Blogue coletivo, criado e editado por Luís Graça, com o objetivo de ajudar os antigos combatentes a reconstituir o puzzle da memória da guerra da Guiné (1961/74). Iniciado em 23 Abr 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência desta guerra. Como camaradas que fomos, tratamo-nos por tu, e gostamos de dizer: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande. Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 27 de novembro de 2020
Guiné 61/74 - P21587: Bombolom XXVIII (Paulo Salgado): Saudação e participação
Meu Caro Luís Graça,
Meus Caros Coeditores,
O meu Bombolom
Era devida a lembrança do Padre Macedo. Ocorreu-me trazer esta memória ao nosso Blogue na sequência do que foi escrito acerca de clérigos que serviram na Guiné. E já após a independência. Devo trazer a terreiro que pude consultar várias obras que abordam a presença em Cabo Verde e Costa Africana até ao Golfo da Guiné de clérigos ao longo dos séculos. Aliás, ficcionei, numa das minhas "Crónicas de Guiné – Crónicas de Guerra e Amor" – a existência simultaneamente atribulada e feliz do Frei Cipriano, que, em Cacheu, se introduziu na população, e converteu, e penou… Agradeço a fotografia que encima o meu texto sobre o grande Padre Macedo.[1]
Em tempo de pandemia, procuro estar atento ao que se passa, e ler, ler, e escrever. Ajuda a combater este bitcho carêto que nos faz emburacar e isolar…
Escrevi "A Revolta dos Animais" – um livro que se dirige aos jovens e não apenas. Nele procurei colocar os animais (seus representantes por eles escolhidos) a dialogar entre si e com os deuses gregos, reunidos na Acrópole. Para, de seguida, de forma ordeira mas firme, se dirigirem à ONU para apresentar as suas reivindicações… Mais não digo.
A capa e contracapa do livro vai junto (ver anexo). O livro tem a apresentação de Tiago Rodrigues (Director do Teatro Nacional D. Maria II), meu Amigo e filho de um grande meu Amigo, o Rogério Rodrigues (ver abaixo). E tem a ilustração pro bono da grande pintora Josete Fernandes, natural de Cedães, Mirandela, onde vive e tem o seu ateliê, e onde é possível apreciar a sua riquíssima e vastíssima obra.
Ofereci o livro à Câmara Municipal de Torre de Moncorvo, minha Terra. O objectivo é distribuí-lo pelos jovens do Agrupamento de Escolas Dr. Ramiro Salgado.
Quero registar outra iniciativa: a minha mulher, a Maria da Conceição, atreveu-se a fazer a fotobiografia da presença do seu soldadinho na Guiné – anos de 70-72. Para os meus netos saberem o que foi a guerra colonial e como o avô a passou, e como tanta gente sofreu, lá e cá, durante treze anos. Não é tempo para esquecer, como não se esquecem as invasões francesas, as guerras mundiais, os descobrimentos…o bom e o mau…
Outras iniciativas estão na calha. Delas falarei mais tarde.
Aproveito para dar os parabéns aos magníficos textos dos camaradas escreventes neste Blogue. Recordo, sem esquecer outros, o Hélder, o Beja Santos, os poetas, o José Martins, o Abel Santos.
Aos bloguistas e seus Familiares, desejo saúde e resiliência (lá, na guerra colonial, utilizávamos a expressão resistência…).
Um abraço.
A partir de Torre de Moncorvo.
Paulo Salgado
25.11.2020
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Notas do editor:
[1] . Vd poste de 24 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21579: (In)citações (172): Frei Francisco Macedo (1924-2006), um madeirense, homem de Igreja e de Cultura, profundamente ligado à história contemporânea da Guiné-Bissau (Paulo Salgado, ex-alf mil op esp, CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72)
Último poste da série de 23 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21475: Bombolom XXVII (Paulo Salgado): Drogas na Guerra Colonial - Um comentário e uma história
Guiné 61/74 - P21586: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (28): A funda que arremessa para o fundo da memória
Queridos amigos,
Annette Cantinaux está enternecida com o seu primeiro Natal português, desabafa com um amigo de longa data, há perto de 30 anos que percorrem os países da Comunidade Europeia como intérpretes, sente-se radiante pelo acolhimento do seu adorado, a família acolheu-a de braços abertos, já passou o Natal e há reuniões já previstas com os filhos, voltarão todos a estar juntos no que eles chamam o Ano Bom. E nessa intimidade familiar entrou uma confissão de um Natal vivido em Missirá, o mais inesquecível dos Natais, a mais iluminada das festas, pela congregação das recordações de origem, pelos alimentos que traçam união entre os portugueses, e por se ter oferecido um tanto de alegria àquele povo que apreciou canja de galinha, que até meteu hortelã, imagine-se, cabrito assado bem passado pelo alho, houve que lamentar não se ter posto um pouco de vinho, não faltou louro e boa pimenta, arroz-doce preparado com leite enlatado, e algumas iguarias que sobraram da Consoada, onde houve devaneios com boa pinga.
Annette está feliz, sente-se em casa ao lado do seu adorado, mas regressa dentro de dias à rotina profissional, e tem os filhos à espera, precisam do seu afeto e da sua ajuda pecuniária. Sofre com a partida, mas tem que ser, há sempre que ganhar balanço para superar este novelo da ausência, e num horizonte que mete talvez dez anos. Serão os dois capaz de viver assim? E como ela agora sofre, já que abandonou o estatuto de mulher só... E vem agora um período dolorosissimo das agruras trazidas pela guerra.
Vamos contá-las.
Um abraço do
Mário
Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (28): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Carta de Annette Cantinaux para Julien Beuys, de profissão intérprete, natural do Luxemburgo, seu amigo desde o início da carreira profissional de ambos, há perto de 30 anos, datada de Lisboa, 28 de dezembro:
Très cher Julien,
Espero que tenhas tido um Natal cheio de alegrias na companhia da Yvonne, filhos e noras. Aqui me tens a dar-te algumas notícias do meu primeiro Natal português. O Paulo dá uma enorme importância ao jantar e à Consoada, o jantar é típico, imagina que comem bacalhau cozido, batatas e couves, primeiro uma canja de galinha, e depois do prato principal aparecem os doces, alguns deles muito próximos da nossa confeitaria natalícia. Janta-se e o convívio prolonga-se até à meia-noite, recomeça a festa, sabes muito bem que celebramos de outra maneira. Vieram os filhos, foram adoráveis comigo, senti que todos estavam a fazer o possível para haver aproximação, o Paulo insistia que ninguém saía da mesa, era ele que servia, tinha a felicidade estampada no rosto.
Findo o jantar, houve arranjos na mesa, e viemos para a sala, aqui refastelados pude falar de mim, do meu trabalho, da minha itinerância. E foi numa amena troca de explicações sobre o Natal belga que o Paulo procurou justificar aqueles doces que são próprios das festividades natalícias portuguesas, eu já o tinha questionado sobre as broas de milho, confeito que desconhecia. Ele explicou que conhecera na infância dois tipos de broas, a de milho e a castelar, a primeira era muito procurada pelas pessoas de menores recursos, o milho era então abundante no campesinato, viver da agricultura e das coisas da terra era muito comum, na sua juventude metade da população vivia da agricultura, comia-se muito pão de milho, como igualmente o chamado pão de mistura, campeava a pobreza.
E já não me recordo como e porquê o Paulo começou a falar com viva emoção do Natal de 1968, ele estava na guerra, vivia a maior parte do tempo numa localidade chamada Missirá, parece que é um nome muito comum nos países muçulmanos, teria sido em Missirá, lá para as Arábias, que nasceu Fátima, a filha do Profeta. Aliás, não nessa noite, mas numa outra ocasião, o Paulo falou nos principais topónimos guineenses, falou de Madina e Medina, e de designações muito comuns onde vivem as etnias islamizadas.Sem nenhuma hesitação, falando desse Natal diante de todos nós, ele declarou que se tratara de um acontecimento intenso, era o seu Natal inesquecível. E contou-nos que em meados de novembro lhe ocorrera escrever para a família e amigos pedindo-lhes para enviar algumas vitualhas, coisas que não pesassem muito, o correio era dispendioso, e referiu as broas, os coscorões, as filhoses e outros doces cujo nome não me recordo, até camaradas que tinham ido passar férias e que obrigatoriamente regressavam à Guiné até 15 de dezembro receberam a incumbência de trazer esses doces.
Houve Consoada, houve bacalhau com batatas, o luxo de vinho tinto engarrafado, a festa decorreu numa instalação hermeticamente fechada, para evitar que, na eventualidade de haver um ataque da guerrilha, a luz os denunciasse. Mas tão importante como a Consoada foi a organização do almoço de Natal para toda a população de Missirá e para os militares, evidentemente. Juntou-se todo o dinheiro disponível, compraram-se cabritos que foram assados no forno de Missirá, com batatas, chamou-se o padeiro e os dois cozinheiros para se fazer uma sopa, uma canja de galinha, encontrou-se as massinhas, havia pão frito, um dos militares lembrou que a canja lá na sua terra tinha cubos de batata, e pediu-se para Lisboa uma porção de hortelã, chegou felizmente a tempo e deu cheirinho ao caldo, feito em dois grandes panelões, foi sopa muito apreciada, houve o cuidado de desfazer os ovos da galinha, a carne toda muito esfiapada, um caldo com gostosos olhos de azeite.
O cabrito acho que estava uma delícia, era indispensável uma grande tachada de arroz, alguém aventou que devia ir ao forno, foi mais trabalho para o padeiro, tudo se comeu, e até houve arroz-doce para a miudagem e para os homens e mulheres de cabelo branco, que o Paulo disse serem as mulheres e os homens grandes.
Outro momento muito importante nesse Natal, e eu senti que nessa narrativa se lhe embargava a voz, o Paulo pediu ao chefe religioso para irem à mesquita rezar a Deus para haver paz nos homens de boa vontade, sugestão que foi imediatamente aceite, a comunidade acolheu-o na mesquita, depois abraçaram-se, o régulo ter-lhe-ia dito então que o considerava membro da família. Aliás, quando em novembro do ano seguinte ele se despediu do povo de Missirá e foi para outro local combater, o régulo disse publicamente que ele era um Soncó e como Soncó competia-lhe nunca esquecer a família, vivesse ele onde vivesse Deus lhe daria a graça de o saber que também pertencia ao Cuor e àquela família.
Ouvimos toda esta exposição em silêncio, havia algo de irreal, todos aqueles episódios pareciam arrancados a uma imaginação fértil, distantes da nossa cultura.
Alguém fez a sugestão de se ligar a televisão, e tempos depois voltámos para a mesa, o Paulo fez chocolate e chá para acompanhar aquelas iguarias, alguém trouxera bolos um tanto parecido com os nossos, com frutas cristalizadas e frutos secos, deram-lhe o nome de bolo-rei e a um outro sem as frutas cristalizadas chamaram-lhe bolo-rainha. A família partiu de madrugada, uma série de prendas ficaram depositadas à volta de um pinheirinho, havia para ali um presépio com toscas figuras de barro, o Paulo prometeu que o almoço estaria pronto aí pelas duas da tarde, como aconteceu.
Sinto-me tão feliz na companhia deste homem, aproveitei esta pausa para te escrever, como sabes iremos trabalhar em Bruxelas no dia 5 de janeiro, creio que a 6 tu partes para Dusseldórfia e eu para Lille, para mim é mais simples, posso sair de casa pelas 7 da manhã, cerca de hora e meia depois estarei no local onde irá decorrer uma conferência.
Feliz mas melancólica, tudo tem corrido da melhor maneira na nossa relação, o Paulo reitera constantemente que não sente obstáculos em vivermos como vivemos à distância, mas acontece que a vida que eu levo em Bruxelas, mesmo com a felicidade de me dar bem com os meus filhos, faz-me sentir muito só, eu já me resignara ao estatuto de mulher só. Tu conheces muito bem a nossa estimada colega, a Nelly Alter, que habita perto de Namur, e que se ocupa muito bem no seu estatuto de mulher só, faz parte de organizações de passeios pedestres, não perde uma exposição, vai aos concertos, viaja, e confessa que já lhe parece impossível admitir pôr alguém lá em casa, ela tem uma idade próxima da nossa, considera inaceitável ter que fazer concessões para viver a dois, sente-se bem assim. Talvez eu tivesse um sentimento parecido com o da Nelly, já me considerava estar pronta para ter umas amizades, saídas em grupo, visitar amigos, etc. E de repente apareceu-me um senhor numa conferência, pediu-me para conversar com ele, tinha a ideia de escrever um romance em que o tema central passaria pela experiência da guerra que ele viveu, encontrara no estrangeiro alguém com quem mantinha uma intensa relação e ele então ia descrevendo cronologicamente toda essa vivência da guerra, e enquanto tudo isto se passava surgiu, como um rasto de luz, a descoberta do amor. E imagina tu, Julien, que quando ele me visitou e descobrimos que havia qualquer coisa de especial na atração recíproca, ele me assegurou que já tinha um título para o livro, como tu sabes moro na Rua do Eclipse, acho que foi fulminante a escolha para o título da obra, porquê não sei, mas que a nossa vida entrou numa nova constelação, não tenho dúvida alguma, mesmo com esta dor que é estar semanas e semanas sem nos vermos, sem nos tocarmos, amar o Paulo foi descobrir que no acaso podemos encontrar, com absoluta naturalidade, o fim da escuridão ou da ilusão de que viver só depende da aceitação.
Peço desculpa pelo atabalhoado desta carta, mete comida de Natal, falei-te de Lisboa e da Guiné, tu és o meu porto seguro para desabafar, dentro de dias o Paulo leva-me ao aeroporto, sei que tudo vai continuar, tenho esperança que um dia será diferente, há que aprender a mitigar a distância e também por isso conto com a tua amizade.
Até breve, em Bruxelas, Annette, a tua amiga do coração. Missirá flagelada em 22 de dezembro de 1966, imagem enviada por Henrique Matos para o nosso blogue. Vemos o alferes Marchand, então comandante do destacamento
Nota do editor
Último poste da série de 13 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21537: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (27): A funda que arremessa para o fundo da memória
Guiné 61/74 - P21585: A galeria dos meus heróis (40): O meu amigo Doc - II (e última) parte (Luís Graça)
Lourinhã > Praia da Areia Branca > 14 de agosto de 2020 > Pôr do sol com uma traineira da pesca da sardinha a regressar ao porto de Peniche.
Foto (e legenda): © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
− Luisinho (também me tratava por Luisinho, como o filho), o teu amigo chegou!... Mas não está nada bem, coitado!... Está há dias ferrado a dormir, fechado no quarto, diz que não quer ver ninguém… Passa por lá, no fim de semana, pode ser que ele, por ti, se queira levantar e falar um pouco… Só lhe fazia bem...
A dona Domitília Meneses era uma santa senhora. Era professora primária, ainda no ativo. Tinha sido minha professora da 4ª classe e do exame de admissão ao liceu. Era moçambicana, de origem goesa, descendente de gente da pequena nobreza local, um dos seus antepassados teria sido vice-rei da Índia em meados do séc. XVIII.
Já o mesmo não se poderia dizer do marido, também ele professor do ensino primário, velho republicano, maçónico, dizia-se. Era mais velho do que ela uns bons vinte anos, e fora aposentado compulsivamente da função pública por ter apoiado a candidatura do general Humberto Delgado à Presidência da República em 1958.
Conhecia-o mal, era um homem amargurado, pouco sociável, para não dizer misantropo… Aliás, confesso que tinha medo dele, ou melhor, não gostava dele. Respeitava-o por ser o pai do meu amigo e o marido da minha querida professora.
Raramente saía à rua, a não ser em algumas efemérides patrióticas, como o 1º de dezembro de 1640 ou o 5 de outubro de 1910. Ou para ir a Lisboa, consultar vários arquivos públicos. Dedicava-se aos seus livros, era um apaixonado africanista, correspondente da Sociedade de Geografia de Lisboa, interessando-se, muito em particular, sobre a história da colonização de Moçambique, no tempo da monarquia constitucional e da I República.
O único ponto em que estava de acordo com a política do Estado Novo era na questão da “defesa intransigente do Ultramar”. Tinha estado na sua juventude em Moçambique, primeiro como expedicionário e depois, mais tarde, como professor. E alí viria a conhecer a mulher no final dos anos 30. O filho nasceria, na Beira, em 1942. E tivera como ama de leite uma jovem mãe negra.
Parecidos em muitos aspetos de personalidade, pai e filho, separados por 4 dezenas de anos de diferença, engalfinhavam-se com frequência em discussões, por vezes violentas, sobre o que se estava a passar nos territórios ultramarinos portugueses (mas também na África Austral do "apartheid").
Tinha ideias, o “Velho”, sobre o futuro desses territórios (“possessões ou colónias, como queiras chamar-lhe”, dizia ele ao filho), defendendo todavia o princípio da autodeterminação progressiva, a par da criação de uma "Commonwealth" à portuguesa. Era um admirador da colonização britânica.
Nessa época, poucos jovens da minha idade tinham ainda “consciência política” (como então se dizia), porque só uma minoria tinha acesso a um educação de nível superior e a fontes de informação, independentes e credíveis. Vivíamos num regime de partido único, não havia opinião pública, os jornais estavam sujeitos à censura, havia a polícia política, a PIDE, e a única televisão de que dispúnhamos, a RTP, era a voz do dono, tal como a Emissora Nacional… Era o tempo dos 3 FFF: Fátima, Futebol e Fado, três coisas que o meu amigo Doc solenemente detestava…
O que é que eu sabia do que se passava em África, no nosso glorioso Império Colonial ? Racismo, colonialismo, trabalho forçado, revoltas nacionalistas… ? Não, nunca ouvira falar... Só me lembro, na igreja, de pedirem dinheiro ao meu avô, para ajudar as missões católicas, o mesmo era dizer, os “pretinhos da Guiné”...
Eu vivia numa pequena cidade da região centro, onde só os mais afortunados iam estudar para Coimbra (que ficava mais perto do que Lisboa)… A maioria dos jovens da minha geração sabia lá o que se passava em África… Mal sabiam do se passava à sua volta, nos campos e nas fábricas, no mar, nas escolas, nos quartéis, nos hospitais…
− Queima-os, Luisinho, queima-os!
Não lhe fiz a vontade. Devia tê-lo feito ? Continuaram guardados ao meu cuidado. Sempre pensei que ele poderia, com os anos, mudar de opinião. Mas, nunca mais quis falar da Guiné e desses "anos de chumbo" em que esteve na tropa e na guerra,,, (Acabei por entregar os aerogramas à irmã, no dia do seu funeral, e hoje tenho pena de não os ter fotocopiado, limitei-me a copiar alguns excertos. )
Sabia que o meu avô, materno, era da “situação”… Era um bom homem, ia à missa, raramente discutia política, e muito menos comigo… Não gostava do Salazar, é verdade, mas tolerava-o. Encolhia os ombros e, às vezes, desabafava com os filhos e netos, quando jantávamos lá em casa:
− Meus filhos, hoje o Salazar, amanhã, quem sabe, talvez pior, o diabo em figura de gente…
O meu avô, coitado, era dos que acreditavam que o Salazar é que nos tinha livrado da guerra, com a ajuda da Nossa Senhora de Fátima… Um seu irmão mais novo, que eu nunca cheguei a conhecer, tinha sido expedicionário nos Açores, durante a II Guerra Mundial, e tinha regressado a casa, “são e salvo"..., para morrer, afinal, uns anos depois, de "doença do peito", de tísica, de tuberculose... Falava-me que tinha tido muito medo, por causa do irmão, dos submarinos alemães que infestavam o Atântico Norte… e que chegavam a Cabo Verde.
De resto, tinha a sua tertúlia, os seus amigos, os seus petiscos. Mais importante: o meu avô tinha uma adega, a que chamavam a “adega do povo”, aberta a todos os amigos e vizinhos, embora já fora da cidade… Na adega também tinha o seu escritório e o seu arquivo.
O meu avô estava acima de todas as suspeitas. Era um homem respeitado e respeitável, guarda-livros de profissão, conhecia os “podres” das várias famílias importantes da terra… Razão por que todos o estimavam (e temiam), pondo as mãos no lume por ele. Em contrapartida, podiam contar com o seu “silêncio de ouro”.
Eu gostava muito dele, tinha bonomia e bom humor, nunca se chateava comigo. Dizia-me na brincadeira que era ele, o guarda-livros, quem tinha uma das três chaves do céu…
− Então?... E as outras duas, avô ?
− Tem-nas o padre e o médico!...
A pior desgraça que podia acontecer a um guarda-livros era ser despedido (e, nalguns casos, preso) por abuso de confiança:
− Tens a chave mas não podes abrir a porta… E houve casos, meu filho (tratava-me por filho) de gente, nesta profissão, que não soube qual era o seu lugar, na ordem natural das coisas… Olha, um matou-se, o outro foi parar à prisão…
O jornal, regionalista, tinha uma orientação editorial que não se coadunava, de todo, com as ideias (políticas, estéticas, éticas e culturais) do meu amigo que, de resto, era conhecido na cidade como filho de um oposicionista, e já teria, ele próprio, ficha na PIDE (o que, em boa verdade, nunca foi confirmado pelo próprio, não sabendo eu se ele alguma vez tivera tempo e pachorra para confirmar essa suspeita na Torre do Tombo).
O Doc estava a estudar em Coimbra, na faculdade de medicina, quando foi inesperadamente chamado para a tropa. Na secretaria, explicaram-lhe secamente que, tendo chumbado a uma cadeira, deixava automaticamente de beneficiar do privilégio do adiamento da incorporação militar… Nunca se chegou a apurar a verdade relativamente à suspeita de ter sido a PIDE a despoletar a questão na reitoria ou na direção da faculdade.
Preciso, entretanto, de acrescentar algo mais sobre o jornal onde eu trabalhava (e que foi, de resto, o meu primeiro emprego).
O “meu” jornal estava ligado a uma família local, política, social e economicamente influente. O proprietário era o presidente do Grémio do Comércio.
A filha mais velha, por sinal minha catequista, casara com um “jovem e promissor advogado” que viera de Coimbra, no princípio dos anos 50, e que aqui se fixara.
A minha terra sempre acolheu bem “os de fora”. De imediato, esse advogado foi admitido no “seleto clube local” e aí não levou tempo a perceber quem poderia ser a sua futura clientela e, mais do que isso, quem eram as meninas casadoiras… Era ali que estava a elite local, aquela que tinha património, estatuto, influência, charme, poder e... algum dinheiro.
Ora um dos seus primeiros clientes foi justamente a empresa do futuro sogro, grande (para a época) armazenista de vinhos que exportava para África, e proprietário urbano, “dono de uma rua inteira da cidade” (como se dizia, não sem exagero).
Numa altura em que ainda não havia agências bancárias na província, e com os negócios a prosperar durante a II Guerra Mundial e no pós-guerra, o “Tio Patinhas” (como a gente lhe chamava, nas costas…), era o “banqueiro do povo”, emprestando dinheiro a taxas de juro, usurárias, dizia a má língua do povo. E também se acrescentava que ele fizera fortuna na II Guerra Mundial com os refugiados que se instalaram na nossa costa (Lisboa, Cascais, Ericeira, Figueira da Foz, Espinho, etc.), aguardando um visto para as Américas.
Também dizia a “santa inquisição local” que ele tinha costela de... “cristão novo”. O que toda a gente sabia, isso sim, é que ele tinha duas filhas casadoiras, que estavam à espera dos seus príncipes encantados. E esses só poderiam vir de fora. Uma, a mais velha, a minha catequista, como disse, irá casar com o “jovem e promissor advogado de Coimbra”; a mais nova irá dar o nó com um médico, também coimbrão, que igualmente se fixara na nossa terra.
O meu futuro patrão, o advogado, teve, como uma das prendas de casamento a direção do jornal (a menos valiosa, materialmente falando, mas nem por isso despicienda para o seu projeto de promoção pessoal, profissional e até polílica).
Dentro de todos os condicionalismos da época (censura, autocensura, ausência de formação profissional e de regras de deontologia, não dissociação da propriedade e da direção, etc.) foi para mim a minha escola de jornalismo e de escrita, muito embora o Doc andasse sempre a gozar comigo por causa do meu “jornaleco”… Penso que ele não gostava sobretudo da pessoa do diretor…
Tínhamos uma diferença de quase trinta anos, eu e o meu diretor, a quem, confesso, devo alguns favores. Numa conversa franca, “cara a cara”, que tive com ele, diretor, na redação, no dia em que o Marcelo Caetano substitui o Salazar no Governo, ele fez questão de desvendar alguma coisa sobre a sua algo obscura vida coimbrã…
Vivia numa república de estudantes, envolvendo-se na política, no MUD Juvenil, o movimento juvenil democrático, constituído em 1945, no rescaldo da guerra…
− Paixões da juventude, coisas de garotos, que às vezes têm um preço alto – comentou ele, de um modo algo enigmático.
Como diretor do jornal, gostava de acarinhar os “jovens literatos” da terra, onde me incluía, gente que tinha saído do liceu, uns, poucos, que haviam entrado na universidade, outros, como eu, que esperavam a “sorte grande” da tropa…
Ele próprio me confessara que em Coimbra publicara um livro de poemas, de “qualidade sofrível” (sic), na linha estética da revista "Vértice" (ou seja, do neorrealismo, acrescentei eu, com alguma ousadia).
Admirava agora os jovens, da geração 60, que estavam a aparecer, e que tinham até mais talento do que a sua geração… Para esses havia um cantinho no jornal, uma página juvenil… onde poderiam escrever, “sempre era uma melhor alternativa do que andar por aí a dar cabo da vida e da saúde, e a comprometer o seu futuro, em antros imorais e quiçá subversivos" (sic)...
Sempre o tratei por Doc, a partir do momento em que ele entrou na faculdade de medicina, ou até antes, quando ele começou a manifestar a sua intenção de abraçar a carreira médica, já no último ano do liceu… Eu, por meu turno, ainda estava longe de saber o queria fazer da minha vida... Mas começava a preocupar-me com a guerra que alastrava em Angola e com a mobilização dos meus vizinhos e conhecidos, mais velhos...
Em 1962 houve a crise académica, que só mais tarde vim a saber o que era... Em 1964 o Doc foi chamado para a tropa e, menos de um ano depois, estava na Guiné.
Parte da minha formação intelectual e até literária devo-lha a ele, ao meu amigo Doc. Emprestava-me livros, trazia-me livros e revistas quando vinha de Coimbra nas férias, incluindo alguns jornais e revistas, estrangeiros, franceses, que não chegavam à província, como “Le Monde” ou “Le Nouvel Observateur”…
Depois da sua prolongada “cura de sono” (que passou também por uma clínica de desintoxicação alcoolólica, devo acrescentar sem trair a sua memória…), acabou por voltar a Coimbra e à sua “doce boémia”… Com as economias que trouxe da Guiné, conseguiu assegurar a sua independência económica. Fez algumas cadeiras atrasadas no ano letivo de 1968/69. Mas o curso marcava passo. Houve mesmo quem apostasse comigo que ele nunca chegaria a ter o diploma de médico, "quanto mais a poder receitar uma aspirina a um morto"…
Mas foi também a época em que eu deixei de ver o Doc, com regularidade. Soube depois que se tinha incompatibilizado de vez com o pai, por causas eleições legistivas de 1969, rompendo de vez com a sua cidade natal. Há muito que deixara definitivamente o teatro da cidade, que de resto passou a ter um novo diretor, quando ele foi mobilizado para a Guiné. Enfim, fixou-se de vez em Coimbra.
E eu nessa altura já estava na Guiné, onde votei em branco nas eleições para a Assembleia Nacional. Ia tendo algumas notícias dele pela sua mãe, sempre extremosa, mas também pela irmã que estava em Lisboa, a tirar línguas germânicas, e que não escondia os seus cuidados pela saúde do irmão, mais velho. Depois perdemos o contacto... Deixámos mesmo de ser íntimos, se bem que a nossa amizade estivesse para durar até ao fim da vida...
Soube, por outras vias, que o Doc se envolvera também na crise de 1969, fora suspenso por dois anos, e tivera que ir trabalhar na Propaganda Médica (o que terá sido deveras penoso para ele).
Curiosamente, não tenho aerogramas dele do meu tempo de Guiné. E um ou dois que lhe escrevi, não tive coragem, confesso, de os pôr no correio...
Depois do meu regresso à Guiné, e da minha própria "cura de sono", soube notícias, já a viver e a trabalhar em Lisboa, da família do Doc: a dona Domitília Meneses não sobrevivera a um cancro da mama, uns bons anos antes da morte do filho.
Por seu turno, o marido já tinha morrido antes dela, não sem ter tido, porém, duas alegrias: a de ver o seu filho finalmente formado em medicina, aos 30 e picos anos, e logo a seguir a de ter podido dar vivas à liberdade, no 25 de Abril de 1974. (À boa maneira republicana, lançando o chapéu ao ar, enquanto alguns dos seus tradicionais inimigos políticos se trancavam em casa para ver em que paravam as modas.)
Apaixonou-se pelo Baixo Alentejo, onde fez o Serviço Médico à Periferia, fez medicina do trabalho numa empresa mineira e numa empresa da pesca do alto, praticou clínica geral nas caixas de previdência da margem esquerda do Tejo, integrou-se na carreira de clínica geral, criada em 1983, pediu uma licença sem vencimemto para se poder alistar como voluntário numa ONG francesa que tinha uma missão médica na Amazónia...
Enfim, "ando por aí", como me garantiu, "a ver se ainda consigo gostar da humanidade" ... Mas nunca mais voltou à Guiné. De tempos a tempos íamos falando ao telefone, ele é que me ligava, eu nunca sabia ao certo por onde ele parava... Gostava de cultivar o mistério de uma certa clandestinidade.
Finalmente, foi pela irmã que eu soube que ele estava a morrer. No hospital, num pequeno quarto escuro, ao fim de um corredor sombrio, a 300 metros do meu gabinete de trabalho…Sozinho como um cão.
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Nota do editor:
Poste anterior da série > 26 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21583: A galeria dos meus heróis (39): o meu amigo Doc - Parte I (Luís Graça)
quinta-feira, 26 de novembro de 2020
Guiné 61/74 - P21584: Notas de leitura (1326): família, casamento e sexualidade, comentário de Cherno Baldé a uma das "Estórias cabralianas" ["Cabral, salvador das bajudas desfloradas"], da autoria de Jorge Cabral (Lisboa, ed. José Almendra, 2020, pp. 93-94)
O livro (*) pode ser adiquirido de duas maneiras:
(i) diretamente, na Livraria Leituria (Rua José Estêvão, 45 A, Pascoal de Melo / Jardim Constantino, Lisboa). preço de capa: 10 €
(ii) "on-line", em www.leituria.com: envio pelo correio: 10,00 €, mais 0,90 € de expedição; pode ser pago por multibanco, transferência, PayPal, etc.
1. Como já aqui dissemos em tempos (*), o "alfero Cabral" trouxe ao nosso blogue, à nossa tertúlia, à nossa caserna virtual, hoje Tabanca Grande. algo que podemos descrever como sendo o nosso lado mais solar, alegre, romântico, maroto, brejeiro, provocador, irreverente, desconcertante, descomplexado, histriónico, humorístico, burlesco, pícaresco, saudavelmente louco, próprio dos verdes anos (não é por acaso, que são os jovens que matam e morrem nas guerras)... Mas, neste caso, a guerra não foi só "sangue, suor e lágrimas"...
Sei que não foi o melhor negócio da vida do "alfero Cabral", porque sempre o conheci como sendo um homem honesto, feito à semelhança e imagem de Deus, "pai dos orfãos e defensor das viúvas", incapaz de tirar proveito da miséria alheia... E, como advogado, trabalhou muitas vezes "por bono"...
Finda a comissão, calculem (!), fui louvado. O despacho do Exmo. Comandante do CAOP Dois [, com sede em Bafatá,] referia, entre outros elogios, a minha “habilidade para lidar com a tropa africana e populações”, a qual me havia “granjeado grande prestígio”.
Esquecido, porém, foi o essencial – evitei a dezenas de bajudas o repúdio matrimonial e a consequente devolução do preço. Essa tão meritória actividade, sim, teria merecido, não um simples louvor, mas uma medalha…
Entre Fulas, Mandingas e Beafadas, casar saía caro [, originalmente: "as mulheres eram compradas"], alcançando-se verbas elevadas. Cheguei a arbitrar casamentos, cujo dote atingiu os trinta contos! Claro que era exigida a virgindade, que às vezes havia desaparecido… Era então que o Alfero "odjo grosso" era procurado para remediar o que parecia irremediável.
Quanto ao teste pré-matrimonial, a cargo das mulheres grandes, que utilizavam um ovo (!), a questão resolvia-se, com alguns pesos.
O mais difícil era a prova do sangue no lençol, que devia ser exibido no dia seguinte à cerimónia. Equacionado o problema, adoptei uma solução que sabia já ter sido usada entre outras gentes com sucesso. Comprei em Bafatá pequenas esponjas, as quais, embebidas em sangue de galinha, e metidas no local apropriado, deram um resultadão.
Não houve mais Bajuda que não casasse em total e absoluta virgindade e confesso que me dava um certo gozo assistir às manifestações de júbilo dos viris maridos, no dia seguinte aos casamentos, no meio da algazarra da Tabanca.
Espalhada a minha fama, acorreram noivas de todo o lado. Ponderei mesmo montar um gabinete especializado, tendo chegado a escrever um folheto publicitário a informar que Alfero "poi catota noba, dam trezbintim".
3. O notável comentário, ou crítica, mais de natureza socioantropológica, feito na altura [2013] pelo nosso Cherno Baldé [, hoje nosso assesssor para as questões etnolinguísticas], merece aqui ser publicado, na montra principal do nosso blogue (*):
Bonita descrição de factos de uma realidade vivida. O homem é plural.
O conceito da virgindade e a prática de testes de comprovação entre os povos islamizados da África deve ter as suas raízes nos antigos usos e costumes árabes.
Não concordo com o uso da palavra "compradas". Aqui fica melhor falar de dote, porquanto o valor total dos bens com que a noiva é dotada (o seu capital inicial) é sempre superior ao pretenso "valor da compra" e, em caso de incompatibilidade comprovada, a noiva é livre de voltar a casa dos pais e, se for por justa causa, a familia da mulher não é obrigada a devolver o dote ou valor da "compra".
(ii) Resposta do Jorge Cabral:
Eu sei, Cherno. Mesmo em Portugal existiu o dote. E, se consultarmos o velho código civil, lá encontramos o regime dotal. Quanto à virgindade, a falta dela, conduzia à anulação do casamento...Outros tempos...
(iii) Novo comentário do Cherno Baldé:
Como dizia o outro Cabral, as manifestações culturais são sempre o produto de uma época (tempo) e de um espaço bem determinado.
Desde criança que não me sentia bem na pele de um nubente fula por causa destas "provas" materiais a quente, que me pareciam humilhantes, ridiculas e injustificadas do ponto de vista humano (social) e económico (por causa do desperdício).
Assim, muito cedo, comecei a pensar numa estratégia para não me sujeitar a estas práticas que considerava caducas.
Quando voltei dos estudos, pensei que podia dar a volta, convencendo a minha namorada fula para um casamento discreto, sem barulho e sem a habitual cerimónia. "Niet!", ela, ao princípio concordou, mas rapidamente mudou de ideias, influenciada pela familia e colegas. Ela, uma menina ainda "virgem" (o que não era verdade), não podia ir a casa do seu homem assim às escondidas como se fosse um embrulho, nunca.
Com este primeiro desaire, compreendi que devia matar os germes do tribalismo que habitavam em mim, da mesma forma que habitam um pouco em cada Guineense, e ultrapassar os esteréotipos "raciais" alterando os gostos e as convicções interiorizadas na mente, como quem toma medicamentos amargos para sarar uma doença crónica mas curável. Mudei de perspectiva e comecei a ver as mulheres com outros olhos.
Foi assim que comecei a namorar com a minha actual mulher e companheira, com a qual vivo há mais de 20 anos. Não estando sujeita a mesma pressão social das mulheres fulas, ela aceitou, sem dificuldades, a minha proposta.
Com ela consegui fugir da exposição pública da nossa intimidade, mas em contrapartida fui obrigado (eram as suas condições) a formalizar três casamentos: Apresentação do "Cabaz" à familia (o pacto da etnia Papel, da parte dos pais), "amarra" (pacto muçulmano para satisfazer a parte materna - Nalú- e a minha familia) o casamento civil junto ao Tribunal com escritura e tudo.
No computo geral, acabei por pagar mais caro, financeiramente, do que seria normal e, apesar de tudo, ainda é cedo para concluir que a minha decisão foi acertada, pois o casamento misto, na Guiné e em qualquer outra parte do mundo, é um desafio com muitos imponderáveis. Foram muitas as vezes que surpreendi a minha esposa a questionar a honestidade do pacto que esteve na base do nosso casamento e, as vezes confessa para as amigas: "Se eu soubesse que estava a tratar com um economista, educado no mundo comunista..." enfim, com muitos "ses" e "istas" no meio de dúvidas e interrogações.
Na altura, a minha familia discordou, a minha mãe barafustou, mas como não tinham que pagar nada, acabaram por aceitar.
E tudo por querer fugir do barulho da multidão de mulheres curiosas (são as verdadeiras guardiães da tradição)e 5 minutos de stress sexual com truques e "mesinhas" a mistura para a perpetuação dos usos e costumes e, também, para a manifestação da virilidade masculina de ser homem, "macho". (****)
(***) Vd. poste 31 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21500: Notas de leitura (1320): A festa do corpinho... (Jorge Cabral, "Estórias cabralianas", Lisboa, ed. José Almendra, 2020, pp. 59-60)
(****) Último poste da série > 23 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21572: Notas de leitura (1325): “Vozes Plurais, a comunicação das organizações da sociedade civil”, coordenação e organização de Carla Sequeira e Sónia Lamy; Documenta, Sistema Solar, 2017 (Mário Beja Santos)
Guiné 61/74 - P21583: A galeria dos meus heróis (39): o meu amigo Doc - Parte I (Luís Graça)
Lourinhã > Porto das Barcas > Tabanca do Atira-te ao Mar > 8 de maio de 2020 > Uma "foto feliz", um bom sítio para, em pleno confinamento imposto pela pandemia de Covid-19, revermos, ao ralenti, os fotogramas dos filmes que de vez em quando passam (e repassam) na tela da nossa memória, ajudando porventura a exorcizar os nossos fantasmas da guerra...
Foto: © Alice Carneiro (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
A galeria dos meus heróis: o meu amigo Doc - Parte I
por Luís Graça
1. Estive no seu leito de morte. Um fatal cancro dos pulmões, porventura curável nos nossos dias, roubara-lhe a vida, há uns trinta anos atrás. Teria hoje 78 anos, se fosse vivo. Morreu jovem, demasiado jovem.
Era um dos
meus heróis da adolescência, o Doc. Tinha lentamente recuperado a alegria de viver, depois de
uma grave crise que ele próprio qualificara de “existencial”.
A origem
dessa crise remontaria, pelo menos, a setembro de 1967, altura em que ele regressara da Guiné, onde havia conhecido a “guerra, pura e dura”.
Era um dos
meus amigos, na época da adolescência. Dele guardarei para sempre uma grande saudade,
não obstante as nossas vidas, cruzadas como tantas outras, se terem separado no final da
década de 1960.
Nessa altura
eu fui para a tropa e ele estava a retomar, a custo, os seus estudos de
medicina que a vida militar viera interromper abruptamente.
A imagem mais dolorosa que guardo dele, é a da cama do hospital, num quarto, minúsculo, ao fundo de um corredor sombrio. Sem janelas. Sozinho como um cão, anichado em posição fetal, a escassas… 48 horas de exalar o seu último suspiro, como virei a saber mais tarde, pela… telefonista do hospital.
Reconheceu-me só pela voz, não se moveu nem um
centímetro, estava lúcido, mas já em grande sofrimento. Só lhe sussurrei, quase
em cima do ouvido, um tímido “Olá, Doc”. E acrescentei, estupidamemente: "Coragem!".
As suas
únicas (e últimas) palavras, roucas, cavernosas, inumanas, soaram-me a despedida, irremediável, sem retorno. Senti-as como um punhal cravado no meu peito. Guardei-as para o resto da minha vida:
− Luisinho (tratava-me sempre por Luisinho), vai-te embora,
vai-te embora! – implorou. (Nunca saberei se era uma
súplica, uma ordem ou uma expressão de raiva e impotência.)
Trinta anos
depois, não me envergonho de o dizer, essas palavras, as últimas, as únicas, que ele
proferiu, no seu leito de morte, na minha presença, ainda hoje me martelam a
cabeça.
Senti uma enorme impotência por ver a morte triunfar, impante, sobre a vida, e ao mesmo tempo vergonha por ter sido incapaz de lhe tocar!... Como se ele já fosse cadáver!... Por pudor ou medo atávico da morte, não consegui sequer tocar-lhe. Muito menos dizer-lhe uma palavra de consolo. Só um tímido e cobarde... "Coragem!".
Mais tarde, talvez para tranquilizar a minha consciência e
não sentir o peso da minha fraqueza e sentimento de culpa, iria interrogar-me sobre o significado que
ainda poderia ter o meu gesto de compaixão, no momento mais pungente e
solitário da vida de um homem… Que é quando um gajo agoniza, lúcido mas a sofrer,
longe do mundo, já muito longe daqueles que nos amaram e que nós amámos!…
Em boa
verdade, ele não tinha ninguém à sua cabeceira, morreria dois dias depois, “sozinho
como um cão” (uma expressão que ele próprio usava, nos seus aerogramas, para
falar da sua condição de combatente na guerra da Guiné, em 1965/67). Morreria sozinho como um cão, aos 48 anos,
longe da família, de que, aliás, só restava a irmã, e os sobrinhos que mal o
conheciam. Não tinha filhos, pelo menos que se soubesse.
Tive um
ataque de choro, convulsivo, enquanto saí dali, confuso, quase aos trambolhões, daquele
corredor estreito e sombrio do hospital, sufocado, em busca do ar fresco do
pequeno bosque que circundava o pavilhão, conhecido como o “terminal da morte”.
2. Recuando 30 anos atrás, lembro-me do seu regresso da Guiné. Eu era o único amigo de que ele se lembrava. Ou melhor, eu era talvez o único amigo de que ele se queria lembrar.
Tinha
regressado da guerra em 1967, no verão que iria marcar, ironicamente, o fim,
político, do homem que o mandara defender a Pátria, a milhares de quilómetros
de casa.
Tinha
regressado da Guiné e não avisara ninguém da família. Nem sequer a namorada.
Muito menos os amigos, poucos, que vinham do tempo do colégio e do grupo de
teatro amador, como era o meu caso. E eu, seguramente, o mais novo.
De facto,
nem sequer se dignara escrever-me, a mim, que era o seu correspondente e
confidente (trocávamos correio enquanto ele esteve na Guiné, entre 1965 e
1967) e, no grupo de teatro, secretário, moço de recados, ponto, datilógrafo, discípulo, figurante, aprendiz de ator… Além de sermos amigos e vizinhos de bairro, se bem que eu
fosse mais novo uns bons anos.
Sim, o Doc era bipolar. Era uma pessoa de extremos, daí o facto de nunca ter tido muitos amigos. Mesmo assim, houve gente decente da nossa terra, que
compareceu ao seu funeral, que seria organizado pela sua irmã, professora
universitária.
Não tinha,
por isso, ninguém à sua espera, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, nessa manhã de setembro de 1967. De resto,
vinha sozinho, como me explicará mais tarde. Eu ainda não percebia nada de
tropa, mas fiquei a saber, pelos aerogramas que trocávamos, que ele era de
“rendição individual”. E, como tal, não havia regressado no navio com os seus
camaradas da última companhia onde estivera, os quais, sendo mais novos, ainda
ficaram a cumprir calendário. Ou, como ele dizia, com sarcasmo, “a cumprir o
resto da pena de desterro”.
Tanto quanto
me apercebi, o Doc tinha receio que a família e alguns amigos lhe quisessem
fazer uma surpresa, indo esperá-lo no
cais de desembarque. Seria a última coisa que ele iria aceitar, “a última cena,
grotesca, da tragicomédia da guerra”.
Curioso,
sendo um “homem do teatro”, tinha um enorme pudor em manifestar em público as
suas emoções e sentimentos. Aliás, ele não era propriamente ator mas encenador. Em boa
verdade, eu nunca o vira representar, nem no palco nem na rua.
Ficaria trancado em casa nos primeiros dias, sem querer ver ninguém. Eu e a namorada teremos sido as primeiras pessoas, fora do círculo familiar, que ele condescendeu em receber depois do regresso.
Para a namorada, seria aliás o
fim de um relacionamento que já antes tinha tudo para não dar certo. Julgo até que ela foi a primeira vítima da
sua rutura com o passado. Segundo me contou depois a irmã do Doc, terão tido uma
discussão violenta, acabando tudo entre eles nessa tarde. Para grande desgosto da mãe, que via na Bela, a alma gémea do seu filho. Os inimigos do Doc respiraram fundo, com a notícia do rompimento do impossível namoro entre "a Bela e o Monstro".
Comigo desabafou, explicando-me que estava a fazer um “cura de sono”… Na altura, em 1967, não havia psiquiatras e psicólogos como há hoje, e eu, na ingenuidade dos meus dezoito anos, nem sequer pus a hipótese de ele estar a passar por uma “crise de depressão”.
Na época, não se falava de "saúde mental" e muito menos ainda de “stress pós-traumático de guerra”, nem eu
imaginava sequer o que fosse essa entidade clínica…
− Só as
mulheres é que têm depressão pós-parto – dizia o pai dele, que nestas coisas tinha sempre um certo ar de sobranceria e fazia questão de emitir a opinião
arrogante e definitiva do catedrático.
As relações
pai-filho também não eram as melhores. Aliás, nunca foram lá muito boas. Contrariamente à mãe, o pai só lhe terá
dito, à chegada, curto e seco:
− Olá, filho, sê bem vindo… Finalmente, em casa!
Eram os dois parecidos, pai e filho, em muita coisa, mas chocavam-se quando, por exemplo, discutiam a “guerra do ultramar” (como dizia o pai) ou a “guerra colonial” (como preferia chamar-lhe o filho). Uma questão terminológica que lhe punha os cabelos em pé.
Mesmo se tivesse “cunhas” (o que não era o
caso), o pai nunca se humilharia perante
ninguém para interceder pelo filho, livrando-o do ultramar ou, pelo menos, da Guiné… E depois a tropa e a guerra iriam "fazer dele um homem", como fora o seu
caso, que combatera os alemães em
Moçambique na I Grande Guerra.
− Lusinho (tratar-me-ia sempre por Luisinho, até ao fim da vida), não me leves a mal, nem
ouças o tonto do meu “Velho”… Mas, quando eu desembarquei, a única coisa que eu
queria, era chegar a casa, não ver ninguém, não estar com ninguém, fechar as
cortinas, enfiar-me na cama…
E
acrescentou algo que me chocou e perturbou:
− Sabes que
mais ? … Tenho asco a tudo o que é humano!
Não alcancei
o que ele queria dizer com aquela estranha expressão. Mas ele insistia que precisava
de dormir um “sono reparador”:
− … Dormir
um dia inteiro, uma semana, um mês… Porventura, um ano ou até o resto da vida…
Queria poder hibernar o resto da vida. Esquecer. Esquecer a tropa, a guerra, a
Guiné…
Ainda
ensaiei uma tímida tentativa de diálogo mas ele correu comigo, pondo-me fora do
quarto… Aí assustei-me, ao ver e rever o seu ar acabrunhado, as olheiras
fundas, a cor da pele amarelada, a barba
de vários dias, por fazer…
Afinal, era
um “ataque de paludismo”, tranquilizou-me a pobre mãe que, à força de muitas
súplicas e lágrimas, lá o convencera a ser visto pelo médico, amigo da família,
e que, sendo de saúde pública, sempre devia perceber alguma coisa de doenças
tropicais…
Nas costas
da mãe e do médico, nesse fim de semana, despejou uma garrafa de uísque.
Na altura, confesso, eu até pensei que ele poderia estar com ideias parassuicidárias, como se diz hoje. Fiquei assustado com o estado de saúde, física e mental, do meu amigo.
E ainda estava fresca, na memória de toda a gente da terra, a morte por
enforcamento do pai de um antigo colega meu de escola. Estava eu de piquete na redação do jornal, fazia os "faits divers", os nascimentos, batizados, casamentos e óbitos, e ainda vi, enquanto se aguardava a chegada da autoridade de saúde, o
corpo a baloiçar numa barrote da caldeira onde
trabalhava. Era o adegueiro.
3.
Reconstituindo o que se passara nessa manhã de neblina, em que desembarcara, no Tejo, de um velho navio, misto, de
mercadorias e passageiros, da carreira colonial, o Doc contou-me que durante a viagem
e à chegada tinha tido “pensamentos confusos e impulsos contraditórios”.
Chamara um
táxi e estendera ao condutor um cartão com a morada de casa. Pediu para o
acordar quando chegasse ao destino. Nem sequer fez questão de perguntar em quanto
ficaria o serviço de táxi, sendo para fora de Lisboa. Tinha os bolsos cheios de
notas, o “patacão sujo da guerra” (sic), em Bissau trocara um maço de “pesos”
por escudos metropolitanos.
Ao fim de
três horas e tal de viagem, estava na cama, na casa dos seus pais, na região
Centro, na sua cama de solteiro, no seu quarto, com as estantes dos seus
livros e discos de vinil, estava tudo como ele tinha deixado há dois anos atrás.
Justamente
ia fazer dois anos que não se viam, ele e os pais e a irmã. Ele não viera de
férias, por “razões disciplinares”: tinha apanhado uma “porrada” (sic) e, em
consequência do castigo, tinha sido transferido para outra companhia, como
mandava o RDM, o regulamento de disciplina militar.
Senti que esse episódio o marcara muito, mas nunca me deu grandes pormenores. E eu respeitei a sua revolta e sobretudo o seu silêncio. Era evidente que o assunto o incomodava, não gostando de falar dele.
Em aerograma que mandara aos pais, terá arranjado uma desculpa esfarrapada para justificar a impossibilidade de comparecer à
festa, comemorativa dos 25 anos de casados, marcada para o verão de
1966. (E se a mãe tanto insistira com ele para marcar as férias para o mês de julho
de 1966!)
A releitura
dos seus aerogramas não me permitiu esclarecer cabalmente esta história que lhe
sujou a “caderneta militar” (documento, aliás, a que eu nunca pus a vista em cima, se é que ele não o destruiu em vida).
Há dois
episódios que poderão estar na origem da
tal “porrada” ou castigo… Vejamos cada um, sem entrar em grandes pormenores.
O
primeiro tem a ver com uma exaltada discussão com a Polícia Militar, em Bissau, quando ele tirou uns dias para ir ao estomatologista. Traduziu-se
numa participação contra ele, tudo por causa de um cena de pugilato com outro
militar (de que desconheço a patente, mas o mais provável era ser um 1º cabo).
O meu amigo Doc, que estava numa conhecida esplanada, perto da Amura, quis fazer justiça pelas suas próprias mãos, contra um grupo de “velhinhos”, ruidosamente festejando o fim de comissão, que deram para se meter com os “djubis”, os miúdos que vendiam “mancarra”, nas ruas de Bissau… Aliás, miúdos e miúdas.
Fizeram-lhes
uma série de tropelias, o que começava a incomodar quem estava na esplanada, seguramente todos militares, uns fardados, outros à civil. O Doc interpretou isso como um ato de violência gratuita, se não mesmo racista, para
mais sendo as vítimas crianças, indefesas, que tentavam ganhar a vida…Porém, de
nada lhe valeu, a ele, puxar dos galões. O grupo estava alcoolizado e ninguém mediu as
consequências. Às tantas generalizou-se a pancadaria, até que chegou a Polícia
Militar e restabeleceu a ordem.
Abreviando a
história, houve várias detenções. O Doc foi levado para o quartel da PM, que
era ali mesmo ao lado, na Amura. Ficou lá cerca de duas horas. Mas houve
testemunhas que abonaram a seu favor. Nomeadamente, outros alferes que estavam
sentados na esplanada, e que, por coberdia ou cautela, não se quiseram meter ao barulho. "Afinal, um militar fardado está ou não está 24 horas por dia de serviço ?", interrogava-se o Doc, a limpar o sangue do sobrolho e ainda a espumar de raiva contra o grupo de arruaceiros.
O segundo episódio prende-se com uma situação algo semelhante, em que vem ao de cima o lado “justiceiro” do Doc, mas desta vez envolvendo um oficial superior (julgo que seria um major) que terá tratado a pontapé alguns militares de um pelotão de caçadores nativos, adido à companhia de comando e serviços do batalhão a que pertencia o Doc.
Resumo o essencial da versão do Doc, num dos aerogramas que me escreveu: os militares, todos
guineenses, estavam a abrir valas, à volta do perímetro do aquartelamento… Calaceiros, mandriões e outros epítetos ainda mais
injuriosos terão acompanhado os pontapés do major (2º comandante, ao que
percebi), impaciente com a fraca produtividade dos "nharros", dos "barrotes queimados"...
À hora do
bridge, e depois dos uísques do costume, a seguir ao jantar na messe de
oficiais, o Doc, que assistira à cena da tarde, “impotente mas indignado”, caiu na asneira de comentar, em tom subtil mas jocoso, em voz
alta, a versão do major sobre o "incidente", ao mesmo tempo que incriminava o alferes, comandante do pelotão em causa, por deixar os seus homens ao deus-dará... Este, cobardolas, estava enfiado na cadeira com o rabo entre as pernas...
O Doc terá citado um provérbio popular, muito usado na sua região: "Quando o mar bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão"....Caiu o Carmo
e a Trindade, na messe de oficiais… O major ficou lívido, "à beira de um ataque de
nervos", era de resto um homem "histérico e irascível". O comandante veio de imediato em
defesa dele, dando ordens ao alferes, ao Doc, para se recolher de imediato ao seus
aposentos.
O médico do
batalhão, que era conhecido do Doc, do tempo de Coimbra, terá interferido a seu
favor, junto do tenente-coronel. Em vão, ao que parece. Não sei o desfecho da história. A verdade é
que, passado pouco tempo, em maio de 1966, o Doc é transferido de unidade…
O castigo disciplinar, desproporcionado, teve consequências graves na sua vida militar na Guiné: perdeu, de imediato, o direito ao gozo da licença de férias, e passou, de uma região relativamente calma, o Leste, para outra, o Sul onde a atividade operacional era mais intensa…
Tal como chegou, sozinho, assim partiu: nenhum dos seus camaradas , alferes milicianos, se dignou ir ao bar de sargentos beber um copo de despedida com ele. Teve apenas, à mesa, dois ou três furriéis que o estimavam...E julgo que o médico.
E, pior
ainda, ele que tinha uma especialidade relativamente burocrática (era oficial
de operações e informações), passou a andar no mato, de camuflado e de G3 em punho, como
comandante de um grupo de combate numa companhia de caçadores…
Nunca soube ao certo por onde ele andou o resto da comissão… Porque nos aerogramas só vinha o SPM, o código do Serviço Postal Militar. E tinha sempre o cuidado de nunca se identificar. Assinava, na correspondência para mim, como “o amigo Doc”…
Num dos últimos aerogramas que me escreveu, já perto do final da comissão, confidenciara-me:“Tenho a mania que vou endireitar o mundo. A liberdade de expressão na tropa paga-se caro, com língua de palmo. Nestes quase quinze meses cá em baixo, na região a que chamam de Tombali, já conheci os múltiplos tormentos do inferno desta guerra: a sede, a fome, os ataques de abelhas, a exaustão física e emocional, as intempéries tropicais, a merda que te cobre o corpo, a solidão, a alienação, a desumanidade … Para não te falar do medo das minas e armadilhas, e das emboscadas, mais do que dos ataques e flagelações aos nossos quartéis, onde, apesar de tudo, tens um buraco para enfiar os cornos”…