quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12588: Os nossos camaradas guineenses (37): Os milícias e outras tropas auxiliares: as estatísticas dos tombados (José Martins / António J. Pereira da Costa / Jorge Picado)


(a) Milícias, polícia administrativa, caçadores nativos, civis contratados, etc.

Fonte: José Martins (2014)


1. Texto elaborado a partir de um comentário de L.G. ao poste P12576 (*)

Parece-me haver uma injustiça gritante, quando as nossas Forças Armadas não registaram (ou não registam) na lista oficial dos mortos os nomes de todos ou de muitos dos valorosos "milícias", ou tropa auxiliar, que esteve do nosso lado, durante a guerra colonial na Guiné... 

Por exemplo, o srgt de mílicas Samba Coiaté não consta na lista dos mortos da guerra do Ultramar, disponível no sítio da Liga dos Combatentes... Pesquisei pelo seu nome e data de morte em combate (18/3/1973)... E nada, o seu nome não consta...

E no entanto a sua morte é uma morte heróica, a avaliar pelo relato do Manuel Reis (*)...

Fiz um outro teste, com o nome do Seco Camará, valoroso milícia e guia das NT (que muitos de nós, do Setor L1, conhecemos)...  Não sei exatamente qual era o seu estatuto: creio que era um "civil contratado" (sic), às ordens do comando do BART 2917, com sede em Bambadinca, embora ele tivesse morança  no Xime (**)...

[Foto à esquerda: Seco Camará, em Mansambo.Foto: © Torcato Mendonça (2007) ]


O Seco Camará morreu, juntamente com uma secção inteira (5 camaradas do Xime, da CART 2715), numa operação em que participei, no subsetor do Xime (Op Abencerragem Candente)...  Foram os 6 primeiros homens abatidos de uma enorme coluna apeada, composta por 2 destacamentos, cada um com 3 grupos de combate, ou seja, no total cerca de 180 homens... Ajudei a recolher os seus restos mortais... tão reduzidos que cabiam num poncho...

Fez connosco (CCAÇ 12) diversas operações, fez operações com o Torcato Mendonça e outros camaradas que estão aqui na Tabanca Grande, e que passaram pelo Setor L1 em diferentes épocas... Mas aquela operação foi-lhe fatal... a ele que tinha guiado milhares e milhares de homens pelas matas do Xime e do Corubal, desde os  primeiros anos de guerra... Morreu, à roquetada, no dia 26/11/1970...

O seu nome também não consta na lista dos "nossos" mortos (, pelo menos na lista da Liga dos Combatentes)...

Um primeiro pensamento que me ocorre, é de indignação, esperando que  no entanto que isto não tenha passado de um lapso ou de falha da máquina burocrática do exército...

Os milícias não eram militares, mas foram combatentes... E que combatentes, muitos deles!... O Seco Camará não era nem podia ser um simples civil: era considerado o melhor (ou mais leal) dos nossos guias, e um exímio e corajoso picador. Mas os outros mílícias do Xime, ao que parece, não gostavam dele. Daí talvez a sua transferência para Bambandinca, ao tempo do BART 2917, se não me engano.

Tudo para dizer que a memória destes homens, o Samba Coaité, o Seco Camará e outros "tropas auxiliares" guineenses que tombaram, ao nosso lado,  deve ser honrada por todos nós... Pelo menos aqui... LG


2. E a este propósito, perguntei ao José Martins, nosso colaborador permanente [, e que tem especial sensibilidade em relação a este assunto, já que pertenceu a um companhia afriicana , a CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70], para me confirmar se os milícias estão ou não estão fora das listas dos mortos da guerra na Guiné.

Dei-lhe estes dois exemplos, o do Samba Coiaté e do Seco Camará, em que sabemos os nomes e as datas da morte... Mas haverá mais casos que, em princípio, terão ficado fora das nossas contas. A ser assim, teríamos que  rever os números das nossas baixas (mortais)  no TO da Guiné que, tenho, ideia andarão à volta das 3 mil... 

A resposta do José Martins, com data de 13 do corrente, foi a seguinte:

Boa tarde, Luis: Junto quadro elaborado a partir dos totais inscritos nos dois livros sobre os Tombados na Guiné. [ Vd. quadro supra.]

Dos nomes indicados o primeiro  [Samba Coiaté]   não  consta, com os elementos fornecidos, mas o segundo  [Seco Camará] faz parte da relação.

É preciso ter em boa nota os nomes por que eram conhecidos e se identificavam. Há milicias a quem se atribui dois nomes.

Abraço, José Martins.

Analisando o quadro acima verficamos que os nossos piores anos, em termos de baixas mortais, no caso das tropas regulares, foram os de 1967, 1968, 1969 e 1973... No caso das tropas auxiliares (e nomeadamente milícias), foram os anos de 1967, 1968, 1971 e 1973. No conjunto, o pior ano é do de 1973, com 11,9% do total das baixas mortais, ou seja, em termos absolutos 339 tombados.

3. Eis a seguir a opinião do nosso camarada António José Pereira da Costa, cor inf ref, a quem também pedi opinião, na mesma data.

[Foto à direita ... Recorde-se que ele foi alf art  na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; e Capitão Art Cmdt das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74]

Nunca estudei esse assunto.

Creio que não estarão incluídos por terem o estatuto de civis que colaboravam com as NT.

Não ganhavam como soldados e no período de formação (em Mansabá houve instrução de milícias) não tinham a mesma verba para alimentação dos soldados que assentavam praça para fazerem o SMO.

Em 1968 ainda armavam de Mauser e vestiam as sobras do fardamento e equipamento das NT. Daí para a frente as coisas mudaram e surgiram até os GEMil (havia dois no Enxalé, em 1972).

Claro que, nestas condições,  a sua prestação era variável havendo Pelotões de  Milícias com óptimas prestações e outros nem tanto. 

O mesmo sucedia individualmente. Até conheci um que, em 1968 era muito decidido e em 1972 procurava viver na paz do seu lar deixando a guerra que parecia não ter fim.
Um Ab.

António J. Pereira da Costa

4. Comentário, de 14 do corrente, do Jorge Picado, ao mesmo poste (*)



[Foto à esquerda: ex-cap mil na CCAÇ 2589/BCAÇ 2885, Mansoa, na CART 2732, Mansabá e no CAOP 1, Teixeira Pinto, 1970/72 ... aos 32 anos, pai de 4 filhos, engenheiro agrónomo, ilhavense].



Camaradas: Comungo do sentimo geral expresso sobre "a sorte" dos guineenses que nos foram fieis e que muito nos ajudaram.

Já agora, como dizem que os milícias e outros, como os carregadores, não constam das baixas em combate, posso acrescentar que na HU do BCaç 2885, constam os seguintes Mortos em Combate:

Pel Mil n.º 250 (Ex-Pel Mil n.º155)

- Soldado Mil.ª n.º 17267 Bailó Djaló, em 18MAI69

Pel Mil  n.º 251 (Ex-Pel Mil n.º 156)

- Soldado Mil.ª n.º 21067 Alberto Silva, em 18JUL69

Pel Mil n.º 252 (Ex-Gr Caç Balantas) (Ex-Pel Mil  n.º 186)

- Caçador Nativo José Bacar, em 04JUL69
- Caçador Nativo Clode Biete, em 18JUL69
- Caçador Natigvo Toban Car, em 23SET69
- Cacçador Nativo Quedim Botche, em 23SET69
- Soldado Mil  n.º 49069 Tuquena Iagna, em 06DEZ70

Pel Mil.ª n.º 253 (Ex-Pel Mil.ª n.º159)

- Soldado Mil.ª n.º 02868 Sambel Sabali, em 05OUT70

Colaborador das NT

- Carregador José Sambú, em 17AGO69.

Abraços
JPicado

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Notas do editor:

(*) 12 de janeiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12576: Os nossos camaradas guineenses (36): Abdulai, meu irmão!... Recordando quatro valorosos milícias de Guileje: Sátala Colubali, Camisa Conté, Abdulai Silá e Sargento Samba Coiaté (Manuel Reis, ex-Alf Mil Cav, CCAV 8350, Guileje, Gadamael, Cumeré, Quinhamel, Cumbijã, Colibuia, 25/10/72 - 27/8/1974]

(**) Vd. postes de:

20 de abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11429: Memórias de um capitão miliciano (António Vaz, cmdt da CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69) (1): os meus picadores e guias, Seco Camará e Mancaman Biai

26 de novembro de  2010 > Guiné 63/74 - P7339: In Memoriam (62): Por quem os sinos dobram hoje, 40 anos depois: Fernando Soares, Joaquim de Araújo Cunha, Manuel da Silva Monteiro, P. Almeida, Rufino Correia de Oliveira e Seco Camará, os bravos do Xime, mortos na Ponta do Inglês (Op Abencerragem Candente) (Luís Graça)

11 de março de 2010 > Guiné 63/74 - P5974: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (3): O velho picador, Seco Camará

12 de fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5803: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (2): Os guias e picadores, mandingas, do Xime, Malan e Mancaman: duas maneiras diferentes de ser e de estar na guerra...

2 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5578: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/Mai 71) (7): Mancaman, mandinga, filho do chefe da tabanca do Xime, um homem de paz


Guiné 63/74 - P12587: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (14): A minha casa em Bissau

1. Continuação das "Memórias da Guiné" do nosso camarada Fernando Valente (Magro) (ex-Cap Mil Art.ª do BENG 447, Bissau, 1970/72), que foram publicadas em livro de sua autoria com o mesmo título, Edições Polvo, 2005:


MEMÓRIAS DA GUINÉ

Fernando de Pinho Valente (Magro)
ex-Cap Mil de Artilharia

14 - A MINHA CASA EM BISSAU

Em 24 de Junho de 1970 a Lena e o meu filho Fernando Manuel chegaram a Bissau, depois de cumprido o ano escolar de 1969-1970.
Foram viver para uma pequena moradia situada na Avenida Arnaldo Schulz, que eu tinha conseguido alugar.
A nossa casa localizava-se muito próximo do Quartel da Polícia. Era uma pequena vivenda, com uma sala de estar, outra de jantar, dois quartos, cozinha e casa de banho. Mas tinha à sua volta um pequeno jardim no qual havia duas bananeiras e uma linda acácia rubra.

Dada a minha posição na hierarquia militar tive direito a um impedido. Foi-me atribuído para exercer essas funções um soldado negro, que anteriormente havia sido "terrorista", de nome Moba, de religião muçulmana.
Tinha já três mulheres quando entrou ao meu serviço e vários filhos.
Andava sempre com dificuldades financeiras. Muitos dias antes do pagamento do pré1 pedia-me adiantamentos e isto quase todos os meses.
Dizia-me que não tinha dinheiro para comprar a "vianda" para os meninos. E eu adiantava-lhe o pré.

A sua religião proibia-o de beber vinho. Mas para ele vinho somente era o tinto. Desta forma iludia as suas próprias convicções religiosas, pois dizia-me que o vinho branco era água de Lisboa e como tal não lhe estava proibido bebê-lo.
Quando a sede lhe apertava pedia-me:
- Capitão, dá-me um copo de água de Lisboa.

E eu, em regra, satisfazia-lhe o pedido.
Um dia pediu-me férias.
- Férias nesta altura, Moba?
- Sim, Capitão. Preciso de alguns dias de férias para casar.
- Outra vez?! - admirei-me eu. Já tens três mulheres e não sei quantos filhos e queres casar outra vez? O dinheiro não te chega a nada, estás sempre a pedir-me adiantamentos e ainda queres outra mulher?
- Preciso, Capitão. Vou casar com uma "bajuda". Quando eu e as minhas outras mulheres envelhecermos ela tratará de nós.

Perante esta explicação não pude deixar de dar férias ao meu impedido Moba.
E a explicação que me deu levou-me a considerar que a organização social dos muçulmanos protege a velhice dos seguidores dessa religião.
Também entre as várias mulheres de um só homem não se verifica a existência do ciúme. Era usual pentearem-se umas às outras em frente das palhotas, convivendo amigavelmente.

Tivemos também uma lavadeira negra de nome Inácia. Durante o tempo que esteve ao nosso serviço o marido adoeceu gravemente e acabou por morrer.
Ficamos muito tristes com o infausto acontecimento uma vez que tínhamos muita estima pela Inácia, que era muito boa mulher.
Sempre que me irritava com alguma traquinice do meu filho e lhe ralhava ela punha-se imediatamente à frente e rogava-me:
- Capitão, não batas ao menino. Capitão, por favor.

Por isso quisemos saber da futura situação da Inácia e do seu pequeno filho.
Ela informou-nos que tudo estava assegurado. Passaria a pertencer a um cunhado e o "tiozinho" passaria a ter a responsabilidade de tratar e criar o miúdo.
Era uma criatura paciente, humilde e meiga. Gostava muito do meu filho. Dizia a respeito dele, muitas vezes:
- Menino, tem esperto na cabeça.

Tivemos também uma "bajuda" para a limpeza. Era uma rapariga muito nova que, findo o trabalho, se despia completamente nas traseiras da nossa casa e se lavava com a mangueira do jardim.
Encontrei o meu filho, algumas vezes, por detrás da persiana, gozando o espectáculo que a "bajuda" oferecia sem o mínimo pudor.

A nossa alimentação vinha da Messe de Oficiais do Batalhão de Engenharia pelo que não cozinhávamos.
Também tivemos um pequeno cão, o Perna Longa, e um periquito.
Uns tempos antes de regressarmos a Portugal demos o cão. O Moba tratou de o levar para o novo dono que habitava longe de nós.
O animal procurou e conseguiu voltar a nossa casa, orientando-se não sei como por entre aquele emaranhado de bairros de palhotas que circundavam a cidade. Só depois de ser preso pelo novo dono é que deixou de nos aparecer.

Quanto ao periquito ofereci-o ao Major (é hoje General) Carlos Azeredo. Ele tinha um periquito que morreu. O major falara-me do seu passamento com alguma tristeza.
Perto de regressarmos, para aliviar a tristeza do major, ofereci-lhe o periquito.

Nutria por este major uma certa simpatia, enquanto permaneci na Guiné.
Mais tarde vim a saber que entre a minha família e a dele havia fortes relações, dada a proximidade das "casas" a que ambos pertencemos.
Ele é oriundo da Casa do Cabo de Marco de Canavezes e eu da Casa da Seara de Magrelos.

Enquanto durou a minha comissão na Guiné a Lena trabalhou como professora na Escola Preparatória de Bissau e o nosso filho Fernando Manuel fez lá a 4.ª classe, a admissão ao Liceu e o 1.º ano do Ciclo Preparatório.
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12503: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (13): A Economia da Guiné - A Feira de Amostras de 1971

Guiné 63/74 - P12586: O Destacamento da Ponte do Rio Udunduma - As acções especiais durante o segundo semestre de 1973 (parte II) (Jorge Araújo)

1. Mensagem do nosso camarada Jorge Araújo (ex-Furriel Mil. Op Esp / Ranger, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/1974), com data de 14 de Janeiro de 2014:

Caríssimos Camaradas Editores:
Luís Graça, Carlos Vinhal e Eduardo Magalhães. 
Antes de mais, desejo-vos um óptimo ano de 2014.
Depois de uma primeira narrativa histórica [P12565], que serviu de apresentação a um novo contexto vivido pelo efectivo militar da CART 3494, no qual me incluo, relacionada com o quotidiano de práticas e experiências contabilizadas durante a presença no Destacamento da Ponte do Rio Udunduma, ocorridas durante o 2.º semestre de 1973 [já lá vão mais de quarenta anos!] eis, pelo presente, a segunda peça desse puzzle.

Obrigado pela atenção
Jorge Araújo
14Jan/2014


O DESTACAMENTO DA PONTE DO RIO UDUNDUMA 

(XIME-BAMBADINCA) 

- As acções especiais durante o 2.º semestre de 1973 [parte II] - 

A segurança à[s] Ponte[s] do Rio Udunduma

1. - Introdução

No texto anterior [P12565*] dei-vos conta do itinerário histórico que me levou, assim como ao competente efectivo militar da CART 3494, até ao Destacamento da Ponte do Rio Udunduma, sito ao km 4 da Estrada Bambadinca/Xime, identificando as três principais acções “especiais” aí realizadas durante o 2.º semestre de 1973, a saber: delimitação física da área do destacamento com arame farpado; construção em alvenaria de uma moradia e melhoramentos dos caminhos internos, culminando com a edificação de um monumento em memória do colectivo da Companhia 3494, a que designámos por “Rotunda da Ponte” [fotos anteriores].

Com esta tríade de benfeitorias, procurou-se dotar aquele contexto com um pouquinho mais de dignidade humana, tendo em consideração o superior interesse pela salvaguarda da integridade física e mental de cada um de nós, pois tratava-se de um cenário adverso, miserável e degradante, certamente como tantos outros por que passamos no CTIG, em particular os mais operacionais, independentemente da época em que tal se verificou.

Como reforço do acima expresso, apropriamo-nos, nesta abordagem histórica, de um pensamento/reflexão do camarada Luís Graça [CCAÇ 12], nosso antepassado e um dos pioneiros envolvidos nestas e em outras aventuras na região, e também ele contemplado, no seu tempo, com várias visitas ao local, referindo-se sobre este contexto nos seguintes termos: “o mítico destacamento da ponte do Rio Udunduma… e os “desgraçados que lá penaram dias e dias à boa vida…” e […] “O maldito “buraco” da ponte do Rio Udunduma, o inferno de mosquitos, cobras e ratos, onde muitos de nós, nos idos tempos de 1969/70, vivemos como animais…”. Ou, ainda, a experiência aí contabilizada, durante dois meses do ano de 1972, pelo camarada Joaquim Mexia Alves, ex-Alferes Op Esp/Ranger da CART 3492/BART 3873 e, depois, CMDT do Pel Caç Nat 52, afirmando que “as instalações eram tétricas, e que havia uma qualquer construção de ripas de madeira tipo refeitório”.

De facto, foram cinco os anos em que por lá passaram algumas centenas de militares, africanos e metropolitanos, pertencentes a diversas subunidades do Sector L1, já divulgadas anteriormente, ocorrência iniciada em 29MAI1969 por via da ponte velha ter ficado danificada após atentado perpetrado pelo PAIGC, e que só teve o seu epílogo com o fim da guerra de guerrilha, pós 25 de Abril de 1974.

Esses efectivos colocados numa linha avançada em relação à sede do Batalhão, sito em Bambadinca, [repito] permaneceram activos e vigilantes mas desprovidos de qualquer rectaguarda de apoio militar, em que cada um de nós estava completamente abandonado à sorte da divina providência e à sua capacidade de resistir e de sobreviver, ou seja, à sua dimensão transcendental.

Assim, no alinhamento do texto anterior, com este segundo episódio pretende-se aprofundar a caracterização do contexto, socorrendo-nos de algumas imagens [as existentes no meu arquivo], esperando que se confirme o tal ditado popular: uma imagem vale mais que mil palavras.


2. - Caracterização do contexto através de imagens

Considerando que a foto 3, apresentada na narrativa anterior, surgiu com a legendagem desalinhada, entendemos ser pertinente a sua repetição.

Foto 14 – Estrada Xime-Bambadinca [Ponte do Rio Udunduma – Jul/1973] – imagem da estrada velha, assinalando-se a ponte semidestruída em 1969 [fotos 1 e 2], e Bambadinca, ao fundo, como local mais próximo, a quatro quilómetros desta. Na linha do horizonte, vê-se a nova estrada na qual é possível contar uma coluna de mais de uma dezena de viaturas civis, em direcção ao Cais do Xime.

Foto 15 – Estrada Xime-Bambadinca [Ponte do Rio Udunduma – Jul/1973] – O “Chefe da Tabanca da Ponte” disfarçado de Jorge Araújo [ou vice-versa]. No canto superior direito vê-se a Ponte Nova e a respectiva estrada. Bambadinca fica para a direita e o Xime para a esquerda.

Foto 16 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte - 1973] – As duas pontes e o Rio Udunduma. Bambadinca fica para a esquerda e o Xime para a direita.

Foto 17 – Estrada Xime-Bambadinca [Ponte do Rio Udunduma - 1973] – A Ponte Nova, o Rio Udunduma, à direita, e a bolanha contígua. Bambadinca fica para a esquerda e o Xime para a direita. 

Foto 18 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte - 1973] – Eis os buracos no chão, cobertos com palmeiras, chapas e terra, herdados na sobreposição [fotos 5 e 6].

Foto 19 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte - 1973] – Um dos três postos de vigia. No canto superior esquerdo podem ver-se as instalações sanitárias [foto 26] e a estrada para Bambadinca.

Foto 20 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte - 1973] – O monumento edificado em memória do colectivo da CART 3494 e, ao fundo, para sul, mais dois postos de vigia, tendo por perto uma estrutura em arame farpado [fotos 7 e 8].

Foto 21 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte - 1973] – Troço da estrada velha junto à ponte danificada [fotos 1 e 2], única via de acesso ao destacamento. Do lado esquerdo estão os abrigos e os postos de vigia. A meio, junto à 1.ª árvore da esquerda está a mesa de refeitório [foto 22]. À direita, +/- a meio da imagem, está a moradia construída [fotos 9 e 10]. Do lado direito fica a estrada Xime-Bambadinca [fotos 14 e 15].

Foto 22 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte - 1973] – A mesa polivalente, onde se comia, escrevia, li, jogava e… conversava. Em suma: o espaço de socialização e de partilha. Da esquerda para a direita, os ex-soldados: Gregório Santos; José Sebastião (?); Ricardo Teixeira e eu próprio, participando no” mata-bicho” das tardes de seca, confeccionado num forno de alta tecnologia, conforme se dá conta na imagem seguinte. Junto à chapa ondulada pode ver-se um exemplar de petromax.

Foto 23 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte - 1973] – Último modelo de cozinha de campanha, com fogão modelo “palmeira rastejante”, cuja patente foi registada na conservatória local. Eu e o soldado Amândio Domingues em fase de conclusão de um suculento «pato da bolanha ao piri-piri», uma iguaria contemplada no cardápio da restauração local.

Foto 24 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte - 1973] – A mesma mesa da foto 22 depois de desactivada na sequência da conclusão da moradia, onde passou a existir uma sala de jantar, mas onde não havia alimentos. Estes eram confeccionados em Bambadinca, na CCS, e chegavam-nos às diferentes horas do dia, segundo a sequência das refeições.

Foto 25 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte - 1973] – Enquadramento paisagístico com um plano de água do Rio Udunduma. Este fazia fronteira com a zona leste do destacamento. 

Finalmente, e tendo por base a mesma falha observada na foto 13 do texto anterior, decidimos repeti-la, devidamente corrigida, para uma melhor leitura do contexto.

Foto 26 – Estrada Xime-Bambadinca [Destacamento da Ponte - 1973] – imagem das instalações sanitárias… último modelo… e, daí, não terem sofrido quaisquer alterações até ao final da comissão. Por detrás do WC correm as águas do Rio Udunduma [foto 25].

Com esta imagem, damos por concluído o segundo capítulo desta nossa missão, histórica, especial e colectiva, vivida na Ponte do Rio Udunduma durante o 2.º semestre de 1973.

Segue-se a [III] crónica referente às principais actividades diárias desenvolvidas pelo grupo aí instalado.

Espero que esta narrativa tenha servido, tal como a anterior, como elemento de comparação com um vasto leque de outros exemplos que constam do currículo de muitos de Vós, e de inspiração a outras escritas, pois ainda estamos a tempo de as narrar na nossa Tabanca Grande.

Um forte abraço para todos e votos de muita saúde.
Jorge Araújo
Jan/2014
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Nota do editor

(*) Vd. poste anterior de 10 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12565: O Destacamento da Ponte do Rio Udunduma - As acções especiais durante o segundo semestre de 1973 (parte I) (Jorge Araújo)

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12585: Roteiro de Bafatá, a doce, tranquila e bela princesa do Geba (Fernando Gouveia) (14): Foto aérea, nº 3 (Humberto Reis)






Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Bafatá > c. 1969/71 > Foto nº 3 > Vista aérea, do álbum do fur mil op esp Humberto Reis, CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71). Foto tirada de helicóptero.


Foto aérea nº 3 (Humberto Reis) > Legendas de Fernando Gouveia

1 – Rio Geba.

2 – Rio Colufe.

3 – Piscina.

4 – Parque infantil e estátua de Muzanty.

5 – Estrada para Bambadinca.

6 – Mercado.

7 – Casa do cinema em construção.


Guiné > Zona leste > Bafatá > c. 1968/70 > Foto nº 12, do álbum do Fernando Gouveia  > Porto fluvial e ponto de encontro das lavadeiras, na margem esquerda do Rio Geba. Ao fundo veem-se três canoas de pescadores. O rio era navegável até aqui. Na foto de cima veem-se três embarcações que regressam a Bissau, via Bambadinca e Xime.

Legendas: 1. Estátua de Muzanty; 2. Piscina.

Foto (e legenda): © Fernando Gouveia (2013). Todos os direitos reservados.


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá > 15 de Dezembro de 2009 > 18h06 > Ao fundo, a fach velho cinema de Bafatá, parado há muitos anos.. Dizem que há um homem que toma conta do velho cinema, abandonado... Da esquerda para a direita: um habitante local, surdo-mudo, fotografado com o João Graça, médico e músico, membro da nossa Tabanca Grande, e o Antero, seu motorista...


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá > 15 de Dezembro de 2009 > 15h22 > Restos do passado colonial: ao fundo, a antiga Casa Giuveia, hoje, sede do Tribunal Regional de Bafatá; e  antigo  parque infantil com a estátua de Muzante, hoje uma rotunda, ajardinada, tendo ao centro ae estátua de Amílcar Cabral, que é filho de Bafatá...

Fotos: © João Graça  (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: L.G.]


Foto aérea (em cima): © Humberto Reis (2006).Todos os direitos reservados [Edição: L.G.]  

[Humberto Reis, foto atual à esquerda]

1. Continuação da publicação do 
"roteiro de Bafatá", organizado pelo
 Fernando Gouveia [, ex-alf mil rec inf, 
 Cmd Agr 2957, Bafatá, 1968/70; 
autor do romance Na Kontra Ka Kontra,
Porto, edição de  autor, 2011; arquiteto, residente no Porto]

[Fernando Gouveia, foto atual à direita]

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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P12584: Blogpoesia (366): Por uma simples questão de aritmética, cheguei à conclusão que o inferno não existe... [Ou, se existe, só pode ser cá na terra, Joaquim!... LG]


1. Por uma questão de aritmética!...

por J. L. Mendes Gomes


Cheguei à conclusão
De que o inferno não existe.
Nem sequer o purgatório,
Como tanto pregaram...

Pois se eu tenho
Quatro filhos,
Jamais seria capaz de os lançar ao fogo...
Que será Deus...
Que quis, de graça, ser nosso Pai?...

Vejam a festa que Ele fez
Ao filho pródigo...
Que pediu a herança
E foi correr mundo...
Fez-lhe uma festa
E recebeu-o de novo,
Sem pedir contas!...

Berlim, 14 de Janeiro de 2014, 14h42m
Joaquim Luís Mendes Gomes


[ex-alf mil, CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66; jurista, reformado; autor do livro de poesia "Baladas de Berlim", Lisboa, Chiado Editora, 2013, 232 pp., preço de capa;: € 14; encomendar aqui]
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Nota do editor:

Último poste da série > 3 de janeiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12537: Blogpoesia (365): 'Receita de Ano Novo', de Carlos Drummond de Andrade, uma prenda do Vasco Pires, um camarada da diáspora , ex-alf mil, cmdt, 23º Pel Art, Gadamael, 1970/72

Guiné 63/74 - P12583: Manuscrito(s) (Luís Graça) (17): À uma e meia da tarde quando o relógio parou, na estrada de Nhabijões-Bambadinca, no dia 13 de janeiro de 1971... Homenagem a um grande sobrevivente, António Marques

1. Passou ontem uma efeméride, de triste memória para nós, CCAÇ 12 e CCS/BART 2917: há precisamente 43 anos, no dia 13 de janeiro de 1971, a escassos quilómetros de Bambadinca, à saída do reordenamento de Nhabijões (uma das coqueluches de Spínola e da sua 'Guiné Melhor'), duas viaturas nossas, com um intervalo de 2 horas, acionaram minas A/C. Resultado: 1 morto (da CCAÇ 12) e 6 feridos graves (da CCAÇ 12 e da CCS) foi o balanço, trágico, desse dia...

Ontem às 13h30 em ponto, o meu querido amigo e camarada António Fernando Marques telefonou-me a relembrar esse momento que nunca mais esqueceremos, ele e eu... porque está-nos gravado na carne e na alma... 

Já aqui em tempos o tinha homenageado através de um poema (*) que, de resto,  quero incluir no meu próximo livro de poesia... Fiquei muito sensibilizado pelo telefonema dele, que atendi à porta do consultório do meu médico... Coincidência: ia justamente fazer um exame de vigilância médica periódica, como mandam as regras da arte da boa conservação da saúde...

Confesso que, a princípio, não estava a perceber por que é que ele me estava a dar os parabéns...Pensei cá para comigo: "Bolas, mas  eu só faço anos daqui a 16 dias, no dia 29!"... Muito delicadamente dei-lhe a entender que ainda era cedo... Mas depois fez-se o clique, quando ele voltou a insistir: "Estão a fazer 13h30"...Só então se fez luz na minha mente: ele estava a querer referir-se à mina A/C em que ambos tínhamos caído, mais as nossas duas secções, numa velha GMC do tempo da guerra da Coreia!... Há precisamente 43 anos,  às 13h30, do dia 13 de janeiro de 1971, aos 20 meses de comissão!... Nas nossas barbas, à saída do reordenamento 8e destacamento) de Nhabijões!...

Que merda de memória a minha!... Agora estava a atender!... Desculpa, camarada!... Mas, parabéns, porquê ? Por estarmos vivos, termos sobrevido!'... Só podia ser!... Dois sobreviventes, eu e ele! E ele ainda mais do que eu, que teve uma longa convalescença de 2 anos... Senti que, do outro lado do telemóvel, o Marques estava emocionado. E lembrei-me de quanta sorte tivera eu nesse fracção de segundo que podia ter ditado a minha, a nossa morte...

Pedi-lhe desculpas por não ter, de imediato, associado a sua chamada à trágica efeméride. Sou mau em datas. Esqueço-me dos aniversários de familiares e amigos.  E,  para mais, das efemérides da guerra... São coisas que a gente esquece, recalca, sublima, escamoteia, branqueia, ignora ou faz por isso...

Para, de algum modo,  compensar a sua eventual deceção face à minha involuntária  indelicadeza, disse-lhe que estava a preparar um livro de poesia para publicação e que o poema que eu, em tempos, lhe tinha dedicado, aqui no blogue , sobre a explosão da mina em Nhabijões (*), deveria ser um dos poemas elegíveis para a minha antologia...

Pois aqui fica, em homenagem a um grande, a um digno,  a um teimoso e corajoso sobrevivente, o António Fernando Marques, ex-fur mil at inf, 4º Gr Comb, CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71 + 2 de hospital militar)... Extensivo à sua Gina, uma grande mulher que deixou tudo para o ajudar a recuperar e reintegrar-se quando esteve no Hospital Militar Principal... Eles são um casal que eu muito admiro e têm dois filhos maravilhosos, que eu um dia ainda hei-de conhecer: uma comissária de bordo e um comandante da aviação comercial...

Esta é  a última versão do poema, revista ontem. Comecei justamente a escrevê-lo há 43 anos, no meu diário... E ficará para sempre inacabado... É uma espécie de suplício de Sísifo... É também uma homenagem a todos os meus camaradas que um dia, na guerra, conheceram o horror da explosão de uma mina, A/P ou A/C... (**)... Não posso deixar de lembrar quanto este poema (ou melhor, este singelo texto poético, que começou como prosa...)  é devedor ao genial poema de Frederico Garcia (1898 - 1936), Llanto por Ignacio Sánchez Mejías (1935), esse sim um dos poemas mais belos e mais trágicos da história da poesia universal. (***)



2. À uma e meia da tarde...

Ao António Marques

Era uma hora e meia da tarde
quando o relógio parou,
na estrada de Nhabijões-Bambadinca.

... O sol dos trópicos desintegrou-se.
O céu tornou-se de bronze incandescente.
Mil e um pequenos sóis riscaram o ar.
O mamute de três toneladas deu um urro de morte,
ao ser projetado sob a lava do vulcão.
Uma súbita explosão…
Um trovão que ecoa até ao Mato Cão,
a norte...
E depois o silêncio.
O silêncio da morte.

...À uma e meia hora da tarde
na estrada de Nhabijões-Bambadinca.

Sei que gritaste:
– Agarrem-se que a viatura vai despenhar-se!
Sei que foste projetado ao lado do condutor,
batendo violentamente
com a cabeça na chapa do tejadilho.
Sei que conseguiste equilibrar-te
dentro do caixão de ferro.
Sei que não vias nada.
Sei que a espessa nuvem de pó, envolvente,
exalava um forte cheiro a enxofre.
Mas ainda conseguiste pensar:
– O ar está rarefeito,
milhões de partículas de pó barrento
bloqueiam-me os pulmões,
vou sufocar dentro desta maldita cabina!

... Foi quando parou o teu relógio,
à uma e meia da tarde
do dia 13 de janeiro de1971,
à saída do destacamento de Nhabijões.

… Um curto-circuito ocorreu no teu cérebro,
como se tivesses sido eletrocutado.
Ficaste rigidamente colado ao assento,
a G3 entrelaçada nas pernas,
e a estranha sensação
de que a massa encefálica te tinha saltado da caixa craniana.
O olhar vidrado
de quem mergulhou nas profundezas da terra.
O gélido terror
de quem entrou num mundo desconhecido.
A antevisão da viagem pelo Rio de Caronte.
O calafrio da morte, 
trespassando o teu corpo da cabeça aos pés.

...À uma e meia da tarde
na estrada Nhabijões-Bambadinca.

Nunca saberás ao certo
quantos segundos se passaram,
mas houve um solução de continuidade,
essa fração de tempo
em que a tua consciência esteve bloqueada,
e os pulmões falharam,
e o sangue gelou,
e o coração parou,
de puro terror,
escreve, não tenhas pudor,
de puro terror...
até compreenderes que a velha GMC
tinha acionada... uma mina!

– Outra mina, meu Deus!,
que horror!
e instintivamente agarraste-te àquela carcaça de mamute,
mal refeito da surpresa de estar vivo.


...À uma e meia da tarde,
à saída do reordenamento de Nhabijões.

Quando saltaste para o chão,
tinhas, sob o olhar aterrado,
os destroços duma batalha:
corpos por todo o lado,
juntamente com espingardas,
cartucheiras,
cantis,
canos de bazuca e de morteiro,
granadas,
dilagramas,
um rádio,
bocados de chapa e de borracha,
quicos,
botas,
restos de camuflado,
numa profusão indescritível.
Corpos que gemiam,
que gritavam,
ou que talvez já fossem cadáveres.

...No vulcão de Nhabijões,
a oeste de Bambadinca,
Setor L1, 
Zona Leste,
Teatro Operacional da Guiné,
África subsariana,
Planeta Terra!

Mortos! Tudo mortos!
gritava-te o puto Umaru,
os braços abertos,
o pânico estampado no seu belo rosto de efebo,
menino fula feito soldado, 
sem o seu inseparável pequeno cachimbo,
que sempre usava para lhe dar o ar
de falso Homem Grande.

E logo ali o Transmissões,
o primeiro ferido que reconheceste,
todo encolhido junto ao colosso de ferro amalgamado,
numa postura fetal, de defesa,
em estado de choque.

Abeiraste-te depois do comandante da 1ª secção,
teu companheiro de quarto, 
 o Marques,
o teu querido Marquês sem acento circunflexo,
como o tratavas,
mas ele já não reagia à tua voz
nem às bofetadas que lhe davas no rosto,
o olhar vidrado
dos passageiros do barco de Caronte.
Aparentemente não tinha qualquer fratura exposta
mas de um dos ouvidos corria-lhe um fio de sangue.
Um fiozinho, 
vermelho e negro,
rapidamente oxidado em contacto com o ar.
Procuraste desesperadamente
os seus sinais vitais,
mas sua respiração era cada vez mais fraca,
e o pulso escapava-se-te,
entre os teus dedos,
como a areia da ampulheta.

Trágica ironia!,
um minuto antes,
ao subirem os dois para a viatura,
haviam disputado amigavelmente o 'lugar do morto'.
Vais tu, vou eu, vais tu, vou eu!...

À uma e meia da tarde de um dia treze,
ao vigésimo mês de Guiné,
em Janeiro de 1971.

Acabaste por ser tu a ir para o 'lugar do morto',
ao lado do condutor.
Mas daquela vez, e para sorte tua,
a mina rebentaria sob um dos rodados duplos traseiros da GMC,
embora do teu lado.
A velha GMC do tempo da Guerra da Coreia,
que gastava cem aos cem...
e que acabava de fazer a inversão de marcha,
de regresso ao quartel,
em Bambadinca.

Outra filha de puta de mina,
não detetada pelos nossos picadores,
fora acionada, na berma da estrada,
às portas do reordenamento de Nhabijões,
a coqueluche do comando do batalhão.
Porra, camaradas, 
a escassos metros da anterior,
já fora da estrada!

… À uma e meia da tarde
de um dia 13, 
que nem sequer era sexta-feira 13,
de azar!

Estavas de piquete,
quando duas horas antes uma viatura nossa
acionara uma mina.
Um frágil burrinho, um Unimog 411.
Ia buscar o almoço para o pessoal do reordenamento.
O condutor, o Soares, teve morte imediata.
O furriel Fernandes, também da CCAÇ 12,
o alferes sapador Moreira e outro militar,
ambos da CCS do batalhão,
ficaram feridos, com gravidade…

Mas só agora reparaste no velho Tenon,
no Ussumane, no Sherifo,
mesmo ao meu lado, a teus pés,
sem darem acordo de si.
E ainda no Quecuta, no Cherno
e no Samba, teu bazuqueiro,
arrastando-se penosamente sobre os membros superiores,
como lagartos cortados ao meio.

…À uma e meia da tarde
na estrada da morte,
com as palmeiras de Samba Silate
e o Rio Geba ao fundo.

As duas secções que seguiam atrás, na GMC,
tinham sido projetadas pelo vulcão de trotil,
como se fossem cachos de bananas.
Caso se seguisse uma emboscada,
então seria um massacre.
Tu eras o único que tinha uma arma na mão,
mas inútil, inoperacional, encravada,
devido ao choque sofrido…
Não deixaste de sentir um calafrio
ao imaginar-me sob a mira certeira dos RPG
e sob o matraquear das 'costureirinhas' e das Kalash.

… Ali, à uma e meia da tarde,
em Nhabijões,
na Guiné,
longe de Saigão,
'far from the Vietnam'.

Tinhas acabado de fazer o reconhecimento das imediações,
detetando o trilho dos guerrilheiros
que, durante a noite,
tinham vindo pôr as minas assassinas…
Eles faziam a guerra deles,
tão cruel e tão suja como a nossa.
Esse trilho, mais fresco,
acabava por confundir-se
com os usados pela população de Nhabijões
que, como tu sabias,
não morriam de amores pelos tugas…
Hoje sabemos os seus nomes,
os nomes dos que nos montaram as duas minas:
Mário Mendes, chefe de bigrupo,
e Mário Nancassá, sapador.

SOS, evacuação Ypsilon,
vais a correr para o heliporto,
sem soro,
sem garrotes,
sem pensos,
sem maqueiro,
sem mala de primeiros socorros!

...Numa luta desvairada contra o tempo,
na estrada Nhabijões-Bambadinca.

Era possível, entretanto, que houvesse mais minas
pela estrada fora.
Ainda hesitaste em mandar picar o terreno,
mais alguns metros em redor,
mas não podias perder nem mais um segundo,
para logo seguires de imediato,
para os helis que aguardavam os feridos mais graves,
em Bambadinca.
Mais até do que a solidariedade
entre camaradas de guerra,
mais até que a tua amizade pelo Marques,
de repente o que te terá movido,
o que te deu força anímica,
o que te deu uma raiva de vulcão,
foi o brutal sentimento do absurdo da morte,
do absurdo daquela guerra,
a raiva contra aquela guerra,
na véspera de fazeres 24 anos!.

… À uma e meia da tarde
nessa maldita picada do inferno.

Foi uma corrida louca, aquela,
na fronteira indefinida
que separava a vida da morte
na estrada de Nhabijões.
No primeiro Unimog 404 que te apareceu à mão,
e que levava um carregamento letal de feridos.
Três deles estavam em estado de coma
e tinham como destino outro inferno:
o hospital de Bissau,
os Alouettes III, roncando como o macaréu,
sobre o Geba, largo e medonho,
a incerteza do desfecho da luta entre a vida e a morte
aos vinte e poucos anos de idade.

…No dia 13 de Janeiro de 1971,
num dia que nem era sexta-feira,
mas que foi de terrível azar,
às treze e meia da tarde,
quando o teu relógio parou
à saída da grande tabanca de Nhabijões,
finalmente reordenada
e controlada…

Luís Graça, Bambadinca, 13/1/1971 / Lisboa, 13/1/2014 
[Revisto nesta data]


[Foto à esquerda: António Fernando Marques e Luís Graça. Bambadinca, s/d, c. 1970.  Foto de L.G.]

____________

Notas do editor:

(*) vd. poste de 28 de janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5717: Blogpoesia (64): À uma e meia da tarde...Em homenagem ao António Marques, que sobreviveu, dois anos depois, à explosão de um vulcão (Luís Graça)

(**) Último poste da série > 1 de janeiro de  2014 > Guiné 63/74 - P12529: Manuscrito(s) (Luís Graça) (16): desejos

(***) Há uma magnífica tradução de José Bento:

vd.  Frederico Garcia Lorca - Antologia poética: selecção, prólogo e notas de José Bento
 Lisboa: Relógio d'Água, 1993, 421 páginas. 

Sinopese:  Esta antologia contém a tradução integral de quatro livros de García Lorca: Romancero Gitano;  Poeta en Nueva York; Llanto por Ignacio Sánchez Mejías;  e Diván del Tamarit. Integra também uma selecção de Canciones e do Poema del Cante Jondo e sete sonetos de um livro inacabado.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12582: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (78): Informação sobre o ex-1º srgt Fernando Brito, da CCS/BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), que é meu avô, está reformado como major e vive em Coimbra (Cláudio Brito)



Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CSS/BART 2917 (1970/72) > c. 2º trimestre de 1970 > O então 1º sargento Fernando Brito, na estrada de Bambadinca-Bafatá às voltas, com o condutor e um outro militar, com um problema no motor do seu jipe.


Fotos: © Benjamim Durães (2010). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem: L.G.]



Coimbra > c. 2013 > Avô e neto, da esquerda para a direita, Fernando Brito e Cláudio Brito.

Foto: © Cláudio Brito (2014). Todos os direitos reservados.

1. Mensagem do nosso leitor Cláudio Brito:

De: Claudio Brito

Data: 12 de Janeiro de 2014 às 15:47

Assunto: Informação sobre o Capitão Fernando Brito



Boa Tarde, Caro Sr. Luís Graça,


Observei com atenção o seu blog, no qual fala, entre muitas outras coisas, do meu avô, o Capitão Fernando Brito, reformado como Major e, na altura da comissão na Guiné, 1º Sargento [, da CCS/BART 2917, Bambadinca, 1970/72]. Foi numa pesquisa que encontrei, para minha felicidade, esta página, o poste P9144.(*)

Congratulo vossas excelências pelo magnífico trabalho da História militar que no blog em causa executaram. Eu próprio sou formado em História, licenciatura e mestrado, e muito (se não quase tudo) devo ao meu avô.

Quero então informar, para atualizar o seu blog, que o Capitão Fernando Brito, por quem expressam carinho e saudade na página em causa, está vivo, tem 82 anos, está de boa saúde e continua a morar em Coimbra, no mesmo prédio, só o telefone é que mudou [Endereço a comunicar aos camaradas de Bambadinca, pelo correio interno da nossa Tabanca Grande, incluindo os orgnaizadores dos encontros do pessoal do BART 2917, L.G].

A minha avó, a senhora com o nome russo que falaram na página, Natacha, infelizmente morreu no passado dia 23 de Março do ano 2012. A juntar com a morte do meu pai (seu filho), a 9 de fevereiro de 2001, como devem entender, foram dois duros golpes para o meu avô que, para minha admiração, continua "rijo que nem um pêro", mantendo o físico e o verbo.

Pedia, se quisessem, pois o deixaria muito feliz, que lhe ligassem e falassem um pouco com ele ou mesmo que um dia se pudesse organizar um almoço ou convívio para relembrar algo que ainda o deixa feliz, os dias da tropa (e não da guerra).

Gostaria também de adquirir esse Cancioneiro, de que falam com tanto orgulho no blog :)

Deixo então as informações, aguardando uma resposta. Envio, igualmente, uma foto atual do meu avô comigo. Espero que gostem.

Os meus melhores cumprimentos e saudações

Cláudio Fernando Brito


2. Comentário de L.G.:

Meu caro Cláudio: Como costumamos dizer o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande!... Sem imodéstia: somos 636 "amigos e camaradas da Guiné", a maior parte combatentes. Acabei de falar, pelo telefone fixo que me deste, com o teu avô, e meu antigo camarada de armas de Bambadinca, onde estivemos kuntos cerca de 10 meses, entre maio de 1970 e março de 1971. Ele era o 1º srgt da CCS/BART 2917 e eu era o fur mil armas pesadas inf Henriques, da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71). 

Reconheci-lhe a voz, de imediato, e perguntei-lhe se ainda cantava... Ele tinha uma bela voz de barítono... Continua, de facto, na mesma, em boa forma, pelo que me pareceu, à distância... Quarenta e três anos nos separam. Embora eu soubesse onde ele morava, em Coimbra, nunca mais nos encontrámos. Tentei, em vão, ligar-lhe algumas vezes. Foi graças ao teu mail, que acabo de descobrir o nosso Fernando Brito... E deixa-te tratar-te por tu porque os filhos e os netos dos nossos camaradas nossos filhos e netos são...

Falámos um bom bocado e eu confirmei aquilo que me transmitiste: a morte do seu filho e teu pai, num brutal acidente de viação, em 2001, e a perda, mais recente, da sua querida Natacha, sua esposa e tua avó. Foram dois duros golpes para a família, mas  também fiquei a perceber quanto ele te adora e admira.  Para ti, desejo boa sorte, em termos pessoais, académicos  e profissionais. Sei que gostas de história, como eu, oxalá tenhas oportunidade de trabalhar nessa área, como investigador e/ou docente.

Quanto ao teu avô, não sabia que ele tinha voltado à Guiné, para uma nova comuissão, desta vez em Madina Mandinga, na região do Gabu. onde terá apanhado "manga de porrada",  nos anos terminais da guerra. Também fiquei a saber que, depois da reforma, foi dirigente da Associação Académica de Coimbra – Secção de Futebol.

Para terminar, deixa-me dizer-te que eu convidei  o teu avô para integrar a nossa Tabanca Grande. Disse-me logo que sim, que teria muita honra. Prometeu-me ceder imagens dos seus diapositivos de Bambadinca e Madina Mandinga. Disse-lhe que tinha um lugar, o nº 637, à sua espera, para ele se sentar à sombra do poilão da nossa Tabanca Grande (**). 

Muita saúde longa vida para ti, Fernando Brito.

PS - Quanto ao Cancioneiro de Bambadinca, para já só tem uma letra e uma música, o fado "Brito que és Militar"... Uma homenagem, na época ao teu avô (*)... Temos feito recolha de letras de canções de caserna, que cantávamos  durante a guerra colonial na Guiné. Pode ser que um dia  destes se publique um livrinho com esse material (ou uma seleção)... E nessa altura o fado "Brito que és militar" irá figurar nessa antologia...

______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 6 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9144: O nosso fad...ário (5): Fado Brito que és militar (Letra de Tony Levezinho, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 2590/CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

(**) Último poste da série > 15 de novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12297: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (77): Dois antigos camaradas da mesma unidade (CCAÇ 12), mas de épocas diferentes, sem grande tempo para se encontrarem em Lisboa, partem sábado, no mesmo avião, para Luanda, onde vão em trabalho...

Guiné 63/74 - P12581: Fábricas de Soldados - Localidades e Unidades Militares do Exército por onde passámos (José Martins) (6): G - Localização dos Órgãos, Unidades e Serviços do Exército (1961-1974) (5): Santarém, Setúbal, Tancos, Tavira, Tomar, Torres Novas, Trafaria, Serra da Carregueira, Vendas Novas, Viana do Castelo, Vila Nova de Gaia, Vila Real e Viseu




1. Conclusão desta série "Fábricas de Soldados", trabalho do nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5 - "Gatos Pretos", Canjadude, 1968/70), enviado ao nosso Blogue em mensagem do dia 18 de Dezembro de 2013:













(FIM)
____________

Nota do editor

Vd. postes da série de:

2 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12534: Fábricas de Soldados - Localidades e Unidades Militares do Exército por onde passámos (José Martins) (1): Introdução, Biografia, Índice das Unidades, Estruturas Militares, Órgãos de Comando e Número de Unidades mobilizadas

4 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12542: Fábricas de Soldados - Localidades e Unidades Militares do Exército por onde passámos (José Martins) (2): G - Localização dos Órgãos, Unidades e Serviços do Exército (1961-1974) (1): Municípios de Abrantes a Coimbra

6 de Janeiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12550: Fábricas de Soldados - Localidades e Unidades Militares do Exército por onde passámos (José Martins) (3): G - Localização dos Órgãos, Unidades e Serviços do Exército (1961-1974) (2): Municípios de Covilhã a Linda-a-Velha

8 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12558: Fábricas de Soldados - Localidades e Unidades Militares do Exército por onde passámos (José Martins) (4): G - Localização dos Órgãos, Unidades e Serviços do Exército (1961-1974) (3): Município de Lisboa
e
10 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12570: Fábricas de Soldados - Localidades e Unidades Militares do Exército por onde passámos (José Martins) (5): G - Localização dos Órgãos, Unidades e Serviços do Exército (1961-1974) (4): Municípios de Mafra, Odivelas, Oeiras, Paço de Arcos, Penafiel, Penamacor, Ponta Delgada, Portalegre, Porto, Póvoa de Varzim, Queluz, Sacavém e Santa Margarida