terça-feira, 29 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P13065: Furriel Enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (14): O fadista regressa ao palco - II (Ou quando o apurar dos factos nos leva à procura do militar desconhecido)

1. Mensagem do nosso camarada Armando Pires (ex-Fur Mil Enf.º da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70), com data de 18 de Abril de 2014:

Fantástico!
Não sei se por estarmos na Páscoa, se por estarmos em período festivo, no que à vida do blog respeita, sei que esta equipa editorial é bestial.
Está um homem preocupado com o bom andamento da recuperação do Editor-Chefe, escreve ao Sub-Editor e diz-lhe, “ó Carlos, tenho aqui uma coisa escrita para enviar, mas não sei se o hei de fazer para o Luís ou se directamente para ti”. Responde o Carlos, “fácil, aos dois!”

Pois aqui têm, caros Luís Graça e Carlos Vinhal, decidam agora qual de vós descasca esta amêndoa. O que vos proponho não é uma nova história. É uma espécie de adenda ao que anteriormente escrevi com o titulo de “O fadista regressa ao palco”.

E por ser uma adenda, dei-lhe o 13-A como número de série. E esta adenda parece caída do céu, parece surgida com o propósito de assinalar o 10º Aniversário do nosso blog. Porque sem ele, sem a sua importância e vitalidade, não teriam sido possíveis os reencontros a que vão assistir. E o que os protagonistas dizem, entre si, é um verdadeiro hino em louvor da nossa Tabanca Grande. Acho que talvez mereça a pena ilustrar o texto com as fotos dos então capitães Barros e Hilário, hoje coronéis, cuja localização parece óbvia.

Resta-me desejar ao Luís rápida recuperação, desejar a ambos uma Boa Páscoa, e tornar este último voto extensivo a todos os nossos camaradas tabanqueiros.
Armando Pires


FURRIEL ENFERMEIRO, RIBATEJANO E FADISTA

13-A - O fadista regressa ao palco – Parte II

Ou quando o apurar dos factos nos leva à procura do militar desconhecido

Urge proceder à reformulação da divisa desta Tabanca Grande.
De facto, onde ela proclama que “o mundo é pequeno e a nossa Tabanca … é grande”, já não é sem tempo que se aumente o grau ao adjectivo, passando então a escrever-se que, “o mundo é pequeno e a nossa tabanca… é muito grande”.
Ocorreu-me isto após as incidências que resultaram do meu post anterior (P12905*), no qual, desastradamente, troquei o nome a um capitão. A correcção chegou num comentário do nosso camarada Grantabanqueiro, coronel Hilário Peixeiro, feito nos termos que aqui recordo.

Caro Armando Pires. 
Também estive em Bissorã, uns dias apenas, por volta de MAI/JUN70, para onde fui enviado, enquanto aguardava marcação de embarque para a Metrópole para comandar a CCS do Batalhão, em substituição do Cap. Luís Andrade Barros, do meu curso da Academia Militar que já tinha o embarque dele marcado. 
Foram realmente apenas alguns dias, razão porque não me lembro de ninguém. Na foto do bingo é precisamente o Capitão Barros que está presente. 
Parabéns pelo aniversário muita saúde e um abraço deste amigo que provavelmente ainda foi seu comandante de Companhia por alguns dias.

Hilário Peixeiro
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Meu comandante de Companhia por alguns dias? Foi aqui que o sino tocou a rebate, e que se iniciou uma troca de email’s, cujos eu vou citar nas partes que mais importam a esta história, não lhes acrescentando se não uma ou outra pequena nota de rigor, porque os conteúdos são suficientemente claros para que se compreenda toda a trama.
Comecemos, pois, pelo email que dirigi ao Coronel Hilário Peixeiro.

Caro Coronel. Camarada. 
Começo por lhe agradecer os parabéns o abraço que me deixou no nosso blog. 
Deixe que lhe manifeste a minha estupefação pelo que me revelou. Que esteve em Bissorã, ainda que de passagem, por referir que "terá" comandado a CCS de que fiz parte, e por identificar o Capitão que está na foto da sessão de bingo, comigo e com o Furriel Bonito, como sendo o Cap. Luís Andrade Barros. 
Permita-me que lhe faça um pedido que virá ajudar a "refrescar" a memória que temos desses tempos.

1 - Em que período, ao certo, esteve em Bissorã? 
2 - Não percebi em que circunstância "substituiu" o Cap. Barros 
3 - Dado que foi seu camarada na Academia Militar, pode ajudar-me a "refazer" o percurso dele na Guiné? 
4 - Peço-lhe que me confirme que o oficial que está na foto comigo e com o Furriel Bonito é o Cap. Barros que eu identifico, erradamente, por Cap. Caldeira. 
5- Finalmente, o camarada (permita-me que siga aqui o tratamento em uso no nosso blog) tem alguma fotografia sua da época, se não mesmo de Bissorã, que nos permita ajudar a identificá-lo? 

Aceite as minhas desculpas pela "trabalheira" que lhe dou, mas, como calcula, ao sinalizar a sua presença em Bissorã, deixou-nos a braços com uma imensa curiosidade, com uma enorme necessidade de preencher correctamente certos itens da nossa história.

Aceite um abraço do 
armando pires
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Caro Armando Pires, um grande abraço. 
Não tenho comigo nenhum documento que me permita saber com exactidão quando estive em Bissorã mas vou dar referências que podem trazer luz sobre o assunto. 
Fui comandante da CCaç 2403 que embarcou em 24jul68, no Uíge e regressou em 28mai70 no Carvalho Araújo. 
Em Jul69 fui evacuado para Lisboa e regressei à Guiné em 20jan70, indo comandar a CCS do BCaç 2851 que estava em Galomaro. 
Quando o Batalhão foi para Bissau aguardar embarque, eu fiquei a aguardar que Lisboa informasse do despacho sobre a minha doença da baixa, e mandaram-me para Bissorã substituir o Cap Luís Andrade de Barros, que já tinha regressado a Bissau por ter terminado a comissão e por isso não nos encontrámos em Bissorã. 
Se quiser ver fotos minhas da época, pode dar-se ao incómodo de ver no nosso Blogue uma resumida história da CCaç 2403.

Hilário Peixeiro 
Grantabanqueiro
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Último jantar a bordo. Na mesa do Imediato os Cmdts da CCaç 2401, CCaç2403 e CCaç 2405. Na outra mesa, de costas, o Cmdt da CCaç 2402
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Caro Coronel. Camarada. 
Muito lhe agradeço a brevidade com que respondeu às minhas interrogações. Até porque elas vieram por um ponto final numa dúvida que há muito se tinha instalado naqueles a quem pedi que identificassem pelo nome o capitão (e seu antigo camarada de curso) que substituiu o Capitão Alcino Veiga dos Santos. 
Já pedi ao Luís Graça que fizesse as necessárias correcções ao texto do meu Post. 
Quanto ao "meu coronel", melhor dito, "meu capitão", já foi devidamente identificado, sobretudo pela malta das transmissões, a quem hoje dei contra do seu relato. Sim, recordam-se de si, embora sempre com esta nuance, "ó pá, mas ele esteve muito pouco tempo lá em Bissorã". Pois é para esta questão que peço me diga em que "data" saiu de Bissorã.

Aceite um abraço do 
armando pires
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Caro Armando 
Não sei precisar a data da minha saída de Bissorã mas terá sido em finais de Julho porque eu julgo que regressei em Agosto à Metrópole. Não tenho nada escrito sobre estas datas. 
Hei de pedir uma cópia da minha nota de assentos principalmente por causa destas datas. 

Um abraço e obrigado pelo contacto. 
Gosto imenso de recordar a Guiné e por isso estou muito grato ao Luís Graça e aos restantes administradores do excelente Blogue que criaram para todos nós e que eu consulto com frequência. 

Hilario Peixeiro
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Cap Hilário Peixeiro > Natal de 1968 em Nova Lamego (Gabú)
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Meu caro coronel. 
Aqui tem uma excelentíssima razão para eu não estar muito seguro da sua presença em Bissorã. É que ela corresponde exactamente ao período em que vim de férias a Portugal. 

Um abraço e grato pela sua disponibilidade. 
armando pires
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Caro Armando 
Para a hipótese de querer contactar o Coronel Barros e convidá-lo a incorporar os Tabanqueiros aqui lhe deixo o seu e-mail 
HP
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Cap Hilário Peixeiro > Natal de 1968 em Nova Lamego (Gabú)

Fotos ©: Hilário Peixeiro
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Fantástico!!! 
Muito obrigado. 
Amanhã já lhe vou escrever. 
Abraço. 
AP.
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Meu caro Senhor Coronel Luís Andrade de Barros. 
Chamo-me Armando Pires, fui furriel miliciano enfermeiro da CCS do BCAÇ 2861 (Bissorã) que o senhor Coronel, à época capitão, comandou. Este endereço de email foi-me dado pelo coronel Hilário Peixeiro, seu camarada do Curso da Academia. Acontece que ele e eu escrevemos memórias da Guiné num blog que tem o seguinte link.

… A última memória que publiquei foi sobre as sessões de bingo que realizávamos no bar de sargentos, e das noites de fado em que era eu que cantava. Nessa memória publiquei uma fotografia onde o senhor coronel, se me permite ainda, o "meu capitão", está ladeado por mim, à direita, e pelo Furriel Bonito, já falecido, à sua esquerda. É essa fotografia que tenho a honra de lhe oferecer.

Aceite os cumprimentos do 
armando pires
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Caríssimo Armando Pires, furriel enfermeiro, ribatejano, fadista e companheiro da guerra . 
Recebi com muito agrado as suas notícias de Bissorã, nomeadamente recordando as sessões de bingo com uma afluência capaz de fazer inveja às melhores casas da especialidade. Lembro o entusiasmo que tal iniciativa despertou, a preparação - decoração da sala com pinturas alusivas e os convites para o evento, incluindo a amigos do IN, isto na certeza de então não sermos atacados. E havia também as diversões no club do Michel. 
Estive em Bissorã até 23 de julho de 1970, tendo ali permanecido cerca de cinco meses. Guardo algumas fotografias e também boas recordações de Bissorã .

Um abraço amigo do 
Luis Andrade de Barros.
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Caríssimo Coronel. 
Obviamente que vai ter que me perdoar por lhe ter trocado o nome. Só me apercebi do equívoco quando o seu camarada Hilário falou de si no comentário que fez no meu post. Mais uma vez lhe apresento as minhas desculpas, dizendo-lhe que ontem mesmo escrevi ao Luís Graça, o "pai" do Blog, a solicitar-lhe a devida correcção. 
Já agora, se o meu amigo me permite, porque razão só esteve cinco meses connosco? Segundo me disse o Hilário, terminou o seu tempo de serviço. Sendo assim, o "meu capitão" já se encontrava na Guiné. Importa-se de esclarecer mais este capitulo da nossa história? E deixe-me lançar-lhe um desafio, que me foi sugerido pelo coronel Hilário. Porque não se torna o senhor coronel membro da Tabanca Grande?

Fico na expectativa de notícias suas e peço-lhe que aceite um abraço, um abraço sincero, do 
armando pires
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Caríssimo Armando Pires, furriel enfermeiro e companheiro da guerra.
Vou já responder-lhe porquanto é meu princípio não deixar para amanhã o que posso fazer hoje.
Antes de ir para Bissorã estive a comandar a C.Caç.1788 desde Julho de 1968, em substituição do capitão falecido por acidente em atividade operacional, na sequência do rebentamento de uma granada - armadilha das NT.

Nota: o Coronel Luís Barros refere-se ao capitão Artur Manuel Carneiro Geraldes Nunes. Sobre este acidente de guerra consultar o P3813.
Prosseguindo com o email do cap Barros:

Tive situações difíceis, mas também bons momentos em Catió / Cabedu e Farim. 
Vou só contar a tourada em Farim, uma iniciativa muito parecida com as sessões de bingo em Bissorã. 
Estava no gabinete quando me aparece um alferes seu vizinho (era alentejano) dizendo-me : 
- Meu capitão, não queira saber a nossa sorte! Temos um boi que marra! 
Isto referindo-se a um bezerro vindo do Senegal e destinado a bifes. 
- E o que é que isso interessa! respondi-lhe surpreendido. 
- O que interessa ?!... Antes de o comermos temos de fazer uma tourada!
 Depois de algum espanto com a ideia, alinhei e colaborei com ela. Comprámos um burro para servir de cavalo; improvisou-se com as viaturas uma praça de touros; convidaram-se civis e militares da cidade e até se afixaram cartazes publicitários. 
O bezerro foi toureado duas vezes a pé e a cavalo de burro, valendo tudo. Não houve uma terceira corrida porque o touro partiu um corno quando o metiam no curro (um abrigo ), o que acelerou o seu fim.

Quanto ao convite para me tornar membro da Tabanca Grande, agradeço, considerando muito interessante a sua atividade na constituição de amizades e de recordações boas e mas, sendo certo que se não fosse a Tabanca Grande não teria "regressado" a Bissorã, indiscutivelmente o melhor lugar que tive na comissão da Guiné … fica só a minha disponibilidade para colaborar e nos termos em que agora o faço com muito gosto. Como reformado vou passando o tempo desocupado em Coimbra e de vez em quando vou até à aldeia, em Figueira de Castelo Rodrigo, onde faço agricultura bastante para sacrificar o corpo. E já fiz um livro de 400 páginas sobre a minha aldeia, o que para mim constitui um motivo de alegria e de realização pessoal, isto além de ter concluído a licenciatura em Direito em Coimbra.

Um abraço de muita consideração com votos de uma Boa Páscoa do 
Luis Andrade de Barros.
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Caro Coronel. Meu Capitão. 
Em primeiro lugar. Deixe-me dizer-lhe que está a provocar grande "frisson" entre malta da nossa companhia o facto de nos termos reencontrado. Só não tenho reacções do lado dos oficiais porque, à excepção do Dr. Oliveira, (com quem falei agora mesmo ao telefone e que pediu que lhe enviasse os seus cumprimentos) não tenho contactos com mais ninguém. Foi para mim preciosa a sua resposta à minha pergunta central, porque ela me permite escrever a história por linhas direitas. Da mesma forma que me "localizou" no blog do Graça, sugiro-lhe que localize uma referência que lá vem à CCAÇ 1788, onde é dada nota de ter o sr. coronel substituído o falecido capitão Artur Nunes.
… Aceite um forte abraço e fico a aguardar as suas notícias. 
armando pires
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Terminada a epistolar e muito cerimoniosa troca de correspondência, fica por saber quem foi o 4º Homem. Sim, não sei se se deram ao trabalho de terem vindo a contar o número de capitães que comandaram a CCS do BCAÇ 2861, a saber, em primeiro lugar o capitão Alcino dos Santos, o tal que tendo sido promovido a major passou a oficial de operações, depois o Capitão Luís Andrade Barros, seguiu-se-lhe, quase me apetece dizer, em regime de parte-time, tão breve foi o tempo que lá esteve, o Capitão Hilário Peixeiro, e vão três, pois então, mas tendo o Capitão Hilário terminado a sua missão em Julho de 1970, quem foi o homem, o tal quarto homem, a comandar-nos até ao fim da comissão, ou seja, até Dezembro de 1970?

Deixem-me abrir um parêntesis para dizer que, não sendo caso raro, o nosso Batalhão foi pródigo em trocas de comandantes de Companhia. Só Capitão Melo de Carvalho se manteve fiel, do principio ao fim, à sua CCAÇ 2465. Quanto às restantes, a CCAÇ 2466 teve três comandantes e a 2464, dois.

Fechado o parêntesis, quero dizer que muito tenho interrogado os meus camaradas sobre que memória ainda lhes acode do 4º Homem. Nada. Ninguém está seguro de nada. Alguns até se questionam se existiu um 4º Homem. Outros têm uma vaga ideia de um tipo que era baixo, magro, até há quem o diga, havendo mesmo quem ponha bigode a recortar o lábio superior, mas só de um ou dois ouvi dizer que ele se chamava Castro.

“E que tal ires à história da Companhia?”, perguntarão os que me estejam a ler. Pois atentem na minha incredibilidade ao ler a Resenha Histórica Militar das Campanhas de África, 7º Volume, Tomo II, da qual consta que a minha Companhia foi comandada pelo capitão Castro, da arma de Infantaria, acrescentando o livro que “não foi obtida a identificação completa”.

Quase em choque, dirigi-me ao Arquivo Histórico Militar, requisitei a história do meu Batalhão, da minha Companhia em particular, e do Capitão Castro nenhuma referência, nenhuma notícia, ali o homem não existiu. Ora eu não acredito que aquele capitão tenha ido à Guiné, a fazer um biscate, entre Julho e Dezembro de 1970, como comandante da minha Companhia.
Aquele capitão ou já estava na Guiné e, por uma qualquer razão, foi destacado para o comando da CCS do BCAÇ 2861, ou chegado de Portugal, em rendição individual, foi direitinho para Bissorã para nos comandar mas, chegando a nossa comissão ao fim, a ele ainda lhe restaria muito tempo de serviço por cumprir.

Então, de onde veio o Capitão Castro, oficial da arma de infantaria?
Então, para onde foi o capitão Castro, oficial da arma de infantaria?
Será que alguém me ajuda a dar nome a este “militar desconhecido”?

(FIM)

Armando Pires
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(*) Vd. poste de 27 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12905: Furriel Enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (13): O fadista regressa ao palco

Guiné 63/74 - P13064: Memórias da CCAÇ 2616 (Buba, 1970/71) (Francisco Baptista) (5): Pequenas estórias de medo, pesadelo e apanhados do clima

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 16 de Abril de 2014, com mais uma memória de Buba:


Memórias da CCAÇ 2616

5 - Pequenas estórias de medo, pesadelo e apanhados do clima

O malogrado alferes Queiroz que eu fui substituir na CCaç 2616, em Buba, morreu ao pisar uma mina anti-pessoal, num campo minado nosso que penso terá já sido deixado pela Companhia anterior.

Uma das primeiras saídas que tive para o mato foi em direcção a esse campo minado que distaria 5 ou 6 quilómetros do quartel. Foi toda a Companhia e o objectivo já não sei se seria localizá-lo melhor ou fazer a sua desminagem. Ao chegar lá, à beira do carreiro, não muito longe de mim, rebentou uma mina, olhei e vi um soldado milícia com o pé desfeito e a sangrar abundantemente da perna. Comecei a sentir-me agoniado e mal-disposto, devo ter ficado branco como cal. Tentei controlar-me de forma a não denunciar a minha susceptibilidade. Consegui esse controlo com alguma dificuldade talvez também porque as atenções estavam concentradas no ferido. Teria sido um desastre em frente ao pelotão que ainda mal me conhecia e com toda a Companhia presente se o periquito desmaiasse. Não desmaiei mas apanhei um susto enorme. Os meus amigos já imaginaram se eu desmaiava, enfim seria o fim duma brilhante carreira militar!

Infelizmente houve outras situações em que houve derramamento de sangue mas passei a reagir com a naturalidade própria de quem se encontra numa situação de guerra.

Meses passados, só o pelotão perto da Bolanha dos Passarinhos a tentar tapar um corredor da guerrilha, com origem na Guiné-Conacry, por sinal desativado havia muitos meses na área de Buba, instalados debaixo de muitas árvores que nos resguardavam do sol e do calor, caiu-nos uma trovoada terrível em cima.
Não sei se era uma ou se seriam três ou quatro simultâneas, mais parecia um ataque aéreo com aviões a jato e bombardeiros a despejar água a jorros e bombas em cima de nós. A minha experiência de guardador de vacas ainda com terra idade na aldeia, muitas vezes só, por lameiros no planalto ou regadas nos vales, foi-me aconselhando a não ter medos inúteis das trovoadas fortes da primavera apesar do muito barulho dos trovões e da violência dos raios e coriscos, pois não havia conhecimento na terra, e nas próximas, de ter havido mortos ou feridos graves por causa desses fenómenos atmosféricos.

O meu optimismo tanto por cá como em terras da Guiné apoiei-o sempre na lei das probabilidades. Segundo esse calculo era muito mais provável regressar vivo da Guiné do que o contrário. Hipótese, diga-se de passagem, bastante egoísta, talvez ditada pelo instinto de sobrevivência.

Os outros camaradas do pelotão, pelo que recordo, seriam mais de áreas urbanas portanto com menos experiência de trovoadas em campo aberto que não oferecia proteção. Para todos era a pior situação dum combatente, porque face ao perigo imaginado ou real, não podíamos ter qualquer reação de defesa.

Confesso que nunca vi tanto medo no pelotão, vi alguns homens a rezar, coisa rara entre jovens da nossa idade.No terramoto de Janeiro de 69, estava em Mafra na recruta e também vi muitos camaradas a rezar. Passado um bom bocado a trovoada passou e respirámos fundo.

O alferes Meireles veio de Nhala com o pelotão reforçar a Companhia de Buba durante algum tempo e ficou alojado no meu quarto. Por temperamento era um camarada bastante discreto, pouco falador, por vezes até com o semblante carregado como quem pede que não o incomodem. Apesar disso não deixava de ser bom camarada e simpático à maneira dele.

As nossas camas que colocadas em paralelo, distariam 1 metro ou 1,5. Certa noite acordo com o Meireles aos gritos aflitivos de "cobra, cobra!" e sem ter tempo de o acalmar sinto-o voar da cama dele e cair na minha como se o seu corpo tivesse molas.

Depois acabou por acordar e acalmar do pesadelo e voltou para a cama dele e pouco depois retomamos o sono interrompido. Passado algum tempo, em dia de coluna, na época das chuvas, com muitos camaradas a precisar de alojamento, deitaram-se 3 ou 4 no chão do nosso quarto. Deitamo-nos um pouco mais tarde como era normal quando havia camaradas doutros quartéis pois ficávamos sempre algum tempo a confraternizar e a beber umas cervejas no bar.

Quando já estávamos ferrados no sono começa o Meireles a gritar e eu todo ensonado e aborrecido por me ter acordado virei-me para ele e disse:
- Oh Meireles lá vens tu outra vez com as cobras!

Bem os outros camaradas que já tinham acordado também com os seus gritos aflitivos reagiram com gargalhadas ao meu comentário. Pesadelo chato para o Meireles, acordar rabugento para mim, mas gravei também para sempre essas gargalhadas de boa disposição.

Buba, Maio de 1969 - Entrada principal da povoação e do aquartelamento 

Foto: © José Teixeira (2005). Todos os direitos reservados

Depois do Meireles veio de Aldeia Formosa o Rocha com o pelotão reforçar a Companhia. Ficou igualmente alojado no meu quarto, já não sei se era eu que me dava bem com todo o pessoal do Batalhão ou se o meu quarto era a modos que um albergue espanhol.

Diferente do Meireles, era mais sociável, tal como eu transmontano, eu do meio rural ele do meio urbano da cidade de Vila Real. Tal como com o Meireles já tínhamos uma boa relação de amizade das suas idas frequentes a Buba nas colunas de reabastecimento.

Ele sendo do tempo do Batalhão, tinha mais sete meses do que eu de Guiné e talvez por isso mostrava estar um pouco afectado psicologicamente. Dizia que estava apanhado pelo clima. Tirem-me daqui! - gritava ele muitas vezes. Havia outros gritos, alguns apenas sons tipo bramidos de feras.
Noites havia que ficava bastante nervoso e como os nervos dele mexiam com os meus, por vezes tínhamos discussões chatas que provinham de tudo ou de nada. Essas discussões e zangas durariam cerca de meia hora, pois ao passar esse prazo resolvíamos ir os dois ao bar beber uma cerveja e brindar à amizade. Este ritual repetia-se sempre e nós nunca tivemos uma zanga mais prolongada do que essa meia hora de nervos e terapia.

Depois da Guiné não voltei mais a ver o Rocha. Gostaria de voltar a beber uma cerveja com ele, bem como com o Meireles que também perdi de vista.
Pensando bem acho que o Meireles agora será abstémio .

Um grande abraço a todos os camaradas.
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12874: Memórias da CCAÇ 2616 (Buba, 1970/71) (Francisco Baptista) (4): O respeito pela morte

Guiné 63/74 - P13063: Convívios (588): XXIII Encontro do pessoal da CCAÇ 1439, Pel Caç Nat 52 e 54 e Morteiro 81, dia 10 de Maio de 2014 em Almeirim (José António Viegas)

1. A pedido do nosso camarada José António Viegas (ex-Fur Mil do Pel Caç Nat 54, Guiné, 1966/68) aqui fica o anúncio do próximo Convívio da CCAÇ 1439, Pel Caç Nat 52 e 54, e Morteiro 81, a levar a efeito no próximo dia 10 de Maio de 2014 em Almeirim.


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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE ABRIL DE 2014 > Guiné 63/74 - P13050: Convívios (587): XIX Encontro do pessoal do BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71), dia 17 de Maio de 2014 em Ançâ - Cantanhede (César Dias)

Guiné 63/74 - P13062: Parabéns a você (726): Giselda Pessoa, ex-Sarg Enf.ª Paraquedista do BA 12 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE ABRIL DE 2014 > Guiné 63/74 - P13051: Parabéns a você (725): Hugo Guerra, Cor DFA Ref, ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 55 (Guiné, 1968/70) e Humberto Nunes, ex-Alf Mil Art, CMDT do 23.º Pel Art (Guiné, 1972/74)

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P13061: In Memoriam (188): João Henrique Pinho dos Santos (1941-2014), ex-alf mil, CCAÇ 618 / BCAÇ 619 (Susana e Binar, 1964/66)... As cerimónias fúnebres realizam-se amanhã, 3ª feira, dia 29, às 9.30h, na capela de Santo António, em Aveiro, seguindo o corpo para a Figueira da Foz para ser cremado, às 13h (Manuel Reis)


João Henrique Pinho dos Santos (1941-2014): 
era bancário  refrormado, morreu hoje aos 73 anos, em Aveiro

João Henrique Pinho dos Santos, ex-alf mil, CCAÇ 618 / BCAÇ 619
 (Susana e Binar, 1964/66), membro da nossa Tabanca Grande,
desde 5/2/2011.


1. Mensagem do nosso querido amigo e camarada Manuel Reis, que nos acaba de chegar à caixa de correio

 Assunto: Falecimento de um camarada

Caros amigos e camaradas:

É com muita tristeza que comunico o falecimento no nosso amigo e camarada. João Henrique Pinho dos Santos. Foi mais um que partiu, deixando connosco o sua boa disposição, a sua alegria e o seu sorriso. Amigo sempre presente nos almoços convívios da Tabanca do Centro, enquanto a saúde lhe permitiu, deixou para todos a nós a herança de não o esquecermos nos nossos convívios quer da Tabanca do Centro, quer da Tabanca Grande.

Foi dos primeiros camaradas a partir para a Guiné, em 1963. Tinha a idade de 73 anos e vivia em Aveiro.

As cerimónias religiosas realizam-se amanhã, 3ª feira, dia 29,  às 9.30 h na capela de Santo António, junto ao Parque da Cidade, seguindo o corpo para a Figueira da Foz para ser cremado às 13 horas.

Sentido pêsames a toda a família enlutada. O amigo de sempre.

Manuel Reis


2. Comentário de L.G.:

Manuel: Obrigado pelo alerta. É uma triste notícia. A Tabanca Grande, a grande família dos camaradas da Guiné, fica mais pobre. Vamos fazer um In Memoriam (**). O nosso malogrado camarada entrou para o nosso blogue pela tua mão (*), em 5/2/2011. Ele era o único, salvo erro, da CCAÇ 618.

Se puderes, transmite á família bem como aos seus amigos camaradas mais próximos, os votos de pesar da Tabanca Granca. Por certo, que vamos lembrar a sua memória no nosso próximo encontro, o IX Encontro Nacional da Tabanca Grande, marcado para Monte Real, no dia 14 de junho próximo. Um abraço fraterno e solidário. Luis

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Notas do editor:

(...) Mensagem do Manuel Reis:

Caro Luís: Tenho aqui um amigo, de longa data, que ao saber da nossa Tertúlia mostrou desejo de a ela se associar. Como sentia algumas dificuldades em tratar da parte inerente à sua inscrição, tomei a iniciativa de o apresentar e solicitar a sua inscrição.

Participou em dois convívios da Tabanca Pequena, portanto não se pode dizer que desconhece totalmente o ambiente de camaradagem e amizade que se vive nesses encontros.

Vive em Aveiro onde, em tempos idos, foi gerente da Delegação do Banco de Portugal em Aveiro, estando actualmente reformado. (...) 

Guiné 63/74 - P13060: Blogpoesia (380): Tropeço nas palavras (Juvenal Amado)




1. Em mensagem do dia 21 de Abril de 2014, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), enviou-nos este poema, intitulado "Tropeço nas Palavras", ilustrado com fotos actuais da localidade de Galomaro:





TROPEÇO NAS PALAVRAS

Tropeçamos nas palavras
Enleamo-nos no seu sentido
Desesperamos com o silêncio
Gritamos mas ninguém nos ouve
Olhamos em volta
Não nos devolvem o olhar
Queremos partilhar o que ficou obscuro
Os traumas esquecidos na festa

Partimos sem despedida

Tivemos a carne em chaga
Fomos roídos pelo calor e humidade
Micose que não nos deu descanso
Paludismo amareleceu-nos a pele
Fumamos milhares de cigarros
Bebemos para esquecer
Angustiámo-nos com o tempo que faltava
Tivemos sede sem fim
Vimos sofrimento sem limite
Vimos morte mais que pensamos
Na morte!
Não vimos paixão nem resignação

Regressámos no nevoeiro
E tropeçámos na intenção
Demos tudo de nós
Ficámos com o que não conseguimos
Ah! Se pudéssemos voltávamos atrás
Refazíamos os trilhos
Procurávamos as respostas
Fomos aprendendo à nossa custa
Bebemos alvoradas de esperança
Aspiramos o perfume das flores
Frescura dos pinhais
Pátria refundada no sorriso de uma criança
Se quisermos ainda vamos a tempo
Ou, só nos tornamos cínicos!






Fotos do destacamento de Galomaro

© Com a devida vénia à Missão Dulombi que tem levado a solidariedade à região onde esteve o BCAÇ 3872.
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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE ABRIL DE 2014 > Guiné 63/74 - P13049: Blogpoesia (379): A morte passou por mim (José Teixeira)

Guiné 63/74 - P13059: Comandos de Agrupamento, Operacionais e Temporários (1) (José Martins)

Começamos hoje a publicar uma série de dois postes com um novo trabalho do nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), desta vez dedicado aos Comandos de Agrupamento, Operacionais e Temporáris da Guiné.

1. Mensagem do Zé Martins com data de 15 de Abril de 2014:

Boa noite, a todos 
Luís 
Segue uma resenha sobre todos os Comandos de Agrupamento, Operacionais e Temporários. 
Falas no Volume 7, mas deve ser o 3, que tem mapas de diversas "épocas".
Estou a pensar que, a partir do inicio das hostilidades, elaborar não só o numero de unidades e escalão respectivo, mas também a subdivisão das quatro zonas iniciais: Bissau, Norte, Sul e Leste. Para tal tenho de desenvolver outras pesquisas, de forma a tentar encontrar o número de elementos (mesmo que por aproximação) a cada tipo de unidade. Então será possível publicar com mapas, assinalando devidamente as zonas, e/ou sectores, com a indicação dos efectivos operacionais, uma vez que há repartições e serviços que não é possível saber qual os efectivos. Vamos a ver se consigo.

Abraço 
 Zé Martins


COMANDOS DE AGRUPAMENTO, OPERACIONAIS 
E TEMPORÁRIOS DA GUINÉ (1)


(Continua)

Guiné 63/74 - P13058: Agenda cultural (311): Lançamento do livro de Henrique Tigo, "As Portas de Abril", 30 do corrente, 4ª feira, 19h, Centro Cultural Malaposta, Olival Basto, Loures



1. Mensagem de Henrique Mourato, nosso leitor,  geógrafo, pintor e escritor, nascido em Lisboa em 1978, que usa o pseudónimo de Henrique Tigo, autor de "As Portas de Abril":

Data: 9 de Abril de 2014 às 23:52

Assunto: Convite Lançamento de Livro


Dia 30 de Abril, pelas 19h no Centro Cultural da Malaposta. [Metro: Sr. Roubado, linha amarela]

Será servida uma degustação de enchidos oferecida pela MACAL.

Agradecemos confirmação a sua presença.

Henrique Tigo, telem 966233079  
Email: henrique.meo@gmail.com


2. O livro será apresentado por:

(i) Coronel Manuel Bernardo – Escritor de vários livros sobre a guerra em Africa e sobre o 25 de Abril.

(ii) Carlos Alberto Moniz - Músico e compositor;

(iii) Edmundo Pedro - histórico da resistência antifascista em Portugal;

(iv) Comandante Henrique Mendonça – Capitão de Abril-


3. Sobre este livro entre outros escreveram:

"Tem o leitor entre mãos o trabalho do Henrique Tigo, um artista historiador, que, naturalmente enxerga a história com a sensibilidade própria da estética e da poesia da vida"

José Verdasca – Presidente da Ordem Nacional de Escritores.

"Com esta pequena peça teatral pretende Henrique Tigo dar a conhecer aos mais jovens os tempos tenebrosos que se viveram antes do 25 de Abril e os importantes passos que se deram no desenvolvimento do nosso Portugal."

Henrique Mendonça - Militar de Abril 

Escrevi "As portas de Abril" quando tinha apenas 15 anos, achei que escola transmitia pouco aos alunos sobre o que tinha sido o 25 de Abril de 1974, sendo eu um produto do pós-Abril, rapidamente apercebi-me, que senão fizesse alguma coisa para ajudar a minha geração e as gerações futuras o 25 de Abril, poderia entrar no esquecimento, ou ser uma festa só para alguns na Assembleia da República.

Para mim o 25 de Abril de 1974, foi o dia mais bonito que Portugal viveu, havia Liberdade, Igualdade e Fraternidade no Ar, o povo esteve unido como nunca antes nem como nunca depois… Fomos o único país no mundo onde houve um golpe militar e das armas dos militares, só saíram cravos!

Não falo, nem pretendo falar sobre o dia 26 de Abril, quero sim manter a "chama" do dia 25 de Abril de 1974, onde todos os Portugueses, por momentos foram Irmãos!

Este livro que é uma peça de teatro já foi levado a cena duas vezes pelo Teatro Passagem de Nível uma vez de 1996 e outra 1998.

Agora que se comemoram os 40 anos de Abril,  a mesma vai pela primeira vez ser editada pela editora Calçada das Letras e lançada no próximo dia 30 de Abril no Centro Cultural Malaposta.


Henrique Tigo – Autor das Portas de Abril
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Nota do editor:

Último poste da série > 15 de abril 2014 >  Guiné 63/74 - P12989: Agenda cultural (310): Sessão de apresentação do livro de Francisco Henriques da Silva e Mário Beja Santos, "Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: Um Roteiro", levada a efeito no passado dia 10 de Abril no Palácio da Independência

Guiné 63/74 - P13057: Notas de leitura (584): "PAIGC - Sobre a Situação em Cabo-Verde", por Sá da Costa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Novembro de 2013:

Queridos amigos,
Trata-se de uma peça relevante para apreciar o argumentário do PAIGC em vésperas do 25 de Abril, como se apresentava a unidade Cabo Verde-Guiné como dado indiscutível, usando-se a independência da Guiné-Bissau como alavanca automática para a independência de Cabo Verde.
Ao longo de anos, foi forte a tensão entre Abílio Duarte e Amílcar Cabral, o primeiro exigia ação direta que o segundo sabia perfeitamente não haver condições.
Na sua última entrevista, Aristides Pereira tece considerações muito críticas ao trabalho do PAIGC em Cabo Verde a seguir ao 25 de Abril, é preciso ler e comparar o sonho político do PAIGC com a idiossincrasia do cabo-verdiano.
Questão para muitos debates, obviamente.

Um abraço do
Mário


Relatório do PAIGC apresentado na ONU em 29 de Março de 1974

Beja Santos

Abílio Duarte, destacado dirigente do PAIGC apresentou no Comité de Descolonização da ONU, em 29/3/1974, um relatório sobre a situação em Cabo Verde. Teria pouco sentido proceder-se aqui à sua análise caso não houvesse, como efetivamente há, uma íntima associação com o processo guineense, como se verá adiante.

O relatório prima pelas palavras de ordem da época, o uso de repetitivo de chavões e, há que confessar, o uso subtil de uma linguagem em que se procura dar por demonstrada, e inquestionável, a unidade Cabo Verde-Guiné. É esse exatamente o primeiro capítulo do relatório, o reconhecimento que desde meados do século XV a Guiné e as ilhas de Cabo Verde estão ligadas a um destino comum: identidade no comércio de troca, nos navios que faziam viagens circulares e que se dedicavam ao comércio de escravos e dentro desse tráfico de escravos proveniente da Costa da Guiné presidiu ao povoamento das ilhas de Cabo Verde. Que se saiba, nunca ao tempo se viu contestada a inverdade deste elemento. É que a Costa da Guiné frequentada pelos portugueses e pelos traficantes de escravos nem de longe nem de perto se circunscrevia à Guiné do tempo da luta da independência.
A unidade propalada pelo PAIGC respeitada ao comércio, à navegação. Nada se diz sobre o abismo cultural, a religião, a aristocracia local de Cabo Verde, a gastronomia e outros dados que identificam qualquer país. Cabo Verde tinha bispo, seminário, estabelecimentos de ensino, um grau de cultura incomparável com qualquer outra colónia portuguesa, veja-se o seu número de escritores ainda no período colonial. Com outra omissão do relatório: a classe administrativa cabo-verdiana na Guiné e os negociantes cabo-verdianos por conta própria ou ao serviço de empresas nacionais ou estrangeiras. O cabo-verdiano era um grupo elitista, frequentemente despótico, quase sempre sem vida social com o guineense. O relatório adianta a estrutura político-administrativa de Cabo Verde ao tempo da guerra de libertação e só se pode entender aquela estrutura como própria de uma colónia que tinha História de participação local a diferentes níveis. O documento expõe as fomes e as secas, fala em levantamentos, revoltas e outros atos de resistência “ao inimigo”. E como se um processo automático houvesse adianta-se com o programa do PAIGC em que os resultados foram a contribuição para a resolução 1514 da Assembleia Geral das Nações Unidas, da insurreição na Guiné e menciona-se a marcha progressiva da ação política clandestina em todo o arquipélago de Cabo Verde, isto a par dos sucessos militares na Guiné e da criação na Guiné-Bissau de um Estado soberano.

Marcello Caetano é citado abundantemente como político hipocrática que se vangloria das medidas tomadas para evitar que a população cabo-verdiana passasse mais dificuldades face a uma seca tão prolongada. Apresenta seguidamente um quadro da situação económica do arquipélago, refere-se haver demagogia em torno dos pretensos planos de fomento e dos subsídios concedidos pelo Governo Central ao arquipélago. Segundo o relatório os planos de fomento destinam-se essencialmente a reforçar e a melhorar a infraestrutura militar. E daí salta-se para outra rubrica, a criação de infraestruturas militares para transformar o arquipélago numa base aeronaval. Assim como havia uma “Guiné melhor” tinha-se agora à última hora arranjado uma política de “Cabo Verde melhor”. No documento destaca-se o reforço da presença militar e policial no arquipélago, aumentara a verba destinada à polícia política e à PSP. E mais: “A verba militar para as ilhas de Cabo Verde duplicou. As instalações da Base de Fuzileiros Navais da Ribeira de Julião (S. Vicente) foram modernizadas. O Aeroporto Internacional da Ilha do Sal, reconstruído e modernizado pela África do Sul para receber todo o tipo de aviões modernos, inclusive os supersónicos, foi aperfeiçoado em 1971, na Ilha de Santiago, no aeroporto da Praia, vai ser construído um novo hangar de 4 mil metros quadrados e, com a ajuda da NATO, a pista de aterragem será aumentada para receber os Boeing 747. O aeroporto da Boavista também vai poder receber aviões militares. Na Ilha de S. Vicente, no Monte Verde, foi instalado um dos centros mais modernos do mundo em matéria de telecomunicações…”. Na lógica deste documento, o governo de Lisboa procurava obter maior ajuda económica e militar manifestando insistentemente o desejo de ver as ilhas de Cabo Verde sob a cobertura da NATO.

Segue-se uma análise do incitamento à imigração designadamente com o estudo das condições dos emigrantes cabo-verdianos em S. Tomé e Angola.

E por fim, a apresentação da declaração unilateral de independência e as suas implicações no desenvolvimento da luta nas ilhas de Cabo Verde. Para o dirigente Abílio Duarte, a proclamação de 24 de Setembro de 1973 eliminara uma contradição flagrante que decorria do próprio desenvolvimento da luta na Guiné, já havia o embrião de um Estado, havia seguidamente de o dotar de personalidade jurídica reconhecida no plano internacional. O Estado independente não incluía as ilhas de Cabo Verde, mas invocava-se o artigo 1.º da Constituição aprovado em Madina de Boé para justificar, designadamente quanto ao conteúdo do artigo 3.º que o Estado independente ia acelerar por todos os meios a expulsão do colonialismo português das ilhas de Cabo Verde. Este princípio também aparece legitimado pelo facto do PAIGC, segundo a Constituição ser “a força dirigente da sociedade” e que os deputados ficam obrigados a tudo fazer para liquidar o regime colonial no objetivo da unidade Guiné e Cabo Verde. E conclui-se: “O nosso povo está disposto a todos os sacrifícios nas ilhas de Cabo Verde para conquistar a sua total personalidade e dignidade de povo africano livre. Os 17 anos de luta realizados, sob a direção do PAIGC, contra os criminosos colonialistas portugueses, não nos deixam nenhuma ilusão quanto as sacríficos que o nosso povo deve ainda consentir para a realização desta legítima aspiração”.

Menos de um mês depois, a situação alterava-se profundamente. De conversação em conversação, chegou-se ao reconhecimento da Guiné-Bissau independente sob a égide do PAIGC. E com o aprofundamento do processo revolucionário, altamente controverso, como é hoje estudado em Cabo Verde, o PAIGC assenhoreou-se do poder.
Mas isso já é outra história.
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE ABRIL DE 2014 > Guiné 63/74 - P13036: Notas de leitura (583): "Capitãs de Abril - A revolução dos cravos vivida pelas mulheres dos militares", por Ana Sofia Fonseca (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P13056: Recordações de um "Zorba" (Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68) (12): O inferno de Ganturé, Sangonhá e Gadamael Porto... e as fotos para enganar a família


Guiné > Região de Tombali > CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68) > Ganturé, 1967 > Eu com bajuda...


Guiné > Região de Tombali Gadamael Porto > CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68) > Julho de 1968 > Eu, com duas mulheres oriundas de Sangonhá


Guiné > Região de Tombali > Gadamael Porto > CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68) > Julho de 1968 > Foto para enganar a gamília... E saímos de Gadamael a 10 de outubro de 1968

Fotos (e legendas): © Mário Gaspar (2014). Todos os direitos reservados.



1. Texto enviado em 12 do corrente, pelo Mário Vitorino Gaspar [ex-Fur Mil At Art, MA, CART 1659, "Zorba", Gadamael e Ganturé, 1967/68; autor do livro "O corredor da morte", a ser lançado no Forte do Bom Sucesso, Belém, Lisboa, no próximo dia 22 de maio. (Tem prefácio do dr. Afonso de Albuquerque, psiquiatra, e ex-alf mil médico, em Moçambique).


(i) Ganturé, até julho de 1967

Começámos a conhecer os hábitos daquelas gentes, acordando diariamente com o troar do pilão. Havia um refeitório para as praças, com mesas feitas de caixotes de munições e bancos improvisados, e uma Messe para um Alferes Miliciano, um 2º Sargento e dois Furriéis Milicianos. Nunca entendi, visto existir somente um Pelotão reforçado com uma Secção.

As primeiras avionetas começaram a aterrar em Gadamael Porto, em Ganturé não existia pista, e a ansiedade do correio começou por ser natural.

Tínhamos que ir à sede da Companhia buscar o correio.

Comecei ao fim de dois dias a fazer o estrangulamento do cordão lento com o detonador, com os dentes. Estava já “apanhado pelo clima”, como se costumava dizer.

As operações sucediam-se:  Guileje, Mejo, Sangonhá , Cacoca, Cameconde e Cacine.


Guiné > Região de Tombali > Gadamael Porto > CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68) > Ganturé  > Eu, com bajuda de Ganturé em 1967


Visto a água ser salobra e imprópria para o consumo,  fiz a promessa ao fim de poucos dias depois de estar na Guiné, num dia muito quente, e não estando habituado àquelas altíssimas temperaturas, numa patrulha feita na fronteira da República da Guiné, depois de ingerir um líquido do charco, mesmo com pastilhas, que era mijo, ficar só a beber cerveja. Bebia ao pequeno almoço, ao almoço, ao jantar e nos intervalos, só cerveja.

Rebentamentos na área, e o matraquear do pilão vivia ali e depressa ficou a fazer parte das nossas vidas. Enquanto a grande parte das mulheres com as mamas escorrendo até à cintura batiam com o pilão com um toque cadenciado, juntando-se as bajudas, algumas com a mama firme, aproximávamo-nos destas últimas, procurando uma pequena oportunidade para lhes tocar no corpo. Éramos jovens. “Mim cá nega!”, respondiam. Visto Ganturé ser a sede do Regulado, Abibo Injassó era o régulo este era o elo de ligação entre a nossa CART e os informadores.

Entretanto sucede uma calamidade. Dez mortos e mais de duas dezenas de feridos graves, no dia 4 de julho de 1967.

(ii) Julho de 1968, um mau mês da CART 1659


Até 8 de julho de 1968, durante o abandono dos aquartelamentos de Sangonhá e Cacoca, comandei um Grupo de Combate na montagem de segurança. Ficaram de pé as paredes das habitações – se é que se podiam chamar àquilo casas – os abrigos e o arame farpado. Chapas de zinco e todo o material seguiram para Gadamael Porto, onde a população civil – por volta de 300 indivíduos – se instalaram em 44 moranças, com o apoio das nossas tropas.

Assim as tabancas de Gadamael Porto e Ganturé aumentaram, não só pelo abandono de Sangonhá e Cacoca como também motivado pelo número de apresentados, oriundos da República da Guiné. Juntaram-se à CART 1659 catorze caçadores nativos devido ao Reordenamento da Populações. Pode-se dizer que o processo terminou em 28 de julho.




Guiné > Região de Tombali > Gadamael Porto > CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68) >  Gadamael Porto > Julho de 1968 > Eu de calções de banho como era hábito



Mas, após terminada a segurança, fomos para Gadamael Porto, sem picarmos visto ter havido movimento de tropas todo o dia. Dei ordens ao pessoal para irem ao banho. (…).

Bebi, como era hábito, as minhas sete cervejas de seis dl, tomei banho e fui jantar. Depois de termos comido aquela sopa que denominávamos de “sopa de 365 dias” – visto não existir outra durante o ano – e termos mastigado um peixinho da bolanha, esperando beber o café, de borras, ouvimos a primeira saída das armas pesadas. Era um flagelamento do PAIGC.

Corremos para as zonas que nos estavam atribuídas na defesa do aquartelamento. Eu como responsável do morteiro 60 e em calções de banho fui para o abrigo do mesmo e, a meio caminho, voltei para trás.


Guiné > Região de Tombali > Gadamael Porto > CART 1659, "Zorba" (Gadamael e Ganturé, 1967/68) > Gadamael Porto > Julho de 1968 > Eu, com uma criança de Sangonhá


Sentia que à minha volta caiam granadas, e que algo me tinha batido nas costas. Estava novamente na Messe e os rebentamentos não cessavam. Não sabia conscientemente o que pretendia fazer, e segurei a cafeteira de café, que não havia sido servido, e num copo de inox – uma inovação na CART 1659 – visto os nossos anteriores copos serem de vidro, recuperado de garrafas de cerveja. Sentia o barulho constante dos rebentamentos e cheguei ao abrigo. Encontravam-se 4 militares à minha espera. Pedi que me vissem se tinha ferimentos nas costas, e com um candeeiro improvisado – uma garrafa de 6 dl com uma gaze enfiada na carica – viram, depois de afastaram terra colada nas costas, que não tinha ferimentos. Perguntaram-me:
– Furriel, o que fazemos?... – Já havia analisado a situação, respondi:
–  Não podemos fazer nada. Com o morteiro 60 não atingimos a zona onde eles estão! Vamos beber café.

E começámos todos a beber o nosso café. Afinal tinha razão quando voltara atrás para buscar o café, e debaixo de fogo intenso Canhões Sem Recuo e Morteiros 82.

O nosso Morteiro 81 funcionou com eficácia, o que não impediu que de seguida flagelassem o aquartelamento de Gadamael Porto, também sem consequências, mas durante mais tempo. Mas ainda hoje me interrogo: “Porque fui buscar a cafeteira de café debaixo de fogo?”

Pergunto: O PAIGC já não estaria no local quando passámos?. Possivelmente preferiram o ataque a Gadamael Porto e Ganturé.


 As fotos que enviava – excluindo as que eram para os amigos – eram uma autêntica mentira. Para além de ter de matar para sobreviver, é evidente, era um mentiroso. Consegui inclusive enganar o meu pai, enganar a minha mãe foi complicado porque não acreditava que estivesse a passar férias em África.

Mário Vitorino Gaspar
Ex Furriel Miliciano nº 03163264, de Artilharia de G3
e Especialista de Minas e Armadilhas
CART 1659 - Zorba, 1967/68
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Guiné 63/74 - P13055: Mafra, EPI, COM: Instruções para os instruendos (Mário Vasconcelos): Parte III :vi - Serviço interno; vii -Dispensas, pretensões; viii- Fardamento; ix - Uniformes, equipamento e armamento; x- Revista de saúde e curativos



Capa da brochura, s/d, usada no EPI, Mafra, no COM - Curso de Oficiais Milicianos












Reprodução da terceira parte do guia do instruendo do COM (Curso de Oficiais Milicianos), usado na EPI - Escola Prática de Infantaria, em Mafra (*): vi - Serviço interno; vii -Dispensas, pretensões; viii- Fardamento; ix - Uniformes, equipamento e armamento; x- Revista de saúde e curativos (Estes pontos não foram, por lapso, incluídos na parte II

Imagens: © Mário Vasconcelos (2014). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]


1. O documento original, sem data, chegou-nos, devidamente digitalizado, por mão do nosso camarada Mário Vasconcelos [ex-alf mil trms, CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, COT 9 e CCS/BCAÇ 4612/72. Mansoa, e Cumeré, 1973/74; foto atual à esquerda.

Recorde-se que já publicámos o guia do instruendo do CSM - Curso de Sargentos Milicianos, documento que nos chegou por mão da parelha Fernando Hipólito / César Dias, e que é claramente mais "ideológico" do que o guia que estamos agora a publicar. Comparando os dois guias, há claramente um tratamento mais "classista", de maior deferência, em relação ao instruendo do COM, futuro "oficial e cavalheiro"...

Não encontramos este documento na Biblioteca do Exército nem sabemos de que data será.

Estas "indicações" ( e não "instruções") dadas aos instruendos dos COM remetem, por sua vez, para o Regulamento Geral de Instrução do Exército (RGIE). As páginas que faltavam (4) foram agora disponibilizadas pelo Mário Vasconcelos a quem agradecemos a generosidade.



Mafra, EPI > Refeitório > 6 de janeiro de 2010 > 40 anos depois, o Paulo Santiago voltou lá, não para "matar saudades", mas para desatar os nós da memória...


(...) "Há o 6 de Janeiro de 1970, fiz vinte e dois anos, e entrei na EPI [, Escola Prática de Infantaria, em Mafra]... E hoje [, 6 de Janeiro de 2010, voltei a Mafra, voltei a entrar no Calhau, passados que foram 40 anos. Não sei como me apareceu a ideia, mas a verdade é que me sentei ao computador, há dias atrás e lá estava a enviar um mail ao Comandante, pedindo autorização para uma visita para este 6 de Janeiro de 2010. Visita autorizada por mail enviado pelo Major Álvaro Campeão com a concordância do Coronel Ormonde Mendes, Comandante da Escola.

(...) "Passei em Pombal, levei o Vítor Junqueira, e a seguir ao almoço estávamos a entrar pela Porta de Armas. Fomos amávelmente recebidos, fomos a alguns locais (ex. Gabinete do Comandante) onde quando Cadetes, nem sabia onde ficavam, e acompanhados pelo Srgt. Ajudante Janelas percorremos aqueles imensos corredores, onde já começava a ficar desorientado, o Refeitório, o Salão de Honra, as paradas, terminando no Bar de Oficiais. Como curiosidade fomos à Sala das Bicas, fica na extremidade dos refeitórios, nem eu nem o Vítor a conhecíamos, e recebe água vinda da Tapada (potável). Visitámos também uma sala com uma arquitetura notável : a Casa do Capítulo, também conhecida por Sala Elíptica." (...)

Foto (e legenda): © Paulo Santiago (2010). Todos os direitos reservados
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Nota do editor:

Último poste da série > 25 de abril de 2014 > Guiné 63774 - P13041: Mafra, EPI, COM: Instruções para os instruendos (Mário Vasconcelos): Parte II: Averbamentos; Serviço interno; (...); Salas de estudo; Comportamento; Saídas do quartel; Passaporte de dispensas ou licenças; Cartas de recomendação, pedidos feitos por interpostas pessoas, etc.. etc., [vulgo, "cunhas"].