domingo, 20 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15879: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (15): N'fendi cadera goss!

1. Em mensagem do dia 7 de Março de 2016, o nosso camarada Abílio Magro (ex-Fur Mil Amanuense da CSJD/QG/CTIG, 1973/74) enviou-nos uma lição de crioulo da Guiné-Bissau:


N'fendi cadera goss!

O crioulo da Guiné-Bissau

O crioulo é uma língua natural, isto é; uma linguagem que foi desenvolvida naturalmente pelo ser humano, de forma espontânea e serve de meio de comunicação entre os falantes de idiomas diferentes.
Estas linguagens: “Possuem normalmente gramáticas rudimentares e um vocabulário restrito, servindo como línguas de contacto auxiliares. São improvisadas e não são aprendidas de forma nativa.”

Consta que o crioulo da Guiné-Bissau (kriol) terá surgido como uma mistura de vários dialectos das mais variadas etnias, de modo a dificultar a compreensão dos portugueses, na época do colonialismo. Trata-se de uma língua falada, e não escrita, pois há poucos livros escritos em crioulo, e também não é a língua oficial do país, não sendo portanto, ensinada nas escolas.
Durante a guerra colonial na Guiné-Bissau (1963-1974), com a chegada massiva de tropas oriundas das várias regiões de Portugal, o crioulo da Guiné acabou por absorver muitos vocábulos portugueses.
Por outro lado, os militares portugueses, “na caserna”, acabaram por “inventar” algumas expressões, misturando crioulo com regionalismos e algum calão, originando uma linguagem digna de inclusão num qualquer compêndio linguístico.
Mas como, efectivamente, não existia qualquer dicionário, nem documento escrito que informasse qual o real significado de alguns termos em crioulo, estes eram por vezes usados de maneira diferente pelos militares, conforme a época e a região em que permaneceram na Guiné.

Por exemplo:
“- Djubi lá!” (para alguns “Djubi” significava “Jovem” e, para outros, significaria “Olha”; “lá” significava “ali” para todos).
Assim, para uns, “djubi lá!” queria dizer: “Jovem, olha ali!”; para outros queria dizer: “Olha ali!”
De qualquer maneira este pequeno exemplo serve para demonstrar a imaginação de caserna, pois era frequente ouvir-se os militares a usarem um novo verbo; “jubilar” (de “djubi lá”), como por exemplo:
“- Eh pá, estás a ‘jubilar’ a bunda da bajuda?!”
Que se podia traduzir por :
“- Eh pá, estás a olhar para o ‘traseiro’ da moça?!”

Conforme referi numa mensagem anterior, havia na sala onde eu prestava serviço na CSJD/QG/CTIG quatro escriturários, dois brancos e dois negros. Um dos escriturários brancos era também ajudante na Igreja Católica de Bissau (sacristão?) e falava crioulo muito bem. Deu-me algumas “aulas” e eu, na altura, “desenrascava-me” razoavelmente a falar crioulo.
Conhecia muitas frases e, embora seja minha intenção deixar aqui alguma informação sobre o assunto, não asseguro que a ortografia seja a correcta, já que o meu crioulo foi aprendido de ouvido, aliás como quase toda a gente por não existirem livros sobre o assunto.

O título deste capítulo “N’fendi cadera goss!”, era uma frase frequentemente usada pelos negros quando se “pegavam” uns com os outros e estavam prestes a chegar a vias de facto. Significava:
- n’ (eu)
- fendi (parto)
- cadera (cadeira, bunda)
- goss (rápido, depressa)

Isto é:
“- Eu parto bunda rápido!” o que, traduzido para um português mais vernáculo, queria dizer:
“- Eu parto-te já o ‘focinho’!”

Uma vez que já se passaram mais de quarenta anos e muitos dos termos já se me “varreram” completamente da memória, fiz umas pesquisas na net, onde encontrei a informação abaixo, à qual acrescentei algumas frases que aprendi de ouvido.

“Em português temos: eu, tu, ele, nós, vós, eles. Em crioulo: n', bu, i, no, bo, e. Estes são os chamados pronomes «fortes». Algumas vezes é possível usar os «fracos»; Ami, abo, elis. (eu, tu , eles).

Kuma ke bu sta? (como é que tu estás?)
Kuma bai kurpu di bo? (Como vai o seu corpo? = Como vai sua saúde?)
No na bai nus nima (nós vamos ao cinema)
Sta dretu (está certo, está bem), (o «está» virou «sta» e o «direito» virou «dretu»)
Pa bia di kê? (porquê?), (talvez uma derivação de “por via de quê”)
Alin'li (aqui estou, no sentido de «tou na boa»)


Como curiosidade, aqui vos deixo um "Pai Nosso” em crioulo da Guiné-Bissau:

“No pape ku sta na seu, (Pai Nosso, que estais no Céu)
pa bu nomi santifikadu, (Santificado seja o Vosso Nome)
pa bu renu bin, (Venha a nós o Vosso Reino)
pa bu vontadi fasidu (Seja feita a Vossa Vontade), (talvez traduzido à letra: 'para vós vontade fazida')
na tera suma na seu. (Assim na Terra como no Céu)
Partinu aos no pon di kada dia, (O Pão-Nosso de cada dia nos dai hoje)
purdanu no pekadus (Perdoai-nos as nossas ofensas)
suma ke no purda kilis ki iaranu, (Assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido)
ka bu disanu kai na tentason (E não nos deixeis cair em tentação)
ma libranu di mal. (Mas livrai-nos do mal.)
Amen. (Amém)"


Alguns sinónimos:

ka = não;
ka bai = não vou;
ka tem = não tenho;
ka sabe = sabe mal, não presta;
ka sibe = não sei;
ka miste = não quero;
parte (de reparte?) = dá;
catota = vagina;
peso = escudo, dinheiro;
parte peso = dá escudo, dinheiro;
parte catota = anda fazer amor ;
parte punho = (adivinhem…);
Manga = muito;
Ronco = festa, bom, fixe, etc.

Se a duas ou três palavras em crioulo juntarmos uma ou outra palavra em português, ficamos a falar crioulo que nem um manjaco!

Por exemplo:
- Furriê, parte peso(1) (furriel dá um peso).
- Ka tem patacom (não tenho dinheiro).

Quando nos aparecia um preto que ainda não conhecíamos.
- Kal raça di bó?
- Fula.
- Manga de ronco!

Se fosse de uma outra etnia qualquer (são cerca de trinta) respondia-se de igual modo e eles ficavam felizes, claro, porque tinham orgulho na sua raça.

Nos anos de 1960-70 estava em moda uma canção de Gianni Morandi (cantor italiano) que tinha o título; “Não sou digno de ti”.

Na maioria das vezes as rádios locais transmitiam os seus programas totalmente em crioulo e, entre os militares, constava que a dada altura o locutor de serviço terá anunciado:

“- Pa tudu irmon de no tera e Mamadu Djaló cabita Catió, Giani Morandi na bai na canta pra bo, ‘Ka so dinho di bo’ ”.

Provavelmente tratar-se-ia apenas de uma ‘caricatura’, onde o uso de muitos «ós» dava à frase uma sonoridade engraçada.

“Pa tudu irmon de no tera” – Para todos os irmãos da nossa terra, para todos os guineenses.
“Mamadu Djaló” – nome muito frequente na Guiné-Bissau.
“cabita Catió” – que mora em Catió (pequena cidade da Guiné-Bissau).
“na bai na canta pra bo” – vai cantar para vocês.
“Ka so dinho di bo” – Não sou digno de ti.
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Fontes:
Wikipédia
http://marcoembissau.blogspot.pt

(1) – O peso foi a moeda da Guiné-Bissau entre 1975 e 1997, após o que foi substituído pelo Franco CFA (Colónias Francesas Africanas) aquando da sua entrada na União Monetária dos Estados da África Oriental - UEMOA (Union Économique et Monétaire Ouest Africaine).
Já antes da independência os guineenses chamavam “peso” ao escudo português da Guiné.

Abílio Magro
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15618: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (14): O Prisioneiro da Ilha das Galinhas

Guiné 63/74 - P15878: Atlanticando-me (Tony Borié) (11): Smplesmente, um ovo

Décimo primeiro episódio da nova série "Atlanticando-me" do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66).




Simplesmente, um ovo!

Já devia passar das oito horas da noite, era para lá do “Paralelo 48 Norte”, naquela altura do ano, continuava de dia, havia alguns chuviscos, descíamos a montanha, por uma estrada de terra, lama e pedra, depois de passar pelo topo, onde alguma neve desaparecia lentamente, em direcção a algum ribeiro onde, entre outros animais um urso procurava algo para comer. Já tínhamos passado a fronteira, para os Estados Unidos, depois de viajar por território do Canadá, a estrada já estava mais bem tratada, mas todo o cuidado era pouco.



Próximo do fim da montanha, onde o terreno começava a ser plano, surge-nos uma placa de sinalização com alguns nomes de localidades, entre os quais estavam as palavras, “Chicken 43 milhas”. A primeira coisa que proferimos para a nossa esposa e companheira, foi:
- Chicken!. Deve haver por lá galinhas e ovos!

Ovos que adoramos e que estivemos por um período de dois anos sem poder comer, pois não se fabricavam, nem havia qualquer hipótese de os obter em quantidade para fazer parte da dieta de qualquer militar combatente que estivesse estacionado no aquartelamento de Mansoa, na então nossa Guiné. Podemos estar a cometer um erro, mas cremos mesmo que naquela altura, não era só em Mansoa, devia-se passar o mesmo em qualquer aquartelamento do interior da província, ovos, era um luxo quase impossível de obter. Tão simples, um ovo, talvez os companheiros não se recordem, mas não era fácil encontrá-los.


Voltando à tal localidade chamada “Chicken”, cuja tradução pode ser mais ou menos Frango ou Galinha, depende da conversação, mas para nós é Galinha, situa-se no estado do Alaska, a sudeste da cidade de Fairbanks, é uma comunidade fundada pelos pesquisadores de ouro e, é uma das poucas áreas, ainda sobreviventes, da corrida do ouro no Alasca, onde ainda se pode ver pessoas nos ribeiros, atolados na lama, procurando o precioso metal. A população era de 7 pessoas, no Censo de 2010, no entanto, em diversas alturas do ano, existem mais ou menos 17 habitantes, que ainda se dedicam à pesquisa.

 “Chicken” faz parte da lista de nomes de lugares incomuns, mas galinha e ovos são um fenómeno que às vezes fazem com que brinquemos com as palavras, sem saber quem existiu primeiro, se a galinha ou o ovo, que quase todos nós adoramos, pelo menos ao pequeno almoço, e podem ser “mexidos”, onde aparece o amarelo quase misturado com o branco, “ensolarados”, onde o amarelo é levemente cozido e o branco não, “médios”, onde a parte branca está cozida, mas o amarelo está meio cru, onde todos gostamos de molhar o pão, ou o normal “estrelado” ou cozido, que com um pouco de sal, é excelente para se beber um bom “copo de tinto”.

Voltando à localidade “Chicken”, recebeu este nome porque os primeiros habitantes, pesquisadores de ouro, que por aqui se aventuraram por volta do fim do século dezoito, eram quase como que atacados por umas aves que dão pelo nome “ptarmigan”, muito parecidas com galinhas bravas, que fazia parte da sua dieta 7 dias por semana e, quando resolveram estabelecer-se nesta comunidade uma estação dos correios, o nome só podia ser um, que era ”Chicken”. Hoje, ainda é um posto avançado para um distrito de mineração de aproximadamente 40 milhas, que começou por ter alguma projecção a partir do início de 1900, onde ainda existem minas de ouro activas, cujo ouro é suficiente para que a sua exploração continue em actividade.

Então, já puxaram pela memória, qual dos companheiros “agarrou” um ovo, lá na então nossa Guiné, que podia ser comido, “mexido”, “estrelado” em fogo médio, até só “escaldado”, “alinhavado”, ou simplesmente “cozido”?

Só agora me lembro, os ovos também servem para demonstrar alguma manifestação de que não gostamos de qualquer personagem, não só pública, onde se podem atirar, sem fazer um mal físico, lá muito grande.

Tony Borie, Março de 2016
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15849: Atlanticando-me (Tony Borié) (10): Nós Combatentes e Elas Combatentes

Guiné 63/74 - P15877: Blogpoesia (441): "Tratar da horta...", de J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Com a devida vénia a BIOLOGIA 12º CFMT


1. Em mensagem de hoje, 20 de Março de 2016, primeiro dia de Primavera, o nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66), enviou-nos este poema dedicado ao tratamento da horta:


TRATAR DA HORTA...

De sacho na mão,
Cavo minha horta,
Cada manhã.

Revolvo a terra.
Exponho-a ao sol.
Lanço a semente.
Água fresquinha.
Imploro uma reza.
E fico à espera,
A ver o que dá.

Nunca tardou.
Na hora, aparece um rebento,
Cheio de esperança.
Põe-se a crescer,
Fugindo para o ar.

Surgem as folhas,
Na ponta dos ramos.
Rebentam flores
Com sede de luz.

Às duas por três,
Minha horta é um jardim
Que apetece contemplar.

Milagre da vida,
à frente dos olhos.
Só não vê quem não quer.

Bendito Senhor!...

No Bar Caracol, arredores de Mafra,
olhando para Sintra

20 de Março de 2016
9h29m

Jlmg
Joaquim Luís Mendes Gomes
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15848: Blogpoesia (440): "Nomes e verbos...", de J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

sábado, 19 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15876: Manuscrito(s) (Luís Graça) (78): Os homens medem-se pelas palavras...


Epigrama: na real galeria de arte, com dicas para um real retrato a corpo inteiro

por Luís Graça


Se o rei tem um metro e meio de altura,
agigantem-no,
elevem-lhe o trono
até ao primeiro piso.

Mais do que boa figura,
e melhor siso,
deve ter estatura,
o rei,
para ficar bem no retrato
da história,
e não ser um rei de má memória.

Se for preciso, 
ponham-no a andar,
corram com ele,
arranjem-lhe umas andas,
ou passeiem-no de andor,
pela baixa da cidade.

Primeira regra protocolar:
rei é chefe

e, como tal, é sempre aquele
cuja cabeça está acima das outras cabeças,
por isso é uma cabeça coroada.

Pequeno detalhe:
às vezes uma almofada
resolve o problema do desconforto
de quem, coitado,
tem que pensar a vida inteira sentado
num trono,
mesmo que torto,
sem nunca cair de sono,
antes de poder chegar ao fim do reinado.

E
, a propósito,
um rei deve morrer
com toda a real dignidade,
honra,
glória,
pompa
e circunstância,
em caso algum
(cruzes, canhoto!)
degolado,
guilhotinado
ou enforcado!

Na pior das hipóteses,
fuzilado,
com honras militares!

Em boa verdade,
não há real cu que aguente
tanto tempo sentado
como o de sua majestade
que nasceu para reinar.

Mas rei não é anjinho
e, para ser santo,
falta-lhe o cinto de castidade
com fechadura,
e chave entregue ao ministro do tesouro.

Se o rei vai nu, 
ou se passeia em trajes menores pelo terreiro do paço,
é mau agouro,
por favor, senhor pintor da corte,
ponha-lhe um sorriso,
de boca a boca,
como o da “Mona Lisa”.
E um ligeiro buço,
que um rei deve ser eternamente
adolescente,
imberbe,
devoto
e púdico,
mesmo quando rei do reino mais ignoto.

E, claro, ponha-o a olhar de frente,
como o nosso menino el-rei dom Sebastião,
forrado de armadura,
perscrutando os inimigos da Nação,
d’aquém e d’além-mar.
(Que pena nunca ter tido um real pintor à sua altura!)

Se o rei tem uma vida sedentária
e aborrecida,
e se o povo e a bosta de boi
não lhe fazem urticária,
troque-se-lhe a vida palaciana
pela campestre,
espetem-lhe um coroa de espinhos na cabeça,
para saber o quão imensa e intensa é a dor,
humana.

Ou então façam-lhe o retrato equestre, 

como ao senhor dom josé,
montem-no a cavalo,
no seu garanhão branco,
puro sangue lusitano.
A coroa fica-te a matar, meu amor!

Mas também não fica mal,
à rainha, com sorte,
vestida de branca de neve,
rodeada dos seus sete anões,
quando sai à rua p’lo Natal,
de sapatos altos de cristal,
ouvir piropos de carroceiro,
que o povo é alarve e brejeiro:
ah!, meu querido Hirohito,
há quanto tempo não me vais ao pi...! 
(Atenção, que piropo agora dá prisão!).

Se o rei morre de tédio,
suspirando uis e ais,
ou vai com cio,
por montes e vales,
atrás dos javalis e lobisomens,
soltem os cães, os faunos e duendes
e convoquem os homens dos jornais,
mas não lhe chamem louco,
que é pouco!

Segunda regra protocolar:
decretem a caça às bruxas,
ou então povoem a corte de anões,
que logo o rei os fará cavaleiros e barões,
sete vezes sete,
blogue fora nada,
que dos régios cofres, é o segredo,
sempre cheios,
garante o guarda-mor do real selo,
caído em desgraça
e a caminho do degredo.

Terceiro e último aviso ao povo
que nunca foi a uma sessão de fado
com beija-mão real no paço do lumiar:
fraco rei faz fraca a forte gente (camões dixit)…

Súbditos leais,
e corteses,
mas velhos e feios,
são os marqueses,
e utilitárias as marquesas,
francesas,
de paços de ferreira
e de fartos seios,
mas dos duques teutónicos
diz-se que são maus fregueses.

Anacrónicos,
esses, são os portugueses
que ainda delapidam diamantes
com as plebeias criadas de servir
e as ‘cocottes’ burguesas…

E das duquesas,
inglesas,
senhor,
o que me dizeis ?
Ah!, que são as melhores amantes
de reis
e serviçais.

Baralhadas e dadas as cartas,
o trunfo é paus,
a cruz que Deus nos deu, 

além do trabalho
por causa do pecado original:
hipótese nula,
fica tudo como dantes,
o quartel em Abrantes,
que de Espanha nem bom vento
nem bom casamento,
nem macho ou mula com boa pinta.

Hipótese de investigação número um:
em caso de desgraça,
peça-se mercês a sua senhoria
e mande-se a conta
à mercearia. 
O elétrico ? 
É o número vinte e oito,
para a graça.

Mais vale, cariño mio,
ser rei por um dia,
do que príncipe regente toda a vida.

Hipótese dois:
em caso de fome, guerra, peste e revolução
(de que Deus nos livre!),
convém que o rei guarde a cabeça,
nalgum lugar mais esconso e seguro do palácio.
Um rei, meu filho, vale pelo trono
e o trono pela coroa
e a coroa pela cabeça.
Não há seguradoras que seguramente cubram
todo este real risco.

E, para mais, Carlota,
como vós mui bem sabeis,
há ainda o real fisco,
que é agiota,
vampiro e daltónico,
e não distingue a cor do sangue,
azul ou vermelho.

Conclusão, e bom conselho
para os reais pintores
e demais bobos da corte
e vindouros:
os homens não se medem aos palmos,
muito menos os reis;
os homens medem-se pelas palavras,
e os bois pelos cornos.



Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Galeria de Exposições Temporárias, Wentworth-Fitzwilliam. > Uma Coleção Inglesa, 6 de março de 2016.

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Nota do editor:

Último poste da série > 14 de fevereiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15747: Manuscrito(s) (Luís Graça) (77): "Nesta terra querida, / Tive mundo, e tive amor, / Não me posso queixar da vida, / Tive tudo, e também dor"... Viva a nossa decana, a dona Clara Schwarz da Silva

sexta-feira, 18 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15875: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (35): antigo quartel de Jabadá Porto, setor de Tite, ou outros antigos quarteis das NT na região de Quínara: quem quer e pode ajudar a Inês Galvão, jovem doutoranda em antropologia que vai estar até junho na Guiné-Bissau ?

1. Mensagem de Inês [Neto] Galvão,  doutoranda em antropologia pelo ICS/UL - Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa:

Data: 14 de março de 2016 às 11:53

Assunto: quartel de Jabada Porto, sector de Tite

Caro Luís Graça e demais camaradas:

Faço pesquisa de teor histórico e etnográfico sobre parentesco e política de género na região de Quínara, onde um mais-velho me contou viver cioso de retomar contacto com antigos colegas de armas e amigos portugueses. O seu nome é Luís Fanda e no cartão que me mostrou da Associação de Ex-Militares das Forças Armadas Portuguesas tem os seguintes dados:

Cartão Milícia 25/02 n.º 360
Companhia 8, Caçadores 4610
Natural de Jabada Porto, sector de Tite

Sei que fez instrução em Bolama e que terá passado algum tempo na Amura, em Bissau, contando seguir para a metrópole.

Aproveito ainda para perguntar se no vosso grupo haverá alguém disposto a conversar comigo sobre o quartel de Jabada Porto ou outros de Quínara. Interessar-me-ia entrar em contacto com quem guarde vivências do quartel e queira partilhar apontamentos sobre os habitantes da tabanca e região, bem como sobre as relações entre estes e os portugueses então lá presentes (militares ou não).

Registos fotográficos e passagens literárias, mais ou menos pessoais, que partam de Jabada e Quínara com referência a matérias de parentesco, cerimónias e animismo também me seriam úteis.

Regressarei a Lisboa em Junho deste ano.

Até lá estarei contactável por e-mail:

galvines@gmail.com

ines.galvao@ics.ul.pt

Ficaria muito feliz se se conseguisse organizar uma vídeo-conferência para que o Luís voltasse ao contacto com os seus amigos.

Um abraço,
Inês




Guiné > Região de Quínara > 1ª CCAÇ / BCAÇ4612/74 (Cumeré, Jabadá e Brá, 1974) > 1974 >  Aquartelamento de Jabadá, na margem esquerda do Rio Geba




Guiné > Região de Quínara > 1ª CCAÇ / BCAÇ4612/74 (Cumeré, Jabadá e Brá, 1974) > 1974 > Aquartelamento de Jabadá > Edifício das transmissões, camarata do Comandante de Companhia, bar de sargentos e oficiais, cozinha e refeitório, e secretaria



Guiné > Região de Quínara > 1ª CCAÇ / BCAÇ4612/74 (Cumeré, Jabadá e Brá, 1974) > 1974 > > Enfermaria, central eléctrica, bar dos praças e depósito de géneros.




Guiné > Região de Quínara > 1ª CCAÇ / BCAÇ4612/74 (Cumeré, Jabadá e Brá, 1974) > 1974 > Depósito de água, padaria e cozinha

Fotos (e legendas): © António Rodrigues Pereira (2010). Todos os direitos reservados

2. Comentário do editor:

Inês, para já os nossos parabéns por (e votos de felicidade para) o seu projeto de doutoramento que, segundo a página do ICS-UL, é sobre "Género, poder e transformação social: uma etnografia histórica sobre relações conjugais entre balantas da Guiné-Bissau". (*)

Em linguagem da tropa, tiramos-lhe o quico!... Você é uma mulher valente, ao trocar este cantinho da Europa, com o seu relativo conforto e segurança, pelas agruras do dia-a-da da Guiné-Bissau.

Em relação ao seu pedido, teremos todo o gosto de ajudar, no que pudermos. Sobre Jabadá temos algumas referências no nosso blogue. Mandamos aqui umas fotos de 1974, com, o aquartelamento de Jabadá... Já nada destas instalações deve existir...

Tem também aqui o mapa de Tite (incluindo Jabadá). E há vários camaradas nossos, membros da nossa Tabanca Grande, que passaram pela região de Quínara ao longo dos anos da guerra (Tite, Fulacunda, Jabadá, Enxudé, S. João...). Aqui vão alguns (, a lista não é exaustiva). Espero que eles a possam ajudar, através de um primeiro contacto por email:

(i) José Inácio Leão Varela, ex-alf mil,  CCAÇ 1566, Jabadá, Pelundo,Fulacunda e S. João, 1966/68;  economista reformado, mora em Algés, Miraflores;

(ii) António Rodrigues Pereira, ex-fur mil at inf,  1ª CCAÇ / BCAÇ 4612/74, Cumeré, Jabadá e Brá,  1974;

(iii)  Jorge Pinto, ex-alf mil, 3.ª CART/BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74; natural de Turquel, Alcobaça; é professor do ensino secundário, reformado; mora em Lisboa;

(iv) António Correia Rodrigues, ex-fur mil cav, CCAV 677, Fulacunda, S. João e Tite, 1964/66;

(v) Santos Oliveira, ex- 2.º sarg mil armas pesadas inf, Pel Mort 912 (Como, Cufar e Tite, 1964/66).

Quanto ao antigo milícia (ou soldado do recrutamento local?) Luís Fanda, os elementos de identificação que nos manda estão, por certo, errados... Ele estaria porventura ligado ao BCAÇ 4610... Só que temos dois batalhões, com esse número, o BCAÇ 4610/72 e o BCAÇ 4610/73... Cada batalhão (c. de 600 homens)  tinha 4 companhias (três de quadrícula e uma companhia de comando e serviços)... A Inês tem que reconfirmar os dados... E perguntar ao Luís Fanda por onde andou e quando e com quem... Se ele era natural de Jabadá, pode ter andado noutras regiões (Cacheu, Tombali, Gabu...). A Guiné-Bissau é grande, do tamanho da Holanda ou do nosso Alentejo... No nosso tempo, no tempo da guerra, era muito maior... Muitos de nós só conhecíamos o "buraco" onde fomos colocados... Enfim, não conhecemos, aqui no blogue,  nenhuma "Companhia 8", nem Companhia de Caçadores 4610...

Boa sorte... Talvez possa falar pelo Skype um dia destes com estes camaradas que lhe indico, ou então falar com eles quando regressar em junho. Disponha do nosso blogue... Eles vão ficar com os seus contactos... Mande-nos também fotos da região... E notícias, claro, de si e das gentes de Quínara. (**)
LG
___________________

Notas do editor:

(*) Descrição do projeto de doutoramento da Inês Gouveia:

Este projecto visa investigar as relações de conjugalidade na Guiné-Bissau face à polémica sobre a poligamia e os casamentos «arranjados», ditos «forçados» ou «precoces», e face aos debates sobre emancipação e subalternidade feminina. Integradas estas questões no âmbito mais alargado do parentesco e da política de género, a pesquisa tomará as populações identificadas sob o etnónimo balanta como âncora empírica. Através da exploração histórico-etnográfica do campo de litígio gerado em torno destes casamentos e do estudo de práticas de rejeição dos mesmos, considerar-se-ão conexões com processos sociais mais vastos, como aqueles movidos pela expansão da economia capitalista, pela implementação do Estado colonial e pós-colonial, bem como pelo contacto entre distintos modelos de conjugalidade e casamento. Este projeto é apoiado pela Bolsa FCT referência SFRH/BD/94769/2013.

(**) Último poste da série > 20 de fevereiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15771: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (34): É crocodilo ou jacaré ? Caros leitores, corrijam as legendas, se for caso disso...

Guiné 63/74 - P15874: Notas de leitura (819): "Seis Irmãos Em África", narrativa cativante à volta de seis irmãos nascidos entre 1936 e 1951 que foram à guerra em Angola, Moçambique e Guiné (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Março de 2016:

Queridos amigos,
Estamos sempre a aprender, estes seis irmãos experimentaram a guerra e juntaram os relatos que forçosamente nos tocam pela ausência de redundâncias e arrebiques, não há para aqui declarações de valentia nem a descarga de azedumes, as coisas foram assim, e ninguém encenou bravatas, há mesmo a propensão para as horas de folia, até há uma descrição humorada de um amanuense que viu em Cacine os lances dramáticos, as sequelas dos ataques a Gadamael, naqueles bravios meses de 1973.
Honra aos Magro, pelo que se lê vieram de boa saúde e guardam o que há de melhor nos tempos de camaradagem que a guerra permite.

Um abraço do
Mário


Os seis irmãos Magro deixaram a casa e foram à guerra

Beja Santos

Trata-se de uma narrativa cativante à volta de seis irmãos nascidos entre 1936 e 1951 que foram até Angola, Moçambique e Guiné participar na guerra, cada um na sua especialidade. Não sei se existe outra família com tal historial. Juntaram memórias que primam pela singeleza e economia descritiva nas diferentes abordagens. Nada de grandes amarguras, nada de mistificações, sente-se que os Magro são folgazões e não querem fazer alarido de bravuras que não viveram. Fazem parte de um arco familiar que nunca foi esquecido, como escrevem: “Uma casa repleta de juventude e movimento ficou, no espaço de dois ou três anos, vazia, fria, envolta em tristeza, albergando apenas o pai, já viúvo. A mãe, doente, vira partir e apenas regressar um. Foi duro. Já não viu partir o sexto”.

Do mais velho já aqui falámos, o Capitão Miliciano de Artilharia Fernando Magro, que teve responsabilidades em Bissau pelas obras dos ordenamentos. Tinha prestado serviço militar entre 1958 e 1960, foi repescado em 1968. Com a saúde precária, foi colocado em Bissau nos Serviços de Reordenamentos Populacionais, chefiando depois os Serviços do Batalhão de Engenharia 447, tendo acumulado atividades extras. Retomando um texto publicado, lembra-nos que a rapaziada da Engenharia que tinha como funções dar apoio às tropas aquarteladas na Guiné, promovendo o fornecimento de geradores elétricos, orientando e apoiando as obras de reordenamentos populacionais, construindo estradas, pontes e portos de atracagem e até quarteis, também corriam perigos, como nos conta os acontecimentos vividos pelo Furriel Miliciano de Engenharia Pedro Manuel Santos, constante do livro “A Engenharia Militar na Guiné”, uma emboscada sofrida entre Piche e Nova Lamego, em 22 de Março de 1974, seguiam na coluna militar elementos do Batalhão de Engenharia. Escreve Pedro Manuel Santos: “Nesta emboscada tivemos 6 mortos, 16 feridos muito graves e 3 feridos ligeiros. Tenho na memória alguns camaradas a respirar pelas costas e já sem vida. Alguns completamente desfeitos. Quando regressei à metrópole senti-me completamente abandonado e entregue a mim próprio. Ninguém me perguntou se estava bem ou mal, se precisava ou não de qualquer tipo de ajuda. Tinha de recomeçar a minha vida”.

A seguir a Fernando vem Rogério, Furriel Miliciano Atirador de Infantaria, em Angola, 1967/1969. “O Rogério foi dos seis irmãos que prestaram serviço nas ex-províncias ultramarinas o que certamente teve o percurso militar mais duro, como maiores privações e que enfrentou maiores perigos”. Depõe sobre os seus dias em Lumbala, 48 dias a comer rações de combate, não faltaram emboscadas, relata histórias de solidariedade e até ordem de prisão. Para nunca mais esquecer foi uma história vivida em Maio de 1968 em que o mandaram levantar o dinheiro para pagar os ordenados da CCAÇ 1719, andou com a pasta apavorado uma série de dias, um pesadelo quando podiam ter sido alguns dias de férias no Luso.

O terceiro irmão chama-se Dálio, Alferes Miliciano de Engenharia, andou por Moçambique, em Marrupa, entre 1970 e 1972. A despeito da canseira das colunas e dos ataques de abelhas, é o Magro que terá levado a comissão com a maior carga de otimismo e bonomia. Temos depois o caso de Alberto, Especialista da Força Aérea, cumpriu seis anos de serviço militar entre Tancos, Angola e S. Jacinto. Guarda recordações das evacuações, das idas à caça e da operação Siroco, que envolveu tropas especiais.

O mano seguinte é Álvaro, Primeiro-Cabo Auxiliar de Enfermagem, começou em Mansambo, participou numa operação militar, adormeceu e quando acordou viu-se sozinho. O irmão Fernando, Capitão em Bissau, tudo fez para o trazer para o Hospital Militar de Bissau. É por esse tempo que morre a mãe dos Magro, ainda muito nova, foi um abalo para aquela ninhada de oito irmãos.

O último dos Magro, de nome Abílio, foi Furriel Miliciano Amanuense. Deixa-nos um registo do Major Leal de Almeida, amigo do irmão Fernando. Viveu a contragosto o período turbulento dos ataques a Gadamael e de toda aquela gente que se foi recolher a Cacine. Não esqueceu as bombas em Bissau, no café Ronda, no autocarro da Base Aérea e o dia 25 e 26 de Abril em Bissau. Mas divertiu-se imenso, gostou de aprender crioulo, é um belíssimo relato. No termo destas memórias, fecha-se o arco familiar falando dos pais, Acácio Lamares Magro e Adelina de Pinha Valente. Seis irmãos que andaram por várias paragens e que passaram a limpo as suas memórias, sem prosápia nem farronca; dá gosto esta leitura de gente que não precisa de fazer alarde nem teatro nem fantasia do que experimentaram e guardaram para nos contar.
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15855: Notas de leitura (816): "Seis irmãos em África", edição de autor, Porto, 2016... Um excerto: "Perdido no mato de Mansambo... por uma hora!" (Álvaro Magro, ex-1º cabo aux enf, CART 3494, Mansambo, e HM 241, Bissau, 1971/74)

Guiné 63/74 - P15873: Agenda cultural (469): Apresentação do livro "A Tropa Vai Fazer De Ti Um Homem", da autoria de Juvenal Amado, levada a efeito no dia 16 de Março de 2016, na Tertúlia semanal da Tabanca de Matosinhos

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 17 de Março de 2016, a propósito da apresentação do seu livro na Tertúlia semanal da Tabanca de Matosinhos, no passado dia 16:

Meus caros amigos e camaradas
Eu não escrevo por compulsão mas por impulso. Assim necessito de uma ignição, dum clique que me desbloqueie e que faça voar e alinhar as palavras.
Por isso eu não sou um escritor mas sim um contador de estórias. E contador porquê? Porque é necessário um facto, uma foto, um risco no chão, um encontro com um amigo, um cheiro, um lugar etc, enfim um momento que faz despoletar a imaginação que dá ordem aos dedos e então escrevo.

Por vezes quando me faltam as palavras e se me embarga a voz, recorro a outro estratagema. Passo a alinhar pensamentos, palavras, emoções, donde saem arremedos de poesia, mais ditados pelo coração do pela razão e pela qualidade.
E foi o que aconteceu ontem na Tabanca de Matosinhos a Tertúlia onde amigos me receberam para além do que eu esperava.
Naquele encontro aconteceu calor humano, amizade, poesia e emoção e pensarão alguns, que é coisa pouca, mas não é, pois nem só de pão vive o homem.
Para acontecer amizade, só precisamos de um amigo e estavam lá tantos!

Comecei este texto a denunciar-me.
Não tenho nenhuma formula mágica, sai naturalmente após o clique, escrevo as “coisas” que evoluem como cozinhado, onde se vai fazendo e provando de sal aqui, ervas aromáticas ali e finalmente, deixando apurar até que o calor manso, faça libertar os aromas e o sabores que estavam escondidos.
Depois disto tudo, leio e digo para comigo, “foi fácil, como é que não me tinha lembrado disto”?

Ontem o José Teixeira leu um poema retirado do meu livro. Ouvi-lo ler, foi das experiências mais maravilhosas que me aconteceram na vida.
O poema não era meu, era de quem o estava a ler, pois ele ao fazê-lo recriou-o, deu-lhe tudo o que lhe tinha faltado até então.
Deu-lhe voz, deu-lhe som, projectou as imagens de frescura e luz, fez-me recordar o rapazola que foi para a Guiné e a pessoa que de lá regressou.

Zé Teixeira ao ler o poema e a amizade demonstrada por todos, fez de mim um homem feliz num dia que não esquecerei nunca.
A todos os camaradas quero agradecer as provas de amizade e na verdade, ir para a tropa e para a Guiné fez de nós homens diferentes.

Está mais que provado.
JA

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2 - Poema lido pelo José Teixeira

UMA PARTE DE NÓS FICOU PARA SEMPRE LÁ

A luz fere-me os olhos
O mar que me embalou na viagem
Quebrou-se manso na barra
Lá está a ponte no seu vai e vem
Ainda guardo a imagem da partida

Para trás ficaram as águas barrentas
O calor sufocante
O cacimbo
O Céu de chumbo
Os dias e noites de insónia
A insanidade afogada num copo
O rosto, que duvido se terá existido

Tão ansioso da partida
Mal posso esperar pela chegada
O Sol resplandece na manhã fria
A maresia invade-me o peito
Voltam os cheiros adormecidos
No cais a molhe de sorrisos cresce

Lisboa maravilha-me
O ar fresco e límpido
Mal posso esperar pelos braços que me aguardam
Haverá lágrimas, serão de alegria

Deito o cigarro fora
Fico a vê-lo rodopiar até tocar na água
Finalmente caminho no passadiço
Vim para ficar
Pensei que o passado ficara para trás

Como pude ser tão cego
Pensar que esquecia tudo
Que uma parte de mim não ficaria lá para sempre
Na ânsia da partida
Neguei-me a olhar para trás

E agora, que a saudade me corrói
Sei que nunca regressei na totalidade

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3 - Algumas fotos da apresentação do livro "A Tropa Vai Fazer De Ti Um Homem", na Tabanca de Matosinhos

É este o ambiente de camaradagem que se vive na Tabanca de Matosinhos, semana após semana, todas as quartas-feiras, desde há muitos anos...

...Onde a música também marca presença. À esquerda, atacando o cavaquinho, o nosso camarada tertuliano João Rebola

Juvenal Amado durante a sessão de autógrafos

Juvenal Amado com o António Tavares e o Manuel Carvalho Passos. Três camaradas da tertúlia do nosso Blogue

Juvenal Amado e Francisco Baptista. Ambos têm em comum o saber falar das suas terras e das suas gentes

Muito bem "intrometido" entre o Juvenal e o Tavares, o nosso contador-mor de belas histórias de amor, o José Ferreira da Silva (o Silva da CART 1689).

 Juvenal Amado veio a Matosinhos também para saborear o belo bacalhau do Milho Rei. Aposto.

Juvenal Amado e o seu colega escritor António Marques Lopes, autor do livro "Cabra Cega - Do Seminário para a Guerra Colonial".

Juvenal em conversa com o Manuel Passos, combinando talvez outra visita a Matosinhos. Quem sabe?

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Selecção e legendagem das fotos da responsabilidade do editor
Fotos enviados por Juvenal Amado
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15851: Agenda cultural (468): Juvenal Amado apresenta o seu livro "A Tropa Vai Fazer de Ti um Homem! (Guiné 1971-1974)", na sua terra, Alcobaça, na Biblioteca Municipal, sábado dia 19 deste mês, às 16h00. Além do alcobacense José Alberto Vasco, o livro será apresentado também por Belarmino Sardinha, nosso grã-tabanqueiro

Guiné 63/74 - P15872: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - VI Parte: V - Vagabundo


Vila Fernando em festa..., Banda do Instituto de Reeducação (c. anos 60)



Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], o nosso querido camarada Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67, e cofundador e "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô.

Esta edição é uma segunda versão, reformulada, aumentada e melhorada, do livro "Putos, gandulos e guerra" (edição de autor, Estoril, Cascais, 2000). 

A sua pré-publicação, no nosso blogue, em formato digital, está devidamente autorizada pelo autor.

Texto e fotos: © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados


Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra >  V Vagabundo (pp. 25-26)

por Mário Vicente [, foto atual à direita]


Calças de Palanco acaba finalmente os estudos e ingress­a, como educador, no Instituto de Reeducação. Faz aqui então uma experiência interessante, na recuperação de menores, sendo integrados na escola de Baden Powell. Os primeiros resultados foram bastante animadores. Pena foi não ter sido continuado o aproveitamento desta semente.

Mais maduro e na convivência com a cultura, a sua vida começa a transformar-se. Nos corredores do Instituto, há sã convivência e aprende-se muito com os mais velhos, cuja vida é já súmula da experiência. E há a brincadeira, às vezes um pouco brejeira, que inofensivamente vai divertindo o pessoal.

Rafael de Oliveira, para além da cultura e arte em termos de teatro, gosta da brincadeira e teatraliza, por vezes, no dia a dia.

Um dia de muita chuva, enquanto Manuel vai aviando um quartilho de açúcar, o Sr. Zé vai apontando na caderneta. Rafael de Oliveira entra procurando cravar um proibido cigarro. Otília fazia as queixas de tanta chuva e de tanta água. Até a sua senhora, de manhã, tinha encontrado uma minhoca atrás da porta, o que foi aproveitado para uma logo directa, do produtor e coreógrafo, exclamando:
– Oh rapariga, isso não é admiração nenhuma. Vê lá tu que a minha Maria hoje de manhã encontrou uma na cama!
– Não me diga?
– Verdade!...

À hora de almoço já todo o prédio da Colónia sabia do aparecimento da minhoca na cama da Dª. Maria Florete.

E assim seguia o entrosamento na vida de Calças de Palanco, que colabora e chega a integrar a Conferência de S. Vi­cente de Paulo. Os excluídos da sociedade principiam a mere­cer-lhe grande atenção. Na sua mente, começam mesmo a delinear-se hipóteses de missionário em África, ou mesmo, quem sabe, a entrada no seminário. Crente, entrosado e estudioso da vida de Cristo, julga estar no caminho certo da sua vida.

Mas não somos nós que delimitamos os nossos cami­nhos. Os desígnios de Deus são imponderáveis, como se diz e eternamente continuará a dizer-se! Sempre assim será!

Existirá sempre um senão! E ele existiu e tornou-se realidade, pois é precisamente neste momento que na sua vida entra uma mulher a sério. Tânia!

Naquele dia do Santo Mártir, à tarde depois da procissão, junto ao Pelourinho quando o Maestro da Colónia com a sua banda de excluídos procurando reinserção, atacou o seu reportório. Os olhares, cruzando-se e penetrando-se, aconteceu! Bem fundo, no âmago dos seus sentimentos e coração, Calças de Palanco sentiu a transformação dentro de si.

Eis a mudança! Eis a alma gémea! Nunca será sua mas jamais o largará! Começou aqui a sua metamorfose em Vagabundo.

Sua irmã mais nova interpela-o e goza com ele:
– Corres com as pernas partidas para lados do norte!

Só que ele não vê, não ouve ninguém só existe para ela. É aconselhado, amigos e outros tentam abrir-lhe os olhos, para o logro em que está a cair. Impossível! O pior cego é, de facto, aquele que não quer ver. Na sua verdade, na sua honestidade, há gente que antevê que vai sair ferido. É doloroso ver perder a esperança nas pessoas, é triste ver as pessoas serem traídas, é horrível ver a reacção do leão ferido.
– Aqui, tu,  estrangeiro, não serás ninguém para os outros. Vão-te trair!

Fantásticas e veras, estas palavras do padre António por volta dos anos sessenta. O padre mais parecia bruxo! Bom homem, o padre António! Por onde andará? Será que ainda continua pobre, as calças bem coçadas, bainhas desfiadas por debaixo de uma batina, também há muito a pedir reforma?!... Em tempos idos andaria ele por terras de Endovélico, Deus dos Lusitanos, o que seria Terena, Alandroal ou Mourão, conforme João Aguiar descreve na "Voz dos Deuses".

Calças de Palanco sente-se traído. É evolutivo o seu estado de desespero, sem coragem na sua cegueira consentida. Começa a sua adulte­ração. Seu amigo Niotetos tenta trazê-lo à realidade, mas em vão, a sua revolta começa a definir o sangrar de uma companhia dolorosa que o levará a grandes loucuras.

Com João Valente forma a "patrulha", alcunha atribuída por os dois andarem na boa vida até altas horas da noite. Fazem cantar os galos da aldeia às horas mais díspares, pois descobri­ram qual deles dava o mote. Os santos populares este ano são vividos, como o princípio do fim de uma era. A "patrulha" é tramada, tem em mãos todos os cadernos da pequena aldeia, é o princípio de um Verão diabólico!

Seis de Agosto de 1963. É patética a despedida com Niotetos Principalmente quando este olhos nos olhos lhe diz:
– Nunca mais serás o mesmo. Só aquela mulher, se quisesse, te poderia ajudar e ser a tua salvação, caso contrário entrarás no fosso e na lama.

Calças de Palanco já não é, já foi, já não existe, ele é neste momento “Vagabundo”. Viva o Vagabundo!

Sete de Agosto. Com o ti Lagarto na condução, o carro de cavalos começa a subir a ladeira. Deixando a sua aldeia, a caminho do CISMI - Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria em Tavira, Vagabundo leva guarda de honra. Acompanham-no até ao ramal da Terrugem, Saragoça (sem concertina), Carmélia, Peta e João Valente. No cruzamento, ao cimo da ladeira, olha para as indicações das povoações no sentido Norte. O seu pensamento não resiste. A coragem é areia esfarelando-se entre dedos. Olhos húmidos, sente a afloração de saudade que viverá escondida, da mulher que nunca irá esquecer.

Revolta-se. Os companheiros de meia viagem, calados, pressentem que algo de estranho se está a passar. Fala alto, mas ninguém o entende. Lá, bem dentro, o coração sangrando pede-lhe amor, mas a cabeça recusa. Nunca mais! Poderias fazer de mim um "bibelô." Agora é tarde!

Tânia, comigo irão sempre a tua franzina figura e teus negros olhos cintilantes. A tua negação ficará eternamente cica­triz aberta, dentro do peito do cigano errático em que me trans­formei. O resto será aventura. Olhou para os amigos e lembrou-se das palavras de Niotetos: nunca mais seria a mesma pessoa. Um abraço a todos e até ao meu regresso. Esperem pelo Vagabundo, gritou, sem nenhum som lhe sair da garganta.

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quinta-feira, 17 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15871: (De) Caras (36): Morrendo de paludismo, com 42º, em Mansambo, em 1973, provavelmente no mesmo abrigo onde, cinco anos antes, apanhavam "banhos de luar" os alf mil da CART 2339, Cardoso e Rodrigues (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74)





Guiné > Zona Leste > Setor L1 > CART 3494 (Xime-Mansambo, 1972/1974) > 1973 > O Jorge Alves Araújo, ex-fur mil op esp, convalescente...  da terceira e última crise de paludismo... Provavelmente no mesmo abrigo onde, cinco anos antes, dormiram ao luar os alferes milicianos Cardoso e Rodrigues, da CART 2339, "Os Viriatos"  (Mansambo, 1968/69).

Foto: © Jorge Araújo  (2016). Todos os direitos reservados.




Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Mansambo > CART 2339 > Abril de 1968 >  Os alferes milicianos Cardoso e Rodrigues apanham "banhos de luar" (sic)... Legenda do Carlos Marques dos Santos, o primeiro dos Viriatos a chegar ao nosso blogue, logo em 2005, tendo depois trazido com ele o Torcato Mendonça: (...) "Em Mansambo, a céu aberto. Camas de ferro nos fossos que iriam ser o aquartelamento fortificado de Mansambo. Data: abril de 1968. A foto é do Henrique Cardoso, alferes da CART 2339 e seu comandante. Os 3 Capitães, que comandaram a Companhia anteriormente estiveram sempre doentes !!! Ele assumiu o comando. Era miliciano e responsável" (...).

Foto: © Henrique Cardoso / Carlos Marques Santos (2005). Todos os direitos reservados.


1. Mensagem de Jorge Araújo [ ex-fur mil op esp,  CART 3494 (Xime-Mansambo, 1972/1974)]

Data: 17 de março de 2016 às 13:23
Assunto: P15869


Caro Camarada Luís,

Como complemento da imagem inserida no P15.869, de hoje (*), do camarada Henrique Cardoso [ex-Alf. da CART 2339, Mansambo, 1968/69] tomei a iniciativa de juntar outra, esta com cinco anos de diferença [1968-1973] para valorizar o trabalho daqueles que me antecederam naquele Aquartelamento. (*)

Trata-se, quem sabe!?,  do mesmo espaço mas agora fechado, logo com mais dignidade. A ser verdade, é muito provável que seja a mesma cama com um novo visual, enquadrada por mobiliário adequado ao espólio de cada um. A decoração é anterior à minha curta estadia.

Esta foto não corresponde à recuperação de um "pifo", mas sim à fase final de uma dose de paludismo, a 3.ª e última com que fui brindado durante a comissão. Esta foi a mais difícil de debelar, tendo inclusive pedido ao Carvalhido da Ponte, meu camarada Fur Enf,  para me matar, tal era o meu estado de desespero, com mais de 42ºC.

Boa semana.

Um abraço, Jorge Araújo.

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Notas do editor:

(*) Vd, poste de 17 de março de  2016 > Guiné 63/74 - P15869: Inquérito 'on line' (46): Apanhei um "pifo de caixão à cova", uma, duas, três ou mais vezes... confessam 65 em 100! (Resultados finais)

(**) Último poste da série > 5 de março de 2016 > Guiné 63/74 - P15824: (De) Caras (34): Bla, bla, bla .... e o almoço de 16 de Abril (António Matos)

Guiné 63/74 - P15870: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (8): Quem não se lembra do antigo ditado que diz: "em tempo de guerra não se limpam armas"

1. Mensagem do nosso camarada José Nascimento (ex-Fur Mil Art da CART 2520, Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) com data de 4 de Março de 2016:


Quem não se lembra do antigo ditado que diz: "em tempo de guerra não se limpam armas"

Esta é uma afirmação perfeitamente falsa, pelo menos no conceito de um coronel de quem não sei o nome, mas que tinha a alcunha do "Onze".

Estava eu no destacamento do Biombo, do qual guardo boas recordações, quando fui visitado por este oficial, que chegou acompanhado por vários militares armados e também por um major que mal colocou os pés no chão, a primeira coisa que fez, foi mandar formar os meus soldados, neles incluídos uma secção de milícias, tendo de seguida começado a inspeccionar as armas que lhes estavam distribuídas.

Ao encontrar a Mauser de um dos milícias, suja de pólvora, quis saber o porquê, ao que o mesmo respondeu:
- Soldado branco foi à caça.

Foi o suficiente para este coronel olhar para o lado e pretender saber o que se tinha passado. O meu militar, para quem o milícia apontou, lá tentou desculpar-se que tinha encontrado umas munições abandonadas, mas não foi o suficiente juntamente com as minhas justificações, para nos ser levantado um auto, do qual resultou uma punição de 8 dias de detenção para o soldado e de 10 de detenção para mim.

Temos de voltar ao serviço militar, porque esta "punição" nunca chegou a ser cumprida.

Alguns meses antes já havia sido visitado pelo coronel "Onze", no terceiro dia em que cheguei ao Biombo. No total das duas vezes que esteve no destacamento, não permaneceu mais do que vinte minutos, apenas pretendeu saber se estávamos bem fardados e bem barbeados. Em seu entender o barracão a que chamavam destacamento ou quartel, onde nem sequer entrou, tendo entrado apenas na nossa mini cantina, não se encontrava em perfeito estado de limpeza, porque havia algumas folhagens no chão.

Não me perguntou pelo meu estado de saúde, pois eu tinha a cara com um enorme inchaço e também estava com alguma febre devido a um problema dentário, problema este que só se resolveria completamente após o meu regresso à Metrópole e infelizmente com a raiz do dente ao sol.

Não pretendeu saber como é que nos alimentávamos e em que condições os alimentos eram confeccionados, a cozinha era um telheiro apoiado em 4 pilares e pouco mais, e a nossa mesa do "refeitório" era feita de umas quantas tábuas mal pregadas.

E o posto médico? Simplesmente não existia e havia apenas um armário de madeira, que felizmente estava razoavelmente apetrechado com medicamentos, porque a CArt 2520 tinha uma excelente equipa de enfermeiros comandada pelo Furriel Enfermeiro Augusto Costa e da qual fazia parte o Cabo Silva que nos acompanhou durante os seis meses em que permanecemos naquele destacamento. Mesmo assim, quantas vezes fomos pedir medicamentos a uma Missão Anglicana que existia lá perto de nós. Também cooperávamos com esta Missão.

A água, se é que era potável, íamos buscá-la em bidões de gasolina vazios, a um poço existente a mais de quinhentos metros das nossas instalações, de qualquer modo não estava envenenada porque esta seria a primeira habitação de dezenas de rãs que por lá moravam.

E como é que nos defenderíamos se porventura o inimigo quisesse organizar connosco uma "excursão" a partir do Biombo até um sítio qualquer do Senegal ou da Guiné Conacri? Ou, o mais certo seria não haver interesse por parte do PAIGC em nos molestar, porque a zona do Biombo/Ondame era "colónia" de férias dos seus militantes?

Para a iluminação existiam um ou dois "petromax". Eu próprio adquiri um candeeiro a petróleo daqueles que as carroças usavam antigamente, para ter luz nos meus "aposentos".

Gostava de poder dizer ao "meu" coronel que não gastámos 3 munições abandonadas numa prateleira. Gastámos sim, mas foram mais de 3 mil e já não faziam parte da dotação da Companhia, foram trazidas por prevenção quando deixámos o Xime.

A nossa permanência no Biombo foi quase um caso de sobrevivência, os mantimentos não eram nem em quantidade nem em qualidade suficientes para alimentar diariamente quase um pelotão de militares e muitas vezes tivemos que nos socorrer da caça para nos alimentarmos.Também comprávamos por imposição aos nativos das tabancas, cabritos ou galinhas ao preço que nós próprios estabelecíamos, mas nunca roubámos. Algumas vezes também comprávamos uma ou duas pernas de vaca quando havia "choro", cerimónia fúnebre em que os nativos matam os seus animais para as celebrações.

Sempre se procedeu à limpeza de armas, mas não era regra, normalmente era de acordo com a convicção de cada um e até me recordo de um soldado ter disparado acidentalmente um tiro enquanto cuidava da sua G3, foi por pouco que não houve graves consequências, o que contradiz o ditado: "Em tempo de guerra não se limpam armas".

Foi muito ingrato quase no fim da comissão e depois de tantos sacrifícios, de tanto sofrimento, de tanta luta e de tantos perigos passados, ter recebido como recompensa uma punição registada na caderneta militar. Felizmente esta detenção não chegou a se concretizar e acabou por ser ultrapassada. Tenho a perfeita consciência de que fui uma peça importante para a CArt 2520, principalmente para o 3.º Pelotão. Cheguei a ser durante muito tempo o único graduado deste grupo de combate e também o seu comandante, com a certeza de que conduzi os meus homens nas matas do Xime, tão bem quanto o saudoso Alferes Joaquim da Costa Marques e com absoluta confiança dos combatentes deste Pelotão.

O tempo já apagou a ira e a raiva que ficaram dentro de mim, mas quando me recordo deste episódio ainda sinto alguma revolta e essa jamais me abandonará.

Para que não haja dúvidas aqui vai a respectiva transcrição da caderneta militar.

"...e na verificação do estado de limpeza e conservação do material e munições do destacamento de que é comandante, dando lugar a que embora na sua ausência, uma praça metropolitana utilizasse munições que se encontravam abandonadas numa prateleira da cantina e, com uma espingarda Mauser distribuída a um milícia fosse à caça dos pássaros".

Para todos os amigos da Tabanca Grande, aqui vai também um grande abraço.
José Nascimento
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15742: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (7): O Soldado João Parrinha, natural de Cabeça Gorda, Beja

Guiné 63/74 - P15869: Inquérito 'on line' (47): Apanhei um "pifo de caixão à cova", uma, duas, três ou mais vezes... confessam 65 em 100! (Resultados finais)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 > Abril de 1968 > Não, não estavam a curar nenhum pifo de caixão à cova, estavam simplesmente a dormir ao luar...Fase de construção do aquartelamento de Mansambo  (que a "Maria Turra", na rádio Libertação, em Conacri, chamava "campo fortificado de Mansambo")...Os alferes milicianos Cardoso e Rodrigues apanham "banhos de luar" (sic)...

Legenda do Carlos Marques dos Santos, o primeiro dos Viriatos a chegar ao nosso blogue, logo em 2005, tendo depois trazido com ele o Torcato Mendonça:  "A propósito!... Sabem onde foi tirada esta foto? Em Mansambo, a céu aberto. Camas de ferro nos fossos que iriam ser o aquartelamento fortificado de Mansambo. Data: abril de 1968. A foto é do Henrique Cardoso, alferes da CART 2339 e seu comandante. Os 3 Capitães, que comandaram a Companhia anteriormente estiveram sempre doentes !!! Ele assumiu o comando. Era miliciano e responsável. Podes publicar, se quiseres. O Cardoso autorizará. Tenho o seu aval. CMSantos".

Foto: © Henrique Cardoso / Carlos Marques Santos (2005). Todos os direitos reservados.



INQUÉRITO: "NUNCA APANHEI NENHUM PIFO DE CAIXÃO À COVA NA TROPA OU NO TO DA GUINÉ"




Resultados finais > 102 respondentes

1. Nunca > 31  (30,4%)

2. Uma vez, por acaso > 25 (24,5%)

3. Duas vezes > 10 (9,8%)

4. Três vezes > 4 (3,9%)

5. Mais vezes > 26 (25,5%)

6. Não me lembro > 5 (4,9%)

7, Não aplicável: não bebia > 1 (1,0%)

Total > 102 > (100,0%)


Votos apurados: 102
Sondagem fechada em 15/3/2016 | 18h04

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Nota do editor;

Último poste da série > 17 de março de 2016 >  Guiné 63/74 - P15868: Inquérito 'on line' (46): os pifos que apanhei durante a campanha africana, aconteceram sempre pelas melhores causas e produtos (José Manuel Matos Dinis, adjunto do régulo da Magnífica Tabanca da Linha)


Guiné 63/74 - P15868: Inquérito 'on line' (46): os pifos que apanhei durante a campanha africana, aconteceram sempre pelas melhores causas e produtos (José Manuel Matos Dinis, adjunto do régulo da Magnífica Tabanca da Linha)

1. Mensagem, de 11 do corrente,  do José Manuel Matos Dinis,  adjunto do régulo da Magnífica Tabanca da Linha [que se reune hoje, 5ª feira,  17 de março, em Oitavos,  Guincho, Cascais, para mais uma sessão de (de)lib(er)ações] 


[José Manuel Matos Dinis  ex-fur mil, CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71]


Assunto - Inquérito: "Nunca apanhei nenhum pifo de caixão à cova na tropa ou no TO da Guiné"


Camaradas Luís e Carlos,
Não vos peço que publiquem o texto anexo, mas achei-lhe graça, parecendo-me fiel à vida social no leste da Guiné, durante os anos da graça de 1970 e 1971, quando o pessoal tirava partido dos melhores "resorts".
Abraços fraternos
JD



Parabéns, Luís,  pelo texto bem destilado que acabaste de produzir [, e que circulou pela Tabanca Grande, lançando o mote para o inquérito desta semana. É de pendor escocês, mas foi para uso nas terras quentes e húmidas da Guiné enquanto là malhàmos a cornadura. 

Hoje sou fraco bebedor, apesar de ainda gostar de debicar diferentes derivações devidamente embotelhadas, ou a saírem do pipo numa adega fresca. Naqueles verdes anos também apanhei uns pifos, pois já tinha uma certa noção da igualdade, e da necessidade de me manter próximo das vanguardas.

Em Piche, que foi o local onde cumpri a periquitagem, tive a sorte de dormir na cama apenas metade das noites, pois as restantes andava envolvido em escuros jogos de guerra, que na melhor das hipóteses só contariam com as luzinhas do magnífico firmamento para iluminar os sonhos. Na​s restantes​ noites de adormecer no quarto, a famosa suite 3, nunca me faltaram os vinhos do Reno, brancos secos que acompanhavam com distinção um cabrito assado, uma posta de queijo, ou um naco de presunto que se deixavam mastigar acompanhados de um casqueiro ainda quente. 7

Lá na minha suite, que era partilhada por mais 5 valentões, mas onde havia sempre alguns penetras que iam esperar pelo joão pestana, proibidos de barulhar durante as emissões da RVFM - Rádio Voz do Furriel Milicano, faziam depois a algazarra que calhava, talvez em resultado da festança e da rica variedade das bebidas, quase sempre reunidas em festejos estomacais que acabavam por subir à cabeça. Ele eram uísques simples ou de malte, novos ou velhos, escoceses ou irlandeses; conhaques, brandies e aguardentes da França e de Portugal; gins ingleses (muito bons para matar a sede, já que estávamos em guerra, e ainda complementavam uma função preventiva do paludismo); bem como os incolores líquidos de algumas garrafitas - na época ainda pouco divulgadas - em fuga das ditaduras comunistas, que para nosso gáudio iam desembocar ao lado contrário da ideologia revoltada
​ - com créditos firmados na distante Rússia, a vodka​.

​ Não sei porquê, mas a garrafeira naquela região remota era bem abastecida.​
Pois bem, durante esses meses pichenses acho que não houve noite adormecida sobre o lençol, que não tivesse tido o feliz adormecimento volatilizado, ou não fosse eu um dos felizes descendentes de Dionisius, um gajo porreiro, promotor de devassas e incrementador do extraordinário e lúcido princípio: se conduzir, beba à fartazana. 

Mais tarde, em Bajocunda, eu e o Tito tivemos sempre camas no quarto,  não nos aventurando às perigosas deslocações para as catacumbas periféricas, insanas para quem se preocupava com a melhor condição física e psicológica. O Zé Tito tinha alargadas fronteiras sobre a espiritualidade, e aos caudais de ideias que lhe afloravam na carola, regava-os cuidadosamente com os melhores líquidos de diferentes proveniências, desde que houvessem, claro, e ainda tinha a gentileza de me acordar a desoras da noite com uma solidária recomendação: bate-te à hepatite, pá!

Ele bateu-se com valentia, muito mais do que eu, e por isso foi medalhado com umas férias estivais de três meses durante um Verão de Cascais, e como prémio complementar, foi assistido por uma dedicada enfermeira francesa que nunca lhe faltou com carinhosos tratamentos. Foi no parque do Guincho de onde não saíu a caravana, enquanto o menino recuperava para o regresso à guerra, e o Carlos Santa - que viria a bater-se em Nova Lamego - estudava sob a batuta atenta de outra francesa, e preparava os exames finais de engenharia. Passou, e foi uma festa cujo ronco chegou desapiedadamente à Guiné.

Conclusão: os pifos que apanhei durante a campanha africana, aconteceram sempre pelas melhores causas e produtos, pois resultaram de manifestações de festa e alegria que eram tão frequentes durante a minha juventude. De facto, não tenho memória de ter bebido para esquecer. (**)

Abraços fraternos

JD

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Nota do editor: