasceram irmãos,
Filhos desta África
De negros e de brancos,
De brancos e negros,
Que importa a cor,
Se temos o mesmo coração,
A bater por África,
Uni-vos, africanos,
Filhos desta terra verde,
Cantemos sempre África
De negros e de brancos,
De brancos e negros,
Africanos de coração!...

Ovar, 26 de Agosto de 2012, 9h1m

Joaquim Luís M. Mendes Gomes


Guiné 63/74 - P10636: Agenda cultural (230): Lançamento do livro "Sobreviventes", de Lúcia Gonçalves e Cristina Freitas, dia 15 de Novembro de 2012, no Auditório Prof. Alexandre Moreira - Hospital de Santo António, Porto

1. Mensagem de Cristina Freitas, jornalista da SIC, Porto,  enviada ao Blogue no dia 6 de Novembro de 2012:

Caro Sr. Luís Graça,

Gostava muito de contar com a sua presença na apresentação do livro "Sobreviventes", no qual sou co-autora.

Em anexo, pode consultar toda a informação necessária, mas pode marcar já na agenda: é dia 15 de Novembro, quinta-feira, pelas 18h30.

O livro é uma adaptação de seis reportagens emitidas na SIC no ano passado, numa rubrica do Jornal da Noite com o mesmo nome. Uma delas conta a história dos prisioneiros de Conacri [, um deles, o António da Silva Batista], que é agora transcrita para livro. (*)

O “Sobreviventes” já está nas bancas, pode encontrá-lo na Fnac ou nas grandes superfícies.

Espero contar com a sua presença!
Obrigada e cumprimentos,
Cristina Freitas

PS - As reportagens do “Sobreviventes” podem ser vistas ou revistas aqui:
http://videos.sapo.pt/sic/play/258

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10616: Agenda cultural (229): O Festival Sete Sois Sete Luas, na sua 20ª edição, de 4 a 11 de Novembro, em Cabo Verde... Arranca hoje com os portugueses Melech Mechaya na Ilha do Fogo


(*) Vd. poste de 22 de outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8936: Agenda cultural (167): Programa Sobreviventes: reportagem sobre os ex-prisioneiros portugueses do PAIGC em Conacri, entre 1971 e 1974... SIC, 2ª feira, 21h (Cristina Freitas)

(...) Comentário de L.G.:

O nosso blogue pode e deve ser uma fonte de informação e conhecimento para a comunidade, mais alargada, a quer pertencemos, desde os investigadores aos jornalistas. Congratulamo-nos pelo facto de histórias de "sobrevivência" como as do António Baptista ou do José António  Almeida Rodrigues possam chegar ao conhecimento do grande público, através da televisão.

Tarde de mais ? Espero bem que não: programas como este não servem apenas um propósito de entretenimento, resultam de um trabalho de jornalismo de investigação. Vamos ver, na 2ª feira, a seriedade e a qualidade do trabalho da Cristina Freitas, desejando que o jornalismo televisivo possa também, de algum modo, ajudar à reparação, pelo menos moral, de um dívida que a sociedade portuguesa tem em relação a todos os antigos combatentes da guerra colonial/guerra do ultramar, em geral, e àqueles de nós que conheceram a amargura da prisão, em especial. Embora a guerra colonial (e a neste a caso a prisão em território inimigo) seja aqui vista apenas como mais uma situação limite, se não mesmo um fait divers. (...)

Guiné 63/74 - P10635: História da CCAÇ 2679 (56): A evacuação insólita (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 5 de Novembro de 2012:

Carlos,
Aqui te envio o relato de um episódio relativo aos feitos e gandes perigos que enfrentei na Guiné.
Não fiquei para a história registado como herói, mas tive direito a férias na capital provincial durante 25 dias, e fui sempre muito bem tratado.
Podia ter sido melhor? Pois podia, mas naquele tempo ainda a expressão da publicidade não tinha sonoridade, pelo que não é plausível qualquer comparação. Foi o que foi, e safei-me.

Para ti e para o Tabancal, vai aquele abraço.
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (56)

 A EVACUAÇÃO INSÓLITA

No largo da parada em frente ao meu quarto ouvia-se a agitação costumeira aos dias de coluna a Nova Lamego, designação que a acção colonial e civilizadora atribuiu à povoação de Gabú, um lugar que nem pelo clima, nem pelo relevo, nem pelas tradições, nem pela gastronomia tinha comparação com a velha Lamego, a nossa, a da Beira-Alta. Por vicissitudes a que a situação de guerra não era alheia, Nova Lamego tornou-se um local de passagem obrigatória para os movimentos rodoviários do leste mais leste da Guiné. Portanto, naquele dia o destino traçara essa viagem para o Foxtrot.

Depois das formalidades do embarque, que correspondiam ao enchimento de viaturas com sacos de artigos agrícolas, ou panos costurados, alguidares, galinhas e cabritos, numa panóplia de negócio ou oferenda a familiares distantes, seguiam-se as formalidades do desembarque, pois o capitão Trapinhos havia determinado a sua desresponsabilização pelo transporte de civis, e cá o rapaz, medroso das consequências de eventual acidente com algum daqueles cidadãos, para não cair sob a judiciosa alçada da "psico" mandava-os descer e remover as mercadorias. Havia uma resistência inicial que quebrava com dois berros mais determinados com valor de lei vigente. Após estas diligências e uma verificação geral ao pessoal e viaturas, o deslocamento iniciava a marcha.
Até Pirada a estrada já estava picada, e dali para Nova Lamego, a picagem era da responsabilidade de Pirada. Por isso, era quase sempre a abrir, e atingia-se a vertiginosa média de 40 quilómetros por hora.

No Gabú, destinavam-se tarefas e eu apresentava-me a um major insignificante que uma vez se pegou com o meu atavio de militar pouco cuidado, uma estória já aqui contada, das que servia para moralizar certas patentes nos seus "munús" disciplinadores. Depois de uma ronda pelos bares para confraternização com eventuais conhecidos, por norma dirigia-me ao restaurante na saída para Sónaco, onde se servia um excelente coelho ou gato guisado. Servido quentinho, com o molho a acusar a malagueta, acompanhava com duas ou três cervejas frescas, que o regresso ainda correspondia a mais de uma hora sob sol torrencial.

Algures depois do cruzamento de Sónaco para Pirada havia uma pequeníssima represa onde algumas mulheres marcavam presença a ensaboar e a lavar panos. A inquietude dos corpos que trabalhavam dentro de água, mais o escasso sabão utilizado, agitavam e misturavam a água quimicamente alterada com areias e lodos postos em circulação. Eu sabia disso. Mas a água quente do cantil já se esgotara sempre que chegava àquele lugar. Parava a coluna e dava o mau exemplo: pegava numa cabaça, enchia-a do líquido alterado, e bebia... bebia grande quantidade até me saciar da sede horrível. Depois, até Bajocunda, era outra vez a andar, que os corpos reclamavam por mais cervejinha.

Tomava um merecido banho, e deixava-me a ver a maré das horas até ao limite do jantar. Durante esse período havia sempre conversas animadas, maledicência, invenções sobre situações improváveis da nossa passagem por África, assentavam-se uns aperitivos e, porque na Guiné anoitece e amanhece cedo, a maioria deitava-se para sonos repousantes. Mas havia meninos que ainda exercitavam a chulice de uma cartada, pretexto para o vencedor, ou os vencedores, pagarem uma rodada de boas-noites. Quando me deitei, recusei o convite para integrar uma partida que se desenrolava no meu quarto. Estava cansado e com sono, tchau!

Adormeci profundamente e alheado do ambiente. Subitamente, porém, e meio inconsciente, comecei aos saltos na cama com tremendas dores no corpo que me tiravam a vontade de viver. Chamaram o Vítor que, sempre prestável, quis saber do que me queixava, do que tinha comido, enfim, feito coscuvilheiro a querer saber da vida alheia. Devo ter respondido disparatadamente enquanto pedia morfina para acalmar. O meu ar devia ser de desespero, pois todos se inquietavam com o que viam, e com a impossibilidade de descansarem perto deste impaciente. O Vítor aproximou-se de agulha em riste, qual cavaleiro de uma ordem de poderosos vencedores, e, enquanto afinfava na nádega, dizia, confortando-me, que depois daquela merda eu ia dormir que nem um anjo. Qual quê? Ainda levei mais três ou quatro picadelas por via das dúvidas, mais para limpar a consciência do que inteirado sobre os resultados, e só suspendeu o tratamento quando alguém lhe disse que, por aquele caminho, ainda me matava pela cura.

O eficaz Marino já tinha pedido uma dessas evacuações que não podem acontecer durante a noite, que passei em brados de dor. Quando o DO se soltou da pista de Bajocunda, eu ainda me contorcia com o sofrimento. Fosse por que fosse, quando cheguei a Bissau já me sentia porreiro. Subi para uma viatura que me levou ao HM. A quem fazia a triagem queixei-me de nada, apenas referi as lembranças de uma noite de insónia. Despojado da roupa verde, fizeram-me entrar como vim ao mundo numa sala logo à mão de semear, a SO, um local amplo, com oito camas, artificialmente fresco, onde me colocaram na última do lado da entrada, a que estava vaga. Uma enfermeira e um médico voltaram a seguir para recolha de elementos para análise.

 HM 241 de Bissau

Era um local de desgraças, com vítimas da guerra ou de acidentes, todos muito mal tratados, a maioria a aguardar evacuação para Lisboa. Que me lembre, só falei com o da frente, que estaria com um problema de coluna, aparentemente condenado a uma cadeira. Os restantes, sedados, emitiam uns esgares quando a droga se tornava insuficiente e acordavam. Eu era o único que estava ali a aguardar resultados, sem dores, com o corpinho preservado, quase sentia vergonha dos restantes. Ao terceiro dia chegou o veredicto: sofria de uma amibíase. As amibas entraram no organismo e alimentaram-se de glóbulos vermelhos, pelo que urgia reequilibrar e tonificar o metabolismo.

Transitei para o primeiro andar, e fiquei no primeiro quarto, cuja varanda sobressaía sobre a porta principal, e tinha como companheiro o médico de Piche, que se batia a uma hepatite. Tomava mata-bichinhos, alimentava-me do que quisesse, e ainda tinha um suplemento diário de sumos italianos e frutas sul-africanas, que só não sobrava, porque outros ajudavam-me à extinção de stocks.

Quase diariamente havia visitas das senhoras do MNF ou da CV. Por norma eu e o médico íamos para a varanda dando ar ostensivo de desdém perante as visitas. Às vezes tínhamos a sorte de encontrar sobre as camas uns maços de tabaco, umas santinhas, ou outras coisas de utilidade premente. Mas entre os utentes do HP faziam-se reuniões de camaradagem. Logo nos primeiros dias da minha hospedagem apareceu um furriel piriquito que tinha sucessivos ataques de asma. Então, depois do horário normal de trabalho, com o pessoal em número reduzido, os fumadores juntavam-se em redor dele e conspurcavam o ar até que acontecesse um daqueles ataques, e quando já estava a dar sinais de grande aflição, corríamos em busca do médico de serviço para tratar da ocorrência. Em poucos dias foi evacuado. No quarto ao lado aconteceu um óbito consternante: o de um sargento da marinha que não resistiu a uma operação ao sistema cardio-vascular, e foi já à porta do quarto que alguém se atravessou perante a esposa que ali ia em visita. Outra ocorrência de relevo, foi o internamento do comandante militar de Bissau, o célebre onze, que era conhecido pelas suas façanhas nas guerras da cidade, e que as complementava no ambiente doméstico. Constava-se. Mas do que me lembro, é que ocupou um quarto que dava para trás, e mantinha duas sentinelas permanentes à porta do quarto, no corredor, de onde anunciavam as visitas que à tarde iam prestar vassalagem e batiam os calcanhares no lajedo.

Em 1971 a psiquiatria debatia-se numa espécie de selecção ariana. No HP havia um psiquiatra que ganhou má fama. Por um lado constava-se que aos utentes do mato que se apresentavam com bom ar, batia-lhes para ter a certeza de que não voltariam se estivessem no seu juízo, constava-se; por outro, assisti a dois casos de morte lenta: um soldado que teria encontrado o pai e a mulher envolvidos, e tê-los-ia morto; outro, um furriel do contra, desertor, que teria sido vítima da PIDE antes de embarcar para a Guiné. Eram dois casos de amedrontar. Dizia-se que levavam injecções de muitos centímetros cúbicos, que os deixavam abananados por dois dias. Mas nos outros dias já não conseguiam manter frases completas, e não revelavam nexo de raciocínio, enquanto o olhar perdido e desinteressado parecia um testemunho complementar. Parecia-me que estavam sujeitos a tratamentos criminosos, mas ali o psiquiatra zelava pela Pátria, e os que no mato faziam a guerra, não deviam saber de casos bem sucedidos por consultas daquele ramo.

Um dia aperaltei-me com a farda número dois e fui a pé para a cidade. Cheguei cansado ao Pelicano, mas banqueteei-me soberanamente. Deambulei pela cidade. Quando decidi regressar ao HM, sempre a pé, fui interceptado por uma patrulha da PM constituída por um furriel e uma praça. Adiantou-se o furriel e pediu-me a identificação. Tomou nota de elementos e quando me devolveu os documentos, pedi-lhe a identificação, e esferográfica para anotar. Surpreendido, perguntou-me para que queria os elementos, ao que lhe respondi com a mesma interrogação. Disse que os meus sapatos não eram da ordem. Pois não, não eram, mas eu ia participar dele por não ter cumprimentado militar e educadamente um superior. O piriquito desfez-se em desculpas, que não tinha reparado, e propôs que esquecêssemos a situação. Ainda o fiz sofrer pela arrogância do encontro, não por me apanhar em falta. Depois cada um seguiu o seu caminho. Valera-me a antiguidade.

Ao vigésimo quinto dia veio o médico conversar comigo porque, se estava estabelecido que com aqueles dias de baixa hospitalar o paciente deveria ser evacuado para Lisboa, no meu caso tal evacuação não se justificava, mas propunha-me protecção pelo prolongamento da hospitalização por mais alguns dias. Compreendi que poderia beneficiar da oferta generosa, mas já estava "cansado" do HM, e com saudades e preocupações sobre o pelotão. Pedi alta. Poucos dias depois já alinhava nos caminhos do nordeste. À minha chegada o pessoal gozou bravamente comigo por ter passado 3 períodos de férias em tão curto espaço de tempo. Invejosos!

P.S. solicita-se aos interessados no encontro do dia 15 da Magnífica Tabanca da Linha, que façam as marcações com a brevidade possível.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10592: História da CCAÇ 2679 (55): A mina do acaso - Pauleiro, o feeling do combatente (José Manuel M. Dinis)

Guiné 63/74 - P10634: Álbum fotográfico de Armindo Batata, ex-comandante do Pel Caç Nat 51 (Guileje e Cufar, 1969/70) (10): "Outros locais": Catió, Bedanda, Cufar...


Foto nº 68 > Parece ser a pista de Cufar...


Foto nº 69 > Pista de Cufar...


Foto nº 70 > Catió


Foto nº 72 > Catió


Foto nº 78 > Desconhecido [, Cufar ?]



Foto nº 79 > Desconhecido [, Cufar ?]




Foto nº 80 > Desconhecido [, O nosso camaradas José Vermelho diz que esta parece-me ser uma vista aérea de Bedanda: (i) na parte inferior da foto, a edificação mais comprida era o refeitório das praças; (ii) 
o meio, estão duas árvores paralelas, mais altas, que faziam um género de "portal de entrada" para esta parte das instalações; (iii) junto dessas duas árvores, está outra edificação comprida, onde eram os quartos, a messe e bar de oficiais e messe de sargentos; (iv) a edificação pequena que está junta, era o bar de sargentos; (v) os furrieis, cabos e soldados metropolitanos, dormiam nos abrigos; (vi) para cima e um pouco à esquerda das mesmas árvores há dois edificios: o de telhado mais escuro era a enfermaria e o outro era a secretaria; (vii) A picada que se vê sair para a direita levava ao destacamento (pelotão) e ao "porto" junto ao rio].



Foto nº 81 > Desconhecido [, Cufar ?]


Foto nº 82 > Desconhecido [Cufar ?]


Guiné > Região de Tombali > Catié e Cufar >  c. 1970 > Mais fotos  do álbum do Armindo Batata, ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 51 que esteve em Guileje (desde janeiro de 1969) e depois em Cufar (1970, provavelmente, cerca de 9 meses).   Em Dezembro 1969/Janeiro 1970 estave em Cacine, vindo de Gadamael, em LDM, "em trânsito para Cufar". Ficaram "uns dias em Cacine",  antes de prosseguirem viagem, também em LDM, para Catió.

(...) "Catió tinha uma estação de correios com telefone para a metrópole, um restaurante daqueles em que se come e no fim se pede a conta e se paga. E pessoas brancas sem serem militares. Um espanto!

"O plano inicial era os dois pelotões [, os Pel Caç Nat 51 e 67, este comandado pelo alf mil Esteves,] deslocarem-se por estrada de Catió para Cufar. Esse percurso já não era utilizado há bastante tempo (meses?) e foi considerado de risco muito elevado. Não me lembro dos argumentos avançados, mas acabámos por ir para Cufar por rio (LDM com desembarque em Impugueda no rio Cumbijã ou sintex/zebro com desembarque em Cantone? - não tenho a certeza, pode ser que alguém de mais fresca memória se lembre)!".  (*)

Estas fotos fazem parte de um lote de largas dezenas, cedidas pelo Armindo Batata ao Núcleo Museológico Memória de Guiledje.  Não tinham legendas, estando distribuídas por 4 grupos: (i) Guleje, (ii) Cacine (Dez 69); (iii) Cufar e (iv) Outros locais. As fotos que hoje reproduzimos, pertencem a este último grupo. Umas foram tiradas em Catió e outras em Cufar. Mas precisamos de ajuda do próprio e dos camaradas que conheceram Catió e Catió, para completar a sua legendagem.

Fotos: © Armindo Batata (2007) /  AD - Acção para o Desenvolvimento. Todos os direitos reservados [Fotos editadas por L.G.]

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10633: Ser solidário (138): Festa de S. Martinho no Centro Social de Runa, dia 10 de Novembro de 2012 (José Martins)

1. Em mensagem do dia 30 de Outubro de 2012, o nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), enviou-nos este convite para participar no S. Martinho do Centro Social de Rua.


C O N V I T E

C A S R u n a

Como “as coisas” começam sempre por “qualquer coisa”, este texto começa por um mail:

“Boa tarde meus amigos. 
De hoje a um mês comemora-se o S. Martinho. A castanha assada, o porco no espeto, o belo arraial saloio,... tudo isso vai acontecer em Runa, bem no coração do oeste, por isso não se atrasem, o programa vai em anexo. 
Vamos antecipar o S. Martinho num dia, vai ser no dia 10 (sábado) mas o santo não se vai zangar. Tragam muito apetite, boa disposição, familiares e amigos. 
Comparativamente ao programa do ano anterior, há a registar que o fado foi trocado por música para dançar. 
Tentem enviar as inscrições o mais rapidamente possível, porque se prevê que antes de terminar o prazo, tenhamos de suspender as inscrições, aliás, como em anos anteriores.


Para quem não conhece a localização do CASRuna aqui fica: 

a) Quem é de GPS: 39º 04' 23,36" N; 9º 12' 33,97" O 
b) Quem não se fia no GPS: Apanha a A8 onde estiver mais a jeito, em principio Loures, se vierem pela CREL; Seguem 20 e tal km e saem da A8 na saída 8, que é a saída do lado Norte de Torres Vedras; Cerca de 2 km depois da portagem, encontram a primeira rotunda, seguem pela 2ª saída para N248/N9, na direcção de Alenquer/Merceana, CASRuna; Seguem cerca de 4,5 km e voltam à direita para a N248, vêem logo o edifício do CASRuna à vossa esquerda, a entrada fica a cerca de 500mts, tocam no botão do vídeo porteiro, dizem que vão para o S. Martinho, entram e estacionam no parque que fica à vossa esquerda. 
c) Quem não se fia nas duas primeiras modalidades, interroga a população indígena e pergunta onde fica o Centro de Apoio Social de Runa, ou, no caso do indígena já ser maior de 30 anos, perguntam onde é o asilo dos veteranos militares de Runa. 
d) Se nenhuma das anteriores resultar ligam para o 917 685 237, informam da vossa localização no momento e seguem as instruções indicadas pelo utilizador desse número. 

Com os melhores cumprimentos, 
Idelberto Eleutério”


E, já agora, para os que estiverem presentes, os nossos votos de uma boa festa de São Martinho, celebrando o “Militar que se tornou Santo”, por ajudar os outros (ver) [http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2011/11/guine-6374-p9023-patronos-e-padroeiros.html]

Anexo, da parte da Luís Graça, havia um desafia: Zé: Queres fazer um, dois em um”? Dá uma vista de olhos a este sítio... LG

Pois bem.
Fomos ao “arquivo” recuperar o texto “Que muitas Runas se levantem”, escrito há já algum tempo, recordando os muitos sem abrigo que existem neste país, e transcrevemos parte:
[http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2010/01/guine-6374-p5734-ser-solidario-53-que.html]

“Guiné 63/74 - P5734: Ser solidário (53): Que muitas Runas se levantem (José Martins)
Publicado em 31 de Janeiro de 2010 - Domingo

Que muitas RUNAS se levantem!
Lar dos Veteranos Militares

Porquê RUNA [coordenadas 39º03’55” N - 9º12’32” O], aquela pequena localidade com 6,71 kms² e pouco mais de mil habitantes, situada a 8 km de Torres Vedras, a cujo concelho pertence?
Vamos encontrar a resposta, ou melhor, encontrar o seu início no ano de 1827, quando Portugal saía (?) dum período bastante conturbado:

- As Invasões Francesas ou Guerra Peninsular, entre 1807 e 1811, com toda a destruição do estado de guerra ou destruição táctica, e
- A mobilização de portugueses, e a consequente saída do país, integrando a Legião Portuguesa.
Em Runa ficava localizada uma quinta, propriedade da infanta D. Maria Francisca Benedita de Bragança, nascida em 25 de Julho de 1746, quarta e última filha do Rei D. José I e de D. Mariana Vitória de Espanha, que foi baptizada na Sé Patriarcal de Lisboa pelo Cardeal D. Tomás de Almeida. A título de curiosidade, e de acordo com a tradição, a princesa recebeu o nome de Maria Francisca Benedita Ana Isabel Antónia Lourença Inácia Gertrudes Rita Joana Rosa.
Em 21 de Fevereiro de 1777, com trinta anos, contraiu casamento com o seu sobrinho D. José, Príncipe da Beira, e presumível herdeiro da coroa, passando D. Maria Benedita a ser nora de sua irmã D. Maria, que ascenderia a rainha em Março seguinte, com o nome de D. Maria I. Entre os esponsais havia uma diferença de idade de quinze anos. Não tiveram filhos, vindo D. José a morrer, prematuramente, em 1788, após onze anos de casamento, tendo D. Maria Francisca ficado conhecida como a Princesa-viúva. Iniciou um longo período de luto. Senhora inteligente, com dotes artísticos [existe um painel na Basílica da Estrela, pintado de parceria com a sua irmã D. Maria Ana] e de uma cultura rara, poderia ter gasto o seu próprio dinheiro com a construção de uma igreja ou de um convento, o que lhe traria prestigio entre os nobres e o reconhecimento dos clérigos, mas assim não procedeu. 

Lar Militar de Runa (IASFA) 
© Foto Wiquipédia

A 27 de Junho de 1799, sob o projecto do arquitecto José da Costa e Silva, são iniciadas as obras do Lar dos Veteranos Militares, destinado a acolher militares pobres e inválidos, pelo que também é conhecido por Asilo de Inválidos Militares de Runa.
O edifício no estilo neoclássico da época, cuja construção custou mais de seiscentos contos de reis, tem uma frente de 99 metros, orientada no sentido Norte/Sul, com 61 metros de fundo e uma altura de 13 metros. Ao centro do edifício foi construída a igreja de uma nave e transepto rematado em semicírculo, sendo o conjunto dominado por uma cúpula. Foi inaugurado em 25 de Julho de 1827, quando D. Maria Francisca comemorava o seu octogésimo primeiro aniversário, tendo destinado neste conjunto uma ala para sua residência, ficando conhecidos como “Aposentos da Rainha”.
No acto da inauguração ficaram as palavras da sua fundadora: “Estimo ter podido concluir o Hospital que mandei construir para descansardes dos vosso honrosos trabalhos. Em recompensa só vos peço a paz e o temor a Deus ".
D. Maria Francisca de Bragança morreu em Lisboa no dia 18 de Agosto de 1829, tendo sido sepultada no Panteão dos Braganças, no Mosteiro de São Vicente de Fora, em Lisboa, junto do seu marido, D. José, em singelas arcas tumulares.
Actualmente o edifício é propriedade do Ministério da Defesa Nacional, e é dirigido pelo Instituto de Acção Social das Forças Armadas.”



O Hugo Guerra. Meu “contemporâneo na Guiné”, remeteu ao blogue um comentário que foi publicado em [http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2010/02/guine-6374-p5786-os-ex-miliares-sem.html]:

“Em mensagem do dia 4 de Fevereiro de 2010, o nosso camarada Hugo Guerra* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 55 e Pel Caç Nat 60, Gandembel, Ponte Balana, Chamarra e S. Domingos, 1968/70, e que hoje é Coronel, DFA, na reforma), enviou-nos este esclarecimento a propósito do poste Guiné 63/74 - P5734: Ser solidário (53): Que muitas Runas se levantem (José Martins):

Caros Editores e camaradas
Não consegui enviar uma mensagem para o Poste do José Martins sobre o assunto do Lar de Runa e do apoio a camaradas sem-abrigo de modo que, tomo a liberdade de esclarecer alguns pontos que me parecem importantes. Vocês dirão.

O Lar Militar de Runa é uma estrutura do Ministério da Defesa entregue ao IASFA (Instituto de Acção Social das Forças Armadas) fazendo parte do conjunto de Messes desse Instituto e serve exclusivamente para a “Família Militar”. Os Governos estão-se nas tintas para a vontade dos fundadores e dispõem a seu belo prazer ou interesse imediato, de tudo a que podem deitar a mão. Logo, os nossos camaradas sem-abrigo que não podem ser beneficiários, por não serem militares ou DFA’s não têm acesso ao mesmo.

Todavia e, por outro lado, todos podem ser assistidos pela Liga dos Combatentes que em boa hora criou e está a desenvolver no terreno um projecto de apoio a estes camaradas, o qual passa por despistagem e apoio concreto em termos de consultas e alimentação, preparando-se agora para a Criação de Residências Assistidas, tendo até criado uma conta bancária para este efeito.
Tudo isto pode ser visto no site da Liga dos Combatentes pelo que não me alargo com mais explicações.

Só me custa, é ver que quando isto estiver a funcionar em pleno, já estaremos todos a fazer tijolo, passe a expressão, e mais uma vez iremos ver que, de boas vontades está o inferno cheio.

Quero com este arrazoado dizer que, havendo este trabalho a ser desenvolvido não me parece curial estarmos a tomar iniciativas paralelas com eventual desperdício de boas vontades, tempo e dinheiro. Seria talvez mais ajustado apoiar o trabalho já desenvolvido e pressionar, se for o caso, a Liga para dar resposta em tempo útil e as residências não virem a dar resposta a ex-combatentes de uma próxima estúpida guerra.

Hugo Guerra”


Não sei se este texto contempla a ideia inicial do Luís Graça, mas julgo que era dar uma ideia do que é o Centro de Apoio Social de Runa, além da notícia da festa que vai acontecer naquela instituição.

Como nota final damos algumas datas “históricas” do IASFA, numa simbiose dos sites http://novoadamastor.blogspot.pt/2012/10/o-assalto-ao-iasfa.html” e http://www.iasfa.pt/runa.html”;

“Quem somos? Por força do Decreto Lei nº 284/95 de 30 de Outubro [alterado pelo DL 215/2009 de 4 de Setembro e, posteriormente pelo DL 193/2012 de 23 de Agosto], o Instituto de Acção Social das Forças Armadas passou a integrar numa única entidade os Serviços Sociais das Forças Armadas, o Cofre de Previdência das Forças Armadas, o Lar de Veteranos Militares, o Complexo Social de Oeiras e o Complexo Social do Alfeite.”

Algumas datas e marcos temporais:

- 1792 Início da construção do Hospital Real dos Inválidos Militares em Runa, Uma ideia notável para a época e com muito poucos exemplos idênticos em todo o mundo. As invasões francesas foram a principal causa da derrapagem temporal das obras;
- 1827 Abertura do Hospital Real dos Inválidos Militares
- 1844 Asilo dos Inválidos da Marinha
- 1925 Cofre de Previdência dos Oficiais do Exército Metropolitano
- 1927 Cofre de Previdência dos Sargentos de Terra e Mar
- 1948 Comissão Administrativa de Casas de Renda Económica
- 1950 Acção Social da Armada (ASA)
- 1956 Obra Social do Exército e Aeronáutica (OSEA)
- 1958 Serviços Sociais das Forças Armadas (SSFA), por fusão da Acção Social da Armada e a Obra Social do Exército e Aeronáutica;
- 1959 Cofre de Previdência das Forças Armadas (CPFA)
- 1995 Instituto de Acção Social das Forças Armadas, que passa a integrar os Serviços Sociais das Forças Armadas e o Cofre de Previdência das Forças Armadas.

Sendo a maioria dos leitores deste blogue “não militares”, ou “ex-militares do Quadro de Complemento, na disponibilidade” nada impede que se conheça, minimamente, a Acção Social dos nossos Camaradas de Armas que fazem parte do Quadro Permanente.

José Marcelino Martins
30 de Outubro de 2012
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10440: Ser solidário (137): Benjamim Durães, presidente da direção do núcleo de Setúbal da Liga dos Combatentes, sugere a trasladação das ossadas do cor inf Costa Campos para o talhão dos combatentes de Sesimbra ou de Setúbal

Guiné 63/74 - P10632: Questões politicamente (in)correctas (42): As trocas de comissões, por dinheiro, durante as guerras coloniais (Zeca Macedo, EUA, ex-2º ten, DFE 21, Cacheu e Bolama, 1973/74)

1. Do nosso camarada Zeca Macedo, que vive nos EUA, e que foi 2º tenente fuzileiro especial, DFE 21 (Cacheu e Bolama, 1973/74)

Luís:

Aquando das minhas últimas férias em Portugal [, em outubro passado,]  tive a oportunidade de falar com um ex-soldado que esteve em Cacine durante a guerra. Disse-me ele que "fui parar à Guiné por troca." 

Explicou-me que por ser de famílias pobres aceitou ir para a Guiné, por troca com um soldado que tinha sido para lá mobilizado. Disse-me que na altura era uma quantia boa, mas não me quis dizer quanto.

Passados mais de 40 anos "continua cheio de raiva" por tal ter sido permitido e que a chance de ser morto poderia ser  vendida. 

Embora tivesse ouvido falar de tal "sistema",  nunca conheci nenhum dos "trocados", pois na Marinha tal prática não existia. 

Procurei no nosso blogue, mas não encontrei nenhuma referência às trocas por dinheiro. Será que algum tabanqueiro passou por tal situação e gostaria de o abordar aqui no blogue?

Um abraço amigo,
José J. Macedo, DFE 21

Guine 73-74 
_____________

Jose J. Macedo, Esquire
Law Offices of Jose J. Macedo
392 Cambridge Street
Cambridge, MA 02141
Tel. (617) 354-1115
Fax (617) 354-9955
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Nota do editor:

Último poste da série > 5 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10620: Questões politicamente (in)correctas (41): A origem da palavra Turra (António Rosinha)

Guiné 63/74 - P10631: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (9): 10.º episódio: Um bunker inimigo ao pé da porta

1. Mensagem do nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422, Farim, Mansabá, K3, 1965/67), com data de 5 de Novembro de 2012 com mais um episódio dos melhores 40 meses da sua vida:

Camaradas amigos.
Aí vai mais um episódio, com os meus agradecimentos a todos os que ainda conseguem ler e comentar.
Estou deveras reconhecido.
Veríssimo Ferreira


OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

10.º episódio - Um bunker inimigo ao pé da porta

Abril de 1966 e dez meses de comissão completados. A continuar assim regressaremos à Metrópole passados que sejam outros dez.

Construíamos agora as quatro paredes para uma cozinha sem pó, nem jagudis gatunos. Quer dizer... fazímo-lo durante o dia mas os do lado de lá, quais catarpiladores camarários fossem, destruíam tudo à noite. Só que mais teimosos que nós não eram e a obra acabou por ser feita, também e porque, entretanto, lhes arrasámos o bunker privilegiado que usavam para o derrube.

Estava em local quase impossível de detectar e a ninguém passou pela cabeça que ali fosse. Descobriu-o acidentalmente, um dos nossos, comedor incansável de rolas e coelhos, que caçando certo dia, junto às exteriores redes de arame farpado, e eram três devidamente adornadas com garrafas vazias, que provocavam o efeito de sineta, aquando d'alguma invasão se a houvesse e houve, sendo que na maioria das vezes, menos duas, eram macacos distraídos, "um dos nossos" repito, apercebeu-se que um dos maus, entrava para um embondeiro.

Irreal nos pareceu, lógicamente, mas para que o diabo as não tecesse, fomos confirmar e lá estava a árvore... escarafunchada... oca o suficiente para que coubesse um marmanjola e até tinha dois buracos, estilo binóculo, virados para o aquartelamento. Esclarecido ficava assim, o porquê de que sempre que saíamos por aquele lado, nos mandavam com alguma desalmada e mal intencionada fogaracha.

Reunimos a equipa das demolições da Companhia, consultámos os nossos mais que maquiavélicos especialistas em desratização, capazes de acertar em qualquer melga a cem metros, planeámos o que havia a planear e pós cinco demorados minutos de intenso debate, foi escolhido o momento certo para a operação, existindo unanimidade da certeza que só avançaria quando tivéssemos a prova, que o voyeur estava mesmo mirando.

Numa espera, cuidadosamente secreta, resultou que no dia seguinte nos informam através do telemóvel ANGRC9, que um individuo cujo respectivo, entrara e que não estava só. Três outros, armados até aos dentes, acompanhavam-no, o que nos levou a nós "os cérebros" a supor que, sendo quatro iriam jogar uma suecada.

Feito o conveniente rastreio de aproximação, a fim de lhes enviarmos as duas preparadas epidurais... estas lá foram... quase em simultâneo... após a breve ordem de "vai". E mais uma vez, aquelas pintalgadas de verde-militar, bazookas, não falharam, também graças àqueles utilizadores de mãos de ouro, assaz experimentadas.

O parto, ou melhor, o partir (do embondeiro) envolto em pó qual pulverização sheltoxkiana, estava concluído. É provável que tenhamos interrompido a jogatana em curso, porque ao visitarmos, posteriormente, o sítio, encontrámos muitos e variagados vestígios, não só de cabidela, como também o chão, estava vermelho, e mais ainda cartas dum baralho interrompido e dois ases de paus, o que nos levou a concluir, que um dos quatro intervenientes, era, mesmo, um grande batoteiro.

Veríssimo Ferreira > Saliquinhedim (K3) > Março de 1966

(continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10618: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (8): 9.º episódio: As confissões de um prisioneiro

Guiné 63/74 - P10630: Fotos à procura de... uma legenda (20): Fotos de uma operação ao Morés em 1964 em que intervieram a CART 730 e a Companhia sediada no Olossato (António Bastos)

1. Mensagem do nosso camarada António Bastos (ex-1.º Cabo do Pel Caç Ind 953, Teixeira Pinto e Farim, 1964/66), com data de 2 de Novembro de 2012:

Companheiro Carlos e toda a Tabanca Grande boa noite.
Companheiro Carlos,  na Quarta-Feira, mandei um email para o Luís Graça com umas fotos mas foi-me devolvidas, talvez erro no endereço. Vou tentar mandar novamente para o teu endereço.

As fotos foram-me dadas em 1965 em Jumbembem por companheiros da CArt 730, e disseram-me que eram de uma operação que foi feita em Morés em 1964 com a Companhia do Olossato e a 730. Será que haverá alguém da nossa Tabanca que estivesse na dita operação, ou até,  quem sabe, esteja nas fotos?

Carlos,  se entenderes que deves publicar,  podes avançar. Também tenho mais umas quantas fotos que depois te enviarei, também não sei bem do que se trata.

António Paulo S. Bastos,
ex-1º Cabo do Pelotão Caçadores 953
Cacheu, Bissau, Farim,Canjambari e Jumbembem



Foto 1


Foto 2

Foto 3


Foto 4


Foto 5
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9590: Fotos à procura de uma legenda (19): Imagem enviada pelo José Saúde (ex-Fur Mil Op Esp, CCS / BART 6523, Nova Lamego, 1973/74)


Guiné 63/74 - P10629: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (3): Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre! ... Promessa cumprida! (Parte II)


Guiné > Região do Oio > Bissorã > CCS/BCAÇ   > Um enfermeiro "rigoroso e... despachado"...



1. Continuação do texto publicado anteontem, da autoria do Armando Pires (ex-Fur Mil Enf da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70) (*) [, foto atual à direita,]:

Já era noite fechada em Bula quando o Teixeira, meu soldado maqueiro, veio ao bar dizer-me:
– Furriel, está uma mulher à porta de armas a pedir para tratarmos o filho.
– Já lá vou.
– Mas, ó furriel, olhe que o miúdo se não está morto, parece.
– Leva-a para a enfermaria que eu é só acabar o café.

 Fui de seguida. Em Bula, a enfermaria ficava muito próximo da porta de armas. O bar de sargentos era lá mais para os fundos do aquartelamento. Quando cheguei lá acima, os olhos muito brancos e muito abertos da mulher mandinga, agitavam-se numa correria, ora na minha direcção, ora na do filho que apertava contra o peito. Estendi-lhe os braços pedindo-lhe que me o entregasse. Aquele corpo quase inerte ardia em febre.
– Teixeirinha, vai lá abaixo chamar o doutor e tu, João, arranja-me aí alguém que me ponha a falar com a mulher.

Não lhe conseguimos arrancar uma palavra. Só olhava para o filho, em desesperado silêncio. Chegou o doutor, o alferes miliciano Chaves Ferreira.
– Ó doutor, ela não disse nada mas aqui o Braima, que a conhece, diz que o rapaz tem aí uns cinco ou seis anos e que já deve estar com uma carrada de paludismo há vários dias. Devem ter-lhe feito as mezinhas todas, mas como não resultou trouxe-o aqui.

O doutor Chaves Ferreira era um homem alto que falava em voz baixa.
– O puto está bera, pá – disse-me ele depois de o ter examinado.
– E o que lhe fazemos ? – perguntei-lhe.
– Para já temos que lhe baixar a febre e metê-lo a soro. Depois deitamo-nos a inventar porque para tratar pneumonias é que nós não temos aqui nada. E para um puto desta idade, ainda menos.

Uma pneumonia. Bonito sarilho. Aquele peito franzino nem parecia respirar. Antipirético LM (laboratório militar) partido aos quartos e diluído em água, com uma seringa metido na boca aos poucos e devagar, e a agulha mais fina do tacho de esterilização, capaz de pegar a veia onde entrasse o soro.

E agora?
– Ó doutor – disse-lhe eu – devíamos levar o miúdo para Bissau.
– Pois devíamos – concordou ele – mas a esta hora como é que o levas, a nado?

Entre Bula e Bissau interpunha-se, como sabemos, o rio Mansoa.
– Se o doutor der uma palavrinha ao nosso Comandante, talvez ele concorde em pedir uma evacuação.
Vou lá a baixo falar com ele e tu põe-te de olho no rapaz e vê se lhe baixas a febre.
– Se não baixar com o LM, o que faço?
– Lava-o com água fria.

O Chaves Ferreira saiu e eu pedi ao João, outro dos meus maqueiros, que fosse ao bar buscar um balde com gelo. Enchi de água a tina esmaltada que na enfermaria servia para lavar as mãos e lá dentro meti o gelo que o João trouxera. Na água fria ensopámos um lençol e com ele lavámos o corpo do miúdo.

Quando o doutor regressou foi para me dizer que estavam a tentar a evacuação. Ficámos ali, com o doutor a conjecturar no que mais podia fazer, quando o Machado, o meu cabo-enfermeiro, quase gritou:
– Ó doutor, o miúdo apagou-se.

Saltámos que nem molas. Aquele peito frágil desapareceu no interior das mãos do doutor, que o pressionou, e uma, e duas, e três, “já o tenho”, disse ele, ao mesmo tempo que o miúdo parecia bolsar, “é especturação, vê lá se a tiras que o está a impedir de respirar”, pediu-me enquanto lhe comprimia o peito, como se de dentro dele quisesse expulsar o mal. Tentei um estilete de punção com compressa na ponta, mas o resultado foi fraco. Lembrei-me, então, de ir buscar um tubo de plástico, daqueles para administrar soro, abri-lhe uma ponta a sugerir maior espaço de sucção, na outra ponta do tubo introduzi aquelas borrachas que serviam para lavar os ouvidos, e fui aspirando, aspirando, enquanto o doutor, com o rapaz deitado de lado, ajudava com secas palmadas nas costas.

E disse então o médico:
– Calma, pá, deixa lá agora o gajo descansar.

Foram momentos de grande aflição. Apareceu o [João] Vinagre, alferes miliciano de informações, da CCS [, BCAÇ 2861], para nos dizer que havia a possibilidade de evacuar o miúdo na DO que de manhã iria distribuir o correio pelo sector.
– Ó alferes, mas isso só lá para o meio dia é que o puto vai para Bissau.
– É o mais certo  – retorquiu-me ele.
– E, entretanto, apaga-se-lhe o maçarico.
– O que é que queres que eu faça?
– Se o meu alferes pedisse uma secção à [CCAÇ] 2466 e ao capitão Monge [, do EREC 2454
que disponibiliza-se uma Panhard, a gente logo às seis horas levava o miúdo para Bissau.
– Ó doutor – disse o Vinagre para o Chaves Ferreira – aqui para o seu enfermeiro é tudo facilidades.
– É, pá – foi a vez do doutor falar ao Vinagre  – mas olha que a ideia do gajo não está mal vista.
– Pois, talvez, mas falta convencer o homem da jangada a vir buscá-los a João Landim.
– Aí, falo eu outra vez com o Comandante.


Saíram os dois e eu também. Fui à procura da malta da 66 [, CCAÇ 2466,] e o primeiro a encontrar foi o Furriel Gomes.
–  Ó Gomes, preciso de ti, pá.

Expliquei-lhe o que se estava a preparar e ele respondeu-me que, desde que o capitão autorizasse, com a equipa dele podia contar. Fui ao comando, lancei ao Vinagre  o polegar virado para cima, “secção já temos”, correspondendo-me ele com a informação de que Panhard também. Estava o Comandante a tratar de resolver o problema da jangada.

Reunimo-nos, de novo, na enfermaria. A febre do rapaz baixara, enfim. A barriga parecia menos apressada na sua tarefa de ajudar os pulmões a trabalhar. Sentada na mesma cadeira onde eu a mandei sentar quando chegou, estava a mulher mandinga, a mãe do rapaz. Aquele rosto era só angústia. Chamei o Braima, que cuidava das limpezas e arrumações da enfermaria, pedi-lhe para dar água à mulher e me traduzir. Disse-lhe o que o filho tinha, o que fizemos e o que íamos fazer. Só ela não disse nada. Ela só queria o filho, de novo, encostado ao peito e a respirar com ela.

Adicionar legenda
Veio o alferes Vinagre para nos dizer que a jangada estava garantida. Era só chegar a João Landim [, foto à esquerda], enviar o sinal e ela vinha logo buscar-nos. Até lá, foi continuar a lavar o rapaz com a água fresca, mais um quarto de LM, o doutor Chaves Ferreira a dar-lhe umas palmadas nas costas e eu, com o meu improvisado instrumento, a tirar-lhe a especturação possível da garganta.

Às seis da manhã, eu, o soldado maqueiro Teixeira, e a mãe do rapaz, entrámos com ele para a ambulância. Com a Panhard à nossa frente e a secção do Gomes atrás, fizemo-nos ao caminho, em direcção a João Landim. Mal lá chegados ouvimos o roncar do motor da jangada a iniciar a travessia do Mansoa. Logo que acostou, subiu apenas a ambulância porque do lado de lá era só andar depressa.

Entreguei o jovem mandinga no Hospital Civil de Bissau, talvez não fossem ainda oito horas da manhã.

Muitos dias passados, o Machado, com um sorriso de orelha a orelha, veio ter comigo e disse-me:
– Furriel, sabe quem é que está ali à porta para falar consigo? A mãe do miúdo que a gente levou para Bissau.

Lá estava ela, à porta da enfermaria, com o filho pela mão. Tirou o safeu que o rapaz trazia cruzado no peito e entregou-mo.
– Para furriel ter sorte.

Foi a primeira vez que a ouvi falar e, julgo, foi a primeira vez que lhe vi uma lágrima nos olhos.

Dou comigo a pensar como foi possível, com todos estes acontecimentos, nem o nome da mãe, nem o nome do filho, terem ficado registados na memória. Presente na memória dos meus dias, ficou apenas o safeu. Quando abro a minha caixa dos segredos e o vejo lá dentro, gosto de lhe sorrir.


De ontem e para sempre, o meu safeu

Texto, fotos (e legendas): © Armando Pires (2012). Todos os direitos reservados.

[Com este relato,  quero homenagear o Doutor Chaves Ferreira e o Engenheiro Agrónomo João Vinagre, meus amigos na Guiné e meus amigos na vida que a eles faltou tão cedo e de forma tão trágica.]

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Nota do editor:

(*) Último poste da sério > 5 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10622: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (2): Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre! ... Promessa cumprida! (Parte I)

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Guiné 763/74 - P10628: Blogpoesia (304): Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades [Ta muda tenpu, ta muda vontadi] (Luís de Camões / José Luís Tavares)


Efígie de Luís de Camões, "principe dos poetas. Selo de 50 centavos, Guiné, República Portuguesa, emitido por ocasião do 400º aniversário de Os Lusíadas



Fonte: Cortesia de

Postugal > Portugal on stamps, blog de Michel Wermelinger [ "I’m a Portuguese living in the UK and this is a ‘show and tell’ site about my home country. The rest of this page explains how the site and my stamp collection are organised. Thanks for dropping by and I hope you enjoy the visit" (Michel Wermelinger)].


[Poste dedicado aos nossos amigos da banda portuguesa de música klezmer Melech Mechaya em digressão por Cabo Verde e Brasil, no âmbito da 20ª edição do Festival Sete Sois Sete Luas: João Graça, violino e nosso grã-tabanaqueiro; Miguel Veríssimo, clarinete; André Santos, guitarra; João Sovina, contra-baixo; e Francisco Caiado, percussão; e que esta noite estão a tocar na Ilha da Brava, berço desse poeta maior da caboverdianidade, que se chama Eugénio Tavares, 1867-1930]


Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, 
Ta muda tenpu, ta muda vontadi, 

Muda-se o ser, muda-se a confiança; 

Ta muda ser, ta muda konfiansa; 

Todo o mundo é composto de mudança, 

Tudu mundu é fetu di mudansa, 

Tomando sempre novas qualidades. 

Ta toma senpri nobus kolidadi. 



Continuamente vemos novidades, 

Sen nunka pára nu ta odja nobidadi, 

Diferentes em tudo da esperança; 

Diferenti na tudu di speransa; 

Do mal ficam as mágoas na lembrança, 

Máguas di mal ta fika na lenbransa, 

E do bem, se algum houve, as saudades. 

Y di ben, si izisti algun, ta fika sodadi. 



O tempo cobre o chão de verde manto, 

Tenpu ta kubri txon di berdi manta, 

Que já coberto foi de neve fria, 

Ki di nebi friu dja steve kubertu, 

E em mim converte em choro o doce canto

Y, na mi, ta bira txoru u-ki n kantaba 



E, afora este mudar-se cada dia,
Ku dosura. Y, trandu es muda sen konta,

Outra mudança faz de mor espanto: 

Otu mudansa ta kontise ku más spantu, 

Que não se muda já como soía. 

Ki dja ka ta mudadu sima kustumaba.


Camões (c. 1524-1580)


Tradução, do português para crioulo cabo-verdiano, de José Luís Tavares)
Fonte: Blogue Um Reino Maravilhoso > 3 de fevereiro de 2011 > Camôes em crioulo cabo-verdiano [Adaptado e reproduzido aqui, com a devida vénia...)


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Nota do editor:

Último poste da série > 6 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10625: Blogpoesia (303): Quero um futuro marcado com traço por mim riscado (Josema)

Guiné 63/74 - P10627: Do Ninho D'Águia até África (24): O nosso Cabo Reis (Tony Borié)

1. Vigésimo quarto episódio da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177:


Do Ninho D'Águia até África (24) 

O Nosso cabo Reis

Veio para os Estados Unidos, na década de setenta, do século passado. Primeiro para o estado de Maryland, distrito de Washington, D.C., depois querendo um clima mais parecido com a sua vila de Óbidos, donde era oriundo em Portugal, veio para o estado da Florida, onde continuou a trabalhar até atingir a idade da reforma. Era carpinteiro, fazia trabalhos de carpintaria, onde quase sempre sob a orientação de engenheiros, produzia peças únicas, algumas das quais correram mundo em revistas da especialidade.

É o Jorge de Sousa Reis, ( na foto ao lado, já na diáspora e em baixo ainda na Guiné), mais conhecido pelo Reis, pessoa bastante popular e respeitada, no clube da comunidade portuguesa, onde vive.

Esteve na província da Guiné, em cumprimento do serviço militar, do qual se orgulha e gosta de lembrar alguns momentos que lhe ficaram marcados na memória. Seguiu o mesmo trajecto de todos nós antigos combatentes. Portugal estava em guerra e como todo o cidadão, antes dos vinte anos de idade, que vivia em território português, foi à inspecção, levou o carimbo de “apurado para todo o serviço militar”, tirou a instrução básica, depois a especialidade, no seu caso de carpinteiro e em seguida foi logo mobilizado, o que no seu caso podia ter evitado por motivos que não interessa mencionar, mas o seu dever de cidadão foi mais forte e levou-o a não recorrer a qualquer outro meio.

Assim foi para a Guiné em rendição individual, como primeiro cabo, especialista em carpintaria, era o ano de 1968. O navio Uíge, trouxe-o para Bissau, e orgulha-se de dizer que foi a última vez que o navio Uíge, ficou ao largo do cais, em Bissau, porque mais tarde o rio foi dragado e permitiu, à maior parte dos navios, atracar ao referido cais. Quando fala em rio, fica emocionado, pois lembra-se que a primeira notícia da guerra, logo à sua chegada, foi o afogamento de uma jangada de militares, num rio do norte, em zona de combate, onde morreram muitos dos nossos companheiros combatentes.

 1.º Cabo Jorge de Sousa

O aquartelamento de Bissalanca (foto em baixo) era o seu estacionamento, onde havia oficinas de carpintaria, com serração de madeiras, e umas máquinas a que chamavam “Charrion”, que cortavam os toros, fazendo-os em tábuas. Algumas madeiras eram raras e exóticas, de que se faziam móveis para escolas e repartições governamentais, em toda a província, assim como para alguns sargentos e oficiais que lá estacionados com as suas famílias, que depois de construídos, eram encaixotados e enviados para Portugal, como ”recordação”.

Bissalanca

Esteve para ir para Guilege, mas como era um bom trabalhador, o seu chefe, o sargento Ventura, fez todas as diligências para que não fosse incorporado num pelotão que ia prestar apoio a esse destacamento, diz mesmo que foi esse sargento que o salvou de uma possível morte, pois esse pelotão teve algumas baixas.

Quando se refere ao sargento Ventura, diz:
- Ele não era um irmão mais velho, era quase um pai, pois era um homem já com uma certa idade, sabia muito e era compreensivo.

E dizia mais:
- Ele, o amigo Luis Carlos Nobre, o Fortunato, e alguns mais, que não me recorda o nome, não vou esquecer mais.

O nosso cabo Reis, foto em baixo juntamente com o amigo, Luís Carlos Nobre, tem muitas histórias, algumas pitorescas, como esta, em que estava a fazer um móvel para o cabo do rancho, e quando este lhe negou um copo de vinho, furioso, na companhia do amigo Fortunato, também carpinteiro, destruiu-lhe o móvel em algumas partes.

 O Reis com o amigo Luís Carlos Nobre

Dizia que havia um grupo, em Bissalanca, que ia desde o cabo do rancho até aos sargentos, que não bastava todas as suas regalias, ainda levavam quase todos os dias sacas de mercearia e outros bens para as suas casas, bens esses que pertenciam aos soldados que ali estavam estacionados, pois na mesa do refeitório, faltava sempre comida.

Havia, um cabo-verdiano na carpintaria, que era assalariado, bom artista que fazia alguns bons trabalhos em madeira, e os naturais, portanto guinéus, tinham-lhe inveja. Um dia queriam serrá-lo ao meio na serra de madeira, sendo salvo das mãos dos guinéus no último momento.

Tem saudades do tempo em que convivia com o amigo Luis Carlos Nobre, pois eram da mesma terra em Portugal, e ambos, neste momento, estão na diáspora. Luís Nobre estava em zona de combate, mas veio requisitado para Bissalanca para tratar dos geradores porque a sua especialidade era electricista. Iam juntos para Bissau, principalmente para o café “Benfica”. Também fugiam para o “Pilão”, mas sempre acompanhados.

Também, como bom ex-combatente, falava na sua lavadeira, últuma foto, que quase sempre lhe trocava a roupa, mas às vezes, era mais que lavadeira, de quem guarda algumas recordações. Enfim, podíamos ouvi-lo por horas, que a Guiné estava bem viva no seu pensamento.

Regressou a Portugal, no mesmo navio Uíge, agora atracado ao cais em Bissau, quando o militar, que o foi render, chegou.
Ao desembarcar em Portugal, esse país maravilhoso, de sol brilhante, à beira mar plantado, era quase tudo para si, mas já o achava um pouco pequeno para as suas ambições. Logo que encontrou uma oportunidade, como tantos naquela altura, emigrou.

A lavadeira do Luís Carlos Nobre
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10611: Do Ninho D'Águia até África (23): O maldito dente (Tony Borié)