quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16380: Notas de leitura (868): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte VI: o caso do clínico geral Amado Alfonso Delgado (II): Na margem direita do rio Corubal, na mata do Fiofioli: «¿Tú piensas aguantar la mecha esta?, olvídate, que no duras ni tres meses" / "Tu pensas aguentar esta ratoeira? Esquece, pois não duras nem três meses”...


Guiné > Região controlada pelo PAIGC, possivelmente no sul > Visita de uma delegação escandinava às "regiões libertadas" > Novembro de 1970 > Foto nº 25 > Progressão, na savana arbustiva, por meio do capim alto, de um grupo de guerrilheiros. Presume-se que as colunas logísticas do PAIGC tivessem segurança por parte da milícia ou do exército populares...

Fonte: Nordic Africa Institute (NAI) / Fotos: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a competente autorização do NAI. As fotografias tem numeração, mas não trazem legenda. Edição e legendagem; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné).


Sexta parte, enviada a 7 do corrente, das "notas de leitura"  (*) coligidas pelo nosso camarada e grã-tabanqueiro, Jorge Alves Araújo. Trata-se de um extenso documento, que está a ser publicado em diversas partes (*), tendo em conta o formato e as limitações do blogue,


1. INTRODUÇÃO

Caros tertulianos: no P16357 (**) iniciámos a publicação da segunda de três entrevistas realizadas pelo jornalista e investigador Hedelberto López Blanch a médicos cubanos que estiveram na Guiné Portuguesa [hoje Guiné-Bissau] em missão de “ajuda humanitária” ao PAIGC, na sua luta pela independência.

Seguimos agora com a segunda de quatro partes em que o entrevistado continua a ser o dr. Amado Alfonso Delgado, médico de clínica geral mas com experiência em cirurgia. O seu depoimento global pode ser consultado no livro, escrito em castelhano, com o título «Histórias Secretas de Médicos Cubanos» [La Habana: Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2005, 248 pp. Disponível "on line"em formato pdf, numa versão de pré-publicação].

Nesta obra encontramos uma panóplia de outros relatos e experiências vividas exclusivamente por médicos cubanos em diferentes missões africanas como foram os casos passados na Argélia, no Congo Leopoldville, no Congo Brazzaville ou em Angola.

Porque se trata de uma tradução (com adaptação livre e fixação do texto em português, da minha responsabilidade), não farei juízos de valor sobre o conteúdo desta e das outras entrevistas: apenas coloquei entre parênteses rectos algumas notas avulsas de enquadramento sócio-histórico ao que foi transmitido, com recurso a imagens desse contexto retiradas da Net e dos arquivos do nosso blogue.


Foto acima: O nosso grã-tabanqueiro Jorge Araújo: (i) nasceu em 1950, em Lisboa; (ii) foi fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); (iii) fez o doutoramento pela Universidade de León (Espanha), em 2009, em Ciências da Actividade Física e do Desporto, com a tese: «A prática Desportiva em Idade Escolar em Portugal – análise das influências nos itinerários entre a Escola e a Comunidade em Jovens até aos 11 anos»; (iv) é professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes), Portimão, Grupo Lusófona; (v) para além de lecionar diversas Unidades Curriculares, coordena o ramo de Educação Física e Desporto, da Licenciatura em Educação Física e Desporto].


2.  O CASO DO MÉDICO AMADO ALFONSO DELGADO [II]

Sumariando as primeiras cinco questões abordadas pelo médico Amado Alfonso Delgado no poste anterior, é de relevar que foi por ter iniciado o Serviço Médico Rural em Realengo 18, em Guantánamo, e pela prática clínica desenvolvida no Hospital de Gran Tierra de Baracoa, para onde fora transferido em janeiro de 1967, que surge a oportunidade de cumprir uma "missão internacionalista", que ele desejava que fosse no Vietname mas que acabou por ter outro destino: a Guiné Portuguesa (hoje Guiné-Bissau).

Com vinte e sete anos de idade inicia a sua missão africana na véspera de Natal de 1967, na companhia de outro médico, voando de Havana até Conacri, com escala em Gander [Canadá], Praga, Paris e Senegal (, quase meia volta ao mundo!). Durante o primeiro trimestre de 1968 presta serviço médico no Hospital de Boké, na Guiné-Conacri (e uma das bases do PAIGC) na companhia de mais quatro clínicos cubanos: o cirurgião militar Almenares, um ortopedista, um analista de laboratório e um técnico de raio X.

Em abril de 1968 segue para a frente Leste, substituindo o seu companheiro Daniel Salgado, na base de Kandiafra, por este se encontrar doente com uma forte crise palúdica. Nesta base encontravam-se vinte combatentes cubanos. Entre maio de 1968 e setembro de 1969 [dezassete meses], movimentou-se nas matas do Unal Ina região de Tombali) e Fiofioli [Sector L1 - Bambadinca], com destaque para esta última frente, onde pensou não sobreviver, tantas foram as dificuldades por que passou.

Eis o relato de outros apontamentos revelados pelo doutor Amado Alfonso Delgado tendo por base o guião da sua entrevista.

A entrevista tem com 25 questões. Hoje apresentamos a resposta (em itálico) às  questões de 6 a 11 com a devida vénia ao autor, conhecido jornalista cubano Hedelberto López Blanch (n. 1947).


“Cirurgias com a ténue luz de fachos de palha ardendo” 
(Cap XI, pp. 136 e ss)


Entrevista com 25 questões [Parte 2 > da 6.ª à 11.ª]

(vi) Quando chegou 
à zona da guerrilha?

Em Conacri estive cerca de uma semana [em janeiro de 1968]. Levaram-me a uns armazéns do PAIGC e aí distribuíram-me roupas, dois pares de botas, arma, granadas e outras coisas. Os companheiros que iam deixar aquela terra africana perguntaram-me para onde ia com aquele carregamento, explicando-me que deveria levar ténis uma vez que era o mais adequado, pois que no interior da Guiné-Bissau iria ter de caminhar muito e quanto mais pesado pior. De qualquer modo, levei uma mochila bem carregada.

Num dia de semana fui transportado num camião que me levou, não sei durante quanto tempo, passando por várias aldeias até chegar a uma povoação de nome Boké, onde havia um hospital de rectaguarda do PAIGC, perto da fronteira com a Guiné-Bissau [, a sul]. Ali permaneci três meses [até meados de abril de 1968], na companhia de vários cubanos.

Aí conheci o [comandante] Victor Dreke (chefe da missão militar cubana) e o [tenente] Erasmo Vidiaux [Robles],  outro importante combatente cubano, quando ambos circulavam naquela zona. [Estes dois oficiais participaram, anteriormente, na missão cubana no Congo-Leopoldville (Belga), em 1965, comandada por Ernesto “Che” Guevara (1928-1967)].

Com permanência fixa em Boké, estavam [quatro técnicos de saúde]: o dr. Almenares (cirurgião militar de Santiago de Cuba que morreu alguns anos depois em Cuba com cancro da próstata), um ortopedista, um analista de laboratório e um técnico de raio X. Eu ia como médico de clínica geral, mas como tinha experiência de cirurgia ajudei o Almenares em várias operações, particularmente feridos de guerra.

(vii) Porquê e quando lhe destinaram 
a zona de guerra?

Um dia disseram-me que teria de ir para a frente Leste, pois havia que substituir o médico [Daniel] Salgado (morreu em 2000 de um cancro no fígado),  que tinha contraído paludismo e não se sentia bem. Saí em abril de 1968 num camião e depois de várias horas chegámos à fronteira entre as duas Guinés. Cruzámos um rio e chegámos a um acampamento denominado Kandiafara. Aí estavam vinte cubanos e onde passei vários dias até que chegou a ordem para avançar.

Designaram vários guerrilheiros guineenses para me levarem a um determinado lugar. recordo que andámos durante sete ou oito dias, em etapas de muitas horas. Foi muito duro, nunca tinha caminhado tanto mas sentia-me bem. Iam também algumas raparigas guerrilheiras que de vezes em quando ajudavam no transporte dos meus bens, colocando a minha mochila às suas cabeças.

Num desses dias entrámos numa lagoa [ou bolanha?] e nela caminhámos durante horas. Não sei como o podiam fazer mas conheciam perfeitamente o itinerário e o terreno, e em várias situações a água chegava-nos ao peito. A lagoa estava cheia de sanguessugas,  aconselhando-me a amarrar bem as calças e a levantar os braços bem alto para que não entrassem. Numa porção de terra, cercada de água, parámos para descansar e onde passámos a noite. Tinha um capote grosso e através deste os mosquitos picavam-me. Tive de me tapar completamente com uma manta. Pela manhã voltámos à caminhada.


Mapa da região de Cumbijã, no sul,  com a posição relativa de Unal. Infogravura de António Murta


(viii) De que se alimentavam?

Durante este trajecto comemos pequenas quantidades de arroz e em duas ou três ocasiões parámos em aldeias [tabancas] onde nos deram um pouco de farinha e carne. Comíamos pouco e, por isso, nos fomos habituando. Depois não me preocupava em alimentar-me, o mesmo não aconteceu no princípio, quando passava fome.

Volvidos quatro dias entrámos num lugar que me disseram ser a Mata de Unal, muito perigosa e onde o tiroteio era abundante. A menos de um quilómetro as tropas portuguesas batiam a zona com a sua artilharia. 

Continuámos a marcha até chegar a um rio grande que tinha cerca de dois quilómetros de largura. Era a junção dos rios Corubal e Geba [Xime] que iam desaguar no Atlântico. Nesse braço de mar existiam tubarões [?], hipopótamos e crocodilos, onde me disseram para ter muito cuidado porque um homem que havia caído aí recentemente nunca mais apareceu.

Fizemo-lo em canoas de troncos de árvores e informaram-me de que deveria tirar tudo do corpo caso a embarcação se virasse. Às vezes as canoas [pirogas] levavam umas trinta pessoas. Tentei chegar à embarcação mas não pude, porque era de estatura baixa. Os nativos eram altos, experimentados e podiam/sabiam andar no lodo, mas eu ao quarto ou quinto dia me enterrei até aos joelhos e não podia continuar. Naquele momento tiveram que me puxar com o meu equipamento: a arma e mais três carregadores, e me levaram até à canoa. A travessia foi feita durante a noite, uma vez que aí não existiam lanchas de patrulhamento nem aviação para nos atacar.

Disseram-me, ainda, que ali havia um problema grave, mais perigoso que a tropa [portuguesa], que era o “macaréu”. No princípio não entendi e deduzi que fosse um animal, até que um dia vi o dito macaréu, que era uma maré que entrava e subia, não sei quantas vezes no dia. Uma onda de vários metros procedente do mar e se apanhasse algo pela frente era certo que o virava e o fazia desaparecer. Eles sabiam quando podiam passar.


Guiné > Zona leste > Setor L1 > Xime > 1972 >  Imagem do “macaréu” no Rio Geba por onde circulou o dr. Alfonso Delgado no ano de 1969. Três anos depois, em 10 de agosto de 1972, a CART 3494 perdeu neste mesmo local, estupidamente, três elementos do seu contingente (faz quarenta e quatro anos): Abraão Moreira Rosa, da Póvoa de Varzim; Manuel Salgado Antunes, de Quimbres, Coimbra; e José Maria da Silva e Sousa, de São Tiago de Bougado, Santo Tirso (história deste naufrágio nos P10246, P13482 e P13493).


(ix) Como comunicava 
com eles?

Uma vez que os cubanos haviam chegado já há algum tempo, os guineenses tinham facilidade de aprender vários idiomas. Alguns deles falavam português, que era parecido com o espanhol, e ao fim de um mês eu já falava com eles. Durante a viagem de canoa, onde iam vinte guerrilheiros, seguia ainda outro cubano, que era um técnico de raio X, de apelido Pupo, e apesar de ser muito mais forte do que eu, era com dificuldade que resistia aquela caminhada.


(x) Nessa região encontrou-se 

com o médico que iria substituir?

Quando chegámos à outra margem [, direita, do Rio Corubal], encontrei um homem branco em calções, com gorro na cabeça e uma camisa. Olhou-me com alguma indiferença, perguntando-me: "Tu pensas aguentar esta ratoeira? Esquece, pois não duras nem três meses”. Perguntei-lhe porquê? Ao que me respondeu: “Tu verás como isto é”[No original: "¿Tú piensas aguantar la mecha esta?, olvídate, que no duras ni tres meses».]

Este homem era de facto Daniel Salgado, médico militar que também esteve na segunda Frente e a quem eu ia substituir. O que aconteceu depois foi que ele passou a ser o meu melhor amigo que tive e cuja amizade se prolongou em Cuba durante muitos anos até que faleceu. Como já sabia que eu vinha, preparou um macaco para o almoço. Ali esteve mais cinco dias até que partiu de regresso. Nesse lugar soube da existência de um hospitalito [enfermaria de colmo] na frente Leste, na região de Bafatá [Sector L1], que me disseram ser na Mata de Fiofioli [mapas abaixo].


Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Localização da mata do Fiofioli, zona de floresta galeria, situada na margem direita do Rio Corubal, entre Mangai e Concodea Beafada [P9080].


O "hospital de campanha" ["hospitalito"] onde esteve o dr. Delgado foi destruído pelas NT no decurso da grande Op Lança Afiada, que envolveu mais de 1300 homens entre militares e carregdores civis: vd. poste de 3 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11665: Op Lança Afiada (Setor L1, Bambadinca, 8 a 19 de Março de 1969): III Parte: Dias D+4, D+5, D+6, D+7: Pânico entre os carregadores devido aos ataques de abelhas, muitas helievacuações por desidratação e esgotamento, muitas toneladas de arroz destruído, muitas centenas de animais apanhados e consumidos, várias grandes tabancas (como Mangai, Ponta Luís Dias e Fiofioli), escolas, dois hospitais de campanha e outras instalações queimadas...

Essa zona do hospitalito [enfermaria] tinha quatro palhotas: uma para os feridos, com dois pequenos bancos de madeira, duas camas construídas com estacas e palha por cima; a cozinha; o depósito de géneros e a do médico, que se encontrava um pouco mais distante. Estava situado na confluência de dois rios [Corubal + Buruntoni?] surgindo depois um grande espaço de terra que ia ter ao mar [?].

Era nessa ponta onde nos encontrávamos, num plano mais alto, bastante fechado e com muitos animais [seria entre a Ponta Luís Dias e a Ponta do Inglês? De referir que o destacamento da Ponta do Inglês foi desativado em 7/8 de outubro de 1968, com a evacuação do pelotão aí instalado da CART 1746, regressando este à sua Unidade aquartelada no Xime, comandada pelo nosso saudoso amigo e camarada ex-Cap Mil António Vaz (1936-2015). A decisão da sua evacuação é atribuída a António de Spínola (1910-1996), então Brigadeiro, contemplada no plano de redistribuição das NT no terreno, iniciado após a sua chegada, em maio de 1968, ao CTIG - P10009].

O responsável pelo hospitalito [enfermaria] era um cabo-verdiano, enfermeiro, ao qual lhe pedi autorização para caçar. Primeiro, disse-me que não se podia gastar munições, mas depois indicou-me que só o poderia fazer um pouco mais distante por forma a não sinalizar a sua posição.

Levantava-me às cinco da madrugada, cozinhava o arroz, que era o pequeno-almoço, e depois fazia a visita, pois quase sempre tinha algum ferido. Operava quando havia combates, uma vez que dava a ideia de ser uma guerra planificada. Aconteciam emboscadas pré-estabelecidas, onde estavam os guerrilheiros com mulheres e filhos. Eles tinham muitas vezes critérios rigorosos na guerra. Em certas ocasiões ficavam num acampamento, apesar do opositor [o inimigo] saber da sua localização, e quando este bombardeava morriam alguns.


(xi) Como tratava os guerrilheiros 
no mato?

As estações do ano na Guiné-Bissau são duas: a época seca [, de novembro a abril] e a da chuvas [,de maio a outubro]. Durante a época seca passavam meses [seis] e não caía uma gota de água, na outra, em determinadas ocasiões, a chuva caía durante dias. 

Os guerrilheiros faziam a sua vida normal, debaixo de água [à chuva], e pela noite reuniam-se à volta de uma fogueira para se aquecerem. Nesta época a vegetação crescia e tapava todo o hospitalito [enfermaria]. Era uma época má para a caça e a única que se conseguia apanhar era algum macaco, embora se considerasse ser uma época boa para a guerra, pois os aviões não nos detectavam.

As avionetas de reconhecimento [DO 27] passavam com frequência e quando o faziam várias vezes seguidas, mudávamos o acampamento, porque a seguir acontecia, quase sempre, um ataque. 

Por outro lado, a época seca era boa porque tínhamos abundante comida, muita carne, mas o opositor te atacava muito mais, bombardeando a partir dos helicópteros [Alouette III – Heli Canhão, de fabrico francês, utilizados pelas NT nos três TO (imagem abaixo]. 


DO 27

Heli canhão

Os helis desarmados  realizavam essencialmente operações de transporte geral, reconhecimento, heli-assaltos e evacuações sanitárias. Os armados, chamados de “helicanhões”, tinham o nome de código “Lobos Maus”, estavam equipados com canhão lateral Mauser MG-151/20 (20 mm). O artilheiro estava sentado de lado e disparava o canhão pela abertura do portão esquerdo. (http://neloolen-modelismo.no.comunidades.net/alouette-iii-52-anos-na-fap, com a devida vénia)].

Continua…
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 8 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16370: Notas de leitura (865): O ensino da literatura da Guiné nas escolas portuguesas (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16379; Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (47): todas as colonizações são más, até aquelas que os portugueses começaram... e outros, "brancos, amarelos e negros" estão continuando... E vivam os guaranis do Brasil que se recusam a ir aos Jogos Olímpicos do Rio 2016


 Capa de publicação conjunta do IBDE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e a FUNAI - Fundação Naciobnal do Índio, com dados sonbre o censo Demográfico de 2010. Disponível aqui em formato pdf


["O Censo Demográfico 2010 contabilizou a população indígena com base nas pessoas que se declararam indígenas no quesito cor ou raça e para os residentes em Terras Indígenas que não se declararam, mas se consideraram indígenas. O Censo 2010 revelou que, das 896 mil pessoas que se declaravam ou se consideravam indígenas, 572 mil ou 63,8 %, viviam na área rural e 517 mil, ou 57,5 %, moravam em Terras Indígenas oficialmente reconhecidas"].


Mensagem: António Rosinha  | Data: 9 de agosto de 2016 às 23:40

Assunto: Todas as colonizações são más, até aquelas que os portugueses começaram... e outros, "brancos, amarelos e negros" estão continuando,.,



Talvez as colonizações entre os povos, sejam inevitáveis, ontem hoje e  amanhã, talvez seja um "mal necessário", mas que são um mal isso são.

Os homens apenas deviam colonizar (dominar, explorar) terras  desabitadas, isto é, nunca dominar nem explorar ninguém,

Por exemplo, o caso daquilo que geograficamente é Portugal  Continental, que foi colonizado por Romanos, Mussulmanos e hoje nem se sabe que idiomas se falavam por aqui, não há direito que alguns homens  estranhos nos obriguem a ser igual a eles, na fé, na fala, no vestir,  no casar e no habitar, quando estamos na nossa terra e não na terra  deles e em que a própria cultura e história passada desaparece, isso tudo vai acontecer em imensos territórios colonizados onde também vai
desaparecer a história e a língua actual, apesar dos conhecimentos  técnicos modernos.

Colonizar é sempre um conflito entre quem o pratica e quem o suporta.

O caso da Guiné, é um exemplo (suave) daquilo em que África colonizada  se vem «metamorfoseando», com muitas inadaptações.

Embora a Guiné seja vítima do trauma da colonização e consequentemente  do trauma da descolonização e se lhe atribua internacionalmente uma  imagem de ingovernabilidade (Estado falhado) talvez haja países ainda  mais complicados em África e mesmo na América latina.

No caso da Guiné, houve a colonização portuguesa, seguida de uma  autêntica «reciclagem colonial» protagonizada por inúmeros países, com  especial protagonismo da Suécia e União Soviética, até estes  desistirem e sobressaírem outros países e organismos vários não  governamentais com o mesmo entusiasmo a "ajudar" na reciclagem  colonial, mas com outros nomes.

Pelo menos tal como fizemos nós, os Portugueses e Caboverdeanos,  na  Guiné Bissau, e a seguir vieram muitos outros (Suécia, Rússia,  França, EUA, etc.=, que segundo essa gente foram ensinar os Guineenses,  aquilo que os Portugueses não ensinaram em 500 anos, como diz toda a  gente aos guineenses durante os últimos 40 anos, tudo foi errado e  até criminoso, mas pior, quando é ensinar à pressão e à pressa  obrigar a aceitar religiões políticas e usos e costumes, totalmente  estranhos às pessoas atingidas, aí a violência é ainda maior..

Também no caso da colonização cristã e árabe na África subsariana,  (ou mesmo nas Américas com os índios) foi tudo muito mau, e a nossa  geração ainda testemunhou ou participou em alguma dessa colonização,  pelo menos 13 dos 500 anos que os portugueses andaram pelo além-mar.

Foi tudo tão mau nas colonizações, que ainda hoje, que se disputam no  Rio de Janeiro os jogos olímpicos (gregos)e até hoje ainda não vimos  nenhum atleta Guarani,  dono do "tchon" do Maracanã, candidato a  medalhas.  no entanto já não se pode dizer o mesmo de imensos  afro-americanos e africanos, que assimiliraram e se submeteram a toda  a cultura greco-romana que portugueses e outros europeus inculcaram  nesse povo.

Os Guaranis preferiram morrer do que ser brasileiros, correr os 100  metros em 10 segundos, morar numa favela, ou dançar o samba no  carnaval nem falar Carioca

Os homens, no mundo inteiro, deviam poder viajar, comunicar entre si,  aceitar a presença do outro, mas nunca impôr a própria vida à vida  dos outros, quer seja à força com guerra, ou na conversa e na
corrupção, que foram sempre os processos mais usados.

Se os Guaranis quisessem correr no Maracanã, em Jacarepaguá ou em  Itaguaí, à caça ou fazer canoagem à pesca na baia da Guanabara, porquê  aquela confusão dos jogos olímpicos de betão armado, com o mundo  inteiro a poluir um dos lugares mais belos do mundo?

O mundo cristão querer impôr aos africanos subsarianos e índios, que  nem sabiam quem era Cristo, leis e hábitos que já nem os cristãos  respeitam hoje, foi demais.

Vejamos, proibir a poligamia, obrigar a cobrir o corpo com roupas,  substituir as palhotas por casas de pedra, abandonar feitiçarias e  muitas outros hábitos que os próprios cristãos hoje, até adoptam para
eles próprios, todas essas imposições foi muito violento  psicologicamente, quando não fisicamente, com castigos corporais.

Apesar de hoje, certas maneiras europeias e árabes modernas queiram  ser impostas "como sendo direitos humanos" em África, e muitos velhos  régulos africanos não gostem nem compreendam, e vão ter que adoptar como foi com as religiões da idade média, isso também é colonialismo
imposto.

Agora o moderno são a burka e a homossexualidade e outras novidades a  chegar a África ainda a viver em palhotas, mas já com telemóveis e TV  a explicar, isso também é colonialismo.

Pior do que explorar as riquezas naturais das terras dos africanos ou  dos índios das Américas, ou mesmo das tribos do Médio Oriente é querer  convencer esses povos que a civilização deles é inferior à de outros  povos e convencê-los a trocar os valores da sua cultura pela cultura do outro, seja ele colono, benemérito, doador, cooperante ou dador, é  tudo colonizar.

Existe um complexo de inferioridade encaixado na memória de alguns  povos de ex-colónias lusófonas, que praticamente não se dá nas  ex-colónias francófonas e anglófonas.
É-lhe dito aos Guineenses, Angolanos e todos os outros, que além de  terem suportado a colonização imposta pelos portugueses, ainda têm que  sofrer a tal espécie de «reciclagem colonial» imposta por outros que  vêm « ajudar» a completar o desenvolvimento que a "incapacidade  colonial" portuguesa não conseguiu fazer em condições nas antigas colónias.

É um fenómeno que se dá também no Brasil, em que o povão chega (hoje  2000 DC) a levar uma ensaboadela cerebral de tal ordem, em que  suportando toda a espécie de exploração económica e de corrupção  governativa e toda a violência de um capitalismo internacional e  levados a aceitar tudo como uma fatalidade porque:

Tiveram o azar de "ser colonizados pelos atrasados portugas que  roubaram todo o ouro, mataram os indíos, amancebaram-se com mulatas e  negas" e deixaram o país cair nesta desgraça, que até tinha
potencialidades para ser mais importante que a América do Norte (EUA)

No Brasil, o termo de comparação preferido são sempre os EUA, faz  parte da ensaboadela cerebral.

Isto também é uma reciclagem colonial.

Haverá sempre povos a quererem sobreporem-se a outros, e nem sempre  haverá "alguém que diz não".

Como também fui colonialista, (funcionário da Administração colonial  em Angola), gostei de ser um portuga, fraco colonialista e também  participei na reciclagem colonial juntamente com alemães, franceses e  suecos e italianos na Guiné Bissau, assino aquilo que escrevo e a que  assisti, até no Maracanã vi o Pélé, e nem um Guarani vi naquele  estádio cheio.

Cumprimentos e só publiquem se não escandalizar ninguém

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Nota do editor:

Último poste da série  > 25 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16331: Caderno de Notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (46): Quando Bismarck, Leopoldo II e as outras potências, Inglaterra e França (Cecil Rodhes e outros) dividiram África em Berlim, estavam-se nas tintas para os africanos... Ensaiaram depois o neocolonialismo a que chamaram independência

Guine 63/74 - P16378: Álbum fotográfico de Adelaide Barata Carrêlo, a filha do ten SGE Barata (CCS/BCAÇ 2893, Nova Lamego, 1969/71): um regresso emocionado - Parte IV: o BU [um chimpanzé, ou "dari", em crioulo, que ] vivia em cativeiro numa reserva natural em Buba



Guiné-Bissau > Região de Quínara > Buba > 2015 >  No dia 23 de outubro conheci uma das terras mais bonitas da Guiné - Buba.  Este é o BU [um chimpanzé, ou "dari", em crioulo, que ] vivia em cativeiro numa reserva natural em Buba. (*)

Fotos (e legenda): © Adelaide Carrêlo (2016). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Guiné 63/74 - P16377: Os nossos seres, saberes e lazeres (168): Visita à Igreja do Convento de Jesus, de Setúbal (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Abril de 2016:

Queridos amigos,
Tudo começou por um bate-papo com um desses fotógrafos de revistas, falou-se no Convento de Jesus em Setúbal e ele discreteou sobre luz, hora e estação do ano, para interessados em captar a verdadeira cor da brecha da Arrábida, fora da norma as cores desbotam-se, são fingimento.
Consultou-se a meteorologia e o viajante pôs-se ao caminho na mira do sucesso. Viajou por outras paragens mas a sua grande consolação foi encontrar-se com aquele gótico-manuelino como não há outro em Portugal, até porque foi o primeiro.
Em podendo, confirmem o que vem nestas imagens.

Um abraço do
Mário


O gótico-manuelino da Igreja do Convento de Jesus

Beja Santos

O viajante consulta a meteorologia, para captar a verdadeira cor da brecha da Arrábida precisa de determinada luz no interior e um céu pouco brilhante, foi o que um fotógrafo especializado em monumentos lhe propusera. À cautela, para fazer horas, visitou em primeiro lugar a Galeria Municipal de Setúbal para ver o famoso retábulo da capela-mor, e agradou-lhe o belíssimo restauro e a forma como está exposto. Deu uma saltada para visitar a coleção de arte e muito lhe agradou confrontar-se com obras de Álvaro Perdigão e Celestino Alves, dois setubalenses.



Nunca entendi a injustiça à volta do relativo silêncio sobre a obra de Álvaro Perdigão, engenhoso no tratamento das formas, contido nas cores, inclassificável na modernidade. Celestino Alves nunca abjurou o modernismo, há quem lhe atribua semelhanças com a pintura de Cézanne, tal a delicadeza entre volumes e a delicadeza na ocupação da tela. Visita que se recomenda, o tempo mudou, ala que se faz tarde, o viajante ruma para o Convento de Jesus, nem vem à procura do local onde se ratificou o Tratado de Tordesilhas, para o caso não interessa.



O Convento de Jesus é uma das marcas do património europeu, há sobejas razões para assim o classificar. Veja-se a elegâncias das colunas, o tom afogueado da pedra, a forma como Diogo Boitaca estudou a correspondência entre o tempo, o espaço do coro, o altar e as capelas. Há também a ter em conta o aformoseamento dado pela arte azulejar, num dia assim respira-se claridade, nem é necessário a música de fundo para a concentração espiritual, acresce o dado determinante de que tudo saiu da oficina de Boitaca antes do século XV expirar, os Jerónimos muito depois. Não faço analogias, seriam absurdas, o que para o caso interessa é que é percetível o ponto de partida neste templo de arquitetura ascendente.




Estou a lutar contra o tempo porque o tempo está a mudar, o céu embaciou-se, sem aquela luminosidade perco o prodígio da cor da brecha da Arrábida. O coro baixo é elegantíssimo, percebe-se bem como a humidade é o grande inimigo oculto, aliás o Convento, mesmo ao lado anda num restauro que custa uns bons milhões, barrar o caminho a esta humidade tem muito que se diga. Veja-se um pormenor da beleza azulejar, é uma cercadura de volta inteira e que qualidade a da oficina que por aqui andou. O viajante deteve-se diante do púlpito, cirandou e voltou a cirandar, não que o púlpito tenha uma pedra trabalhada que corte o fôlego, é a intensidade da brecha, a sua explosão mineral e a singularidade da cor, inacreditável, é preciso mesmo ver.



Estamos agora na zona portuária, há um belo passeio pedestre à beira mar, o sol voltou a brilhar e é no cruzamento de olhares com Tróia ao fundo, as embarcações de um lado para o outro, os namorados nos bancos, que o viajante foi confrontado com uma árvore rastejante, desconhece-lhe o nome, bem perguntou a quem passava, recebeu indiferença, até o olharam como um tolo ou como pedinte a fazer aproximação. Entusiasmou-o o restauro de um edifício que talvez tenha servido para sala de espera, tudo leva a querer que podia ser uma estação, o que verdadeiramente gostou foi do atrevimento de Arte Deco, ressalvem-se as distâncias e até parece que andou por aqui o Siza Vieira ou um seu ancestral.


Quem vem a Setúbal e não contempla pormenores da Arrábida é como ir a Roma e não ver o Papa. Chegou-se a uma praia, a neblina desce suavemente, podia estar um pintor naturalista que agarraria a oportunidade para tentar pincelar este céu de bruma, uma rocha à vista, seca e árida, e a outra ao fundo, até parece que vai navegar sobre o oceano, segue atrás de um porta-contentores. Aqui finda a viagem, melhor dito, esta nunca acaba o viajante é que percebeu que é impossível continuar a fotografar. Mais haverá que venha entusiasmo para regressar em breve.
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16373: Os nossos seres, saberes e lazeres (167): Rapazes (e raparigas), bebam vinho português, comam pêra rocha portugesa e cantem o fado português, porque no céu... não há disto!

Guiné 63/74 - P16376: Memória dos lugares (342): Galomaro e as suas lavadeiras (António Tavares, ex-Fur Mil SAM do BCAÇ 2912)

Quartel de Galomaro em construção, em Maio de 1970


1. Mensagem do nosso camarada António Tavares (ex-Fur Mil SAM da CCS/BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72), datada de 3 de Agosto de 2016:


A BELA E O SENÃO

Camarigos,

A minha lavadeira de nome Mariana era alta, esbelta, de cor negra clara e de etnia Fula.
Tratava razoavelmente da roupa a troco de 80 pesos (escrevia-se: 80$00) mensais.
Os preços do serviço de lavagem eram diferentes para cada uma das classes de militares.
A Mariana era casada com um Djila que viajava muito à Gâmbia para contrabandear vários artigos vendáveis nos dois países. Diziam que recebia na sua morança tropas quando o seu homem estava ausente. Não sei se era verdade ou não. Comigo tratou somente da roupa. Com pouco mais de 21 anos com certeza vontade não me faltasse de outros serviços.

A minha primeira lavadeira que tive era anciã e andava sempre a mascar coca que trazia numa bolsa pendurada à cintura da vestimenta. Parece-me que estou a vê-la a mascar e depois a cuspir a coca. Era mais cuidadosa com o tratamento dado à roupa. A idade aparente já pesava bastante na sua frágil estrutura física, especialmente na pele enrugada da cara.

Ao fim da tarde era uma romaria de lavadeiras junto ao arame farpado para entregar ou receber a roupa. O chamamento de cada um dos militares por vezes transformava-se num coro desafinado mas engraçado. Quando chamavam pelo nome “TAVARÁS” muito se riam. Nunca descobri qual o motivo de tanto riso.
Os Oficiais tinham o privilégio de receberem as lavadeiras dentro do quartel de Galomaro.

Por razões óbvias não publico fotografias das duas mulheres que trataram da minha roupa durante os 23 meses que permaneci nas matas do Leste do CTIGuiné. História que fez parte da vida de um jovem deslocado numa terra tão longínqua e diferente em usos e costumes da sua terra Natal.

Recordar é Viver!

Tabuleta de recepção aos “piriquitos” do BCaç 3872 colocada (em 1972) na estrada principal de Galomaro. O 1.º Edifício à direita tinha sido uma caserna da CCaç 2405. Em 1970 era a casa do Chefe de Posto. A habitação e o Café - Restaurante do comerciante Francisco Regalla ficava uns metros aquém desta habitação.


Mulheres Fula a lavar roupa numa bolanha de Galomaro, em 15 de Julho de 1970. Nesse dia o BCaç 2912 já conhecia o chão guinéu há 76 dias.

Fotografia de Lavadeiras no seu trabalho quotidiano, em Galomaro.


Visita a uma Morança da Tabanca de Galomaro, em Outubro de 1970.

Abraço,
António Tavares
Foz do Douro, Quarta-feira 03 de Agosto de 2016
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16360: Memória dos lugares (341): UDIB, Bissau, II Jogos Florais, Programa, 28 de junho de 1974 (Augusto Mota)

Guiné 63/74 - P16375: Parabéns a você (1117): Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto da CCAÇ 84 (Guiné, 1961/63) e Tomás Carneiro, ex- 1.º Cabo Condutor Auto da CCAÇ 4745 (Guiné, 1973/74)


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Nota do editor

Último poste da série de 9 de Agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16372: Parabéns a você (1116): Anselmo Reis Garvoa, ex-Fur Mil Op Esp da CCÇ 2315 (Guiné, 1968)

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16374: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (25): Relatório de Operações do último almoço-convívio da CART 1689

1. O nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos o Relatório de Operações do último almoço-convívio da sua Unidade para integrar as suas "Outras Memórias da Minha Guerra".


Outras memórias da minha guerra

24 - “O nosso fim está próximo”

(… assim, a modos de “Relatório de Operações” do último almoço-convívio da CART 1689)

Por incrível que pareça, os militares da nossa CART 1689 assinalam, em convívio almoçarado, não a data do seu regresso da guerra, mas o da partida. Mas ninguém sabe porquê ou de quem foi a ideia.

Lá, todos os dias 26 eram motivo de satisfação, de alegria e de bebedeira. Isto justificava-se porque a contagem era implacável e só a sua soma, mês a mês, nos daria o descanso, o regresso e a libertação. Cada mês que passava parecia mais uma senha de uma lotaria que nos ajudaria a obter o prémio final. Era por isso que a importância festiva se acentuava mais e mais à medida que os meses passavam.
Saturados de guerra, deixámos passar uns onze anos sem nos termos reencontrado. Excepcionalmente, os que eram vizinhos, iam-se encontrando mas sem qualquer tipo de manifestação festiva ou com carácter de regularidade. Porém, chegou-se à conclusão que havia muitas saudades daquelas amizades de excepção que se havia criado. Foi o falecido Mariz que juntou, o “núcleo duro” dos graduados, no Restaurante D. Sancho, perto da Curia. A partir dali, procuraram-se contactos, através do “passa a palavra” e de anúncios em jornais (JN e Bola). Então, reunimos em Crestuma 2 ou 3 vezes, mas o número de presenças não evoluía. A malta havia seguido a sua vida, após a chegada da guerra e dispersou-se, inclusive pelo estrangeiro.

Alguns camaradas, chegados da África do Sul, da Alemanha e da França, procuraram os amigos que nunca mais viram. Nessa altura, destacámos o entusiasmo do Sá, do Peixoto e do Netinho que, apoiados pelo Miranda, conseguiram aumentar significativamente o número de participantes nesses encontros anuais. Depois entrou em cena o “Póvoa” (José Ribeiro) que, graças à sua dedicação e capacidade organizativa, atingiu-se um grau de excelência, nesses eventos.

Como a malta da CART 1689 é, quase na sua totalidade, oriunda do norte, não admira que os encontros se tenham feito cá para cima. Todavia, devemos realçar o grupo de “Lisboetas” que tem sido verdadeiramente exemplar. E foi por isso que organizámos um encontro na Cova da Piedade, para onde fomos de autocarro. Por influência do Borges das Transmissões (aquele “técnico” que se propôs recuperar o barco ”Tolan”, virado no Tejo), fomos à sua terra, lá nos arredores de Seia. Também já fomos à Guarda por “exigência” do Saraiva, grande entusiasta destes encontros. Cabe aqui realçar os nomes de Seixas, Mendes, Ferreira, Vilela e Azevedo que têm assegurado a continuidade destes convívios. Estou a lembrar-me de encontros em Amarante, Esmoriz, Maia, Famalicão, Ermesinde, Gaia, Póvoa de Varzim, Felgueiras, Braga,

Assim, pelo menos uma vez por ano, por altura do 26 de Abril, voltamos a ver-nos e… voltamos a afastar-nos. Sim, a afastar-nos. É que o número de participantes vai diminuído, seja por incapacidade física, menos interesse ou por ausência forçada devida a… mobilização definitiva para as bandas do Além.

Na igreja da Falperra. Valente e Miranda em primeiro plano - Foto de Dália Carneiro 

Na concentração deste ano de 2016, beneficiámos de uma óptima organização do Ferreira de Braga. Fomos à missa à Igreja da Falperra, passámos pelo Sameiro e pelo Bom Jesus. Fomos participar num verdadeiro banquete lá para os lados de Póvoa de Lanhoso. O convívio decorreu maravilhosamente(!). Deu para falar com toda a gente, fossem camaradas ou seus familiares. E deu para recordar/estender/repetir/adulterar (involuntariamente, devido à degradação dos neurónios – ou pelo decurso do tempo ou pelo álcool ingerido) as histórias do costume. Tirando uma ou outra discussão provocatória de (pretensos) divisionistas da Pátria (entre Norte e Sul) ou alimentadores da eterna rivalidade futeboleira, tudo funcionou em ambiente cada vez mais tolerante e mais amistoso.

Silva e Miranda juntos da bandeira d”Os Ciganos” - Foto de Dália Carneiro 

Durante esses relatos, notei que muitos já andam muito longe da verdade dos factos guerreiros ocorridos, deturpam-nos (involuntariamente), inventam histórias e outros… não se lembram de nada. É a vida!

Entre outras conversas, ouvi quem afirmasse que num ataque a Cabedu, se disparam umas cento e tal granadas de morteiro 81. (Será que havia assim tantas granadas no quartel?) Outro disse que vira um Furriel a tentar fazer fogo com um outro morteiro, apoiando-o nas costas de outro Furriel. E, como lamento da morte de um Alferes (que morreu devido a ferimentos nesse ataque, atingido dentro do abrigo mais seguro – o das transmissões), lembrou a sua bravura por ter vindo para a parada expondo-se ao fogo IN, apoiando a resposta ao ataque.

Também assisti às dúvidas de um Furriel, afirmando que a viagem do Norte para Lisboa não podia ter sido feita numa só noite, porque o comboio, naquele tempo, andava muito devagar. Portanto, segundo ele, a saída de Viana do Castelo fora no dia 25 de Abril e não na madrugada do próprio dia 26, dia do embarque no Uíge.



Desta vez, nem o Capitão Maia, nem o Alfero Branquinho apareceram. Foi a vez de alguns Furriéis botarem palavra.

Cheguei a ouvir um Furriel afirmar que o seu Alferes não estivera na OP da implantação do novo quartel de Gandembel, quando, afinal, esteve todo o tempo. E que, ele mesmo, em dado momento, chegara a comandar o Batalhão.

Enfim, um exemplo de afirmações que nunca ouvira antes. Não sei se a malta já está afectada por problemas de saúde ou é consequência de… medicação. A verdade é que se nota, cada vez mais, que alguns já acusam muito esquecimento, muita deturpação e muito cansaço cerebral.

De repente, como se estivesse ao espelho, sinto um calafrio e pensei:
- Será que eu também já estou afectado? Não, não pode ser.

A certa altura, abeirei-me do Valente, que eu havia ido buscar a Oliveira de Azeméis e que já não pode conduzir viaturas em virtude de um acidente sofrido numa pescaria na Barragem de Castelo de Bode, e perguntei-lhe:
- Está tudo bem? Porque estás tão calado?
- Olha, Silva, desta vez estou para aqui a observar a malta e verifico que o nosso fim está próximo. Lembras-te de quantos homens tinha a nossa Companhia? 153! - Sabes quantos estão aqui? 19! A maioria são familiares e a gente nem repara. Cada vez vêm mais familiares a acompanhar-nos, e sabes porquê? Porque nos vêm trazer e amparar. Andam a dar-nos as últimas alegrias.

Logo o tentei animar:
- Deixa-te de merdas, a malta está contente, vê se pensas em coisas boas e se tratas do “isco especial”, para voltarmos a pescar.

O Grande Valente, numa “bolanha do vale do Mondego” prepara-se para dar mais uma aula de bem pescar ao colega/amigo/vizinho Silva, companheiros de grandes lutas pela honra e dignidade dos militares da Cart 1689. 

Com o Valente nas pescarias do Douro - Porto Antigo

Durante a sobremesa, o (político) experimentado Cepa, como sempre, manifestou a sua preocupação quanto ao “sacrificado” para a organização do próximo encontro. Para isso, fala-se com o “Póvoa”, para dar o seu habitual apoio e a sua prestimosa opinião. Seguem-se algumas trocas de palavras e “democraticamente” chega-se à conclusão de que o Seixas nos quer de novo em Felgueiras. Ninguém o contraria, nem as razões históricas do meio século da nossa saída de Viana do Castelo, alteraram a decisão. O Cepa acrescentou algumas palavras de afecto aos resultados do escrutínio. Felicitou os camaradas da guerra e, mais uma vez, desejou o melhor para todos os presentes.

De seguida falou o Miranda. Logo um sinal de que já estava “tocado”. (Pudera, sem sua Mulher Maria José a travá-lo e com a Filha Dália a fazer de condutora privativa, estava em roda livre). Quis exteriorizar toda a sua amizade ao grupo mas, sempre polémico e, em tom de brincadeira, claro, acabou lançando as mesmas farpas que tanto ocupavam os velhos tempos de caserna. E já gritava:
- “Abaixo os benfiquistas”, “morte aos mouros”, “o culpado foi Afonso que não tinha nada que ir conquistar Lisboa”…

Para que a coisa não aquecesse mais, tentei que ele mudasse o discurso de impropérios divisionistas e logo me acusou:
- Tu, cala-te que também és meio mouro, porque Crestuma fica do lado de lá do Rio Douro.

O que valeu foi que os incomodados da Cova da Piedade, de Massamá e de Loures atiraram-se a ele e levaram-no para junto do Bar.

Tive então a oportunidade de dizer alguma coisa. As palavras do Valente encaixaram na minha mente e parecia que não fugiam. É que também me vieram à cabeça as dificuldades que passei este inverno, com a deficiência respiratória que me tem atacado e com o AIT que sofri.
Pedi a intervenção e logo me emocionei. Assaltou-me essa ideia pavorosa de que me poderia estar a despedir. E, por outro lado, olhava para todos e pensava: Quem dentre eles poderá não estar cá no próximo ano? 

Dominada a comoção, cuja razão não poderia exprimir, corri com os olhos todos os presentes naquele salão.

“Caros camaradas, 
É com grande prazer que reunimos hoje mais uma vez. Já o fazemos há uns anitos. Convivemos abertamente, sentindo-nos regressados àqueles tempos da nossa juventude. Até parece que voltamos a ter os tais vinte e tal anos. 
Tempos em que fomos espremidos e postos à prova extrema de todas as nossas capacidades. 
Tempos em que cimentámos a nossa solidariedade e a nossa amizade. 
Reparo que continuamos a olhar lá para longe, onde irmanados, vivemos os anos mais importantes das nossas vidas. São essas as sensações que ainda nos unem e que nos levarão até à morte. 
Reparo também que já somos poucos, e que, possivelmente, não nos iremos encontrar muitas mais vezes. 
Por isso, caros amigos, se me permitem um conselho de um dos mais velhos, vamos olhar mais para quem vive ao nosso lado. Olhar mais para quem sempre olhou por nós. Quem sempre nos acompanhou, nos tolerou e nos amou. 
Julgo que ainda poderemos retribuir o amor e a atenção a esses entes mais queridos. 
Eles bem o merecem!” 

Brindámos, comemos o último pedaço de bolo e abraçámo-nos, mais que nunca. Notei que havia lágrimas naqueles sorrisos de alegria. Alguns abeiraram-se de mim e incentivaram:
- Força Silva, para o ano cá estaremos!

Mas houve quem me segredasse:
- Ó Silva, sei bem onde você queria chegar. O nosso fim está próximo.

Pensei, falando comigo mesmo: "Pode ser. Mas, depois, depois, tudo continua… nas cenas dos próximos capítulos".

Silva da Cart 1689
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 Nota do editor

Último poste da série de 23 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16125: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (24): Memórias de guerra ou guerra de memórias?

Guiné 63/74 - P16373: Os nossos seres, saberes e lazeres (167): Rapazes (e raparigas), bebam vinho português, comam pêra rocha portugesa e cantem o fado português, porque no céu... não há disto!













33º Festival do Vinho Português e 23º Feira Nacional da Pêra Rocha > Bombarral, 2 a 7 de agosto de 2016 >  4º de agosto > 22h00 > Espetáculo com a fadista Carminho, um grande presença, corpo, alma e voz em palco... E boa continuação das férias para os felizardos que podem dar-se ao luxo de ter férias... (As imagens dos "outdoors" foram tiradas no recinto do festival e da feira, na magnífica mata municipal do Bombarral).


Fotos (e legenda): © Luís Graça (2016). Todos os direitos reservados . [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Guiné 63/74 - P16372: Parabéns a você (1116): Anselmo Reis Garvoa, ex-Fur Mil Op Esp da CCÇ 2315 (Guiné, 1968)

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Nota do editor

Último poste da série de > 8 de Agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16368: Parabéns a você (1115): Henrique Martins de Castro, ex-Soldado Condutor Auto da CART 3521 (Guiné, 1971/74) e José Santos, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 3326 (Guiné, 1971/73)

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16371: (In)citações (97): Ainda a história (verdadeira) da Cadi... Tive um grande orgulho quando a população de Bigene, em peso, se veio despedir de mim à pista, com lenços no ar e lágrimas nos olhos (Adão Cruz, ex-alf mil médico, CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

(i) Comentário de Adão Pinho da Cruz, médico cardiologista, ex-alf mil médico, CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68) (*):

Caro Cherno Baldé, muito prazer em falar contigo. Tratemo-nos por tu, pois assim é que deve ser, e é muito mais democrático.

Muito obrigado pelos oportunos esclarecimentos, que registarei, pois estamos sempre a aprender. Sim,  meu caro Cherno Baldé, a história da Cadi, rigorosamente verdadeira, é enternecedora e constitui um marco indelével, de relação humana, na minha vida de homem e de médico. 

Como tu dizes, não seria fácil acontecer noutras terras, mas ali em Bigene, e um pouco pela minha acção, passe a presunção e a vaidade, a tropa e a população eram quase uma família. Como médico fiz tudo o que pude, como militar, nada de relevante. Até era tido como subversivo. A minha "bíblia" era o livro "Os Condenados da Terra" (Les Damnés de la Terre) de Frantz Fanon. 

O comandante de batalhão gostava muito de mim, mas dizia que eu parecia um médico de asilados, ao que eu respondia: meu comandante, eu fui feito médico civil e não militar

Mais uma vez perdoa-me a vaidade, mas tive um grande orgulho quando a população de Bigene, em peso, se veio despedir de mim à pista, com lenços no ar e lágrimas nos olhos. O próprio piloto da avioneta confessou-me que nunca tinha visto tal coisa e deu meia dúzia de voltas no ar antes de subir. Talvez o Cherno tenha razão, só num ambiente destes a história da Cadi poderia ter acontecido. (**)

Um grande abraço do Adão

8 de agosto de 2016 às 11:24
 

(ii) Comentário de Cherno AB:

Caro amigo Adão Cruz,

Obrigado por fazeres fé na minha observação, como sempre digo aos meus amigos do Blogue, eu fui um simples faxina no quartel, melhor dizendo, "um rafeiro de quartel",  como haviam muitos, mas que durou por mais de 4 anos e que me deu a possibilidade de observar e de questionar muitas coisas que se passavam ao meu redor.

Sensibilizou-me bastante a descrição que acabas de fazer sobre os prisioneiros (***), facto verídico que eu posso confirmar pela minha própria experiência no quartel onde passei a minha infância.

Um abraço amigo,

Cherno Baldé

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 8 de agosto de  2016 > Guiné 63/74 - P16369: Em, bom português nos entendemos (14): a história da Cadi do dr. Adão Cruz e a expressão em crioulo "ka-misti" ou "n'ka-misti"(não quero) (Cherno Baldé, Bissaau)

(**) Último poste da série > 15 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16306: (In)citações (96): Nova Lamego, 15 de novembro de 1970, uma das noites mais longas das nossas vidas... Nós, miúdos, achamos que os nossos pais não choram, mas eu sei que também se chora em silêncio e sem lágrimas.... (Adelaide Barata Carrêlo, filha do ten SGE Barata, CCS/BCAÇ 2893, 1969/71)

(***)  Vd.poste de 6 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16363: Os nossos médicos (88): Os prisioneiros (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547)