segunda-feira, 4 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11191: Memória dos lugares (221): Gandembel: fotos de 1968 (Idálio Reis), 2008 (Luís Graça) e 2011 (Carlos Afeitos) (Parte II)


Foto nº 13 (Luís Graça, 2008)


Foto nº 14 (Luís Graça, 2008)


Foto nº 15 (Luís Graça, 2008)


Foto nº 16  (Luís Graça, 2008)



Foto nº 17 (Luís Graça, 2008)


Foto nº 18 (Luís Graça, 2008)


Foto nº 19 (Carlos Afeitos, 2011)


Foto nº 20 (Carlos Afeitos, 2011)


Foto nº 21 (Carlos Afeitos, 2011)


Foto nº 22 (Idálio Reis, 1968)


Foto nº 23  (Idálio Reis, 1968)


Foto nº 24  (Idálio Reis, 1968)


Foto nº 25  (Idálio Reis, 1968)

Guiné - Bissau > Região de Tombali > Gandembel > Fotos de três épocas:  1068 (Idálio Reis), 2008 (Luís Graça) e 2011 ( Carlos Afeitoas).


Carlos Afeitos, professor de matemática, cooperante na Guiné-Bissau, durante 4 anos (2008-2012), é nosso mais recente membro da Tabanca Grande, com o nº 606 [, foto à esquerda]. Está na neste momento a fzer um metrado em Inglaterra. Já nos mandou fotos dos restos de alguns dos nossos aquartelamentos (Gadamael, Gandembel, K3).

O Idálio Reis não precisa de apresentação: foi um dos bravos construtores e defensores de Gandembel e ponte Balana (CCAÇ 2317, 1968/79). Luís Graça, por seu turno, passou por estes sítios em 1 de março de 2008, de visita ao sul da Guiné.

Recorde-se que Gandembel, tal como outras guarnições militares no sul, foi abandonada - em 28 de janeiro de 1969 - por ordem expressa do Com Chefe, 292 dias depois do início da saua construção e após 372 ataques e flagelações. (LG).

Guiné 63/74 - P11190: Notas de leitura (461): Texto policopiado e publicado pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa - Ultramar (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Novembro de 2012:

Queridos amigos,
Dando continuação à transcrição de folhas policopiadas cuja data desconheço, a verdade é que referem o Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa, embora seja de supor tratar-se de um espetáculo de cantares Mandingas para o qual foram compilados vários textos e onde não terá sido alheia a mão de Manuel Belchior, um funcionário ultramarino que trabalhou na Guiné e com uma missão claramente cultural, juntam-se agora elementos que têm a ver com lendas Mandingas ao serviço de música do Korá.

Braima Galissá confirmou que o pai viera a Portugal onde deu espetáculos, é de supor que estes textos tenham tido essa proveniência.

Um abraço do
Mário


Lendas Mandingas ao serviço de músicas e canções

Beja Santos

Dando continuidade às referências feitas aos Mandingas numas folhas policopiadas que foram editadas pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa, com data desconhecida, refere-se hoje um extrato do livro “Grandeza Africana”, de Manuel Belchior, um funcionário ultramarino que é autor de obras de divulgação, sobretudo da cultura Mandinga.


A canção de Quelé Fabá

Quelé Fabá, a tua lança ficou em Baria.
Tu não tinhas medo da morte.
Quelefá Sané, filho de Mariama Nanki,
porque era o teu almoço e o teu jantar.
Os cobardes, esses vivem mais,
mas nunca terão música para dançar.(1)
(Da canção de Quelé Fabá)

Quelé Fabá Sané, natural de Badora, era o maior guerreiro das terras de Bafatá e Gabu. Ninguém o igualava em temeridade e destreza. Tão alto subia a sua fama que, vários régulos, quando empenhados em guerras, pediam o seu concurso.

Um dia, Demba, senhor de Baria e seu amigo, chamou-o para o auxiliar a combater um chefe vizinho poderoso. Pôs-se Quelé Fabá a caminho, acompanhado de sua mulher, Fendabá, mas antes de partir jurou na sua tabanca que, nem na guerra, nem tão pouco na viagem, voltaria a cara para trás.

A certa altura necessitaram de atravessar um rio e, na canoa, o herói esqueceu-se do juramento feito. Para melhor conduzir o barco, ficou de frente para o ponto de partida. Vendo isto, Fendabá gritou: “Que desgraça! Lembra-te do juramento!”.

Entristeceu Quelé Fabá e disse que o seu esquecimento era de certo presságio de que iria morrer na luta. Implorou a mulher que voltassem para casa, mas o guerreiro ponderou-lhe que perder a vida era uma desgraça mas que perder a honra seria muito pior.

Ficou Fendabá aflita e, chegados que foram a Baria, contou em segredo a Demba o que acontecera, pedindo-lhe que poupasse o amigo a uma morte certa, afastando-o da guerra por meio de qualquer pretexto hábil.

Assim fez Demba, amigo verdadeiro, que incumbiu Quelé Fabá de uma missão distante, garantindo-lhe que não iniciaria a luta antes de ele regressar.

Quando o campeão credulamente seguiu ao destino que lhe fora designado, o régulo partiu para a guerra. Causou espanto em Baria o ato de Demba que, sem motivo conhecido, assim desprezava o concurso de homem tão valente, e a explicação que a alguns ocorreu foi a de que pretendia roubar ao seu amigo uma nova glória.

Por isso, uma bruxa velha e má foi no encalço de Quelé Fabá e, quando o encontrou, disse-lhe que Demba partira para a guerra e por inveja o havia afastado.

Lembrou-se o guerreiro do episódio da canoa e da aflição de Fendabá, concluindo que esta e o amigo se haviam combinado para o salvar. Então, repeliu com desprezo a intriguista, regressou precipitadamente a Baria e dali correu ao campo de batalha.

Quando lá chegou, Demba morrera e os seus homens lutavam já sem esperanças de vitória. Lançou-se Quelé Fabá com ímpeto na refrega e mudou o curso da luta, mas, quando o inimigo ia ser vencido, eis que uma lança adversa o fere de maneira grave.

Admirados com o que acontecera ao herói, que todos supunham invulnerável, os trovadores que animavam os combatentes de Baria gritaram, aflitos:
- Como foi isso, Quelé Fabá? O teu guarda de corpo, o teu chifre mágico, permitiu que fosse assim ferido?(2)

A esta pergunta o próprio chifre respondeu:
- Cada pessoa tem o seu dia para morrer e este é o dia de Quelé Fabá. Por isso, eu não o pude proteger.(3)

Pediu que o guerreio que lhe ligassem fortemente a ferida para o sangue não se escapar muito depressa. Voltou à contenda como um leão esfaimado e desbaratou os últimos inimigos. Depois, caiu exausto e disse aos bardos:
- Até ao meu último suspiro cantem as canções de guerra que eu tanto amei.

Isso fizeram.

Quando sentiu que a morte estava próxima, perguntou-lhes:
- Que vão vocês fazer para que o meu nome fique na memória dos homens?

Então o mais velho dos cantores respondeu por todos:
- Morre em paz. Nós vamos lembrar-te como nunca o foi outro guerreiro. Faremos uma canção que louve os teus feitos e terá o privilégio de ser a primeira que todo o trovador aprenderá. Essa será a canção de Quelé Fabá.(4)
__________

(1) - Aos grandes guerreiros, os “judeus” dedicavam uma composição musical. Nas vésperas de uma batalha, ao som de cada música, o respetivo guerreiro dançavam diante dos outros e dizia o que se propunha fazer no combate

(2) - Guardas de corpo são amuletos que podem ser usados em diversas partes do corpo, pendentes do pescoço, na cintura, nos braço e nos tornozelos. Nos africanos islamizados são versículos de Alcorão dentro de uma caixinha de metal ou de coro. Quelé Fabá era, porém, um Mandinga animista (soninqué) e, por isso, usava um chifre. 

(3) - Os amuletos conservam sempre o seu prestígio, mesmo que a morte venha ao encontro do seu possuidor porque neste caso ou se considera que o guerreiro não tinha o coração puro e não merecia por isso a guarda de corpo, ou, então, na hipótese presente de um verdadeiro herói, chegara a sua hora derradeira. 

(4) - Tive a curiosidade de perguntar ao contar que me narrou esta lenda se de facto fora a canção de Quelé Fabá a primeira que aprendera. Respondeu-me afirmativamente.



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Nota do editor:

Vd. poste anterior de 1 de Março de 2013 > Guiné 63/74 - P11174: Notas de leitura (460): Texto policopiado e publicado pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa - Ultramar (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P11189: Diário de Iemberém (Anabela Pires, voluntária, projeto do Ecoturismo, Cantanhez, jan-mar 2012) (9): O batizado muçulmano da Aminata, a filha do padeiro

1. Continuação da publicação do Diário de Iemberém, por Anabela Pires (Parte IX) (*) 

[,  Foto à direita; créditos fotográficos: JERO]


20 de Fevereiro de 2012

Ainda não são 9 horas e vai uma grande azáfama no terreiro das mulheres. Eu não tinha percebido bem o que se ia passar. A Satu tinha-me dito que iam cortar o cabelo à Aminata, a menina que nasceu há dias e que é filha do meu vizinho padeiro e que, por sinal, nasceu com uma enorme cabeleira, e fazer uma festa. Afinal trata-se do batizado da menina.

Em frente à casa do Abubacar e da Satu está tudo a postos para a cerimónia à qual também vou assistir. Já fui ao terreiro das mulheres tirar umas fotos, ao panelão de arroz e ao tacho onde estão a cozinhar peixe. Ontem à tarde, quando cheguei da pesca, as mulheres estavam a encher saquinhos de plástico com sumo. Bom, hoje verei como é que organizam uma festa de uma família pobre. Claro que a mentora de toda esta azáfama é a Satu pois a mãe da criança, a Cadi [, a esposa do padeiro}, parece-me ser pessoa de nenhuma iniciativa. Mesmo quando ardeu o telheiro do marido ela não mostrou qualquer inquietação e estava aqui na casa da Satu.

O terreiro da frente já está cheio de homens que vêm assistir à cerimónia, o detrás cheio de mulheres.

Ontem voltei à pesca. Hoje dói-me, literalmente, tudo. Fui e vim a pé, com os habituais companheiros. A piroga de ontem tinha banco para me sentar mas saímos daqui às 9 horas e chegámos às 19. Ainda por cima estou adoentada, constipada e com tosse. Por regra dentro das pirogas há sempre uma enorme rede de pesca que só empata! Bem, fiquei com uma dor nos joelhos, por não poder esticar bem as pernas. Entra água na piroga e fica tudo molhado, tudo imundo. Tinha levado sanduíches dentro de uma caixa e outras num saco plástico. Quando fui tirar as do saco de plástico, aqui chamado oleado, estavam ensopadas em água salgada. 

Apanhei uma raia (estou a pensar fazer raia alhada para o jantar), 2 garoupas (aqui chamadas bedandas do mar de fora) e um barbo (o tal parecido com a faneca). O Sambajuma apanhou um charroco, um peixe maior de que não sei o nome e um tipo esquiló (ruivo cinzento) mas que não é esquiló. Isto está a melhorar. Desgosto foi ter perdido um peixe grande que conseguiu partir o fio quando já o estava a tirar da água. Não o cheguei a ver mas que era grande isso era. Para a próxima levo os empates com estralhos de aço pois ontem fiquei várias vezes sem anzol. E vou levar o carreto mais forte. 

O Sambajuma quer levar-me ao “mar grande” mas para isso não pudemos levar o Gassimo pois ele tem medo. Ontem, cada vez que me mexia na piroga o Gassimo refilava pois tem um medo enorme mesmo estando sentado no fundo da piroga. E eu até tenho algum receio de o levar pois já percebi que ele não sabe nadar bem e não temos quaisquer meios de salvação. Quem fica sempre na maior tristeza por não ir é o Alaje. Tenho muita pena de não o levar mas ele tem cinco anos e é responsabilidade a mais. É um menino muito inteligente, com um sorriso lindo. Adoro este menino que a toda a hora se aleija! Ando sempre a fazer-lhe curativos nos pés. Até me parece que ele já se aleija de propósito para eu lhe fazer os curativos. Gosta muito de cantar e aprende rapidamente as canções, que não sei, mas tento ensinar-lhe. Aí minha irmã, cá te espero com a viola para ensinares cantigas ao Alaje.

Por falar em meninos, quero dizer aos meninos de Portugal que, num mês, os únicos brinquedos que vi foram: um peluche às costas de uma menina, fisgas feitas de paus e borracha de câmara-de-ar e um aro de uma bicicleta tocado por um pau. A diferença entre os brinquedos que os meus meninos de Portugal têm e os brinquedos que os meninos da Guiné não têm é abismal. Mas estes meninos são felizes, desde que a barriga esteja cheia e não estejam doentes. O que mais me custa é ver meninos todos ranhosos. Porque sujos já percebi que é impossível não estarem. Aqui os meninos da Satu, como todas as pessoas que aqui vivem, tomam banho diariamente. Meia hora depois do banho as crianças estão sujas da terra.

Vou agora parar para ir ver o que se passa lá fora.


22 de Fevereiro de 2012

Acabei por perder a parte principal do batizado. A Satu, com a confusão, esqueceu-se de me chamar. Espreitei pela janela e vi os homens, rapazes e meninos, já a lavarem as mãos para comerem. Saí e a Aminata já tinha sido batizada e já tinha o cabelo rapado. Na varanda do Abubacar estava o Imã e o seu séquito. Ao fundo das escadas estavam duas mulheres grandes, as mulheres mais velhas, a mãe da criança e a menina. Tinham-lhe rapado o cabelo e numa cabaça havia água, folhas, cola e não sei que mais. Disse-me a mulher grande que era para a menina ficar de cabeça limpa. É curioso como os rituais entre as religiões muçulmana e a católica têm tantas semelhanças.

Foi então servido o pequeno-almoço ao sexo masculino. Grandes tigelas de arroz com peixe e os homens reúnem-se agachados à volta de uma tigela em função, mais ou menos, da idade e comem com a mão (com uma delas, a considerada limpa, creio que é a direita, porque a outra é aquela com que se lavam e por isso é considerada suja). Também havia um grupo de meninos à volta de uma tigela. 

As mulheres, à excepção das três que trouxeram a menina, não saíram do terreiro detrás. Depois foram distribuídos saquinhos de bolachinhas (um pacote destas bolachas custa 50 FCFA, o que equivale a cerca de 8 cêntimos, mas de 1 pacote foram feitos 2 ou 3) e de sumo. Entretanto foi morto um cabrito e, penso que a cada chefe de família, foi oferecido um naco de carne para levarem para casa. Levaram a carne na mão, sem qualquer tipo de acondicionamento. Lembro-me muitas vezes da ASAE e dá-me vontade de rir! Levadas à letra todas as exigências da ASAE por aqui já estaríamos todos mortos! 

E assim terminou o batizado. Os terreiros ficaram pejados de saquinhos de plástico que o Abubacar teve o cuidado de imediatamente mandar retirar. Ainda ontem continuava a retirada de plásticos e de latas de refrigerantes. Como só tinha comido um pacotinho de bolachas do batizado, e talvez por ter dado um contributo para o mesmo, ofereceram-me um pacote de bolacha Maria e 2 refrigerantes. Os contributos não são obrigatórios mas quem pode e quer dá. Assim, no final, havia um homem a contar o dinheiro recebido dos convidados. E assim foi a festa do batizado da Aminata que é de uma família com poucas posses.

Vi na festa, pela primeira vez, uma mulher de burca preta. Já tenho visto algumas de véu mas de burca foi a primeira vez. Estas mulheres são sempre da Guiné Conacri. As mulheres muçulmanas da Guiné-Bissau não usam véu, nem burca. São, aliás, muito “liberais” pois com frequência as vejo de blusas ou vestidos de alças.

[ Fotos, acima, Iemberém, dezembro de 2009:  © João Graça (2009). Todos os direitos reservados]

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Nota do editor:

domingo, 3 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11188: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (27): 28.º episódio: Memórias avulsas (9): Do inferno para o céu

1. O nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67), em mensagem do dia 24 de Fevereiro de 2013, enviou-nos mais esta história para publicar na sua série "Os melhores 40 meses da minha vida".


OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA (27)

GUINÉ 65/67 - MEMÓRIAS AVULSAS

(9) DO INFERNO PARA O CÉU

Confesso que me tem sido útil estar aqui a VIVER Guiné e por isso se foram alguns dos fantasmas que me incomodavam desde 1967. E tenho-o feito a brincar... a brincar com os momentos vividos, particularmente no que se refere aos doze meses no mato em Mansabá, Bissorã, Manhau, Pelundo, Jolmete e K3. Já os últimos oito meses da comissão foram passados em Bissau.

Tiro... e queda... e nem ainda hoje acredito... mas na verdade tive de abandonar a minha CCAÇ 1422.

Inicialmente, por motivos odiosos e alheios à minha vontade, "voluntariei-me" para fazer parte da 3ª Companhia de Comandos do Quartel General, só que essa integração após a aprovação dos exames a que me sujeitaram, não foi possível dada a chegada duma verdadeira, treinada e formada na Metrópole.

Enquanto aguardava o regresso ao ponto de partida, colocaram-me, para ajudar administrativamente, na Secção de Funerais e Registo de Sepulturas/1ª Repartição/QG e que acabei por vir a chefiar.
São-me disponibilizadas, residência militar junto à messe em Santa Luzia e também uma viatura descaracterizada, um mini moke.

Sem obrigações nem horários, competia-me unicamente, estar sempre disponível para enfrentar os funestos acontecimentos, inerentes à função que agora exercia. Ao saber destes, tinham de ser imediatamente tomadas as providências para que tais cruéis notícias fossem transmitidas para Lisboa, a fim de que, do HORROR, fosse dado primeiro, conhecimento aos familiares.
Impunha-se-me, que nalguns casos, fizesse o reconhecimento presencial, na morgue do Hospital Militar, se antes as Companhias onde o desenlace se dera, mo não comunicassem. Vinham a seguir, as cerimónias religiosas e toda a elaboração da documentação para a célere trasladação.

Como vêem, saíra do Inferno e estava agora no purgatório nada fácil e com tantos sentimentos contraditórios, a quererem destruir-me.

O CÉU Bissau pois. A cidade tinha de tudo... fui sócio da UDIB; ia ao cinema... ao aeroporto... ao cais ver quem chega, nem sonhando a que martírio..., contrastando com a alegria dos que partiam... nos : Uige... Niassa... Manuel Alfredo... Rita Maria... Ana Mafalda.

A minha presença era requerida no futebol... nos locais com boa comida... na piscina de Nhacra... nos camarões em Quinhamel... e tudo no maior sossego que por ali não se vislumbrava ainda a guerra ...nem haviam bolanhas para atravessar... nem percutores do morteiro para substituir ou sequer G3 para olear.

A relação com os cidadãos, de amizade mais tarde, era excelente e facilmente nos acolhiam nos seus seios. Existiam grandes armazéns que tudo vendiam desde agulhas a automóveis e nos mercados nada faltava.

As noites eram famosas e já apareciam simulacros de boites. Em momentos vagos, visitei a Sé... o Liceu... o palácio do Governador (Arnaldo Schutlz então)... o Pilão... a fábrica da gasosas... o café Portugal... o Pintosinho... a Ultramarina... a casa Gouveia... O BNU... a rádio... as tascas que serviam ostras ao natural... as...........enfim!!!

Sozinho rezei, sem o saber fazer, na capela do cemitério e aí então, esgotei as lágrimas enquanto "falava" com os amigos que já não me podiam responder.

(Continua)

Guiné-Bissau > Bissau > Cemitério Municipal > Talhão Militar Central > Abril de 2006 > Monumento que celebra os soldados portugueses, mortos nas diversas campanhas de pacificação da Guiné, desde a Campa do Geba (1890) à Campanha do Cuor (1907/08), passando pelas Campamhas do Oio e Bissorã (1913), onde se destacou o Capitão Diabo, Teixeira Pinto. 
Neste cemitério (que tem três talhões, reservados aos combatentes portugueses mortos em campanha), repousam os restos mortais do Sold António da Purificação Marques, morto no início do ano de 1966, em combate, em Darsalame, no Cantanhez. Campa nº 33. 
Foto: © Hugo Costa (2006). Direitos reservados.
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 24 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11146: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (26): 27.º episódio: Memórias avulsas (8): Alto e pára a guerra

Guiné 63/74 - P11187: Memórias de Mário Oliveira, Cabo Condutor de Máquinas da Vedeta de Fiscalização Belatrix (2): A vaca do Cabo Jaquim

1. Mensagem do nosso camarada Mário Ferreira de Oliveira (1º Cabo Condutor de Máquinas, na situação de reforma, Vedeta de Fiscalização Bellatrix, 1961/63), com data de 8 de Janeiro de 2013:

Carlos Vinhal Meu camarada e Editor
Mantanhas
Aconteceu uma quase desgraça: inadvertidamente apaguei sem guardar os email recebidos da Tabaca Grande.
Estive agora cerca de um mês sem abrir o email porque estive três semanas em Cantanhede, e além disso tenho andado um pouco adoentado, isto é um corpo “velho” de 76 anos a resistir às “ordens” de uma mente que teima em manter-se jovem. Antes de ir para a parvónia tinha alinhavado a segunda história da arca de recordações da Guiné, aqui vai ela!


Memórias de Mário Oliveira, Cabo Condutor de Máquinas da Vedeta de Fiscalização Bellatrix

2 - A Vaca do Cabo Jaquim

O herói da história de hoje era “patrão” da LDP 1 ou 2 (?) o Cabo de Manobra Joaquim. Sei que era de Setúbal, tinha mais de 40 anos de idade, e um perímetro abdominal directamente proporcional aos petiscos em que se envolvia sempre que podia, não fosse ele de Setúbal cidade de bons petiscos e melhores vinhos. Tinha como “imediato” o Luís Marinheiro de Manobra, que era um “castiço do caraças” e vai ser o herói da história nº 3, não me recordo quem era o Fogueiro da LDP.

O Cabo Joaquim era respeitado pela malta toda, quer pela sua idade quer por ser um bom marinheiro e era tratado familiarmente por “cabo Jaquim”. Tinha por mim um especial ”carinho”e tratava-me por Márinho, tratamento que eu nunca admiti a f. da p. nenhum (diminutivos são para as mulheres) mas que a ele admitia e vou contar porquê.

Todos os Grã Tabaqueiros sabem o que são os tornados na Guiné, como se formam e como rapidamente nos surpreendem com rajadas de vento de extrema violência e chuva torrencial. As LDP não eram habitáveis, pelo que as guarnições depois de as fundearem da parte de dentro da ponte cais de Bissau iam para o edifício onde era a Rádio Naval, o refeitório e caserna das praças (agora dizem é chique dizer : Os Praças).

Ponte Cais de Bissau

Um dia pela manhã cedo formou-se rapidamente um tornado, que fez garrar a LDP do Jaquim indo esta em poucos minutos embater violentamente na ponte cais. Era de partir o coração um navio novinho em folha sujeito a desfazer-se com os porradões que dava nos pilares em cimento da ponte cais. E nós na Bellatrix amarrada com bons cabos, a ver a triste cena. Não vi outra solução que não fosse acudir à emergência, subi a escada, corri pela ponte cais e depois de estudar os movimentos que a LDP fazia com a forte ondulação (não sou maluco) saltei-lhe para dentro, lá me equilibrei até à casinha da máquina, arranquei com os motores, peguei no leme, fiz marcha à ré e afastei a LDP do perigo maior. Depois fiz-me ao largo e aguentei proa ao vento até o tornado amainar. Entretanto sem eu dar por isso tinha em cima da ponte cais uma “plateia” composta pelo Comandante da Defesa Marítima, cabo Jaquim e toda a sua “tripulação” gente que eu não tinha tido tempo de ver, envolvido que estava com o leme e com a máquina.

Quando atraquei o Jaquim vem direito a mim com lágrimas nos olhos e diz-me:
- Oh! Márinho se não fosses tu a minha Lanchinha tinha ido ao fundo.

O sacana ia-me partindo as costelas com o abraço que me deu.

Claro está que nesse dia fui o “herói de serviço”, toda a malta me dizia:
- Eh pá prepara o peito que vem aí bruta medalha!

Não veio a bruta medalha, (nem era caso para isso) mas veio coisa muito mais útil, uma bruta garrafa de Macieira oferecida pelo “Contramestre Manel”, disse ele para “aquecer” e a gratidão eterna do camarada cabo Jaquim.

Como sabem a Armada Portuguesa é casa de velhas tradições que a marujada faz questão de cumprir, uma delas é bem portuguesa: as alcunhas!

Uma alcunha pode ser depreciativa, como por exemplo: “Pintelho eléctrico”, “Peúgas”, “Botinhas”, “Ferro em Brasa”, “Rupias”, “Cabeça de Vaca”, “Tomate Saloio” e tantas outras aplicadas aos oficiais que traziam da vida privada para os navios o mau humor das suas vidas e aliviavam o stress como agora se diz, perseguindo por ninharias a marinhagem.

Mas também havia alcunhas que demonstravam o muito respeito que os marinheiros nutriam por alguns oficiais, que pelo seu profissionalismo, coragem, exemplo e humanismo se impunham à consideração e respeito das guarnições dos navios. Estou a lembrar-me de “Quebra-Mar” alcunha do Capitão de Mar-e-Guerra Mário dos Reis Antunes, ou “Boroeste” alcunha do na altura 1º Tenente Barros, natural da região de S. Pedro do Sul, ou “Contramestre Manel” alcunha do na altura Capitão de Fragata Manuel Lopes de Mendonça, Comandante da Defesa Maritima da Guiné ou seja o nosso Comandante.

O “Contramestre Manel” era neto ou bisneto do Comandante Henrique Lopes de Mendonça, oficial de elevada cultura, membro da Academia das Ciências, etc. etc. etc. que foi quem escreveu em 1890 a letra de ” A Portuguesa “


Feitas as apresentações vamos lá à história da vaca. 

Um dia o cabo Jaquim foi com a LDP em serviço a Jabadá, que como se recordam ficava a umas milhas, poucas, no Geba a montante de Bissau. Encontrou por lá uma vaca, e logo imaginou as “petisqueiras” que a vaca dava.

 Localização de Jabadá. Vd. carta de Tite

Abica a LDP junto às oficinas navais, descarrega a bichinha, amarra-a nas imediações da cozinha e toca a fazer os convites para a petiscada e arranjar quem matasse e esfolasse a desgraçada que em má hora se atravessou no caminho de um marujo.

Claro que o “Márinho”, estando a Bellatrix no plano, estava disponível e foi dos primeiros a ser convidado.

Andávamos nós junto à cozinha, “salivando” e preparando a “orgia”, “cabeça de gesso” trazido da Manutenção Militar aberto, primeiros copos bebidos, tudo isto na hora do serviço, chega o “Contramestre Manel”, vê por ali aquele “maralhal” todo, (todo não, alguns quando o viram aproximar-se, foram-se pirando) e admirado de ver uma vaca viva, manda chamar o cabo do rancho e pergunta?
- Olha lá, então apresentas na contabilidade facturas de bifes e tens aqui uma vaca?
- Senhor Comandante a vaca não é minha, é do cabo Jaquim!

Entretanto o Jaquim que estava por perto, aproxima-se faz a continência e diz:
- Senhor Comandante a vaca é minha!
- Ai é! Onde é que a compraste?
- Não a comprei, achei-a!
- Achaste a vaca! Então uma vaca é lá coisa que se ache, troca lá isso por miúdo?
- Senhor Comandante fui a Jabadá fazer o serviço tal, encontrei lá a vaca meti-a na Lancha e trouxe-a.

Diz-lhe o Comandante:
- Olha lá Joaquim, se na tua terra as vacas não têm dono, aqui na Guiné ficas a saber que têm! Não te aplico já uma “porrada” porque tens a caderneta limpa, mas vais imediatamente levar a vaca ao mesmo sitio onde a encontraste.

O cabo Jaquim, de orelha murcha, dando graças a Deus por não ter sido castigado disciplinarmente, foi levar a bichinha a Jabadá, e nós na imergência fizemos uma “punheta de bacalhau” para darmos conta do “cabeça de gesso”.

 Vidal, Karamon Kêta e Mário Oliveira

1961 > Batuque de Africanos e Europeus >  Mário Ferreira de Oliveira Cabo Condutor de Máquinas
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Nota do editor:

Vd. poste anterior de 10 de Janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P10922: Memórias de Mário Oliveira, Cabo Condutor de Máquinas da Vedeta de Fiscalização Belatrix (1): O Soldado Desconhecido do Ana Mafalda, 1961

Guiné 63/74 - P11186: História da CCAÇ 2679 (62): Um caso com o Vieira (José Manuel Matos Dinis / Cândido Morais)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 20 de Fevereiro de 2013:

Meus amigos Carlos e Cândido,
Aqui vai um novo trecho da História da CCaç 2679, desta vez subscrito pelo Cândido Morais, e que reporta num estilo bem comunicativo, mais uma estória sobre a sageza e oportunidade do nosso capitão Trapinhos.
O Cândido centraliza a estória na atitude tomada pelo Vieira, mas eu considero que é ele mesmo, o Cândido, o ilustre herói da narrativa. Porque heróis foram também todos aqueles que não se queixavam e estavam prontos para a solidariedade. É característica dele a altruísta entreajuda manifestada. A ele não caíam os parentes na lama, sempre que decidia ajudar um subordinado em dificuldades, pois a todos considerava camaradas.
Era um exemplo a seguir.

Daqui envio um grande abraço para ambos
JD

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HISTÓRIA DA CCAÇ 2679

62 - Um caso com o Vieira

Cândido Morais

O Vieira era um homem calmo, por natureza. Com ele podiamos conversar, sem corrermos riscos de algum atropelo verbal, pois media cuidadosamente tudo o que dizia, tornando-se evidente que se preocupava com o interlocutor, não pretendendo maçá-lo e deixando ao seu critério a duração duma conversa. A ele, ninguém poderia apelidar de cansativo, pois estava ali apenas para conversar e não para se constituír parte integrante de uma enfadonha conversa.
Não sei como e quando isso lhe aconteceu, mas chegou ao meu conhecimento que o Vieira tinha grandes dificuldades para dormir. Na verdade, tinha sido atingido pelos efeitos colaterais de uma "roquetada", que, pelos vistos, embatera na frente do abrigo de um posto avançado, projectando os seus estilhaços para as costas do Vieira, que se soerguera um pouco na vala quando respondia a fogo do IN. Pelo menos, foi essa a informação que chegou ao meu conhecimento.

A minha preocupação principal não se concentrou nos tais estilhaços. Segundo me fora dito, os mesmos poderiam manter-se por ali indefinidamente, e o Vieira poderia viver até aos 100 anos com eles nas costas, e não seria por causa disso que entregaria a alma ao Criador. O que realmente me preocupava, era o sacrificio que me fora confidenciado por um camarada de armas, que acrescentara a enorme dificuldade que o Vieira sentia quando fazia reforço nos abrigos, pois, como lhe era dado dormir pouco, acabava por executar duplo esforço, enquanto olhava para lá do arame farpado na solidão que se proectava savana fora.

Um dia, tive com ele uma das tais conversas, durante a qual me contou grande parte da sua vida e me confessou as dificuldades que passava, por causa dos tais estilhaços. Acabei a ouvi-lo atentamente, e a pensar como poderia ajudá-lo em tão doloroso sofrimento, definindo lentamente uma decisão:
- Olhe, Vieira, eu não me importo de fazer o seu turno de reforço. Ao fim e ao cabo, são duas horinhas que tiro ao sono, e a essas horas da noite, até dá para pensar um pouco mais, ali sozinho, longe de tudo e de todos.

Eu não contava que o Vieira aceitasse tão prontamente, desfazendo-se em elogios e agradecimentos endereçados à minha pessoa. Disse-lhe que nada tinha a agradecer, e antes era meu dever colaborar com todos os camaradas, para levarmos aqueles dois anos a bom termo, dentro da maior amizade e camaradagem. Pedi-lhe, por isso, que não comentasse a minha disponibilidade, e que o facto ficasse apenas entre nós, pois não havia vantagem nenhuma em que mais alguém soubesse.

Mas soube. Não foi preciso passar muito tempo para se saber que o furriel estava a fazer os turnos de reforço do Vieira, não por que este tivesse falseado a sua promessa de sigilo, mas por que talvez não fosse habitual os furriéis consagrarem-se a essa actividade. Ao fim e ao cabo, eu teria sempre de ir acordar o reforço seguinte, que estranharia a minha presença nessa missão diária...

Passou-se, contudo, um mês, sem qualquer ocorrência, ligada ao facto, que importunasse esse desempenho. Até que, um dia, me vieram dizer que o Comandante de Companhia soubera do que se passava e, mais uma vez, decidira dar o seu ar de mando, chamando o Vieira e perguntando-lhe se tal era verdade. Este, segundo me informaram, respondeu prontamente que sim, voltando a referir a minha pessoa em tom elogioso e dizendo que isso lhe aliviava, e muito, o sofrimento. O nosso Comandante ouviu-o atentamente e, depois, mandou-o embora, dizendo-lhe que o chamaria brevemente, para continuarem a conversa.

Essa conversa, não chegou a acontecer, nem com o Vieira, nem comigo. Mandou-lhe recado por um cabo da secção, dizendo-lhe que teria de reiniciar o reforço, pois as necessidades de pessoal eram grandes e o sacrificio tinha de ser repartido por todos. Nesta justificação, não teve oportunidade de ponderar a minha disponibilidade, e eu ainda hoje não sei quais foram as razões que o impeliram a proferir essa ordem por interposta pessoa.

Eu não assisti à cena que se seguiu, mas vieram contar-ma à camarata onde dormitava, e confesso que sorri ao ouvir esse relato, conhecedor que era das falas mansas do Vieira e da sua enorme vontade de não chatear ninguém, mesmo que fosse para levar a cabo uma acção radical. Disse-me então a minha fonte que o Vieira, depois de lhe ser transmitida a decisão do Comando, pegou numa granada de mão e dirigiu-se ao gabinete do nosso Comandante, onde pediu educadamente licença para entrar:
- O meu Comandante dá-me licença?
- Entre! O que o traz por cá?
- Disseram-me que o meu Comandante mandou que eu fizesse reforço outra vez, e eu vim cá confirmar...
- Sim senhor! Você vai ter de fazer reforço outra vez, e aliás nunca devia ter deixado de o fazer! - Disse-lhe o Comandante.
- Mas sabe, meu capitão, é que me doem tanto as costas!... argumentou o Vieira.

E, se havia uma coisa que o Vieira honrava, era não ser medroso. Por isso, mentalmente, engendrou a melhor forma de levar a cabo aquilo que se determinara fazer e, muito mansamente como era seu timbre, descavilhou a granada e, segurando a respectiva alavanca entre ela e a mão, pousou-a sobre a secretária:
- É que sabe, meu Comandante, as costas estão mesmo a doer-me muito...

Talvez influenciado pelo conhecimento de outros factos do género que, infelizmente, não rareavam entre a tropa e não só em terras da Guiné, o visado ponderou a situação.

 - Que acha, meu Capitão? Acha mesmo que devo fazer reforço?
- Ora, ora, senhor Vieira! Claro que vai deixar de fazer reforço. Eu só estava mesmo a ver se era tudo verdade o que se passava consigo!
- Eu bem me parecia, meu Capitão! Que diabo, as costas doem-me mesmo! Muito obrigado, meu Capitão, e se me dá licença, retiro-me.

Como já disse, eu não assisti a esta conversa. Contaram-ma depois e não foi preciso assistir a ela, conhecendo como conhecia o Soldado Vieira. Mentalmente, idealizei a cena e deu-me uma enorme vontade de sorrir novamente. No íntimo, penso que o Comandante procedeu sensatamente, pois ainda hoje não sei o que teria acontecido no Gabinete (eram três, as pessoas lá presentes), se o Vieira recebesse uma recusa pura e simples. Quanto a mim, que não fui tido nem achado em todo o processo, continuei calmamente a fazer o reforço do Vieira, remetendo insistentemente para o Minho o meu pensamento, naquelas longas e negras noites a olhar o mato ali tão próximo, donde por vezes surgiam ruidos estranhos, uns rápidos e fugazes, outros cansativamente persistentes, entremeados com o irritante riso das hienas, que não tinham pejo em tocar o arame farpado junto ao posto avançado, fazendo tilintar as garrafas de cerveja estrategicamente lá posicionadas para nos alertarem da presença dum intruso

Cândido Morais
ex-Fur Mil
CCAÇ 2679
Bajocunda
1970/71
____________

Nota do editor:

Vd. último poste da série de 25 de Janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11002: História da CCAÇ 2679 (61): A vingança serve-se fria (José Manuel Matos Dinis)

Guiné 63/74 - P11185: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (6): ...onde também tem lealdade, dedicação e competência

1. Mensagem do nosso camarada Vasco Pires (ex-Alf Mil Art.ª, CMDT do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72), com data de 17 de Fevereiro de 2013:


FANTASMAS DO FUNDO BAÚ

6 - No fundo do "baú", também tem ...lealdade, dedicação e competência

Caros Luís Graça/Carlos Vinhal,
Segui a sugestão do Carlos de raspar o fundo do baú, agora ilustrado com algumas fotos que chegaram de São Paulo, e olhem o que eu encontrei... lealdade, dedicação e competência.

Na foto *, Vasco Pires (de camiseta branca) ladeado por dois Grandes Artilheiros, a partir da esquerda o Furriel Oliveira, e à direita o Furriel Krus. Foi pela dedicação e competência destes dois altamente empenhados Furriéis, que o Exmo. Senhor Coronel de Artilharia António Carlos Morais Silva escreveu, mais de quarenta anos depois, neste Blog (P9936):

"...sempre exigi, quando andava no mato, tempo de resposta que não podia exceder 1 minuto e perante uma "saída" das armas IN a resposta imediata de um obus fosse qual fosse, no momento, a direcção de vigilância. Cumpriram sempre e nunca esqueci os excelentes artilheiros...".

A partir da esquerda: Fur Mil Oliveira, um graduado da Companhia de Comandos Africana (?), Alf Mil Vasco Pires e Fur Mil krus

O Pelotão foi colocado, famílias incluídas, na última fileira da tabanca junto ao rio (facilmente localizada na foto de Gadamael). Acredito que foi do Furriel Oliveira, a sugestão de ocuparmos a primeira casa junto ao arame, na realidade uma verdadeira "mansão" com dois quartos sala e cozinha, bem próximo aos obuses. Excelente ideia, pois, como eu disse, eles já "saíam atirando", como nos velhos filmes do Clint Eastwood. Humor tardio à parte, tinham grande conhecimento das bases IN, e ajustavam o material rapidamente.

Temos que reconhecer, que não é tarefa fácil, dois jovens beirando os vinte anos, controlarem soldados profissionais, com vários anos de guerra, com mulheres (alguns com mais de uma) e filhos, e eles o fizeram muito bem; lembro, por exemplo, que no dia de pagamento, muitas vezes, passavam a noite administrando os problemas familiares dos soldados, agravados pelos vapores do álcool.

Não posso deixar de lembrar, a sofisticadíssima rede logística, que o Furriel Oliveira, assessorado pelo meu ordenança, o Cabo Apontador (da guarnição local) José Carlos, montou para interceptar caçadores e pescadores às primeiras horas da madrugada, garantindo assim as proteínas extra destes três Artilheiros.

O Furriel Krus sempre administrou brilhantemente a parte operacional do Pelotão, inclusive, durante um longo período formando o Pelotão diariamente para revista.

Mas, sobretudo, fica a certeza que durante a minha vida, civil e militar, nunca tive parceiros tão leais e dedicados, como os Furriéis Oliveira e Krus.

Onde quer que estejam, a minha gratidão.
VP
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 24 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11148: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (5): "Alfero di canhão"

Guiné 63/74 - P11184: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (39): Uns alunos foram à matança

1. Em mensagem do dia 13 de Fevereiro de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, QuinhamelBinta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma memória do seu tempo de estudante.


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES

39 - Uns alunos foram à matança

Em princípio de Dezembro de 1960 (poderá ter sido no mesmo mês de 1959, mas de qualquer modo ocorreu há, apenas há uma escassa “meia dúzia” de anos) um grupo de alunos finalistas do COA aceitaram, contentes e alvoraçados, o convite para se deslocarem a Rocas do Vouga, a casa dos meus pais, para participar num almoço diferente do habitual, porque era fora do COA e não só. Esta refeição, chamada localmente, de “rejoada”, ou seja, o prato principal constava de rojões – lombo de porco cozinhado, em nacos de bom tamanho, na própria banha do animal, em panela de ferro e ao lume brando da lareira.

Nos dias de hoje, principalmente no Ribatejo e Alentejo, tal almoço típico, ocorre no próprio dia do abate dos animais (matança) e consta quase só de carne grelhada (febras ou fêveras, costeletas e entremeada).

Naquele tempo, lá na terra, os animais eram abatidos na quinta-feira; ficavam pendurados, para escorrer o sangue, e arrefecer até sábado; neste dia, logo pela manhã, procedia-se à “desmancha” (desfazer, com arte, os animais em pedaços). A carne devidamente cortada era guardada em sal, dentro de grandes arcas (salgadeira) feitas de madeira de pinho ainda verde; não se utilizavam pregos, parafusos ou dobradiças metálicas, pois o salitre corroeria essas peças em tempo curto e as tábuas da arca desconjuntar-se-iam de seguida.

O dia da matança não era escolhido ao acaso; os agricultores tinham em grande conta as fases da lua, não só para matar os animais, mas também para semear cereais e até cortar as árvores cuja madeira eles utilizavam nas suas construções ou reparações.

No espaço de tempo que decorria entre o abate e a própria rojoada, preparavam-se morcelas e chouriças com produtos dos porcos abatidos – morcela com carne e um pouco de sangue; as chouriças eram elaboradas só com carne, tudo temperado a preceito - todos os artigos eram absolutamente frescos, da melhor procedência e de superior qualidade.

O colega José Sá e Sousa, oriundo lá das bandas da Vila da Feira, tinha carro (coisa raríssima naqueles bons velhos tempos); o Armando Figueiredo, creio que não era ainda encartado, mas a mãe emprestou-lhe a sua viatura e lá fomos cinco em cada carro, até quase ao limite interior do distrito de Aveiro.

Quem se lembra de todos aqueles convivas? Eu recordo apenas 8: Sá e Sousa, Reis Ferreira; Armando, Valdemar, Eugénio, Belmiro, Eberl e Ribeiro, havia mais dois; destes o Miller, talvez fosse um deles. Se alguém se lembrar do outro ou se houver imprecisão da minha parte, há que esclarecer.

Chegámos ao local pouco antes da hora aprazada. Solicitei ao Eberl que me acompanhasse até ao canto da eira e perguntei-lhe, apontando para determinada planta ali existente:
- Que arbusto é aquele?

O Eberl ficou surpreendido e comentou:
- Tu não podes ter isto aqui! É absolutamente proibido!
- Não foi isso que eu perguntei! Responde à minha pergunta!
- Isto é a planta do tabaco e não é permitido cultivá-la na Metrópole!
- Eu só pretendia o teu esclarecimento! Sempre ouvi dizer que se tratava de tabaco, mas faltava-me a opinião dum conhecedor.

O Eberl nasceu em Angola, no Pango Aluquem, mais precisamente na fazenda Quenuma Numa e era filho de pais alemães; creio que cultivavam café e tabaco.

Ainda hoje, lá no meu quintal, existem plantas dessas que ali aparecem sem serem semeadas. Até faz lembrar o alecrim. Nesse tempo, a “botica” (remédio de farmácia) tinha por ali pouca utilização; as pessoas vizinhas quando sofriam de determinadas mazelas vinham lá a casa pedir umas folhas de tabaco para curar as suas chagas; diziam que as folhas continham excelentes efeitos curativos.

O padre, como, à época, não podia deixar de ser, também foi convidado. Como era domingo e teria outros compromissos, enviou, em sua representação, a sua irmã que, até era uma solteirona de “profissão”. Bem tentou arranjar partido lá na terra mas não conseguiu.

Logo que nos sentámos à volta da mesa, ela tentou comandar as tropas o que não terá agradado a ninguém. Aí o Ribeiro fez com que ela desistisse da ideia e ela “perdeu o pio”.

Lembras-te, Ribeiro, da anedota que contaste e que a fez encabular? Esta tinha-nos sido narrada pelo Dr. Magalhães Lima, um excelente mestre de matemática do 3º ciclo.

Resumindo: uns anjos, lá no céu, participaram a Jesus que sua Mãe introduzia almas naquele paraíso celeste, clandestinamente, puxando-as por meio de uma corda com nós. Jesus perguntou:
- Sabeis que corda é essa?

E de seguida esclareceu, aquelas celestiais criações:
- É o terço! É através do rosário que as almas pecadoras podem ficar limpas (perdoadas) podendo assim entrar no Reino de Meu Pai!

A senhora Ana, (menina cinquentona), irmã do Padre e certamente conhecedora dos preceitos da Fé, não achou graça alguma ao que ouviu (não lhe chamou blasfémia)! Mas acabado o almoço… desapareceu!

O Reis Ferreira pediu à minha mãe que lhe arranjasse uma “assadura” (um pedaço de carne assada), grelhada nas brasas da lareira; alegou que adorava aquilo e já não comia havia muito tempo.

Iniciou-se o almoço:
1º Prato - cozido à portuguesa – hortaliça colhida no próprio dia e carnes bem frescas.
O meu avô presidia à mesa, ele adorava “passar rasteiras” à malta jovem. De maneira que todos ouvissem, ele avisou:
- Oh! Rapaziada! Isto é o que há! É o nosso almoço e não há mais nada! Cá em casa há só um prato, mas isto dá para todos!

Eu lembrei aos colegas, sem desdizer o meu avô – que participávamos duma rejoada… mas ninguém acreditou no que eu proferi: todos comeram o cozido que nem uns desalmados! Até parecia que no COA se comia mal! Mas aquele cozido era mesmo do outro mundo! Estaria mesmo divinal!

2º Prato – massa meada guisada com carne.
Perante este prato ninguém se alarmou porque… era massa e, como de costume, ninguém apreciava aquilo.

3º Prato – rojões de lombo, arroz do forno, batatas assadas e salada.
O Reis Ferreira foi “aos arames” e comentou descoroçoado:
- Nunca na minha vida fui enganado por um velho, senão hoje! Sinto-me ludibriado; furibundo!

O meu avô adorou aquela brincadeira! Ria-se a bandeiras despregadas, porque tinha enganado os estudantes; durante muito tempo, sempre que se lembrava, comentava comigo aquela “tirada” do Reis Ferreira. Tornou-se célebre! Na verdade, os alunos quase não provaram os rojões, o prato principal que dava o nome ao repasto pois tinham enchido os “bandulhos” com o espetacular cozido.

De seguida colocaram sobre a mesa, à frente do Reis Ferreira, a tal assadura, um bom pedaço de suculenta carne, perfeitamente tostada, doirada, nas brasas da lareira. O jovem Reis Ferreira ficou envergonhado, pois não conseguia comer o que tão delicadamente havia solicitado. No seu estômago não havia lugar para mais… nem uma “assadura” tão desejada.

Todos colaboraram comendo um naco cada um para tirar o Reis Ferreira daquela dificuldade.
Ele sentiu um grande aperto no estômago, mas daquela… lá o safámos.

Já agora a sobremesa também tem de ser citada: castanhas assadas e fruta da época.

Assim terminou um almoço muito diferente do habitual, porque foi servido fora do ambiente colegial e porque, já naquele tempo, a carne dos animais criados em casa era bastante melhor que a carne do talho.

Os porcos abatidos lá em casa tinham sempre mais de um ano e meio quase sempre pesavam mais de 180Kg (limpos) cada; eram umas bestas avantajadas!

Foi um domingo bem passado… em plena liberdade… sem o Correia… nem diretores, professores ou quejandos!

Saudações colegiais
Fevereiro 2013
B T
____________

Nota do editor:

Vd. último poste da série de 22 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11135: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (38): O Carinhas

Guiné 63/74 - P11183: Blogpoesia (323): É um pássaro, diz ela. De areia. Ferido de morte (Luís Graça)




Lourinhã > Praia de Vale de Frades > 8 de Junho de 2007 > É um pássaro, diz ela. De areia. Ferido de morte.

Foto: © Luís Graça (2007). Todos os direitos reservados.

Para o Idálio Reis e os bravos da CCAÇ 2317 

(Gandembel/Ponte Balana, 1968/69), 
com um Alfa Bravo

É um pássaro.
De areia.
Diz ela.
Ferido de morte.
Uma jurássica ave de arribação
que te veio anunciar a peste.

Peste branca. Preta. Vermelha.
Vírus do Nilo.
Dengue.
Al Qaeda.
O tchador.
A burkha.
A mulher dengosa.
A expulsão do paraíso.
A língua viperina.
O caduceu do Asclépio.
Febre hemorrágica.
Sida.

Pena capital.
Terror nuclear.
Pandemia. Amarela.
Bílis negra.
Os neutrões.
A língua azul dos camelos.
O vírus influenza
dos gansos selvagens.

A danação eterna.
A gripe das gaivotas-ratazanas.
A implosão dos neurónios.
O buraco do ozono.
A febre da carraça.
Malária, paludismo, sezonismo.
A doença de Creutzfeldt-Jakob.
O mal de viver.

O mal de amores.
O morbo gálico.
A vingança das índias
que envenenaram o sangue dos espanhóis.
Os vectores de todas doenças emergentes e reemergentes.
As metástases pancreátricas.
O pão transgénico.

As setas pragas do Egipto.
A implosão do milenar Portugal dos pequeninos.

O triunfo do Goldman Sachs Sachs Sachs,
o homem de ouro
que está acima de Deus
e de todas as suas criaturas.

A estátua jazente de um deus alado
que morreu nas dunas.
Diz ele.
Por fadiga. 

Burn-out
Desidratação.
Imprecação.
Hipotermia.
O irã que largou o poilão
e morreu de infinita tristeza.
Vidrado.
Varado por um tiro de Kalash.

Puro pau sangue exangue.
Triste bissilão dda diáspora,
sem raízes.
Ou então um pobre náufrago da costa de ouro, marfim e prata.
A escassos metros da meta.
À entrada do paraíso.
Da reserva ecológica.
Dos abrigos à prova de canhão sem recuo
da Europa imaginada.
Blindada.

Cega.
Surda.
E muda.

Terá atravessado os campos de golfe magnéticos
que outrora eram verdes.
Diz ela.
Na rota das Canárias e do Saará,
segue sempre em frente
e encontrarás o paraíso.

Do ouro, do incenso e da mirra.
Já.
Ou encontravas.

Miragem,
diz ele.

Aqui jaz.
Agora.
Na areia da praia.
O soldado.
Desconhecido.
Número tal.
Que terá vindo de Gandembel,
sobrevoando Ponte Balana.
Sem senha
nem contra-senha,
nem ração de combate,

nem número mecanográfico.
Nem requisição de transporte.
Nem visto
ou simples carta de chamada
da Pátria.
Nem sequer muda de roupa
para o além.

Nem sequer a última carta da namorada.
Simples soldado raso,

morto por uma roquetada.

O puro terror dos fornilhos,
diz ele.
A cilada.
A emboscada.
As pirogas à deriva.
A guerra elevada à categoria de arte
do predador.
Generalíssimo predador.
As tripas de fora
de um deus-menino.
O pássaro.
De fogo.
Desintegrado.

Oh! Gandembel das morteiradas,
dos abrigos de madeira
onde nós, pobres soldados,
imitamos a toupeira
.
-diz ele.


In memoriam.
A morte, sem legenda,
a asfixia, sem escape,
a exaustão, sem honra,

a luta sem glória nem compaixão,
os nervos de aço esfrangalhados
do soldado-toupeira,
o envenenamento das fontes de água
que corria doce e triste,
o triste rio Balana,
triste como todos os rios da Guiné,
o céu trespassado por setas envenenadas,

as chuvas ácidas,
o napalm,

o jato do povo.
o strela,
o RPG-Sete.

O pássaro de areia, diz ela, 

outra vez.
- Quem vem aí ?
Cala-se o dari no Cantanhez. 

Imobiliza-se o jagudi de Pirada.
Esconde-se a gazela na orla da bolanha de Ponta Coli.

....Para se poder ouvir o tiro tenso do voo
da ave mortal da madrugada.

______________

Nota do editor

Último poste da série > 26 de fevereiro de 2013> Guiné 63/74 - P11160: Blogpoesia (322): Não sou nada, não sou ninguém (Ernesto Duarte)

sábado, 2 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11182: Memória dos lugares (220): Gandembel: fotos de 1968 (Idálio Reis), 2008 (Luís Graça) e 2011 (Carlos Afeitos) (Parte I)



Foto nº 1 (Carlos Afeitos,  2011)


Foto nº 2 (Luís Graça, 2008)


Foto nº 3 (Idálio Reis, 1968)


Foto nº 4 (Idálio Reis, 1968)


Foto nº 5 (Carlos Afeitos, 2011)



Foto nº  6 (Luís Graça, 2008)


Foto nº  7 (Carlos Afeitos, 2011)


Foto nº 8 (Carlos Afeitos, 2011)


Foto nº 9 (Idálio Reis, 1968)


Foto nº 10 (Idálio Reis, 1968)


Foto nº 11 (Luis Graça, 2008)


Foto nº 12 (Luís Graça, 2008)

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gandembel >  CCAÇ 2317 (1968/69) > Neste e num poste seguinte, vamos apresentar imagens de épocas diferentes, captadas por Idálio Reis (1968), Luís Graça (2008) e Carlos Afeitos (2011).


1. Mensagem, datada de 21 de fevereiro último, de Carlos Afeitos, antigo professor, cooperante na Guiné_Bissau (2009-2012) e membro recente da nossa Tabanca Grande:

Boa tarde,

Tenho lido o blog e continuo com a mesma percepção de que falei anteriormente. É incrivel saber as coisas que vocês por lá passaram e como em pouco tempo o degradamento dos edifícios que foram deixados. Eu conheço os sítios de como estão agora e vejo a diferença. Continuando, estive a ver que agora estão alguns posts relativamente à linha de defesa junto da Guiné-Conacri e como conheço alguns sítios envio mais um lote de fotografias.

Desta vez é de Gandembel, o que tem uma história particularmente engraçada. Quando passei a segunda vez pela placa, decidimos parar e ir visitar as antigas instalações de Gandembel. Como eu nunca fui à tropa e estava acompanhado de dois amigos que conhecem essas andanças, lá me foram dando algumas luzes do que estava a ver. Vi pelo menos um bunker, uma linha de trincheiras ao redor do aquartelamento, um fosso para fazer tiro de morteiro, segundo as explicações, o que resta de um edifício e uma espécie de fosso. Fosso esse que não sei o que seria, se seria para mecânica ou algo parecido. Já agora coloco a questão, que tipo de aquartelamento era Gandembel? Quantos militares lá estavam?

Continuando o meu relato, andámos por todo o lado e percorremos o que restava, claro que sempre acompanhado por um enorme nuvem de mosquitos, mas mesmo grande,  que eu passava as minhas mãos por detrás da cabeça e sentia-os a bater-me nas palmas das mãos. Tal era a quantidade de aeronaves voadoras por aqueles lados, até aqui tudo bem. 

Continuámos o nosso caminho e fomos até Gadamael Porto, Cacine e Cameconde. Não cheguei a ir a Campeane. Existiu algum quartel por aqueles lados? Em Cameconde, estivemos e veio um professor pedir-nos ajuda com alguns materiais escolares, livros e coisas afins. Isto passou-se em Julho. Em Agosto regressei a Portugal para férias escolares e voltei para a Guiné em Outubro. Em Novembro, consegui reunir bastantes livros de vários anos e mais algum material escolar e marquei um dia para ir entregar o material. Lá fomos de carro cheio de material escolar de Bissau até Cameconde. 

Pelo caminho, como ia com outro amigo que nunca tinha ido para aqueles lados, queríamos parar em Gandembel. Para grande surpresa nossa, estavam a desminar aquela área e não foi possível visitar novamente o aquartelamento. Como ia eu e mais um amigo da outra vez, ficámos a pensar um bocado pois ainda há 4 meses tínhamos percorrido tudo e agora estavam a desminar o sítio. Uma das pessoas disse-nos que tinham encontrado 38 objectos explosivos, mas não sei o que seria,  se minas ou outra coisa qualquer. Sei que o vi com uma espécie de bala na mão, mas em tamanho grande. Podem ver que eu sou mesmo perito nestas andanças.

Com os melhores cumprimentos,

Carlos Afeitos [, foto atual, à direita,]

2. Resposta do editor L.G.:

Obrigado, Carlos... Fico muito sensibilizado...

Sobre Gandembel, tens no blogue cerca de 150 referências... Ganbembel foi construído de raíz, a pá e pica, e defendido com unhas e dentes... Em qualquer parte do mundo, daria um filme épico!... Em menos de 9 meses, a CCAÇ 2317 (c. 150 homens) tiveram c. de 370 ataques e flagelações... Vê aqui uma coleção notável de fotos (11 postes) em:

10 de outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2172: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/69) (Idálio Reis) (11): Em Buba e depois no Gabu, fomos gente feliz... sem lágrimas (Fim)

3. Comentário do Idálio Reis [, foto à esquerda], com data de 1 do corrente, a pedido dos editores:

Assunto - Gandembel e as fotos de um cooperante português: Carlos Afeitos

Quando se procura testemunhar indícios da passagem do homem, passados 44 anos e mais em África, o que poderá restar? Fósseis.

No abandono de Gandembel, a 28 de Janeiro de 1969, todas as infraestruturas existentes ficaram intactas, e porque se procedeu a destruições posteriores, são mistérios. Talvez, ambos os beligerantes, tenham a sua quota-parte, quer seja pelo poder das bombas da Força Aérea, quer mesmo pelo PAIGC.

A envolvente de Gandembel ficou pejada de minas e armadilhas antipessoais. Mas das fotos que me enviaram aquando do Simpósio de Guileje, em 2008, não estavam lá tais placas. Contudo, se se processava a um processo de desminagem, como atesta o Carlos Afeitos, é porque algo se passou de consequências imprevisíveis. Muitos artefactos por lá restaram, desde munições a granadas de mão que se enterraram, a granadas de morteiro que não rebentaram. Oxalá que tais trabalhos de desminagem tenham resultado em pleno, para que aquela terra ardente sossegue definitivamente.

E nesses chãos do Balana, a pujança da fauna e da flora do Cantanhez continue em ciclópica regeneração, pois a Guiné-Bissau possui aí uma riqueza incomensurável.

Do mail do Carlos Afeitos, refere as nuvens de mosquitos. Porventura resultantes de charcos do Balana, já que no meu tempo, não foi esse o nosso grande flagelo, pois jamais houve uma rede mosquiteira. As ingentes azáfamas quotidianas toldadas com os constantes estrondos da metralha, foram sempre o nosso penar. Quanto sangue se jorrou em Gandembel!

Das fotos, notam-se essencialmente restos calcinados das casernas-abrigo - os tais bunkers -, que nos proporcionava alguma segurança pessoal. Verifica-se que o cimo de uma delas, tomba de pleno, onde se nota restos da parede posterior, que as estruturas metálicas de sustentação fizeram solidificar.

Um dos locais do morteiro 81 [ Fotos nºs 1, 2, 3, 4] continua presente. Era aí que pernoitavam o comandante da Companhia e o seu ajudante.

Também, pelo seu figurino geométrico se mostra o armazém de víveres, a última das construções mais sólidas a serem edificadas. [,Fotos nºs 5 e 6]

Desconheço se o cooperante Carlos Afeitos ainda continua a calcorrear aquelas terras do Forreá. Terei o maior prazer em lhe ofertar um livro meu, para lhe dar a conhecer o quanto representou aquelas paragens para a minha CCaç 2317. E se acaso, por aí se quedar, que envie mais algumas imagens. Ficarei satisfeito.

Calorosamente, Idálio Reis
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Nota do editor:

Último poste da série > 28 de fevereiro de 2013 >  Guiné 63/74 - P11171: Memória dos lugares (219): Olossato, anos 60, no princípio era assim (6) (José Augusto Ribeiro) 

Guiné 63/74 - P11181: Em busca de ... (216): O meu professor, em Afiá, Aldeia Formosa, o ex- 1º cabo Abeltino José Rocha (Sori Baldé, secretário executivo da ONG ADI - Associação para o Desenvolvimento Integrado)


Guiné > Região de Tombali > Guileje (mapa de 1956) (Escala 1/50 mil) > Detalhe > Posição relativa de Afiá

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

1. Mensagem do nosso leitor Sori Baldé, com data de 28 de fevereiro último:

Bom dia,

Sou Sori Baldé, guineense, técnico agrícola, actualmente secretário executivo de ONG-ADI [, Associação para o Desenvolvimento Integrado]. [Ver aqui uma entrevista de há dois anos com Sori Baldé]

Estou à procura de um português que passou na Guiné, nos meados de 1972/74, 1º cabo, professor colocado em Afiá e residente na Aldeia Formoso, de nome Abeltino José Rocha.

Sori Baldé

Telemóveis: +(245) 662 63 15 ou 590 02 56

2. Comentário de L.G.:

Meu caro Sori Baldé, obrigado por bateres à porta da nossa Tabanca Grande. Mas vamos  lá ver se te conseguimos ajudar. Infelizmente não temos listas completas e atualizadas dos militares portugueses  que passaram pela tua terra, entre 1972 e 1974... O teu professor tem, no entanto, uma nome pouco vulgar, Abeltino...  Pesquisando na Net localizei um indivíduo com esse nome, Abeltino José Rocha, em dois sítios:

- Rede social Sonico Portugal: há um indivíduo com o mesmo nome, residente em Setúbal;

- Brigada Fiscal - Aviso no Diário da República: há também, ou havia em 2001, um agente da Brigada Fiscal com esse nome.

Mas o mais importante é saber a que unidade (batalhão ou companhia) pertencia o teu professor... Espero que ele ou algum seu antigo camarada de armas possa ler o teu apelo... Ele por certo que ficará feliz e orgulhoso por saber notícias tuas. Recebe um abraço dos teus amigos de 72/74. Mantenhas. Luís Graça

PS - Ah!, e conta-nos com mais pormenores como era a tua aldeia, Afiá, nesse tempo,  e que militares lá estavam, juntamente com o teu professor. Também podes falar da tua ONG e do trabalho que vocês estão a fazer no terreno (que, pelo que li, se tem concentrado nas regiões de Biombo, Cacheu, Oio, Tombali e no Sector Autónomo de Bissau).

3. Aqui ficam informações recolhidas pelo nosso colaborador permanente José Martins sobre as unidades que passaram por Aldeia Formosa no período em questão (1972/74). Todas elas têm representantes no nosso blogue.

Viva,  Luis

Eis o que consegui encontrar:

Unidades estacionadas em Aldeia Formosa, no período referido:

Mobilizado no Regimento de Infantaria 15 - Tomar
Batalhão de Caçadores 4516/73, entre Agosto e Outubro de 1973
2ª Companhia, entre Julho e Agosto de 1973
3ª Companhia, entre Julho e Outubro de 1971
Contacto para o encontro de 2007
Manuel António Silva  + telemóveis 933 629 860 e 965 528 580

Mobilizado no Regimento de Infantaria 2 – Abrantes
Batalhão de Caçadores 4513/72, de Março de 1973 a Abril de 1974
2ª Companhia, idem.
Contacto para o encontro de 2011
Adalberto Silva, telefones 309 713 745 ou 965 816 315
Email: batcac4513@gmail.com ou a.costasilva@hotmail.com

Mobilizado no Regimento de Cavalaria 3 – Estremoz
Companhia de Cavalaria 8351/72, de Outubro de 1972 a Julho de 1973.
Contactos não encontrados

Abraço
Zé Martins
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Nota do editor:

Último poste da série > 19 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11118: Em busca de... (215): Informações sobre o malogrado Fur Mil Lenine José da Costa Lima e Castro (Pel Rec Fox 693), falecido em campanha em 28 de Novembro de 1964 (Carlos Matos Gomes)

Guiné 63/74 - P11180: Do Ninho D'Águia até África (55): O fim aproximava-se, mas havia desespero (Tony Borié)





1. Quinquagésimo quinto episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177:




DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA - 55


O mosquiteiro, que se usava sobre a cama, já estava roto e cheio de marcas de sangue seco dos mosquitos mortos, que quando vivos, faziam uma zoeira na área das orelhas, e acordavam o Cifra, as picadelas, não produziam qualquer efeito. As botas estavam rotas e gastas, tinha um par delas melhor, que estava a guardar para o embarque, pois queria aparecer aos primos de Lisboa, limpo e com alguma dignidade.

O Cifra estava a passar por uma fase difícil, tinha pensamentos arrepiantes, algumas vezes quando ao final do dia vinha até à ponte, olhava a água, principalmente na maré cheia, parece que ouvia uma voz a chamá-lo, a convidá-lo a mergulhar nessa mesma água, turva e cheia de lama, nesse momento, tirava o cigarro da boca, atiráva-o para a água e via-o desaparecer, num turvilhão sujo, com espuma e alguns pedaços de ervas secas, que iam com destino ao mar do oceano Atlântico, talvez indicando-lhe o caminho da Europa, onde estava a sua aldeia do vale do Ninho d’Águia, nessa altura, uma força interior, fazia-o olhar em outra direcção e fugia, correndo para longe da ponte, em direcção ao aquartelamento, onde aparecia angustiado, e sem falar a ninguém ia deitarse, encolhido dentro do mosquiteiro e olhava os buracos desse mesmo mosquiteiro, com medo que alguém lá entrasse e o fosse levar para junto daquele turvilhão de água suja, com ervas secas, que iam com direcção ao oceano Atlântico.

Esta era uma fase da sua estadia em cenário de guerra, em que andava muito desmoralizado, já não podia ver à sua frente o café preto sem açúcar, que todas as manhãs o “Arroz com pão”, o tal cabo do rancho, lhe dava, e ele bebia. Ao decifrar uma mensagem, denunciando a morte de militares em combate, ficava nervoso, tremia, saía fora do centro cripto, olhava o horizonte, para onde pensava ser o lado de Portugal, e começava a chorar, deprimido.

Falava pouco, e só quando era preciso. Passava muito tempo com o seu macaco, foto em cima, para quem já tinha arranjado novo dono, e que já o tratava algumas vezes. Por vezes irritava-se com o animal, que logo ficava com um ar triste, e vinha lamber-lhe as mãos, e olhava para os olhos do Cifra, de diferente ângulos, como se fosse um ser humano, e percebesse a angústia do Cifra.


Escrevia algumas frases de revolta, numa folha de papel no centro cripto, lia essas frases, e rasgava o papel, atirando esse papel para uma caixa de cartão que estava num canto, onde se colocava algumas fitas do código de mensagens decifradas e que se queimavam ao final do dia, ao lado do cabanal onde se fazia a limpeza das armas, depois vinha a essa caixa, e ia rasgar outra vez, tudo em pedacinhos mais pequenos.

Não podia manter conversação com ninguém, pois se o contrariassem, argumentava, e não procurava quem tinha razão.

Ele é que estava sempre certo.

Os colegas com o mesmo tempo de província, como era o caso do Setubal, ou do Curvas, alto e refilão, pouca diferença faziam do novo carácter e maneira de proceder do Cifra, fumavam, bebiam, falavam pouco e nada lhes interessava.

O Curvas, alto e refilão, a maior parte das vezes, andava nú, ou então só com uns restos de calcões, mesmo rotos, e a medalha, cruz de guerra, pendurada neles, a caminhar pelo dormitório, e quando o questionavam dizia:
- Vai chatear a tua avó!. E cala-te senão és capaz de levar com uma granada no focinho!.

Andava tão “despassarado”, que uma vez, até deixou ir a medalha cruz de guerra, agarrada aos restos dos calções para a lavadeira, e chamava filho da p... a toda a gente, pois tinhamlhe roubado a medalha, e qual foi o seu espanto, quando a lavadeira, no final da semana, lhe vem entregar a roupa, e com a medalha na mão, lhe diz mais ou menos isto:
- Isto parece patacão, mas não é, deve ser patacão do Portugal, tem uma fita agarrada, se tú não queres, eu coloca na orelha, tem manga de ronco!.

E exemplificava, com a medalha encostada na orelha, gravura em cima, e como tinha umas argolas no pescoço, até nem lhe ficava nada mal!.

Por vezes, quando com eles falavam, tinham que repetir as palavras, pois o seu pensamento estava longe. Tirando o comandante, não lhes interessava que fosse oficial, sargento ou qualquer outra pessoa, eles não falavam, nem saudavam.
Era melhor assim, pois no contrário, havia conflito.

Era muito tempo dentro do arame farpado, andavam desesperados.
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 26 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11156: Do Ninho D'Águia até África (54): Ano e meio já lá vai (Tony Borié)

Guiné 63/74 - P11179: In Memoriam (143): Soldados Domingos do Espírito Santo Moreno e João Amado, e 1.º Cabo João António Paulo, da CCAÇ 3489, mortos em combate, em Cancolim, no dia 2 de Março de 1972 (Juvenal Amado)

 

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 27 de Fevereiro de 2013:

Caros Luis, Carlos, Magalhães e restante camaradas da Tabanca Grande
Prestes a fazer 41 anos sobre o ataque a Cancolim em que morreram três camaradas, mando aqui uma pequena homenagem.
Juvenal Amado




Tudo a postos


Cancolin, 2 de Março de 1972

No ar paira um cheiro estranho 
Na escuridão tudo são sombras e medo 
A luz difusa amplia os nossos fantasmas 
Olhos que já não veem o desespero 
Gargantas que não articulam sons 
Jazem inertes na boca de cena 
Marionetes a quem se lhes cortou os fios 
Estão imóveis sem luz e sem chama 
O que ficou por construir será sempre uma incógnita 
A mais pequena insignificância será uma relíquia 
Através dela revive-se o homem 
Para trás ficaram os sacrifícios supremos 
Já não têm medo, nem dor, nem saudade 
No peito uma rosa de sangue 
O amor para sempre adiado 
Crianças penduram desejos na árvore da vida 
Fatalismo que se cobre de negro 
Lágrimas que teimam em rolar pelas faces 
Rostos e mãos que vão envelhecer sem esperança 
Pele amarrotada pela vigília e pela poeira dos tempos 
Mas ainda paira no ar o tal cheiro estranho 
Cheiro que se nos pegou a nós em Santa Apolónia 
Que nos quebrou nos porões ao sabor do destino 
O cheiro trágico de vidas que ficam por cumprir. 

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Mortos em combate: 
João António Paulo 
João Amado 
Domingos do E. Santo Moreno
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 1 de Março de 2013 > Guiné 63/74 - P11175: In Memoriam (142): Sesimbra, 26/2/2013, cemitério local, talhão dos antigos combatentes: singela mas digna cerimónia de trasladação dos restos mortais do nosso amigo e antigo comandante cor inf ref Alberto Costa Campos (Carlos Jorge Pereira)