segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23751: Notas de leitura (1512): "O Negro Sem Alma", romance de Fausto Duarte, 1935 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Março de 2020:

Queridos amigos,
Ninguém espera encontrar nesta leitura uma obra retumbante. Mas faça-se justiça ao derriço, ao completo enamoramento de Fausto Duarte por matérias sobre as quais irá escrever um largo pendor divulgador, entrelaçando etnologia, etnografia e antropologia. Falou-se já nos belíssimos parágrafos que dedicou à baga-baga, agora é a floresta e os seus mistérios, o fanado dos rapazes, a submissão ao Irã, a convivência pacífica entre islâmicos e animistas, mas com barreiras que passam por não aceitar casamentos mistos, os tempos eram outros, os diálogos dentro da floresta, a pretexto de um arrolamento, têm muita curiosidade. Mas as figuras principais estão mal moldadas, não têm nervo, e ficaremos sempre incapazes de nos envolver numa tragédia superficialmente desenhada. Momo, o negro sem alma, que por acasos do destino combateu na guerra das trincheiras e veio altamente condecorado, merecia um recorte literário mais ousado, mais rigoroso, com mais retrato, pois ele simboliza o dramático uso dos africanos, tantos deles verdadeiros heróis da I Guerra Mundial, que depois da tormenta e de servir a guerra dos brancos, foram votados ao abandono.

Um abraço do
Mário



O Negro sem Alma, romance de Fausto Duarte (2)

Mário Beja Santos

Nome cimeiro da literatura colonial guineense, Fausto Duarte (1903-1953) foi escritor, plumitivo e estudioso, devia estar publicamente consagrado como um luso cabo-verdiano que amou desmedidamente a Guiné, que conheceu a palmo, pois foi topógrafo, participou na demarcação de fronteiras, funcionário público em Bolama, e o seu nome está indelevelmente ligado ao Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, para o qual trabalhou afanosamente até à morte. Os Anuários da Guiné de 1946 e 1948, são hoje obras de consulta obrigatório pelo manancial informativo que ele coligiu, tantas vezes apensando imagens elucidativas, muitas delas aproveitadas das edições do referido Boletim Cultural.

Voltemos ao seu romance de 1935, "O Negro Sem Alma". A trama amorosa disseca-se com simplicidade. O chefe de Posto Henrique de Castro, algures no Tombali, tem a sensualidade à flor da pele e sentiu-se seduzido por uma filha de Bubacar Djaló de nome Amenienta, após negociações com este velho Mandinga acertou casamento. Mas Songa, um Nalu, também está de beicinho pela lindíssima bajuda. É neste contexto que surge a figura que dá título à obra, Momo, tratado como um coitado, um corpo sem alma, andou pela Guiné Francesa e acabou a combater na I Guerra Mundial, de onde veio condecorado e com o juízo afetado. Assim que Songa se apercebeu do contrato nupcial de Amenienta, procurou chegar à fala com Bubacar Djaló, este recusa voltar atrás com a sua palavra, manifesta um grande desprezo com a pretensão deste Nalu.

Entrementes, Henrique de Castro pratica a justiça, é confrontado com casais num quadro de divórcio. Aparece uma criança, Salu, será o dramático protagonista no fanado. Momo, o Nalu doido, vive no mato, dorme ao acaso, é hábil caçador, raramente perde a trilha a caça grossa ou miúda ainda que ande de léguas. Fausto Duarte aproveita todas as oportunidades para se exultar as florestas luxuriantes, socorre-se das expressões mais inebriantes, como se exemplifica:
“Ali vivem restos de animais pré-históricos, enormes, deselegantes, num definhamento contínuo, numa degenerescência debilitante de raças; ali crescem, altivos, gigantes de alto fuste, baobás altaneiros, florestas de ébano, de mogno e de pau-sangue e incenso; ali o homem, o puro sangue da criação ancestral, goza ainda dos favores do céu, porque o mato é um permanente celeiro (…) Em África, o indígena apaga-se em presença do mato. O mato é tudo, porque ali vive o Irã a quem o indígena deu formas diversas criando divindades pagãs e uma mitologia interessante e sugestiva”.

Henrique de Castro vai proceder ao arrolamento na sua administração, Fausto Duarte escreve as cerimónias de um fanado de rapazes, as crianças deitadas com uma noz de cola dentro da boca, vai começar a circuncisão:
“O velho ajoelha, olha o fio da lâmina com vista segura, experimenta-o nos dedos nodosos e premindo o prepúcio corta-o ligeiro. O falo sangrento mancha a camisa do neófito que cerra os lábios, sem que um queixume demonstre a crueldade do ato. Apenas um estremecimento dos músculos e depois… o delíquio”. Segue-se o cerimonial dos tambores e os jovens vão para o mato. Henrique de Castro virá a saber que o jovem Salu não resistiu às infeções e morreu.

Prepara-se o cerimonial do casamento entre Amenienta e Henrique, quando Amenienta é introduzida em casa do chefe de Posto, Songa, que não é indiferente à bajuda, propõe-lhe partir, Nalu e Mandinga partem para o chão dos franceses, Henrique que andara numa caçada, regressa e descobre que já não tem noiva. Songa e Amenienta vivem no mato, mais tarde Songa faz uma canoa e mete-se ao rio, um crocodilo está à espreita. Antes, porém, importa relevar, Fausto Duarte deixa-nos uma tónica romântica desta paixão amorosa, este encontro de Romeu e Julieta num dado sítio do Tombali:
“E a noite caliginosa protege com o seu manto de trevas a noiva e o corajoso Nalu. Songa e Amenienta. Passado o enlheamento (confusão), Songa enlevado na presença da bela Mandinga, procurava ao acaso um abrigo. Na pequena mata espessa e frondosa de incensos, crescia uma farrobeira cujas ramagens quase tocavam a terra lentejada pela cacimba. Songa, Nalu avisado e prudente, corta um feixe de capim e ali improvisa um leito sobre a alcatifa de verdura.

As lamentações dos ranídeos, a espaços, interrompiam o silêncio do bosque violado pelos fugitivos. Amenienta seguia curiosamente os movimentos do Nalu. A sensação de se encontrarem fora do alcance dos perseguidores sobrepunha-se ao supersticioso receio que momentos antes os dominava. Momo desaparecera. E eles ali estavam entregues ao seu próprio destino, condenados a uma vida de sobressaltos e de inquietações constantes. Amenienta estiraçou-se sobre a palha, Songa imitou-a. Ambos guardaram silêncio. Sobre o seio da bela Mandinga o coração palpitava com violência, sentindo a ligeira carícia de duas mãos inquietas. A terra unia-os pelo seu hálito noturno: húmus e perfume de flores agrestes”.
E Fausto Duarte, porventura para não ter problemas com a censura, fala em curiosidade, abandono, ritos de dor, gemidos, convulsão, volúpia, êxtase e depois o silêncio.

Caminhamos para a tragédia, Songa arranjara uma canoa para atravessar o rio, pretende ir até Cumbijã, e Fausto Duarte não perde a oportunidade para falar nas galerias florestais, na flora que é tão espessa que a luz dificilmente coada através da folhagem não deixa ver os recônditos da margem cheia de tarrafo. Momo, o negro sem alma, assiste à tragédia, crocodilo prepara-se para devorar Songa e Momo estilhaça-se a cabeça com zagalotes.

Vai anunciar a Amenienta a tragédia, esta, resignada, prepara-se para pedir a reconciliação com o marido branco. E Momo acompanha-a no regresso, Henrique anda todo entregue ao trabalho da montagem de uma charrua que mandara vir de Lisboa. Amenienta e Henrique chegam à fala, Amenienta diz-lhe que ele pode fazer dela o que quiser e Henrique responde que ela pode voltar para a sua povoação, ele não reclamará o dote. É nisto que o criado traz uma carta vinda de Portugal, é a mãe quem lhe escreve a anunciar os trabalhos do campo e a dizer-lhe que Maria Luísa, a filha do maior lavrador daqueles sítios, fala muito no nome de Henrique, “julgo ter descortinado nos seus olhos verdes mais do que uma inocente curiosidade. E tu sabes que os corações das mães jamais se enganam! Estou decidida a reparar a casa e o telheiro onde guardo a lenha. As vinhas prometem, o milho começou a espigar e as fruteiras aguardam teu regresso. Sei que não voltas rico, porque dividiste o teu suor com os pobres pretos que te estimam. Não seja esse o teu tormento! Mais que o dinheiro, valem uma consciência limpa e a amizade da tua mãe”. E é claro, Maria Luísa também manda saudades.

A estória é muito canhota, não haja ilusões. Mas a descrição do Tombali vale tudo, justifica que o leitor procure uma biblioteca pública e tente encontrar este hino ao feitiço guineense.


Expressão da arte nalu, retirada do blogue Ação para o Desenvolvimento, com a devida vénia
Fanado balanta, da ONU News, com a devida vénia
____________

Notas do editor

Poste anterior de 24 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23734: Notas de leitura (1510): "O Negro Sem Alma", romance de Fausto Duarte, 1935 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 28 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23745: Notas de leitura (1511): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23750: Tabanca Grande (538): João Silva (1950-2022), ex-Fur Mil At Inf, CCAV 3404 (Cabuca, 1972), CCAÇ 12 (Bambadinca e Xime, 1973) e CIM Bolama (1973/74), grã-tabanqueiro n.º 866, a título póstumo


João Pedro Candeias da Silva (1950-2022)


João Silva, fur mil at inf, de rendição individual, CCAV 3404 (Cabuca, 1972), CCAÇ 12 (Bambadinca e Xime, 1973) e CIM Bolama (1973/74)


O João Silva e o Abibo Jau, o "gigante" da CCAÇ 12, mais tarde fuzilado em Madina Colhido, em 1975,  como já foi referido no Blogue. (Fuzilado com o ten 'comando' graduado Jamanca, ambos então da CCÇ 21).


O 2º sargento Vital (ajudava na secretaria), o João Silva, de t-shirt preta, e o Abibo Jau


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Bambadinca > CCAÇ 12 > 1973 > Os 4 furriéis da foto são da CCAÇ 12 e estamos sentados em Bambadinca, junto à nossa messe... Da esquerda para a direita: o Morgado, o Garrido, eu (António Duarte) e o Candeias da Silva.


Guiné > Ilha de Bolama > CIM de Bolama (c. 1973/74) > O João Candeias da Silva é o segundo a contar da direita em Bolama no CIM. O furriel de bigode foi citado há pouco tempo num poste e/ou fotos do CIM atual. Tinha nome de "Roupa Velha" (?)... ou "Curta (?)...



Guiné> Ilha de Bolama > CIM de Bolama (c. 1973/74) > Numa praia em Bolama. O João é o segundo a contar da direita.


Guiné> Ilha de Bolama > CIM de Bolama > Natal de 1973 > Foto de grupo, cada militar segura uma garrafa de espumante que, se presume, foi-lhe oferecida.

Fotos (e legendas): © João Candeias da Silva / António Duarte  (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Faleceu no passado dia 14, o nosso camarada João Silva, um dos últimos soldados do império (*). Aos 72 anos. Vivia em Santiago do Cacém. Furriel Miliciano Atirador de  Infantaria, passou por Cabuca (CCAV 3404, 1972), Bambadinca e Xime (CCAÇ 12, 1973) e Bolama (CIM, 1973/74). 

Entra agora, a título póstumo, na nossa Tabanca Grande, apadrinhado pelo seu grande amigo e camarada António Duarte. E por mim próprio, editor do blogue. Nós, os três,  fomos furriéis milicianos da CCAÇ 12, eu da "1.ª geração", a dos fundadores (Contuboel e Bambadinca, junho 1969 / março 1971), eles da "3.ª (e última) geração" (Bambadinca e Xime, 1973/74).

Não o cheguei a conhecer pessoalmente, muito menos na Guiné: eu regressei a casa em março de 1971, ele foi para a CCAV 3404, em Cabuca, em janeiro de 1972. Era de rendição individual. Mas ele tem um dúzia de referências no blogue, e sempre que intervinha, em geral sob a forma de comentários, fazia-o para falar da sua condição de graduado da CCAÇ 12, subunidade de guarnição normal, constituída por graduados e especialistas metropolitanos e praças do recrutamento local, de que muito se orgulhava. 

Esteve 7 meses na CCAÇ 12, antes de ser colocado no CIM de Bolama com a missão de dar instrução a militares do recrutamento local. Já passou o Natal de 1973 em Bolama. E em maio de 1974, regressou à metrópole, pagando, do seu próprio bolso, a viagem na TAP.

Passou, desde anteontem, a ser o grã-tabanqueiro n.º 866. Prometemos honrar a sua memória (**). E republicar, em próximos postes, alguns dos seus valiosos e sempre oportunos comentários (**). Tem 13 referências no nosso blogue.

2. Comentário do António Duarte, de 29/10/2022, 18:12

Boa tarde Luís.

Sugeri a  entrada do João Silva na Tabanca Grande atendendo a que ele acompanhava o blogue e participava, embora através de comentários a postes. Inclusivamente, e com alguma frequência, mostrava ao filho e à filha textos do blogue, conforme os dois me contaram no dia do funeral.

Não formalizou o pedido por mero "deixa andar".

No entanto, decide como melhor te parecer, mas penso que se justifica, precisamente face ao acompanhamento do blogue e às participações nos comentários.

Se necessário posso fazer a pesquisa de mais comentários. (...)
 
Se necessitares de algo que eu possa ajudar apita sff
Abraço
Duarte


3. Dois comentários do João Silva 

(i) CISMI, Tavira. Terceiro turno de 1971.

Depois da recruta no Hotel das Caldas, rumámos a sul até Tavira para fazermos a especialidade de atirador de infantaria.

A viagem longa e demorada foi feita sem paragens em vilas onde pudéssemos dar ao dente, a excepção era para fazer xixi no meio do mato.

Em Tavira, no CISMI, destaco 3 personagens:

(a) Tenente Moleiro, que no primeiro dia apareceu no campo da feira, conhecido por Atalaia. O pelotão formou e depois do blá, blá da retórica, tirou o quico e disse: "é este o corte de cabelo da companhia";

(b) Caifás, o barbeiro onde nos iríamos apresentar e dizer "corte à tenente Moleiro":

(c) O capitão capelão que dava palestras aos sábados ao fim da manhã no refeitório.

O pessoal estava exausto, sentado e com o queixo apoiado ao cano da G3, não tardava em adormecer. A palestra que alertava para o "respeito" pelas meninas e ameaçava que,  quando tal não acontecia,  terminava em casamento na parada. E dava como exemplo o que, na recruta / especialidade anterior, tinha acontecido.

Depois era ouvi-lo: "tu aí ao fundo,  levanta-te e castiga-te a ti próprio".... "Sim tu que estavas a dormir"...

A malta como não sabia a quem ele se dirigia, levantavam-se dois ou três. Então dizia: "não és tu, ele sabe quem é". À segunda ou terceira acertava.

A malta que sabia tocar e cantar e fosse "actuar" na missa de domingo,  tinha tratamento VIP. Também havia outros VIP por serem futebolistas, destaco o Vaqueiro, um dos chamados bebés do Varzim. Havia mais.

A salina era onde os mais tesos eram humilhados por resistirem onde não havia hipótese de vencer. Terminava quando todos estávamos encharcados de água podre e mal cheirosa. O cheiro ficava presente por dias.

Na Guiné, onde fui dos primeiros a chegar por ir em rendição individual, encontrei vários camaradas. Destaco o Penedos, que tocava trompete e em Tavira já tinha um Renault.

João Silva, terceiro turno de 1971, com passagem por Beja, Depósito de Adidos e Guiné. (***)


(ii) Quem não entrou na equação do 25 de Abril foram os africanos que juraram bandeira e a defenderam ao nosso lado.

Camarada Luís Mourato: Ao ler o teu testemunho das lágrimas que viste nos olhos do militar que servia a bandeira portuguesa na Guiné,  trouxe-me à memória um episódio que recentemente foi aflorado aqui a insubordinação da 12 em Bambadinca em Março de 1973.

Hoje acredito que eram os primeiros sinais do fim da capitulação do exército português naquela longa e desgastante guerra.

A Bambadinca, na companhia de Spínola, chegaram para "resolver o assunto" 3 oficiais africanos garbosamente fardados de camuflado e galões reluzentes, que vieram para credibilizar o empenho do Governador e Comandante
-Chefe.

Depois da CCAÇ 12,  o meu destino foi Bolama e lá, entre os oficiais subalternos, era evidente o tema do livro "Portugal e o Futuro",  Spínola vem a Lisboa e não regressa. Almeida Bruno e Otelo já tinham regressado. No final de 73 regressam Salgueiro Maia e Luís Moura, meu capitão na CCAV 3404 em Cabuca,  e pouco conhecido, mas foi ele que veio de Estremoz a comandar a coluna que se juntou no Carmo na rendição de Marcelo.

Tudo bem pensado e organizado e o correcto. Fazer, o que tinha que ser feito, o Golpe de Estado. Quem não entrou na equação foram os africanos que juram bandeira e a defenderam ao nosso lado.

Foram, sem o mínimo pudor, depois de desarmados, deixados ao Deus Dará para serem vítimas de violenta chacina.

Quando será que todos nós nos retratamos por termos assistido de braços caídos e em silêncio?

João Silva
Ex-furriel mil at inf
Cabuca, Bambadinca, Xime, Bolama, Abril de 72 a Maio de 74. (****)
___________


(**) Último poste da série > 13 de outubro de  2022 > Guiné 61/74 - P23704: Tabanca Grande (537): José Moreira de Castro Neves, ex-Fur Mil Arm Pes Inf da CCAÇ 1551 / BCAÇ 1888 (Bambadinca, Fá Mandinga e Xitole, 1966/68)... Natural de Valongo, senta-se no lugar n.º 865, sob o nosso poilão

(***) Vd. poste de 31 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21719: (Ex)citações (382): Tavira, CISMI, por quem nenhum de nós morreu de amores... (João Candeias da Silva / Carlos Silva / Luís Graça)

(****) Vd. poste de 23 de dezembro de  2020 > Guiné 61/74 - P21679: (In)citações (174): Apesar de agnóstico, ainda conservo, na cabeceira, um crucifico-talismã que alguém deixou na tabanca onde eu pernoitava: Ká pudi larga mezinho qui pudi salvar kurpu (Luís Mourato Oliveira, o último comandante do Pel Caç Nat 52, Mato Cão e Missirá, 1973/74)

domingo, 30 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23749: (Ex)citações (419): O termo "Brassa" como os Balantas se auto-denominam, na verdade, trata-se da denominação histórica de uma grande área geográfica que correspondia à província mandinga de Braço, B'raço ou Brassu (Cherno Baldé)

1. Comentário de Chermo Baldé, nosso colaborador permanente, assessor para as questões etnolinguísticas, e que vive em Bissau, ao poste P23736  (*):

Caros amigos,
Este testemunho de um guerrilheiro que participou na batalha de Como ajuda-nos a compreender um pouco como as coisas se passaram, visto do outro lado, mesmo se ainda continua coberto com uma pequena áurea da mitologia de glorificação das suas acções com que o PAIGC quis cobrir estes acontecimentos do início da guerra na Guiné que foi, de facto, nada mais nada menos que uma das maiores operações militares da chamada guerra do Ultramar português.

De certa forma está pequena crónica simboliza uma justa e sentida homenagem ao enorme sacrifício consentido pelo povo Balanta (Brassa) que, de forma insensata foi quase que empurrada para os braços do PAIGC pelo comportamento pouco prudente das chefias militares portuguesas presentes no terreno nos primeiros anos da guerra aqui contados pelo veterano CMD Amadú Bailo Djaló no seu livro aquando da sua passagem por Bedanda que não souberam gerir da melhor forma os dilemas e as relutâncias em que viviam estas comunidades, apanhadas entre dois fogos.

No mesmo período, no Norte e Nordeste, também acontecia a mesma coisa, com a diferença de que, também os guerrilheiros, perante a recusa de adesão da população à sua causa, sobretudo do povo Fula, estando posicionados maioritariamente do lado português, eram vítimas de actos semelhantes, quando não era a tropa a roubar e matar o gado encontrado no mato.

Quanto ao termo "Brassa" como os Balantas se auto-denominam, na verdade, trata-se da denominação histórica de uma grande área geográfica que correspondia à província mandinga de Braço, B'raço ou Brassu. Ao império mandinga de Kaabu ou Gabú correspondiam duas províncias ou Farinados governados por um Farim (donde vem a designação da cidade de mesmo nome no rio Cacheu): A de Gabú (Farin-Kabu) e a de (Farin-B'rassu). Dito isso, não é de estranhar que hajam outros povos que viviam na mesma área geográfica também se considerarem como sendo de "B'rassu" ou, como dizem os nossos irmãos Balanta "Brassa". Assim, durante muito tempo, no império mandinga de Gabú, os residentes da província de Gabú eram os chamados "Kaabunkês" e da outra província de "B'rassunkês", termo que assim designava não um grupo étnico em si, mas todos os grupos ali residentes sem excepção, de tal maneira que dentro dos grandes grupos étnicos existiam estas divisões consagradas inclusive numa certa forma de falar (sotaque) que se distinguia claramente da outra província (línguas regionais). No caso do grupo Fula essa distinção ainda hoje é vivida em forma gracejos. Portanto, para dizer aos nossos irmãos Balanta, também nós somos "B'rassa" no sentido geográfico e étno-linguistico.

E eu, toda a nossa família assim como o regulado de Sancorla que constitui a herança de muitas gerações dos nossos antepassados que conviveram e trabalharam sob a dominação imperial dos Farinados mandingas do histórico Braço ou B'rassu, território que se estendia desde o rio Cacheu até às margens do rio Gâmbia, são B'rassunkês ou se quiserem "Brassas".

O nome do meu pai é Tambá que ele herdou do passado e que hoje, na Guiné-Bissau, é reconhecido como um nome tipicamente Balanta, mas que, na verdade, é de raízes mais profundas ou seja do grupo Banhum (em francês Baynunk) que, antes dos mandingas, dominava toda esta área geográfica e grande parte do espaço territorial entre a actual GBissau, a região de Casamansa no Senegal e a Gâmbia.

Tudo isso para dizer que na África Ocidental, a mestiçagem era uma prática corrente e tudo girava a volta do poder e de quem a controlava em benefício de todas as comunidades. No grande Braço ou B'rassu conviviam diferentes comunidades. A par dos mandingas que, na altura, detinham o poder, viviam Banhuns, Padjadincas, Kocolis, Balantas, Biafadas, Fulas, entre outros que, necessariamente, interagiam em diferentes domínios, inclusive no das relações matrimoniais e de consanguinidade.

Convinha a eles e a todos nós guineenses, que pesquisássemos mais ao fundo e assim trazer ao de cima os aspectos que nos uniam no passado e desta forma melhorarmos a nossa convivência actual a fim de construirmos um país onde todos possam viver e trabalhar em paz em vez de criarmos guetos tribais que perpetuam as nossas diferenças e as nossas querelas nos períodos mais recentes.

A este propósito e nesta mesma senda, propunha a mudança da designação do Blogue "Intelectuais Balantas na diáspora..." Para Blogue dos "Intelectuais Guineenses na diáspora..." que, no fundo, é a mesma coisa, mas seria mais abrangente, podendo incluir outras visões e ideários sobre o mesmo país e outras verdades que, também, não deixam de o ser.

Bem hajam
Cherno Baldé


********************

A quem se interessar uma leitura ou pesquisa mais profunda e bem elaborada sobre este assunto da mestiçagem no espaço da Senegâmbia, pode procurar as obras do investigador guineense de Conacry e especialista sobre o império mandinga de Kaabu (Gabau), Djibril Tamsir Niane de quem tenho várias citações e referências na monografia que estou a preparar, há bastane tempo, sobre a minha terra (Fajonquito), donde vos extraio este pequeno excerto para dar uma amostra:

ORIGEM E SIGNIFICADO DO NOME SANCORLA

"(...) Tudo leva a pensar que o nome Sancorla (da grafia portuguesa) vem da palavra Soncoya ou Sonkoya que significa terra dos Sonco ou Sonko. Segundo Djibril Tamsir Niane (Guiné-Concri), investigador e especialista do império mandinga de Gabu, na origem, Sancorla podia ser Sonkolla, quer dizer, terra ou território pertencente à dinastia dos “Sonco/Sonko”, príncipes de origem diversa mas assimilados à cultura mandinga que governavam esta Província mestiça de Birassu/ B’rassu (para mandingas e fulas), Brassá/Brazza (para os balantas) no período áureo do império de Gabú ou Káabu. Ainda, segundo Djibril Tamsir Niane a Provincia de Sonkolla era o domínio do clã Sonko, originários de uma miscigenação de autóctones Banhuns mandiguizados com grupos de fulas pastores vindos de Mali (Macina) e de Boundu (Senegal) que, em ligação com as províncias mandingas iniciais de Gabu - (províncias Nanthiôs de Pathiana/Propana, Djimara e Sama/Manna), formaram as províncias designadas pelo termo mandinga de Kôring (ou seja de origem não mandinga) de Birassu/Brassu (Farin-Ba) de que a região de Sonkolla seria parte integrante, se não mesmo o seu centro. Ainda segundo Tamsir Niane (citando Sekéné Mody Cissoko), o nome de “Farinsangul” na historiografia portuguesa (reinado de D. Joao I), seria a deformação de Farin-Sonkolla, em referência ao poderoso governador de Soncolla em Berécolon.

No séc. XV, os chefes (Farins) de Sonkolla, província habitada por uma população mista e belicosa, se extenderam a Oeste e fundaram muitas aldeias entre as quais Salikénie (situado na fronteira entre o Sénégal e a Guiné-Bissau perto de Cambaju) , Solikoo (em português Solucocum, também na linha da fronteira entre Cambaju e Sitatô), Bantadjam (Bantandjan) e Kagnamina (Canhámina, actual capital do Régulado de Sancorla).**

A capital da província, Bérécolong (Berecolón), situada a norte da actual vila de Fajonquito, onde residiam os chefes da província (Farim) e que desempenhavam um papel preponderante nas relações entre o poder central do império de Mali e o reino de Portugal em meados dos séc. XIV/XV, é uma localidade tão antiga como a velha Kansala, capital do império mandinga de Kaabu, diz-nos Tamsir Niane."


Com um braço amigo,
Cherno Baldé

____________

(*) - Vd poste de 25 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23736: Casos: a verdade sobre... (31): Pansau Na Isna, o "herói do Como" (1938 - 1970), entre o mito e a realidade - Parte II: Visto do lado de lá

Último poste da série de 25 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23738: (Ex)citações (418): Os Consulados da Guiné, a Preparação Militar e a tarimba dos "velhos" (Victor Costa, ex-Fur Mil, At Inf, CCAÇ 4541/72, Safim, 1974)

sábado, 29 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23748: In Memoriam (459): João Pedro Candeias da Silva (1950 - 2022), ex-Fur Mil At Inf, CCAV 3404 (Cabuca, 1972), CCAÇ 12 (Bambadinca e Xime, 1973) e CIM Bolama (1973/74)




João Pedro Candeias da Silva (1950-2022)


1. Mensagem do  António Duarte, um histórico do nosso blogue (tem cerca de 60 referências):

Data - 29 out 2022 15:16

Assunto - Partida do nosso camarada furriel miliciano Candeias da Silva (*)

Boa tarde,  Luís Graça

Mais um dos nossos que nos deixa para sempre.

Foi cremado no dia 18 o nosso camarada João Pedro Candeias da Silva, falecido na sexta feira 14, deste mês de outubro.

Morreu repentinamente, durante um jogo de ténis, desporto que praticava com alguma frequência e sem previamente ter tido sintomas de qualquer doença.

Nasceu em 13 de junho de 1950 e a sua vida profissional decorreu na EDP, grande parte do tempo na Central de Sines.

Residia em Santiago do Cacém, deixando viúva, uma filha, um filho e dois netos, um deles com 7 meses de idade.

Estavam destroçados com a dor, gerada por esta partida não prevista. Partilhámos aquando do funeral a nossa dor e a perda do amigo.

Estive com ele na CCaç 12 em 1973, quando ainda a companhia estava em Bambadinca e mais tarde no Xime.

Tinha a especialidade de atirador de infantaria e chegou à Guiné em rendição individual, ficando colocado, me janeiro de 1972 na CCav 3404, em Cabuca, do Batalhão de Nova Lamego.

Em novembro de 1972 frequentou o estágio para oficiais e sargentos, destinados às unidades africanas, em Bolama.

Após 7 meses na CCaç 12, foi transferido para o CIM em Bolama, onde permaneceu a ministrar instrução a militares do recrutamento local, até final da comissão e onde foi apanhado pelo 25 de abril.

Acompanhava de forma sistemática o nosso blogue, participando sob a forma de comentários a postes colocados, de onde destaco a que agora copio, do Poste P21646 de 15.12.2020 (**)
___________

Jorge [Araújo]

Eu sou o João Candeias que no Xime ficou no mesmo quarto com o Duarte e o Osório, enfermeiro. 
Não sei se é suficiente para me para te avivar a memória.

Estou a escrever-te porque li o teu testumunho sobre o nosso camarada Víctor Alves, infelizmente já desaparecido, sobre os tais dias difíceis que vivemos na  CCAÇ 12 em Bambadinca.

E tu sabes que quem mais sofreu foi o Victor por lá ter a esposa, e todos compreendemos.
Aquando da primeira e frustrada tentativa de nos mandarem para o Xime,  ele formou ao meu lado direito e quando o tenente coronel disse "quem se recusa ir para o Xime, dê um passo em frente", dos europeus só ele o deu. Eu puxei-o pelo braço e ele corrigiu rapidamente o gesto instintivo que, felizmente, não foi detectado pelo tenente coronel. Depois a confusão, a ordem de prisão ao soldado da 12.

Como terminou,  tu deves estar bem recordado. Tu ficaste pelo Xime, eu mais três furriéis fomos despachados para outros companhias, no meu caso CIM, centro de instrução militar em Bolama.

Curiosamente o teu final muito parecido com o meu. Também comprei bilhete e vim na TAP mas já em Maio, tu em Abril, por pouco não nos encontramos em Bissau.

Abraço e bom Natal.
João Candeias da Silva

Fiz um email ao Luis Graça onde descrevo o que aconteceu naquela semana. Se ele o publicar espero que faças um comentário para ver se tiveste a mesma opinião.

24 de dezembro de 2020 às 20:50

Nota Minha - O Vítor que o Candeias da Silva refere foi o vagomestre da segunda geração da CCAÇ  12. O nosso vagomestre em 1973 tinha a esposa e um bebé em Bambadinca. Trata-se de uma troca de nomes, por parte do Candeias da Silva, já que foi noticiada a morte do Víctor Alves, vagomestre da CCAÇ 12 da segunda geração de graduados, que foi em vida bancário no BES.
___________

Falávamos frequentemente, nomeadamente por mensagem, as últimas no dia da partida.

Também almoçámos aqui em São Pedro do Estoril, há uns meses, no qual também tivemos a presença do Manuel Lino, furriel do pelotão de artilharia de obuses 10,5 cm, instalados à época no Xime.

Havia ainda a particularidade de o Candeias da Silva e o Manuel Lino terem sido condiscípulos, nos anos 60 nas Oficinas de São José, em Lisboa pertencentes aos Salesianos (reconheceram-se no Xime no início de 1973). 

Digamos que foi um almoço de "romagem" aos tempos da Guiné e aos apoios dados pela artilharia, aquando de emboscadas e ataques ao aquartelamento, bem como a revisitar lugares, pessoas e cheiros daquela terra que nos marcou para sempre.

Daquilo que conheço do Candeias da Silva, parece-me que se justifica a sua integração na nossa tabanca, lamentavelmente a título póstumo, pois era um leitor assíduo dos nossos escritos e fez várias intervenções, sob a forma do comentário, como o que atrás copiei do poste. (o que está copiado será o mais recente, mas há mais)

Aproveito para juntar algumas fotografias, com legendas explicativas, que também poderão servir para suportar a entrada para o blogue.

Um abraço a todos os camaradas
António Duarte
ex-fur mil, Cart 3493 (Mansambo) e Ccaç 12 (Bambadinca e Xime)- Dez de 71 / Jan de 74 (foto atual à direita)

2. Comentário do editor Luís Graça:

(i) Bolas, António, são só notícias tristes. No mesmo dia faço dois In Memoriam, o do Manuel Marinho (*)  e agora o do João Candeias da Silva. 

Nunca o consegui trazer, a este último,  para a Tabanca Grande. Era arisco. Mas de vez em quando vinha comentar... Ele deu algumas achegas importantes para a história da CCAÇ 12 no teu /vosso termpo... Umas vezes assinava João Candeias, outras João Candeias da Silva. Chegámos a ter, por lapso, os dois descritores, João Silva e João Candeias. Fica definitivamente como João Silva. Tem 12 referências no blogue. Era franco e frontal. (**)

Perguntei-te, hoje, se fazia sentido integrá-lo, a título póstumo, na nossa tertúlia...Tu conheceste-lo melhor do que eu. Eu nem sequer o conheci pessoalmente. O que é que achavas? E eu lembrei-te o nosso lema: "Ninguém fica na vala comum do esquecimento"... 

Acabo de fazer este  In Memoriam com o teu material e algo mais que eu tenho dele... 

(ii) Depois de ler a tua mensagem completa, e a segunda que mandaste, hoje, logo a seguir, não tive mais dúvidas: o João Silva irá ser apresentado, em poste a seguir, amanhã ou depois,  como o grã-tabanqueiro nº 866. Entra e vai logo para o nosso "panteão", o dos que "da lei da morte já se foram libertando".  Tenho pena que ele não tenha entrada em vida, aceitando o meu reiterado convite para se juntar a ti e a todos nós. 

Com ele, passam a ser 127 os nossos queridos mortos, desde a existênia do blogue.  Sei que que o João tinha grande apreço pelo nosso blogue, mas cultivava um  perfil discreto. Transmite à sua viúva, filhos e demais família os votos de pesar da equipa do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

Recordo aqui, para os nossos leitores, que o João Silva, fur mil at inf, de rendição individual, passou pela CCAV 3404 (Cabuca, 1972), CCAÇ 12 (Bambadinca e Xime, 1973) e CIM Bolama (Bolama, 1973/74).
__________




(...) A minha filha, e não sei porquê, ofereceu-me o livro em questão há cerca de uns 3 meses. Mas, ao iniciar a leitura, reconheço que o fiz sem grande entusiamo, parei logo, quase ao início, quando a autora na pág. 12 escreveu: "A maioria dos combatentes esteve apenas 2 anos na guerra mas penso que terá havido poucos mais momentos transformadores nas suas vidas".

Aquele "apenas" retirou-me a vontade de o ler. Quem considera que 2 anos na guerra é pouco tempo na vida de um jovem na casa dos 20 anos, não tem a mais pequena perceção da realidade.
São 2 anos em que quase conseguimos recordar cada dia, cada hora e, nalguns casos, passado quase meio século, e garanto que foram extremamente longos.

Tenho dois filhos na casa dos 30 e tal anos e nenhum me perguntou se tive medo. Nem mesmo depois da oferta do livro. Há muitos livros sobre a guerra colonial e nenhum até agora me cativou. O mesmo acontece com a produção cinematográfica/documental.

Talvez porque coloque a fasquia muito alta. Talvez porque a nossa guerra não teve o impacto nem a dimensão de outras. Talvez porque não temos experiência acumulada como os americanos. Talvez porque não temos massa critica. Não sei. Alguns povos têm conseguido, especialmente os americanos, utilizar a tela dos cinemas para exorcizar e muitas vezes de forma crítica a sua participação na guerra.

Destaco a guerra do Vietname, a que mais se aproxima, por excesso, da que conheci na Guiné. Nem todas foram boas obras, como exemplo, Os Boinas Vermelhas. Mas noutros casos foram excelentes como no caso do Caçador, para mim o melhor.

Não sei se este sentimento é partilhado por outros companheiros de armas, porque cada um de nós teve a sua experiência e também a sua missão. Uns foram atiradores, um nome que hoje dito em inglês - sniper - causa logo alguma efervescência, outros, amanuenses, cozinheiros, telegrafistas, mecânicos, etc. Mas quem foi atirador e esteve numa companhia africana teve uma experiência diferente. Não foram muitos deste milhão a que a autora do livro diz terem passado pelo teatro de operações, que o viveram.

É apenas um comentário pessoal e nada mais do que isso. Se chegar a ler o livro, talvez mude a opinião com que fiquei das primeiras páginas. (...)


Vd. também:



Guiné 61/74 - P23747: Os nossos seres, saberes e lazeres (536): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (74): Da Curia para o Luso - 1 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Setembro de 2022:

Queridos amigos,
Havia a promessa de, após a estadia em Sines, andarmos pela Lourinhã e arredores mas impunha-se a liberalidade de uma sortida, coube à neta dar agreement de uma itinerância até às matas do Bussaco, paragem na Curia e alguma estadia no Luso. É o que aqui se relata em português suave, houve a sorte de não apanhar caloraça, encontra boa comida pelo caminho, graças ao meu péssimo sentido de orientação fomos parar à Oiã, deixou-se mensagem ao Armor Pires Mota, bem gostava de o abraçar, ocorreu-me a visita a um cemitério na Anadia, é lá que está sepultado o meu maior amigo da juventude, decidi que não, há atos íntimos que carecem de recolhimento, para minha surpresa, a neta gostou da Curia, entusiasmou-se com a piscina do Luso, está na idade das muitas perguntas e nada pode entusiasmar mais um ser humano com 77 anos que fazer este reavivamento de memória sobre as estâncias termais e as férias dos avós maternos da menina.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (74):
Da Curia para o Luso


Mário Beja Santos

Aproveitam-se as férias para pôr em dia informações do passado aos mais novos, por exemplo aonde é que os avós maternos passavam férias, estávamos na região de Sines e foi referido que durante anos esses avós vinham de Aljustrel e abancavam na vila piscatória cerca de um mês, a Pensão Carvalho até tinha sido encarada como uma segunda residência e os avós, já velhotes, mantiveram o uso e costume, na sala de estar homens de um lado senhoras do outro, estas a tricotar e a falar de gente conhecida, eles a recordar também gente e a cortar na casaca do estado da Nação, faz parte do direito do consuetudinário. E falei à neta que houve um largo período em que os avós, libertos da descendência, procuraram a Curia, a avó adorava, o avô não tanto, ele adorava meter conversa e encontrava ali banhistas a tratar das artrites e das artroses em estado lastimoso, preferia meter o nariz em jornais e livros, encontrava parceiro para o dominó e damas, não há hotel ou pensão em estância termal que não disponha de uma sala de jogos. Ela, a tricotar, claro.
Estávamos em Sines e a neta decretou que queria ir à Curia, o avô anuiu, quem vai à Curia vai ao Luso, quem vai ao Luso vai ao Bussaco, assentou-se nas datas, o ponto radial seria o Inatel do Luso, um tanto fora de moda, mas com conforto quanto baste.
Inevitável chegar à Curia e não parar à entrada daquela avenida de plátanos, é uma autêntica sala de receção. E para-se o carro para ir ao Palace, contam-se histórias, por ali andaram atores de nomeada, tu já vais ver, é um ambiente de outro tempo, olha como mantiveram a traça da receção, repara bem no elevador, depois viremos à sala de estar para tu veres as escrivaninhas, naquele tempo era imperioso escrever cartas e mandar postais, depois vamos percorrer os jardins, está tudo numa formosura, visto o Palace vamos até às termas, se quiseres até podemos andar num barquinho no lago. “Tá bem, depois quero lanchar”.

Fachada do Palace Hotel da Curia, anos 1920, classicismo e Arte Deco, obra de Norte Júnior
Pormenor da fachada, sente-se o gosto francês, aqui há classicismo e uns restos de Arte Nova
Pormenor da receção
O lendário elevador que apareceu em vários filmes de Hollywood
Recordação dos tempos em que se mandavam cartas aos entes queridos, e diariamente

Finda a viagem ao Palace, seguimos para as termas, o meu coração balanceava, há um cemitério na Anadia onde está sepultado aquele que foi o meu maior amigo da juventude, morto em combate na região de Mocímboa da Praia, Norte de Moçambique, em 2 de fevereiro de 1970, não, iria passar por emoções, talvez devastadoras, gerar perplexidades, ter que contar histórias que a memória parece não querer apagar. Fica para outra viagem, vamos mostrar a esta jovem de 11 anos uma estância termal à moda antiga, esta tem mais de 100 anos, imagine-se que foi inaugurada em 1914, logo atraiu meio mundo e outro, encheu-se de pensões, aproveitava-se este imenso parque para completar a cura de águas. E havia comboio para trazer e levar os aquistas. Vamos então ver o jardim e as termas, um pouco de barco, sim, não esqueci, o lanche.
Fachada das termas, dá gosto ver tudo arranjadinho, o passado bem recuperado
Aqui se dispensa água ao doente, há mais de um século, nada de voluntarismos, só se bebe água com dispensa médica, a água cura mas indevidamente tomada a água termal pode acarretar aborrecimentos
Disse à neta que era certo e seguro que os avós por aqui passearam, vinham habitualmente em julho ou agosto, se a memória não me atraiçoa eram quase 3 semanas, traziam muito para contar e diziam maravilhas do parque
Chegámos ao Luso ao entardecer, é sempre agradável aqueles exercícios de ambientação, quando a neta viu gente na piscina exigiu o que lhe era devido, dar umas braçadas, o avô acompanhou-a com imenso gosto. Depois de um agradável jantar, percorrendo uma vila onde há sinais de vitalidade mas com muitos edifícios ao abandono, chegámos junto do grande hotel, é assim que funciona a imaginação, pareceu-me um transatlântico a vogar na imensidão oceânica, e deu-me para caprichar com aquela imagem de meia luz da entrada ao topo da grande construção, a luz a irromper da escuridão.
Fonte de São João, imagem retirada do blogue Restos de Colecção, com a devida vénia
Edifício de Banhos, inaugurado em 1 de junho de 1856. Imagem retirada do blogue Restos de Colecção, com a devida vénia

Despeço-me do Luso com imagens do passado, há mais de 150 anos que é a mais conceituada estação termal desta região, tem o seu património algum pergaminho, no entanto há algo de melancólico nos hotéis em derrocada, bem vistas as coisas, é uma imagem muito própria de Portugal podermos coexistir entre os avanços da urbanização deixando a derruir um passado que já foi lustroso, e parece que fazemos isto sem nenhum rebate de consciência. Amanhã partimos para um lugar onde parece que se pode encontra a magia, uma ímpar riqueza arbórea e sinais de uma batalha vitoriosa em que Wellington, à frente de um exército anglo-luso derrotou Massena, em 1810, a estrela napoleónica empalidecia.

(Continua)

____________

Nota do editor

Poste anterior de 22 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23729: Os nossos seres, saberes e lazeres (534): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (73): Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia - 11 (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 25 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23737: Os nossos seres, saberes e lazeres (535): Trabalhos de pintura da autoria de Jaime Machado, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2046 (6)

Guiné 61/74 - P23746: In Memoriam (458): Manuel Alberto da Costa Marinho (1950-2022), ex-1.º cabo, 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512 (Nema / Farim e Binta, 1972/74)




Manuel Aberto da Costa Marinho (1950-2022)

1. Mensagem de Maria João Ferreira, sobrinha do nosso camarada Manuel Marinho, membro desde 15/9/2009 da nossa Tabanca Grande (*), entretanto falecido há três meses, notícia que acabámos de saber e nos deixa desolados:

Data - quinta, 27/10, 22:05/2022
Assunto - Manuel Marinho (ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Nema/Farim e Binta, 1972/74),

Boa Noite,  

Não sei se posso enviar por aqui mas sei que muitos dos seus camaradas não sabem e pedia se podiam publicar este meu testemunho no vosso blogue sobre o meu tio Alberto Marinho que, depois das doenças que lhe diagnosticaram,  afastou-se de várias áreas da sua vida.

O meu nome é Maria João da Costa Marinho Ferreira. Sou licenciada em História e Mestre em História e Património.

O caminho que segui não foi por acaso. Sou sobrinha do ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Nema/Farim e Binta, 1972/74), Manuel Aberto da Costa Marinho. O meu tio (como um segundo pai) sempre me contou as suas histórias que passou durante a guerra e isso inspirou-me a seguir o caminho da história e contar a história daqueles que já cá não estavam e que mereciam ser homenageados.

É isto que me traz aqui hoje.

O meu tio faleceu a 22 de Julho deste ano e está sepultado no cemitério de Agramonte, Porto (**)

Depois de alguns meses ainda sinto de luto, talvez porque não me despedi como deveria. No final da sua vida,  o meu tio escolheu a amargura da doença que o atacou e preferiu não ver a sua família ou amigos. Algo que hoje me arrependo de não ter forçado a minha visita.

Encontrei novamente o blogue que lhe apresentei anos atrás (*) e descobri a sua primeira mensagem no qual ele me menciona sem saber o quanto me inspirou:

"Apresenta-se o ex-1.º Cabo Manuel Alberto Costa Marinho, do 1.º GComb/1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, comissão em Nema/Farim, Binta, em 1972/74.

É com enorme sentido de gratidão, extensível aos restantes colaboradores do blogue e a todos os tertulianos da Tabanca Grande, que me dirijo, pela primeira vez. Mais vale tarde que nunca.

Como ex-combatente da Guiné, não posso ficar indiferente ao que de melhor temos neste País para testemunhar o que foi a Guerra Colonial, mais concretamente a da Guiné, vivida e contada pelos seus protagonistas, por isso mais uma vez, um muito obrigado pelo excelente trabalho que podemos testemunhar.

E antes de mais peço a admissão na “Tabanca”, certo que já o poderia ter feito, mas só agora julgo oportuno, pelo facto (se calhar egoísta) de estar a ajudar uma sobrinha a fazer um trabalho sobre a Guerra Colonial, foi a miúda, que me incentivou a contar as minhas vivências na Guiné, depois de consultar muitas vezes o blogue, e sabendo que estive no inferno de Guidaje, praticamente em todas as suas incidências.

Como muitos de nós já o disseram, é penoso lembrar o que já estava na penumbra da memória, mas acho valer a pena este esforço, porque entendo que uma parte muito importante das nossas vidas ficou para sempre na Guiné, numa Guerra da qual eu não me envergonho de ter participado, e sou dos que sabiam minimamente para o que iam.

Depois porque ao longo destes anos (e já são 35), somos vergonhosamente ostracizados por todos os poderes instituídos neste País, que foram coniventes com o apagar da memória colectiva, de tudo o que diga respeito à Guerra Colonial, e mais grave do que isso, transformando os que por razões várias desertaram, em heróis, e nós que combatemos, só nos falta pedir desculpas por ainda estarmos vivos a contar (dissecar) esta guerra.

Pessoalmente, sinto-me ofendido com a imagem redutora que tem sido dada às gerações que se seguiram, não quero louvores, mas exijo respeito pelos que morreram, e por todos os que ficaram marcados por ela para sempre.

Desculpa, camarada Luís, este desabafo, corta tudo o que achares necessário, porque sinto esta revolta surda sempre que abordo esta questão.

Quero saudar muito especialmente os camaradas Amílcar Mendes (*) da 38.ª de Comandos, Victor Tavares,  da 121 dos “Páras”,  e o Albano M. Costa,  da CCAÇ 4150, os dois primeiros que descrevem operações de combate e o Albano que me fez rever Binta, peço desculpas ao omitir mais camaradas, sei que os há que viveram Guidaje e escreveram sobre esse fatídico mês, os Fuzileiros por exemplo.

Como também não desejo que outros contem a Guerra por mim, vou descrever o ataque à primeira coluna para Guidaje, que como é sabido não chegou ao destino.”


A vida são dois dias e por vezes amarguras indispensáveis levam-nos ao afastamento dos nossos entre queridos.

Pretendo honrar o meu tio em um livro. Contarei as suas memórias que ele me deixou e precisava de comentários ou conhecer o batalhão que ele fez parte.

Sendo assim, presto a homenagem ao meu tio Manuel Alberto Marinho e imploro que de vocês entre em contacto comigo para falarmos sobre as memórias de Guiné e Guidaje e memórias de Manuel Marinho.

2. Comentário do editor LG:

O Manuel Marinho tem 37 referências no nosso blogue. Fazia anos a 11 de abril. Deixou de fazer prova de vida. A últíma vez que lhe publicámos um poste de parabéns foi em 2020. Temos a agora, com um atraso de 3 meses,  a funesta notícia da sua morte, dado pela sua querida sobrinha Maria Ferreira, cujas palavras nos comovem.

Vamos, naturalmente, ajudá-la a completar a escrita do seu livro com as memórias do seu querido tio e nosso já saudoso camarada que, conforme podemos verificar pelos postes que aqui publicou, era um apaixonado sobre tudo o dizia respeito a Guidaje e os duros combates que lá se travaram e os exemplos de abnegação e coragem que ele lá viveu, em maio de 1973 (****).  
Acho que podíamos publicitar aqui o endereço de email da Maria Ferreira, a quem convidamos para integrar a nossa Tabanca Grande e, de algum modo, suprir a falta que o Manuel Marinho nos faz, De qualquer modo, aguardamos que ela nos autorize a divulgar o seu endereço de email, se achar conveniente e necessário,  para troca de informações com os camaradas do Manuel Marinho, do BCAÇ 4512. E que, na volta do correio, nos diga se aceita o nosso convite. 

Sabemos que em 28/4/2013, o Manuel Marinho estava "a ultimar um trabalho sobre Guidaje, tentando sistematizar tudo o que se passou", mas acrescentando: "não sei se terei fôlego para chegar ao fim" (***)

Temos cerca de seis dezenas de referências ao BCAÇ 4512. Vamos partilhar essa informação com a Maria Ferreira.
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 15 de setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4957: Tabanca Grande (173): Manuel Marinho, ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Farim e Binta (1972/74)

(**) Último poste da série > 19 de outubro de  2022 > Guiné 61/74 - P23720: In Memoriam (457): Xico Allen (1950-2022), ex-Soldado Condutor Auto, CCAÇ 3566, "Os Metralhas" (Empada e Catió, 1972/74): A minha homenagem ao amigo Xico Allen, como sempre o tratei (Albano Costa)

(***) Vd. poste de 28 de abril de  2013 > Guiné 63/74 - P11491: 9º aniversário do nosso blogue: Questionário aos leitores (31): Respostas (nº 58 e 59) de Manuel Marinho, ex-1.º Cabo do BCAÇ 4512 (Nema e Binta, 1972/74) e José Martins Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux Enf da CART 2716 (Xitole, 1970/72)

(...) Gosto das estórias que vou lendo sobre a nossa presença na Guiné, e tenho a impressão que já conhecia muitos destes camaradas, é uma aprendizagem constante, de facto este Blogue é um caso único de afectos e camaradagem. (...)

(...) No Blogue, não gosto de escritos que nada têm a ver com a Guiné, não gosto de ver fotos de camaradas nossos aos abraços com elementos do PAIGC, não gosto de escritos sobre quem nos traiu, estou a referir-me a desertores, (o lugar deles não é neste Blogue), não gosto de elogios ao PAIGC, porque não lhes devo nada, e não gosto da ficção de muitas das estórias contadas, devemos fazer um esforço para escrever (contar), com os nossos 20 anos de então, e não com os olhos e a experiência de hoje.

(****) Vd. por exeplos postes de:

7 de outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5067: Guidaje, Maio de 1973 (1): Momentos difíceis para as NT (Manuel Marinho)

7 de novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5230: Guidaje, Maio de 1973 (2): O fim do pesadelo (Manuel Marinho)

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23745: Notas de leitura (1511): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Outubro de 2022:

Queridos amigos,
O Zé Matos teve a gentileza de me enviar o mail com o miolo deste livro que ele escreveu em parceria com um reputado especialista, Matthew Hurley. Oxalá que surja a possibilidade de haver uma tradução portuguesa, pelo menos as instituições da Força Aérea deviam cuidar de quem investiga em sua memória. Aqui vai a introdução, só lhe introduzo um reparo acerca da estagnação económica que os autores referem sobre o período. Não foi nada assim, autores da maior probidade e rigor já esclareceram como os anos 1960 foram decisivos de diferentes títulos: a tumultuosa emigração, a avalanche turística no Algarve, os investimentos estrangeiros, a explosão industrial, etc., são dados indiscutíveis. O mesmo não acontece com os primeiros anos de 1970, e a crise petrolífera atingiu-nos em cheio, é contemporânea de uma situação aguda em mobilizar mais jovens para os conflitos africanos. Ainda bem que vemos investigadores portugueses envolvidos em trabalhos que possam circular na arena internacional da pesquisa e confronto de posições.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (1)


Mário Beja Santos

Este primeiro volume d’O Santuário Perdido por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/.

É um pequeno volume onde, depois de se dar informação sobre abreviaturas e notas terminológicas, se faz uma curta introdução, a que os autores intitulam “Crocodilos e Bombas”. Na edição de hoje, sumariamos, por conta e risco próprios, o essencial de tal introdução.

Em 1960 ocorre uma mudança extraordinária na aviação militar, aparecem no terreno aviões supersónicos, misseis e o radar concorreu para o modo de fazer a guerra. Em Portugal, nesse mesmo período, a mudança foi outra. De 1961 para 1975, Portugal combateu em África e a Força Aérea Portuguesa (FAP) travou uma guerra a baixa-altitude com aparelhagem eletrónica rudimentar contra a guerrilha. Estas operações da FAP eram de baixa intensidade. É uma das razões por que a guerra portuguesa em África passou praticamente sem nenhum estudo de observadores contemporâneos, em Portugal ou fora de África.

Mesmo com estas limitações, a FAP, no teatro africano da Guiné, mostrou o valor e as vulnerabilidades do poder aéreo num contexto irregular, como instrumento da contrainsurgência. De 1963 a 1974 a FAP desempenhou sucessivamente missões que incluíram bombardeamentos ofensivos e atividades humanitárias. No nível de ação direta e de resultados militares imediatos a FAP provou ser a mais importante arma contra a guerra subversiva e, em alguns momentos, o seu modesto desempenho pareceu levar a insurgência ao colapso. Contudo, devido à efetividade da FAP, o aparelho imperial – e especialmente a sua componente militar – foi crescendo excessivamente dependente da operacionalidade aérea. Os independentistas viram-se obrigados a dar prioridade à defesa aérea. Os imperativos da competição envolveram as capacidades da FAP e da guerrilha e acabaram por se constituir o pivô do resultado da guerra.

Durante a guerra que Portugal travou na Guiné, a FAP demonstrou um notável poder de intervenção, e assim se conseguiu manter uma campanha ao longo de uma década em ambiente austero apesar das deficiências crónicas em meios aéreos, armamento e pessoal – fragilidades devidas à estagnação económica interna (?), mudanças demográficas e hostilidade internacional ao império português.

Há ainda que ter em conta a resiliência da FAP tendo em conta a existência de outros teatros de operações e o enquadramento logístico exigido pela NATO (recorde-se que a NATO exigiu a retirada dos F-86 da Guiné). A adaptabilidade da FAP e a utilização hábil dos seus meios permitiram manter sempre o apoio a um exército disperso em alguns dos terrenos mais inóspitos do planeta. Antigos comandantes portugueses e historiadores têm assinalado esse excelente desempenho da FAP e alguém disse que se tratou de “uma notável proeza de armas”, independentemente do desfecho da guerra.

Acontece que a situação mudou radicalmente com o aparecimento em primeira mão dos teatros de guerrilha dos misseis terra-ar, que exigiram procedimentos estritos à FAP, quando no passado dispunha de uma supremacia quase absoluta, e a partir do momento em que os outros ramos das Forças Armadas se aperceberam do caráter retrátil dessa operacionalidade, acusaram emocionalmente a baixa.

A guerra aérea na Guiné Portuguesa continua em grande parte inexplorada nos círculos militares e mesmo académicos, merece maior audiência o seu estudo pela forma económica e eficaz com que atuou não só num enquadramento geopolítico tumultuoso e de rápida mudança tecnológica.

Imagem do “DO”, a aeronave que nenhum dos antigos combatentes esqueceu pela sua tão estimável presença

(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 24 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23734: Notas de leitura (1510): "O Negro Sem Alma", romance de Fausto Duarte, 1935 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23744: Parabéns a você (2109): Cor Inf Ref Luís Marcelino, ex-Cap Mil Inf, CMDT da CART 6250/72 (Mampatá e Colibuia, 1972/74)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 20 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23722: Parabéns a você (2108): Rogério Cardoso, ex-Fur Mil Art da CART 643 (Guiné, 1964/66)