quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23904: Documentos (41): "Diploma de Cobra", outorgado pelo cap inf Jorge Parracho, cmdt da CCAÇ 3325, "Cobras" (Guileje e Nhacra, 1971/72) ao seu amigo e camarada do tempo da Academia Militar, cap art Morais da Silva, cmdt da CCAÇ 2796, "Gaviões" (Gadamael e Nhacra, 1970/72)

 

Diploma de Cobra

Ao Capitão de Art António Carlos Morais 
da Silva como reconhecimento da CCAÇ 3325 pela
amizade e apoio incondicional que dispensou a esta 
unidade se outorga o grau de "Cobra" honorário.
E por ser verdade e como apreço da CCAÇ
3325,  lhe é passado o presente diploma que usurá
"in aeternum"

O Comandante
JSParracho
cap"

[ Cortesia do cor art ref Morais da Silva]




Foto nº 39



Foto nº 39A


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3325, "Cobras de Guileje" (jan / dez 1971) > 1971 > Álbum fotográfico do cor inf ref Jorge Parracho > Foto n.º 39, sem legenda > O cap Jorge Parracho (o segundo a contar da direita, na foto nº 39A) com a malta do 5º Pel Art que era comandado pelo alf mil art Cristiano Neves... Operavam três peças de 11,4 cm, apontadas para a fronteira.

O primeiro militar, na primeira fila, a contar da direita para a esquerda, na foto nº 38B, é o alf mil médico Mário Bravo, nosso grã-tabanqueiro. Também passou por Bedanda (CCAÇ 6) e depois pelo HM 241, em Bissau. Os "Cobras de Guileje" estavam longe de imaginar o que aconteceria àquele aquartelamento, um dos melhores da Guiné, dois anos depois... Foi aqui, em 18 de maio de 1973 que começou a Op Amílcar Cabral... (em que o PAIGC mobilizou t0dos os seus meios para "varrer do mapa" o quartel e a tabanca (fula) de Guileje...

As fotos de Jorge Parracho foram disponibilizadas à ONG AD - Acção para o Desenvolvimento, com sede em Bissau, em 2007, no âmbito do projecto de criação do Núcleo Museológico Memória de Guiledje. Não traziam legendas, vinham apenas numeradas. Foram por sua vez partilhadas com o nosso blogue pelo nosso saudoso amigo Pepito, o engenheiro agrónomo Carlos Schwarz Silva  (Bissau, 1949-Lisboa. 2014), então diretor da ONG AD e principal promotor do projecto museológico de Guileje. A legendagem é da responsabilidade do editor L.G, que recorreu às informações já aqui publicadas pelo Orlando Silva sobre a CCAÇ 3325].

Foto: © Jorge Parracho / AD - Acção para o Desenvolvimento, Bissau (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.]



1. "Diploma de Cobra" foi um singelo docmnento que me chegou às mãos,  enviado, oportunamente, em 4 de junho de 2022, pelo cor art ref Morais da Silva, na sequência de um mail quem entretanto,  enviara a um grupo de camaradas que tinham passado por Guileje, Gadamael e Bedanda. 

Tinha a intenção de o publicar como prova dos fortes laços de amizade e camaradagem que se criaram, na altura, entre as NT, no TO da Guiné, a par do sentido de humor de caserna que a guerra também cria e alimenta...

Publico, hoje, na série "Documentos" quando se volta a falar de Guileje, com a morte do cor art ref Coutinho e Lima (Viana do Castelo, 1935-Lisboa,2022). Acrescentava na altura o cor art ref Morais da Silva, à laia de legenda:

"A CCaç Ind 2796 (que comandei em Gadamael) e a CCaç 3325 (Jorge Parracho- Guilege) coabitaram a mesma zona durante 1 ano. O Jorge é do meu curso da AM (veterano) e somos amigos e companheiros de canseiras na Guiné. Dele recebi esta prova de estima e reconhecimento quando terminou a comissão."

Sei que o Jorge Parracho é natural de Mafra e o Morais da Silva é de Lamego. Aos dois deixo publicamente o meu agradecimento e os meus votos de Bom Natal e Melhor Ano Novo de 2023.
___________


(**) Último poste da série > 24 de maio de 2022 > Guiné 61/74- P23287: Documentos (40): A conferência do cor inf Hélio Felgas, proferida na Academia Militar, sem papas na língua, em 10/4/1970 (e depois publicada como artigo na Revista Militar, nº 4, abril de 1970, pp. 219-236), que o Amílcar Cabral leu e achou lisonjeiro para si e o seu Partido, citando-o no Conselho de Guerra de 11/5/1970

Guiné 61/74 - P23903: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (14): "Cobarde num dia, herói no outro" (João Seabra, ex-alf mil, CCav 8350, 1972/74)


João Seabra, hoje advogado;  foi alf mil, CCAV 8350 (1972/74). Tem apenas 15 referências no nosso blogue, para o qual entrou em 3/2/2009.


1. Carta ao Director do Público, enviada pelo João Seabra, advogado com escritório em Lisboa, ex-alf mil, CCAV 8350 (Guileje, 1972/73); não sabemos se chegou a ser publicada naquele jornal, nem quando. 

Ele facultou-nos uma cópia, que publicámos em 27/1/2009, sob o poste P3801 (*). Por ocasião da morte do cor art ref Coutinho e Lima (Viana do Castelo, 1935 - Lisboa, 2022), justifica-se plenamente voltar a dar a conhecer, sobretudo para os mais novos, alguns dos acontecimentos de maio / junho de 1973, relatados na primeira pessoa do singular por aqueles que os viveram. No próximo ano comemoraremos os cinquenta anos da chamada batalha dos 3G (Guidaje, Guileje e Gadamael) (**).

Escusado será lembrar as regras do nosso blogue: as opiniões aqui expressas, sob a forma de postes ou de comentários, assinados, são da única e exclusiva responsabilidade dos seus autores, não podendo vincular o proprietário e editores do blogue e demais colaboradores permanentes. Mantemos o subtítulo original: "Cobarde num dia, herói no outro"... E quem o ler percebe que é um documento para a história, desassombrado,  frontal e corajoso.. 

Senhor Director,

Tendo lido as peças de Eduardo Dâmaso “A nave dos feridos, mortos, desaparecidos e enlouquecidos” e “Ninguém entregou a condecoração ao coronel”, publicadas no “Público de 26/6/2005”, achei conveniente pôr à sua disposição as tardias considerações que se seguem, às quais dará o destino que bem entender.

Fui alferes miliciano na CCav 8350, retirada de Guileje, em 22/5/73, por sensata decisão do comandante do então COP5, sr. major (coronel) Coutinho e Lima.

Nunca estive a bordo da “fragata Orion” (não seria uma LFG – lancha de fiscalização grande?), pela simples razão de que nunca me ausentei de Gadamael na sequência dos ataques dos dias 1/6/73 (uma quinta-feira) e seguintes.

Escreve-se numa das peças em causa: “os três ou quatro soldados que sobraram da tropa comandada pelo recém-chegado capitão Ferreira da Silva, ficaram sem artilharia, sem apoio aéreo, sem oficiais, sem posto de rádio ...”.

Não foi assim. Para além de mim próprio, permaneceram no interior do destacamento, o alferes Luís Pinto dos Santos, comandante do pelotão de artilharia do Guileje e o alferes Rocha, comandante de um pelotão de canhões sem recuo 57 mm (e já vão três oficiais), e ainda, pelo menos, um furriel, e algumas (poucas) praças desta mesma unidade e da CCaç 4743 (a companhia originariamente de guarnição a Gadamael).

Além disso, encontravam-se em patrulha próxima do aquartedamento um pelotão da CCaç 4743 (com o seu alferes) e outro da CCav 8350 (alferes Reis).

Sou portanto uma das raras pessoas, que reúne em si a dupla qualidade de “cobarde” que, sob as ordens do major (coronel) Coutinho e Lima, retirou do Guileje,  e de pretenso “herói” de Gadamael. Nesta última condição fui louvado por despacho do General Comandante-Chefe de 28/8/73.

E não saímos de Gadamael por razões de decência básica (havia mortos e feridos que não podiam ser abandonados) e de elementar sensatez (uma retirada, devidamente comandada, é uma manobra militar, mas não consigo imaginar nada de tão perigoso como uma debandada).

Acontece que, na situação que se gerou em 1/6/73, só por comodidade de expressão se poderá falar em “tropa comandada pelo recém-chegado capitão Ferreira da Silva”.

Para o perceber, há que retroceder às peripécias que determinaram a retirada de Guileje, e às que se lhe seguiram.

Ao contrário de Guileje, Gadamael era uma posição sustentável, com poços de água potável muito próximos do perímetro exterior do aquartelamento, dotada de um cais acostável, acessível por via fluvial através de LDM, que na praia-mar navegavam sem dificuldades no braço do rio Cacine em cuja margem se situava.

Já Guileje era um destacamento absurdo, necessitando de organização de colunas escoltadas para reabastecimento de água a 3,4 Km, dependente, para o seu aprovisionamento, de complicadas colunas rodoviárias múltiplas, de e para Gadamael, com uma pontualidade que poderia servir de exemplo à CP, e que ficava completamente isolado na época das chuvas.

O inimigo (termo convencional pelo qual designarei a entidade que nos pretendia matar, estropiar ou capturar, e a quem, se tivéssemos oportunidade, faríamos outro tanto) conseguiu conjugar duas vastas operações, praticamente simultâneas, ao norte sobre Guidage e ao sul sobre Guileje.

A primeira dessas operações, quase esgotou a chamada reserva do Comando-Chefe, em tropas especiais.

Os meios utilizados pelo inimigo, tanto em artilharia como em infantaria, eram quantitativa e qualitativamente muito superiores aos das nossas guarnições de quadrícula.

A este propósito, tem interesse a leitura do artigo, publicado no Público, de 26/7/2004, pelo comandante Osvaldo Lopes da Silva do PAIGC, se bem que a desenvoltura com que este oficial transita da astronomia para a geografia e da geografia para a topografia, me sugira não ter sido ele o autor do plano de fogos na operação sobre Guileje.

Seja como for, dada a prioridade à defesa de Guidaje, Guileje foi isolado mediante a interdição dos seus acessos rodoviários a Gadamael e à água potável, através de emboscadas permanentes, por unidades de infantaria do inimigo, numerosas e dotadas de superior poder de fogo, minagem em profundidade dos itinerários, e sujeito a contínuo bombardeamento por todas as armas pesadas de que o inimigo dispunha.

Retirada a guarnição, e população, de Guileje, através de um itinerário ainda não reconhecido pelo inimigo, foi recebida em Gadamael, pelo então coronel (agora brigadeiro na reserva) Rafael Durão 
 [Comandante do CAOP 1, e não 3 (lapso do autor) ], com sede em Cufar). Esclarecido oficial, cuja primeira medida consistiu em promover uma formatura da CCav 8350, para ademoestar os respectivos oficiais, sargentos e praças, em bom vernáculo militar. O major Coutinho e Lima foi enviado para Bissau, onde permaneceu detido, pelo menos até ao 25/4/74.

Ainda hoje estou para perceber por que razão, confirmada a sua evacuação, o aquartelamento de Guileje não foi imediata e intensivamente bombardeado pela Força Aérea. Provavelmente havia quem acalentasse a fantasia de uma reocupação imediata. Certo é que o inimigo continuou a flagelar a posição após a nossa retirada, e só nela entrou dois a três dias depois (como diria Alves a C.ª: “ que coisa prudente é a prudência!”).

Dir-se-ia que, naquela conjuntura, se afigurava, pelo menos, bastante provável que o inimigo procurasse balancear, sobre Gadamael, os abundantes e sofisticados meios que tinha reunido para a operação de Guileje.

Nessa eventualidade – e sem prejuízo do indispensável patrulhamento em profundidade – eram necessárias providências urgentes.

Antes de mais – porque em Gadamael não havia obras ou abrigos adequados a uma guarnição entretanto duplicada – impunha-se a necessária actividade de organização do terreno, fortificando o destacamento, reforçando os espaldões de armas pesadas, abrindo trincheiras eficientes, enquadrando as subunidades, dotando-as de postos de combate defensivos bem determinados e interligados entre si e com o comando.

Em vez disso, o pessoal da CCav 8350 foi caoticamente disperso, em alojamentos de ocasião, pelos cerca de 40.000 m2 do aquartelamento, sem contacto com os seus oficiais e com o comando. Não se iniciaram quaisquer obras defensivas.

Por iniciativa de alguém que não consigo identificar, nas semanas anteriores operou-se uma radical alteração do material à disposição dos pelotões de artilharia de Guileje e Gadamael: as peças 114 mm (Guileje) e 105 mm (Gadamael), foram substituídas por obuses de 140 mm.

Ora, tanto as peças de artilharia de campanha como as próprias armas pesadas de infantaria, quando instaladas numa dada posição, necessitam de regulação do tiro, mediante a observação dos respectivos pontos de impacto, geralmente através de observação aérea, que já se sabia ser impraticável a partir do momento em que o inimigo passou a dispor de misseis solo-ar Strela-SA7.

As causas da desregulação são variadas, tendo a ver, designadamente, com choques sofridos pelas armas durante o serviço, com as condições meteorológicas, com insuficiências de cartografia, etc..

Os nossos obuses 140 mm (modelo 1943), tinham portanto a interessante função de fazer barulho e, nos casos em que abriam fogo de noite, de fornecer indicações de ajustamento do tiro do inimigo.

Nesta prometedora situação, o coronel Durão – certamente a benefício do brio e da disciplina – pôs de parte qualquer trabalho de organização defensiva, determinando um patrulhamento que se pretendia agressivo e que envolvia, em permanência, dois a quatro pelotões de entre as duas companhias.

De tal actividade resultaram dois contactos com pequenos grupos de reconhecimento do inimigo (os quais, por definição, evitam empenhar-se em combate), a quem foram capturadas três espingardas automáticas Kalashnikov.

No dia 31 de Maio de 1973 (uma quarta-feira), de manhã, o coronel Rafael Durão, retirou-se para Cufar, tendo chegado à lúcida conclusão que o inimigo, em consequência dos nossos “sucessos”, tinha retraído o seu dispositivo, sendo improvável um esforço sério da sua parte sobre Gadamael. Tratou-se evidentemente de uma bazófia só comparável com a sua idílica ignorância das intenções e do sistema de forças do inimigo.

Em sua substituição deixou o capitão (coronel/dr.) Ferreira da Silva. Nesse mesmo dia, à tarde, iniciou o inimigo uma forte flagelação sobre Gadamael, utilizando, sobretudo, morteiros 120 mm, mas também foguetões Katyusha de 122 mm e peças de 130 mm, com uma qualidade de tiro surpreendente.

No dia 1 de Junho, o fogo da artilharia do inimigo intensificou-se qualitativa e quantitativamente e, entre as 10 e as 13 horas, uma área de 20.000 a 30.000 m2 do destacamento de Gadamael encaixou, seguramente, entre 350 e 400 impactos de morteiro 120 mm, provocando consideráveis baixas na guarnição.

Os dois capitães (comandantes, respectivamente, da CCaç 4743 e da CCav 8350), foram evacuados entre as 10,30 e as 11,00 horas, e não “ao princípio da tarde”.

Apercebendo-me de que se estava a gerar uma debandada, tentei impedi-la, pelas razões acima expostas, com resultados muito limitados.

O pessoal estava completamente entregue a si próprio e a falta de condições de comando era total: só conseguíamos transmitir ordens a quem nos passasse ao alcance da voz.

Dois dos três espaldões das peças de artilharia receberam granadas de morteiro 120 mm, que feriram, mataram ou dispersaram a totalidade das respectivas guarnições.

O pessoal que ia debandando dizia-me que o capitão (coronel/dr.) Ferreira da Silva tinha dado ordens para se “sair do quartel”.

Dirigindo-me a uma das posições da artilharia, encontrei o alferes Luís Pinto dos Santos, que sobreviveu, com ferimentos ligeiros, e resolvemos ambos procurar o capitão (coronel/dr.) Ferreira da Silva, para lhe perguntar se tinha ordenado a evacuação do aquartelamento. Respondeu-nos que tal não era a sua intenção, tendo apenas recomendado ao pessoal que se deslocasse temporariamente “para fora do arame”, isto é, para o exterior do perímetro do destacamento, uma vez que o seu interior estava a ser intensamente batido pela artilharia inimiga.

Fizemos-lhe saber que tal “deslocação temporária” tinha degenerado em debanda incontrolável.

O alferes Pinto dos Santos, com a minha ajuda, conseguiu improvisar um mínimo de serventes (entre os quais o furriel de transmissões da CCav 8350) para activar um dos três obuses 140 mm, à cadência de um tiro de quarto de hora em quarto de hora.

Tudo visto, recolheram-se os mortos, evacuaram-se os feridos por via fluvial, e garantiu-se, com fogo esporádico de obus 140 mm, de morteiro de 81 mm e de canhão sem recuo de 57 mm, uma aparência de capacidade de reacção que dissuadisse um eventual reconhecimento em força por parte do inimigo (que aliás não se mostrou muito afoito).

Enfim: o trivial. As munições para as armas pesadas eram transportadas do paiol em uma viatura Berliet temerariamente conduzida por um cabo escriturário (Raposo) da CCaç 4743, o qual, na volta, também transportava feridos para locais de embarque.

Nesse mesmo dia 1 de Junho à tarde:

Reentraram no quartel os dois pelotões que estavam em patrulha exterior; desembarcaram, de helicóptero, dois oficiais de confiança do Comando-Chefe (capitães Caetano e Manuel Soares Monge) e o coronel Rafael Durão (pessoa dotada de coragem física em proporção inversa à do respectivo discernimento).

No dia 3 de Junho (Sábado), desembarcou a companhia 122 de paraquedistas (capitão Terras Marques), e no dia seguinte a 123 (capitão Cordeiro).

Uns dias mais tarde chegou a companhia de paraquedistas nº 121 (comandatada pelo então tenente, e hoje tenente-general, Hugo Borges), o que significa que foi deslocado para Gadamael um batalhão completo de paraquedistas (BCP 12).

Entre sexta-feira, dia 2/6/73 e o domingo seguinte, a presença do major Pessoa, do BCP 12, pôs termo ao efémero comando do capitão (coronel /dr.) Ferreira da Silva) no, assim chamado, COP5.

Um verdadeiro e próprio comando das forças de Gadamael foi estabelecido no domingo (4/6/73) na pessoa do tenente-coronel Araújo e Sá (comandante do BCP 12).

Nesse mesmo dia – por razões que, para mim, permanecem obscuras – o major Pessoa (era o 2º comandante do BCP12) retirou-se de Gadamael.

Apesar de não figurarem habitualmente como “heróis de batalha de Gadamael”, as operações das diversas companhias paraquedistas, em cerca de duas semanas, desarticularam o dispositivo inimigo, sofrendo baixas moderadas (uns 25 a 40 feridos, na maior parte ligeiros, com estilhaços de RPG 7).

Nunca será demais sublinhar a qualidade destas tropas de elite. Recordando os contactos que mantive com os seus oficiais (designadamente os capitães Terras Marques e Cordeiro), anoto, como curiosidade, que se mostravam extremamente críticos (no limiar do humor negro) em relação aos fundamentos e à condução da guerra, sendo a sua considerável eficiência, fruto exclusivo de um extraordinário brio profissional.

O corpo de tropas pára-quedistas – das melhores que se poderiam encontrar, inclusivé a nível da NATO – foi destroçado, como unidade combatente, em 1975. Ao que me consta o brigadeiro Rafael Durão e o major Pessoa tiveram, nessa meritória obra, a sua função, cada um do seu lado, respectivamente, no “11 de Março” e no “25 de Novembro”.

Não sei se o tenente-coronel Fabião tinha condecorações para atribuir. Recordo que o alferes Pinto dos Santos e eu próprio fomos ouvidos como testemunhas num processo de averiguações para atribuição de condecoração militar ao capitão (coronel/dr.) Ferreira da Silva, pelo major (brigadeiro) Manuel Soares Monge, no quartel general do Comando-Chefe, em Bissau.

A nenhum de nós dois pareceu que fosse caso de condecorações a propósito do que se passou em Gadamael no dia 1 de Junho de 1973 (excepção feita ao cabo Raposo, atentos o seu posto e especialidade).

Recordo-me que, na altura, o então capitão Caetano me disse que tinha chegado a “fase dos baldes de plástico” (brinde comercial muito apreciado à época). Temíamos o aproveitamento de tal “fase” para transformar o capitão Ferreira da Silva numa espécie de contra-exemplo, em relação ao major Coutinho e Lima.

A serem atribuídas condecorações, deveriam elas ser, obviamente, atribuídas a oficiais, sargentos ou praças das tropas paraquedistas.

A partir da chegada do BCP 12, a CCav  8350 e a CCaç 4743 não tiveram qualquer actividade operacional de relevo.

Aliás nem poderiam ter, uma vez que não tinham treino, nem armamento, para se defrontar com a infantaria inimiga em reconhecimento avançado, do que foi feita a (desnecessária) demonstração no dia 4 de Junho, quando um pelotão da CCav 8350, reduzida a uma dúzia de elementos, caiu numa emboscada a menos de 1 km do aquartelamento, sofrendo quatro mortos (entre eles o respectivo alferes) e cinco feridos graves.

Será a este episódio que o dr. Ferreira da Silva, por equívoco, se quererá referir quando alude a “seis paraquedistas mortos no mesmo dia” (os cadáveres foram efectivamente recuperados por um pelotão de paraquedistas).

O objectivo desta pretensa patrulha era o de “descongestionar” o aquartelamento da sua, por assim dizer, densidade humana, face à eficiência do tiro da artilharia inimiga. Em suma: a CCav 8350 e a CCaç 4743 tinham passado a desempenhar a proverbial função de carne para canhão.

Note-se que a nossa tropa de quadrícula (companhias tipo caçadores), nem sequer estava dotada de uma metralhadora ligeira decente (a nossa inacreditável HK-21 encravava ao fim de cinco ou seis tiros).

As tropas especiais usavam as metralhadoras ligeiras MG 42 e, em considerável quantidade, equipamento capturado ao inimigo: metralhadoras ligeiras Degtyarev, lança granadas RPG 2 e RPG 7, espingardas automáticas Kalashnikov. Excelente material que, ainda hoje, está ao serviço, do Iraque ao Afeganistão, do Sudão à Libéria.

Tive a inspiração de selecionar, de entre os meus pertences, que carreguei de Guileje, um grande livro: Bouvard et Pécuchet, de Gustave Flaubert.

Quando saí de Gadamael, faz agora trinta e dois anos, tinha chegado a uma passagem célebre: “alors une faculté gênante se développa dans leur esprit, celle de percevoir la bêtise e de ne plus pouvoir la tol
érer.” [“então uma faculdade embaraçosa se desenvolveu em suas mentes, a de perceber a estupidez e não mais ser capaz de tolerá-la.” [tr. do editor LG ]

Dê a este enfadonho relato, Sr. Director, o destino que bem entender.

João Seabra

Antigo Alferes Miliciano da CCaV 8350 (1972/74)

P.S. - Porque, em certos aspectos factuais, confirma algo do acima relatado, junto segue extracto da minha folha de matrícula. 

[Revisão e fixação de texto / Negritos , para efeitos de publicação deste poste: LG]



Guiné > Região de Tombali > Bedanda > 1969 > Álbum fotográfico do João Martins > Foto nº 135/199 > O temível obus 14... mais um elemento da guarnição africana do Pel Art ali destacado.

Foto (e legenda): © João José Alves Martins (2012).   Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

__________

Nota de L.G.:

 (*) Vs. poste de 
27 de janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3801: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (4): Cobarde num dia, herói no outro (João Seabra, ex-Alf Mil, CCav 8350)

)**) Último poste da série > 21 de setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23633: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (13): Cumbamori, uma das mais violentas acções das NT em território estrangeiro e um dos maiores desaires do PAIGC... Mas falta-nos a versão do outro lado...

Guiné 61/74 - P23902: Historiografia da presença portuguesa em África (348): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Março de 2022:

Queridos amigos,
Sarmento Rodrigues, então Capitão-Tenente, apresenta-se na sessão extraordinária do Conselho de Governo da colónia com um autêntico programa, sabe o que falta executar, tem uma radiografia das carências, explana sobre tudo o que pretende fazer, desde as obras públicas à disseminação das forças militares por toda a Guiné. Por tudo quanto se pode ler da sua governação e vem espelhado nas atas do Conselho de Governo, sente-se que temos aqui um Governador com um olhar de grande ecrã, mais direitos para os indígenas, melhorias das condições de vidas do funcionalismo que tinha perdido poder de compra com as carestias da guerra, mobilizou o Gabinete de Urbanização Colonial para trabalhar quase exclusivamente para a Guiné, instituiu uma política de saúde, chegou-se ao apuro de definir a atividade farmacêutica na Guiné e o posicionamento das farmácias, terá sido legislação singular. Não tenho dúvidas que foi este o Governador que deu conformidade à vida institucional da Guiné, um vasto campo onde couberam as obras públicas, o bom relacionamento com a África Ocidental francesa, o aproveitamento das comemorações do quinto centenário das descobertas da Guiné para trazer cientistas de várias matizes à colónia, entre outras iniciativas, enfim, a Guiné deixava de ser um ponto obscuro e desinteressante para ser encarado como uma parcela do Império, ganhara identidade.

Um abraço do
Mário



Atas do Conselho de Governo da Colónia/Província da Guiné:
Uma fonte documental que não se deve ignorar (2)

Mário Beja Santos

Pode julgar-se à partida que estas reuniões em que se discutiam requerimentos, taxas e emolumentos, em que funcionários da administração se pronunciavam sobre salários e infraestruturas, num órgão consultivo em que compareciam chefes de serviços, comerciantes, profissionais liberais, em reuniões presididas pelo Governador, ou pelo Governador Interino, ou pelo Encarregado do Governo, eram suficientemente enfadonhas para não acicatar quem anda à procura de outros ângulos do prisma que nos ajudam a formar uma visão mais abrangente da História da Guiné. Muitas vezes sem interesse para o historiador/investigador, atrevo-me a dizer, mas há ali casos de tomadas de posição ou declarações que nos ajudam a melhor entender a mentalidade, as iniciativas seguramente generosas que ali se formularam e que não tiveram seguimento, ou mesmo o aproveitamento daquele palco para que um Governador tecesse, em forma de sumário, o que tinha sido o seu mandato, ou no caso de hoje o que o novo Governador da Guiné, Capitão-Tenente Sarmento Rodrigues, em 3 de julho 1945, num ambiente de sessão extraordinária, trazia como programa de desenvolvimento para a colónia.

O distinto oficial da Marinha apresenta-se e saúda os conselheiros, e esboça o seu plano de governação, o que ele pretende para fomento do progresso da colónia: “É premissa basilar não estagnar, não haver uma pausa sequer. O ritmo do trabalho, da atividade, tem de ser acelerado. Precisamos, contudo, de ter os elementos para agir: pessoal e material. De uns e outros, há na colónia, e quando eles não bastarem, não se há de hesitar de recorrer aos recursos de fora”.

Fala em estudos e projetos, estão em falta, terão de aparecer, devem convergir os elementos oficiais e os recursos particulares. Traz uma vasta lista de realizações projetadas e para satisfazer num prazo bastante curto. Coloca á frente as obras por acabar e que pretende arrumar: o Palácio do Governador, a Sé, capelas de Catió, Bafatá, Canchungo, Mansoa e Gabu, moradias projetadas para os funcionários de Bissau, o monumento ao esforço da raça e outras tentativas dispersas pela colónia. Havia que instalar o Tribunal Administrativo, o Tribunal da Comarca, cartórios e conservatória; a estatística seria removida para o edifício em construção na Praça do Império, onde se instalaria também um museu, arquivo e biblioteca. “A Guiné precisa de uma biblioteca para nela recolher obras de interesse histórico e de cultura em geral, e de um arquivo onde se guardem os documentos valiosos, os relatórios, os questionários e tudo o mais que possa interessar a futuras investigações e estudos”. Impunha-se restaurar a Colónia Penal Agrícola, era imperioso haver um local onde fossem conservados os condenados ao cumprimento de penas. “Por toda a colónia há imensas obras que se impõem com as sedes dos postos administrativos de Prábis, Cacine, Bedanda, Bambandica, Xitole, Bula, Enxudé, Binar, Enxalé, Pitche, Pirada, Ilha Roxa, Caravela e outros”. Mas havia também as secretarias das administrações e residências de administradores e de secretários. Fala na rede de estradas e nas pontes, há reparações urgentes e não se podia deixar de reconstruir a ponte de Bafatá sobre o Colufe. Não seria para já ligar o norte com o sul da colónia por pontes, ir-se-ia recorrer a jangadas para fazer travessias rápidas em Xitole, Bissau, João Landim, Farim e Barro.

Anuncia que em breve virá a Missão Hidrográfica com o propósito de com os seus estudos desvendar os segredos da navegação. Tudo a seu tempo, caso da farolagem e balizagem da colónia. Os portos de cabotagem careciam de melhoramentos, e no próximo ano o novo Governador esperava notícias oficiosas para incrementar obras portuárias. A colónia teria alguns campos de aviação, caso de Fulacunda, Catió e São Domingos.

Não deixou de ter uma palavra sobre a abandonada Bolama: “Temos esperança de que Bolama possa vir a ser uma terra de um futuro animador, pois não se encontra com facilidade local com melhores requisitos para navegação aérea”. E havia a esperança de se poder conseguir que algumas carreiras de paquetes viesses escalar a colónia. Dirigiu uma palavra à política de saúde, iria em breve aparecer o Regulamento dos Serviços de Saúde da Guiné, uma delegação em cada Circunscrição com um médico e um centro de saúde, não se esperavam resultados para breve, escasseavam os recursos para as instalações, faltava pessoal técnico e também porque os encargos resultantes não poderiam ser continuamente suportados. Lembrou o problema das águas, concretamente falou de Bissau: “Temos água captada (4 litros por segundo no mínimo), as canalizações assentes em parte, os materiais adquiridos, os maquinismos prontos, as verbas concedidas. Falta um técnico que não há maneira de vir, para a construção dos depósitos elevados. Mas há de chegar o dia. Os benefícios das águas não devem ser limitados somente a Bissau e Bolama. É preciso estender estes importantes melhoramentos a outros pontos da colónia”. Equaciona o problema da distribuição das águas com a instalação das forças militares, a Guiné tinha ao tempo quatro companhias de infantaria e uma bateria de artilharia, o novo Governador pensava que se devia manter uma companhia em Bolama, outra ou duas em Bissau e a quarta no Gabu, aqui “por várias razões que não é necessário desenvolver” era esta a sua opinião, havia que auscultar a Direção-Geral Militar do Ministério das Colónias.

E expende um ponto de vista civilizacional:
“A distribuição de unidades militares visa não só a segurança como também fins civilizadores.
Sabemos que, durante 2 anos, um milhar de homens, acompanhados de suas famílias, vivem sujeitos à vida militar. Nesses 2 anos pode-se-lhes dar uma educação contínua. Não se pode desprezar essa esplêndida para, ao lado da instrução militar, se lhes ministrarem conhecimentos práticos de artes e ofícios: sapataria, alfaiataria, marcenaria, serralharia, pedreiro, etc. Sobre métodos agrícolas, está em crer que muito também lhes seria de ensinar de útil na mesma ocasião: utilização do gado para as lavras e transportes, com o emprego de arados e carros”
.

Disserta sobre o campo da agropecuária, era suposto no ano seguinte executar-se uma grande obra, a Barragem do Biombo, havia que ser prudente quanto aos métodos da cultura do arroz e da mancarra, já que os indígenas eram possuidores de uma grande experiência. Mas competia às autoridades selecionarem sementes para o arroz. Era sua intenção construir celeiros modernos para o arroz e mancarra em todos os postos.

Foi um discurso longo, o novo Governador trazia entusiasmo, tinha uma boa equipa auxiliar e a promessa de maiores apoios financeiros da metrópole. Por isso, esta sua intervenção em 3 de julho era um discurso que devia calar fundo junto dos “civilizados”, chegar junto das autoridade gentílicas, havia que dar a entender que se vinha com um plano e uma missão ampla para cumprir, e daí se falar também do óleo de palma, da borracha (disse abertamente que vinha aí a crise, não se julgava possível fazer mais do que aproveitar a época transitória, a borracha estava condenada a prazo), da cultura de algodão, da floresta e até da plantação de árvores pelas estradas da colónia. Veremos seguidamente outras iniciativas do novo Governador, caso de naturais da colónia serem considerados assimilados a europeus e a construção de algo que hoje podemos utilizar na expressão de Estado Social, em dado momento vamos ver discutido no Conselho de Governo a política de saúde e, surpreendentemente, o reconhecimento da importância das farmácias na Guiné.

(continua)
Almirante Manuel Sarmento Rodrigues (1899-1979), foi Governador da Guiné em 1945, veio substituir o Major Ricardo Vaz Monteiro
Ponte de Ensalmá, Ilha de Bissau
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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23880: Historiografia da presença portuguesa em África (347): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (1) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23901: In Memoriam (465): Cor Art Ref Alexandre Coutinho e Lima (1935-2022) - Não posso deixar de expressar toda a dor que me vai na alma pela sua partida e revelar o apreço e consideração que sempre tive por si (Manuel Augusto Reis, ex-Alf Mil)


1. Mensagem do nosso camarada Manuel Augusto Reis (ex-Alf Mil da CCAV 8350, (Guileje, Gadamael, Cumeré, Quinhamel, Cumbijã e Colibuia, 1972/74) com data de hoje, 20 de Dezembro de 2022:

Caro amigo e camarada Coutinho e Lima
Partiste.


Não posso deixar de expressar toda a dor que me vai na alma pela sua partida e revelar o apreço e consideração que sempre tive por si. Destaco a sua coragem em situações de guerra muito difíceis, mas cuja perceção não esteve ao alcance de todos os seus camaradas. Foi a vítima escolhida, para outros exibirem os seus troféus de glória e se vangloriarem. Os homens que comandou da CCAV 8350, fazem aqui eco de tudo o que de bom fez por eles.
E foi muito. Eles não esquecem.

Recordo aqui um dos momentos mais difíceis da sua vida e da vida de todos nós. Guileje encontrava-se numa encruzilhada de vida ou de morte. Ataques contínuos de armamento, avançado para a época, iam destruindo todas as instalações que se encontravam ao nível do solo. Permaneciam intactos os abrigos, de betão, onde se abrigavam 200 militares e 317 elementos da população. Muita gente para pouco espaço o que, com o avançar do tempo, transportou problemas de saúde.

Tudo começou com uma emboscada, preparada com minúcia, onde as NT tiveram 2 mortos e 11 feridos, a 18 de Maio de 1973. Uma semana antes, o Comandante Chefe preparou-nos para a situação que se avizinhava e garantiu-nos que nenhum ferido deixava de ser evacuado.

Recusadas as evacuações, o Major Coutinho e Lima procurou uma saída. A picada para Gadamael estava bloqueada e a única escapatória era um pequeno riacho, a 5 km de distância, onde a Companhia se abastecia de água e que, naquele momento, estava desimpedido, o que não aconteceu no dia seguinte. Os mortos e feridos, acompanhados pelo Major Coutinho e Lima, dirigiram-se a Cacine, em botes, e posteriormente para Bissau.

Coutinho e Lima relata a situação que se vivia em Guileje, numa reunião pedida para o efeito e solicita o apoio de uma companhia de Comandos ou Paraquedistas. É recusado o apoio e humilhado... Siga para Guileje e será substituído!
Entra no aquartelamento no dia 21, debaixo de fogo, recusando permanecer na mata sob a proteção de um grupo de combate de Gadamael.

Faz o ponto da situação:
- Substituto não aparece. Encontrava-se perto, em Gadamael.
- Instalações destruídas
- Falta de qualquer apoio, apenas a Força Aérea sinalizava a nossa presença. A sua incapacidade era notória, a presença de mísseis Terra-ar era limitadora da sua atividade.
- A artilharia estava desarticulada com a troca inoportuna dos obuses, apenas um obus 14 funcionava, sem estar regulado.
- O acesso à água estava cortado.
- O moral dos militares era diminuto, agravado pela insalubridade dos abrigos, onde permaneciam bastante crianças.

Guileje está perdido. Ficar ou retirar?
Ficar significava um massacre, com mortos, feridos e prisioneiros, com elevada probabilidade. A mata em Guileje era impenetrável na maior parte das zonas e qualquer saída do aquartelamento estava condicionada ao insucesso.
Retirar de modo ordenado, antes do nascer do sol, por um trilho que só a população conhecia era a hipótese menos arriscada.

O Major Coutinho e Lima depara-se com este problema: Durante a noite a decisão de retirar ou não, altera-se. Só às 3 da manhã, decide definitivamente retirar, perante a presença de um representante da população. Desabafa que a sua vida militar terminou ali!
Guiné > Região de Tombali > Guileje > Abril de 1973 > CCAV 8350 (1972/73) > O Alf Mil Manuel Reis junto ao monumento erigido à memória do Alf  Mil Victor Lourenço, dos "Piratas de Guileje", morto em 5 de março de 1973, na explosão de uma armadilha.

Descansa em Paz camarada e amigo.
Os meus pêsames à família.
Manuel Reis

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Nota do editor

Poste anterior de 20 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23900: In Memoriam (464): Cor Art Ref Alexandre Coutinho e Lima (1935-2022), ex-Cap Art, CMDT da CART 494, Gadamael (1963/65), ex-Adjunto da Repartição de Operações do COM-CHEFE das FA da Guiné (1968/1970) e ex-Major Art, CMDT do COP 5, Guileje (1972/73)

Guiné 61/74 - P23900: In Memoriam (464): Cor Art Ref Alexandre Coutinho e Lima (1935-2022), ex-Cap Art, CMDT da CART 494, Gadamael (1963/65), ex-Adjunto da Repartição de Operações do COM-CHEFE das FA da Guiné (1968/1970) e ex-Major Art, CMDT do COP 5, Guileje (1972/73)

 

Amadora > Auditório da Academia Militar > Sessão de lançamento do livro "A Retirada de Guileje" (Lisboa, DG Edições, 2008), do cor art ref Continho e Lima, em 13/12/08, 17h. O livro foi apresentado pelos, jornalista Eduardo Dâmaso e general Loureiro dos Santos. 
  
Coutinho e Lima (1935-2022) ex-cap art cmdt CART 494, Gadamael (1963/65),  ex-Adjunto da Repartição de Operações do COM-CHEFE das FA da Guiné (1968/1970) e ex-major art, cmdt  do COP 5, Guileje (1972/73) 

Foto (e legenda): LG (2008)


1. Chega-nos, de manhã, através de uma mensagem enviada ao Carlos Vinhal, a triste notícia da morte de mais um camarada nosso, aos 87 anos, Alexandre Coutinho e Lima (Viana do Castelo, 15 de setembro de 1935 - Lisboa, 2022).

Mas na passada segunda feira, já  tínhamos recebido um mail, às 22h12, da Maria Isabel Lima, com a triste notícia e que só agora li por estar acamado:

Sr. Professor: eu sou a M. lsabel Coutinho e Lima. Quero comunicar-lhe, que meu marido, depois de algum sofrimento desde o dia 25 de Setembro, faleceu hoje, cerca das 18horas

O Carlos já mandou  à viúva, D. Maria Isabel Courinho e Lima, por email os pêsames da Tabanca Grande:

"Lamentamos profundamente a perda do marido. Sabíamos que estava a passar menos bem mas não esperávamos esta triste notícia.  A tertúlia deste blogue associa-se à sua dor e envia-lhe as mais sentidas condolências, extensivas a toda a família.  Pedimos o favor de nos enviar, quando souber, os pormenores das exéquias fúnebres.  Ao dispor,  Carlos Vinhal".




Alexandre Coutinho e Lima - A retirada de Guileje: 22 de maio de 1973: a verdade dos factos (rev. texto Maria Filomena Folgado. - 4ª ed. - Linda-a-Velha : DG Edições, 2010. - 473 pp.)

Guiné > Região de Tombali > Guileje > 22 de Maio de 1973 > A retirada, dramática mas ordeira, das tropas portuguesas, por decisão, à revelia do Comando-Chefe, do major Coutinho e Lima, comandante do COP5. Segundo informação do Nuno Rubim (de quem não notícas "há séculos" !) a primeira unidade a ir para Guileje foi um Grupo de Combate reforçado da CART 494, em jan / fev de 1964. A Companhia estava a instalar o quartel em Gadamael. Só mais tarde é que um grupo da CART 495, em final de fevereiro desse ano, foi reforçar a guarnição até à chegada das primeiras forças da CCAÇ 726, em 31 de Outubro, permanecendo ainda algum tempo em sobreposição.

A CART 494 era comandada pelo então Capitão Coutinho e Lima, "que assim fica para sempre ligado ao início e fim de Guileje" (sic) ...  

Foto de origem desconhecida, editada por nós, e gentilmente cedida pelo Pepito, fazendo parte do acervo fotográfico do Projecto Guiledje ( © AD - Acção para o Desenvolvimento ).

A decisão, à revelia do Com-Chefe, gen Spínola, de retirar Guileje, em 22 de maio de 1973, foi a decisão mais dramática e porventura mais difícil da sua vida. E destruiu a sua carreira militar. Estebe um ano preso em Bissau. Depois de passar à situação de reforma, Coutinho e Lima fez questão de contar, por escrito, a sua versão os factos, o que fez com coragem, frontalidade e dignidade.  O seu livro, lançado em 2008, teve pelo menos 4 edições.

Dos muitos postes publicados no nosso blogue, chamo a atenção para o poste P267 (dois vídeos e 25 fotos) em que a população de Guileje, trinta e cinco anos depois (por ocasião do Simpósio Internacional de Guileje, em março de 2008),  homenageou  o Cor Art Ref Coutinho e Lima 

O Coutinho e Lima tem mais de uma centena de referências no nosso blogue. Era uma pessoa afável e um bom minhoto. Gostava de me convidar, a mim e à Alice, para jantar no dia dos seus anos, a 15 de setembro. Ele tinha casa em Benfica, éremos quase vizinhos.  E a esposa, Maria Isabel,  era (é, felizmente está viva) simpatiquíssima. E tinha muito orgulho na decisão do marido de salvar centenas de vidas, em 22 de maio de 1973. Ainda fomos a um ou dois jantares de aniversário. Mas a altura não era das mais convenientes para nós: estávamos  habitualmente na Lourinhã, em setembro. Às vezes falávamos ao telefone. Disse-me há tempos que andava a escrever a história da sua 
CART 494 (Gadamael, 1963/65).  Com a sua morte, perdemos também um manancial de memórias sobre a Guiné do tempo da guerra de 1961/74.

À família enlutada, esposa, filhos e netos  endereçamos os nossos votos de profundo pesar. 

********************

2. Entretanto, cerca das 23 horas do dia, recebemos uma mensagem da senhora Dona Maria Isabel Lima com os pormenores das cerimónias fúnebres do seu malogrado marido.

As cerimónias religiosas meu marido decorrerão na próxima quinta-feira, dia 22. Da parte da tarde haverá uma missa de corpo presente pelas 17h00 na Capela da Academia Militar, em Lisboa, na Rua Gomes Freire.

Na sexta-feira, 23,  o corpo seguirá para Vila Fria, Viana do Castelo, onde será rezada uma outra missa pelas 16h00 e o funeral será logo a seguir.

Muito obrigada
Maria Isabel Lima

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Nota do editor:

Último poste da série de 26 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23817: In Memoriam (463): Rui Alexandrino Ferreira (1943-2022)... Um excerto do livro "Quebo" (2014): Recordando os tristes acontecimentos que ensombraram Aldeia Formosa, na noite de Consoada de 1971, "se não a pior, uma das mais trágicas da minha vida"

Guiné 61/74 - P23899: Antologia (86): Excertos da entrevista de Daniel Santos, ao "Expresso das Ilhas" (15/9/2018): Amílcar Cabral e a "falsificação da história"


1. T
emos aqui falado pouco sobre Cabo Verde (467 referências), mesmo assim mais do que sobre Amílcar Cabral (389), muito pouco sobre o PAICV (7 referências) e muitíssimo mais sobre o PAIGC (1176).

 Embora não seja essa a nossa vocação enquanto blogue de antigos combatentes da Guiné (1961/74), faltam-nos depoimentos sobre os 15 anos em que o PAIGC (e depois o PAICV, mudança de sigla em janeiro de 1981) governou sozinho as ilhas, com recurso aos clássicos métodos totalitários (polícia política, censura, partido único, instrumentralziação das Forças Armadas, etc.). 

Muitos cabo-verdianos são extremamente críticos desse período totalitário, de má memória. Um dos homens que lutou pela democratização do país e pelo fim da hegemonia do PAIGC (e depois PAICV) é Daniel Santos.  

Foi jornalista no "Expresso das Ilhas" e tem-se agora dedicado à sua carreira académica. Em 2014 publicou "Amílcar Cabral: um outro olhar"(Lisboa, Chiado Editora, 2014, 604 pp), livro de que o Beja Santos fez, na devida altura, um detalhada recensão crítica (*). 


Antologia >  Expresso das Ilhas,15 de setembro de 2018 > 


Amílcar Cabral nasceu, faz esta quarta-feira, 94 anos. Figura marcante da luta pela independência e do nacionalismo guineense e cabo-verdiano, o fundador do PAIGC acabou por ser assassinado por elementos do próprio partido e passou a ter o estatuto de lenda, com o mito a confundir-se com a realidade e muitas vezes a ultrapassá-la.

Daniel dos Santos, professor universitário, politólogo e investigador é o autor do último livro biográfico sobre o político natural de Bafatá: “Amílcar Cabral – Um outro olhar”, uma obra de investigação escrita ao longo de vários anos e lançada em 2014 e que procura desfazer as alegorias e fazer conhecer o homem, com os defeitos e as virtudes. É desse Amílcar Cabral que falamos nesta entrevista ao Expresso das Ilhas.


Porquê escrever sobre Amílcar Cabral?

Uma figura pública como Amílcar Cabral desperta a atenção de qualquer jornalista, investigador, politólogo, porque é um homem de múltipla dimensão que pode inspirar, nuns casos, desinspirar noutros, mas em comum os dois pontos de vista têm o interesse académico que a sua obra me suscitou desde há muitos anos. (...) 

É neste campo que me interessei, como académico, como investigador e também como cabo-verdiano por alguém cuja vida esteve ligada a Cabo Verde e teve, e tem, uma influência enorme nos cabo-verdianos.

E Cabo Verde já despertou realmente para o interesse sobre essa figura?


Em Cabo Verde ainda não despertamos bem para a importância de estudar Amílcar Cabral. Celebra-se, festeja-se, mas não se estuda. Não numa perspetiva de o julgar, mas na perspetiva de dar a conhecer o pensamento dele, o que fez de bom, o que fez de mau, no fundo, historiar numa perspetiva séria, independente e imparcial aquilo que ele fez e aquilo que ele não fez. Também me moveu a vontade de partilhar com os cabo-verdianos todo o arquivo, direto e indireto, que existe nos espólios portugueses.  (...) 

Quais foram as principais dificuldades enfrentadas?

Um mar de dificuldades. Por exemplo, para escrever este livro concentrei o meu quartel-general em minha casa, deslocando-me muitas vezes aos arquivos portugueses, quer os civis quer os militares. Não pedi apoio ao Estado e as dificuldades são as normais para quem queira estudar uma personalidade com a dimensão de Amílcar Cabral. Há sonegação de informação, há escassez de dados, há distorção de muitos documentos, há deturpação de alguns originais de Amílcar Cabral.  (...)

Escreveu que se fala muito do líder do PAIGC através de abstrações, de lendas, de alegorias, que muitas vezes escondem outros desígnios, principalmente o do poder. Porque há esta mistificação, em vez de uma análise factual que mostre que havia esse interesse pelo poder?

Obviamente que havia o interesse pelo poder. O PAIGC e Amílcar Cabral perceberam bem cedo que não se constrói uma organização sem mitos, sem fantasias. Agora, às vezes há a tentação, sobretudo em Cabo Verde e também na Guiné-Bissau, de esconder muitas verdades através de mitos. Porque não se contam histórias reais em vez de continuarmos com mitos hoje completamente desfeitos, sem razão de existência, que se no passado tiveram algum efeito agora já não têm, mas que escondem o desígnio de perpetuar o poder. O mais importante é desconstruir essas narrativas que não ajudam a história. 

(...)  À volta de Amílcar Cabral e do PAIGC há muitos mitos. No passado foram importantes, mas agora já não o são.

Por exemplo, o próprio ano de fundação do partido.

São vários: os acontecimentos de Pidjiguiti, o ano da fundação do PAIGC, o encontro com o Papa, a alegada participação de Amílcar Cabral na fundação do MPLA. Toda a aura à volta de Amílcar Cabral fez-se também de mitos, ele próprio ajudou a construí-la porque fazia também culto da personalidade. Fabricaram-se mitos para construir consciências, para produzir consentimento, com a finalidade de obter a adesão das pessoas ao ideário do partido que os promove. 

O PAIGC tinha um problema existencial grave, porque foi um dos últimos grupos independentistas que surgiram em Dakar. Já havia o MLG, havia a União Popular da Guiné, havia a UNGP, enfim, Dakar era o berço do nacionalismo guineense, mais do que do cabo-verdiano, e o PAIGC foi o último a ser criado e Amílcar Cabral foi um dos últimos a chegar. Portanto, havia um problema de anterioridade. O que faz Cabral? 

Cria o mito que o PAIGC tinha sido criado em 1956, quando na verdade tudo aponta para que ele nem estivesse na Guiné-Bissau nessa altura. Esses dados ainda não possuo, mas estou a continuar a busca para saber se, de facto, ele esteve na Guiné-Bissau na data a que se refere. Duvido, porque ando a consultar listas de navios, de pessoas que viajaram pela Guiné e ele não aparece. Agora, não tenho ainda certeza. Naquela altura viajava-se pouco de avião e Amílcar Cabral gostava muito de viajar de barco. Voltando à questão, esses mitos são como um chapéu, servem para defender uma criatura fictícia que se cria à volta de mitos. Toda a aura que se cria tem por objetivo proteger o homem, até dos pecados. Amílcar Cabral, profundo conhecedor da filosofia grega, basta ler os livros dele para ver que dominava a filosofia grega, percebeu a dimensão da mitologia na construção tanto do PAIGC como da sua própria imagem.

No fundo aprendeu com os melhores, com os próprios criadores das grandes mitologias.

Aprendeu com os melhores, claro. Nada melhor que ler os clássicos gregos, leia-se Amílcar Cabral, e ver-se-á que o homem teve engenho, arte e talento de construir à volta dele um conjunto de mitos, de alegorias, que o perpetuaram como o melhor dos melhores filhos da terra. Trata-se de uma conceção elitista e aristocrática que só se enquadra em movimentos totalitários como foi o PAIGC,

Referiu também da questão do Papa, que é uma das manobras políticas de Amílcar Cabral mais faladas, o que aconteceu afinal?

(...) Quando chegam a Roma, Amílcar Cabral dá uma conferência de imprensa, na véspera do encontro, na qual dizia que a visita seria um fracasso se o Papa não lhes desse uma audiência. Fizeram várias tentativas para ter essa audiência, que não passaram disso mesmo – de tentativas, e tecnicamente falando, o Papa não os recebeu em audiência. 

Sabendo isso, e pelo que me contou Tomás Medeiros, Amílcar Cabral engendra uma saída espetacular e airosa. Como o Papa recebia aos domingos os fiéis, eles puseram-se na fila como qualquer crente e chegaram lá a apresentaram-se ao Papa. O encontro não durou mais de sete ou oito minutos, entregaram ao Papa um dossier e deram logo uma conferência de imprensa que teve uma repercussão mundial. 

O governo português demorou a perceber o alcance do problema, demorou a responder e quando o fez, fê-lo de forma errada. Foi tentar pedir satisfações ao Papa, que nem sabia quem estava a receber. Aliás, ele diz isso, que recebeu um conjunto de crentes, que estavam na fila como os outros e aos quais não podia recusar receber. No fim, qual é a conclusão que se tira? Portugal transformou um acontecimento vulgar num incidente diplomático. (,,,)

(...)  Curioso que não há nenhuma foto para testemunhar o momento, nenhuma fotografia que ilustre aquela audiência. A única foto que existe mostra os três dirigentes a subir as escadas para irem colocar-se na fila dos fiéis. Portanto, o encontro, tecnicamente falando, não foi uma audiência, é mais um mito que se perpetua e que agora apenas serve interesses particulares. (...)

 
Ainda por falar em mitos, e é uma das questões que desconstrói também na sua obra, é que a ideia da independência da Guiné e Cabo Verde não nasceu com Cabral.

Tudo o que Cabral queria ser era um engenheiro e um poeta, a vida é que lhe trocou as voltas. E ele disse-o em várias intervenções, que o seu sonho era ser engenheiro para ajudar a mãe e um poeta.

 Quando ele chega à política, já era homem feito e sobretudo depois de ir a Angola. Foi em Angola que ele conviveu com nacionalistas convictos, com alta formação marxista e com quem aprendeu muito. Agora, a ideia da independência da Guiné-Bissau é antiga. Os povos guineenses sempre se opuseram fortemente à presença portuguesa. Por algum motivo, as guerras de pacificação duraram muitos anos, devido às revoltas permanentes na Guiné. 

E nessas guerras Portugal conheceu a maior derrota militar na Guiné-Bissau, não foi na guerra da independência. Quando Amílcar Cabral chega à Guiné, a ideia de independência era já muito grande e já tinha sido difundida largamente por outros movimentos muito antes da existência do PAIGC. Em Cabo Verde tivemos muitos intelectuais que, muito antes de Cabral, defendiam a independência de Cabo Verde perante o estado de abandono a que as autoridades portuguesas votavam as ilhas. É uma ideia muito anterior a Amílcar Cabral, só que Amílcar Cabral elegeu outras formas de levar avante a ideia da independência. Deu-lhe outra roupagem. 

 Quando estava a investigar, encontrou algo que o tenha surpreendido de forma particular?

Muitas coisas. Cruzando fontes, descobrimos coisas que Amílcar Cabral escreveu e coisas que o irmão, Luís Cabral escreveu que não batem certo, e isso chama a atenção de qualquer pessoa. Desde a transformação do PAI [Partido Africano da Independência, anterior ao PAIGC] ao PAIGC. Aristides Pereira dá uma versão, Amílcar Cabral dá outra e Luís Cabral apresenta uma terceira versão. 

O próprio processo de formação do PAIGC, dito em 56, é um mar de contradições, uns dizem que Amílcar Cabral apresentou o projeto de estatutos, outros dizem que não houve projeto de estatutos, apontam-se horas diferentes para o início da reunião e não há um registo factual do acontecimento, não há. Até o nome das pessoas presentes naquela reunião não bate certo. Há pessoas que dizem que são cinco, Amílcar Cabral num manuscrito fala em 15 fundadores do PAIGC, enfim muitas coisas não batiam certo. Sobre a morte de Amílcar Cabral, a quantidade de versões contraditórias que existem. Os guineenses dizem uma coisa, os cabo-verdianos dizem outra, a PIDE diz outras, as autoridades portuguesas têm outras versões.

No seu livro diz que o responsável foi o Sékou Touré [Ahmed Sékou Touré, líder político africano e presidente da República da Guiné de 1958 até sua morte em 1984].

Isso já nem se discute. Todas as fontes sérias se encaminham nessa direção. 

Voltando atrás, foram todos esses desencontros que me entusiasmaram, que era capaz de dar alguma coisa. E penso que deu alguma coisa (risos), pelo menos deu para escrever um livro, mas há muitas coisas mais a investigar. Por exemplo, a vida de Amílcar Cabral em Cabo Verde. Ao todo, Cabral viveu cá 11 anos, chegou com 10 anos, fez o ensino básico de uma forma relâmpago, em dois anos, depois foi para São Vicente onde estudou 7 anos e voltou à Praia onde trabalhou um ano como aspirante na Imprensa Nacional e foi para Portugal. 

Regressa em 49 de férias e só voltou a Cabo Verde na ida para a Guiné, o navio Império fez uma escala técnica no arquipélago, mas ele nem sequer saiu do barco. Isto para além de outros, o processo de criação do PAIGC, por exemplo, foi duro, duríssimo. Amílcar Cabral viu-se confrontado com problemas muito delicados, uns foram resolvidos de forma pacífica, outros usando a cultura de fuzilamento que o PAIGC criou no seu próprio seio. 

Tudo o que era passível de dissenso não era resolvido em diálogo democrático, era resolvido contra uma parede. Veja-se o próprio assassínio de Amílcar Cabral, o golpe de estado na Guiné-Bissau, todo o processo que se seguiu ao golpe de 1980 e os golpes de estado que se seguiram. Tudo isso é reflexo da vivência do PAIGC. Mais: pouco se sabe o que terá feito Cabral de 1955, ano em que saiu da Guiné por doença, a 1957. A historiografia do PAIGC diz que Cabral foi expulso da Guiné pelo governador Mello Alvim. É falso. É mais um mito. Felizmente, o próprio Luís Cabral encarregou-se de o desconstruir.

Pegando nesse contexto de violência que falou, as ditaduras consequentes à independência são também herança de Cabral?

Obviamente. O PAIGC na Guiné e o PAICV em Cabo Verde reclamam a herança de todo o pensamento de Amílcar Cabral. Da cabeça de Amílcar Cabral saiu a arquitetura ideológica e política para a formatação do Estado de Partido Único em Cabo Verde e na Guiné-Bissau. Isso não apresenta dúvidas a ninguém.

Com Amílcar Cabral ou sem o processo pós-independência 
não seria diferente?

Nada seria diferente. Repare, transpuseram a experiência da guerra na Guiné-Bissau para Cabo Verde. O que aconteceu aqui nada tem de estranho. O grande sonho de Cabral era formar um homem novo. Mas esse projeto do homem novo era culturalmente antítese do homem cabo-verdiano. 

Era um homem novo que só existia nos manuais do PAIGC e na cabeça do Amílcar Cabral e mais ninguém. Tanto mais que esse projeto falhou. Porquê? Porque esse projeto destituía e despojava o homem cabo-verdiano da sua cultura própria. Quando se fala da reafricanização do espírito,  isso é o quê para Cabo Verde? É tão estranho como falar da reeuropaização de Cabo Verde. Porque as bases que construíram Cabo Verde repartem-se pela Europa e por África. O conceito de reafricanização nasceu nas Antilhas, daí foi para Angola e acabou em Lisboa ligado aos demais movimentos de libertação. E a criação desse homem novo situava-se no quadro de um Partido Único, revolucionário e dirigente, no qual esse homem resultava do suicídio de classe em que pensava Amílcar Cabral. Mas nem Amílcar Cabral chegou a suicidar-se como classe, sempre foi um pequeno burguês revolucionário. O homem novo idealizado por Cabral era um projeto totalitário. 

Voltando à questão, o Partido Único após 75 resultou da conceção orgânica e monolítica do Estado e do poder de Amílcar Cabral, isso não é surpresa alguma. É indiscutível. Agora, o problema de Cabo Verde é que se partidarizou a figura de Amílcar Cabral. O PAICV não sabe celebrar Cabral sem o aprisionar. Sem o tornar uma figura partidária. No dia em que perceber isso, Cabral deixará de ser uma figura partidária. Cabral não é uma figura do Estado. As figuras do Estado estão todas estampadas na Constituição.

Ou seja, os cabo-verdianos têm primeiro de ser livres para poderem conhecer melhor Cabral. Ou melhor, têm de pedir a libertação de Cabral para o poderem estudar sem esses espartilhos partidários?

É capaz de ter razão. É uma pergunta profunda (risos). Enquanto estivermos a vender Cabral da forma que o PAICV o faz não se ajuda os cabo-verdianos. 

A primeira coisa a fazer é, de facto, libertar Cabral das muitas amarras e mostrá-lo como ele é e não como gostaríamos que ele fosse. Cita-se Cabral por tudo e por nada, inclusive coisas que ele nunca disse. 

Ouço tantas coisas acerca dele, e isso resulta da leitura muito superficial que se faz do pensamento e da obra de Amílcar Cabral, que é muito rica. Não tem grandes novidades, é certo, mas é interessante que seja estudada. Não numa perspetiva de o julgar, mas numa perspetiva de o compreender melhor. 

Mas isso só se faz no dia em que a figura de Cabral for despartidarizada. E quem deve dar o primeiro sinal é o PAICV, que se apoderou da figura quando não o podia fazer. Basta perguntar a qualquer cabo-verdiano, seja de que partido for, por Amílcar Cabral que a resposta vai sempre num sentido: é um herói. Enquanto o PAICV continuar a aprisioná-lo não vamos longe. 

Inclusive, veja que se cria um dia para o recordar: o dia em que foi morto. Para mim, não faz sentido. Quando se mata uma pessoa, e da forma como o mataram, não se celebra esse dia como sendo o do Herói Nacional. Arranja-se outra data. É um dia triste. Quando se fala que não se estuda Cabral, é claro que não se estuda, ninguém tem pachorra de o estudar nesse contexto, só se for obrigado.

Mas mesmo os manuais obrigatórios não apresentam uma figura demasiado partidarizada?

Claro que sim. É sempre apresentado como o melhor dos melhores. Isto não faz sentido em Cabo Verde. Vamos apresentá-lo como homem, que fez coisas boas, que fez coisas más, que tem virtudes e tem defeitos, viveu uma época conturbada, fez o que tinha a fazer, pôr o homem no seu contexto. Tudo o que fez por Cabo Verde fê-lo a pensar nos cabo-verdianos, pelo menos penso que foi essa a intenção, pode não ter dado resultado, como não deram os 15 anos do Partido Único.

 Perguntar-se-á, hoje Cabo Verde é o país de Amílcar Cabral? Penso que Cabo Verde atualmente está nos antípodas daquilo que Cabral sonhou. Cabral sempre sonhou Cabo Verde guiado por um partido único, hoje temos uma democracia. Não chego ao ponto de dizer que Amílcar Cabral é inimigo da democracia, mas não estava nos seus planos a ideia de a implantar. 

Agora, se quisermos recolocar a centralidade de Amílcar Cabral, a primeira coisa a fazer é despartidariza-lo. Porque não é só Amílcar Cabral que entra nesse jogo, há muitos outros cabo-verdianos que deram um contributo enorme para a independência de Cabo Verde, muitos em diversas áreas de atividade que deram um contributo importante muito antes do 25 de Abril. Esses heróis não entram também na categoria social dos melhores filhos? 

Pela minha experiência, da leitura e da investigação que ando a fazer sobre Amílcar Cabral, faz todo o sentido que se discuta Cabral, o PAIGC, o PAICV, o MpD e todos os outros. Não no sentido de os julgar, mas no sentido de dar a conhecer a história.

E quando assim for, provavelmente Cabral será mais falado do que as duas ou três vezes por ano em que isso acontece atualmente?

Certamente. É um papel que as universidades podem representar, mas não sei por que motivo não o fazem. De qualquer forma, julgo importante que se recentre o debate. Vir com mitos, vender a imagem de um homem que não corresponde à verdade, aliás que falsifica a história, é errado. 

Em Cabo Verde é preciso discutir tudo. Não pode haver tabus em relação a nenhum facto político. A história não se faz por partes ou por capítulos. Vamos falar de tudo. Não é para condenar ninguém, é para conhecermos o passado, para melhor projetarmos o futuro e para acabar com o folclore que serve apenas para distorcer factos. E também para alimentar mitos que visam justificar o passado. (**)

[Fonte: Cabo Verde Info... Com a devida vénia, Seleção, revisão e fixação de texto / Negritos nos subtítulos, para efeitos de publicação deste poste: LG]

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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

Guiné 61/74 - P23898: Boas festas 2022/2023 (6): As Mães e os anos da guerra... Feliz Natal, queridos companheiros (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto)


1. Mensagem do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66), com data de 30 de Novembro de 2022:


As Mães e os anos de 1964/6!

Já passaram mais de cinco décadas, quase seis, no entanto, nenhum de nós companheiros, pode esquecer a jornada de ter sido combatente na Guerra Colonial Portuguesa em África, na então província colonial da Guiné Portuguesa, cuja guerra, principalmente nesta região, foi denominada "o Vietname de Portugal”. Era uma guerra terreste de guerrilha mortífera.

E agora, quase a chegar à época de Natal, constantemente nos vem ao pensamento os amigos de infância e a família de então, que deixámos na Europa, onde na escola da vila o professor nos repetia constantemente a história dos reis e rainhas e os tais “descobrimentos”, onde o professor se levantava, tal qual um actor representando, fazia desenhos de caravelas no quadro negro, declamando frazes mais ou menos: “Portugal descobriu novos mundos, enfrentando tempestades e fúrias dos dragões de mares distantes, subjugando outros povos e outras civilizações ao Reino de Portugal e dos Algarves”.

E nós ficávamos excitados com estas palavras sem todavia compreender o que eram os “novos mundos”, os “dragões” ou “mares distantes”, e claro, encobrindo sempre tudo o que nos pudesse dar o conhecimento do que existia lá por esses “novos mundos” ou essas tais civilizações que eram subjugadas ao reino de Portugal e dos Algarves.

Em outras palavras, era mais ou menos como “colocar a pele de ovelha ao sistema colonialista em que se vivia, no maldito e feroz lobo que lá morava dentro”. E mais, constantemente nos diziam que a nação era a nossa mãe. Infelizmente, hoje compreendemos que era uma enorme e horrorosa mentira.

A nossa mãe era uma personagem linda, carinhosa e bondosa, (aliás todas as mães para nós filhos, são lindas, carinhosas e bondosas), e a nossa mãe ILDA, era uma sofredora, contando-nos muitas vezes que nunca tinha sido menina, pois nessa idade já era uma mulher de tranças feitas ao domingo de manhã antes da missa, de saia de borel cardado pelas mãos da sua mãe, nossa avó, braços cansados de trabalhar na lavoura e de rodilha na cabeça para aguentar o peso dos molhos de erva que carregava para alimentar o gado, trabalhando de sol a sol e esperando a sorte de alguém a levar para a vila, “servir para casa de gente de posses”, pois seria menos uma malga de caldo para encher e uns tostões que chegavam a casa no final de cada mês, para ajudar no sustento dos seus pais, nossos avós.
E quando mais tarde, já avó, em conversa com os vizinhos, quase chorando dizia:
- “Tive quatro filhos e só um é que foi à guerra, mas felizmente voltou vivo para casa”.

Companheiros, somos sobreviventes de uma guerra horrorosa, que anos depois se verificou que era injusta, que não desejamos, em nenhuma circunstância, se volte a repetir, mas não resistimos em mencionar algumas passagens de relatos de textos anteriores, onde falamos da mulher mãe que nesta época de Natal mais recordamos.

Portanto cá vai:
“Na aldeia havia somente uma mulher, magra, já de uma certa idade, nua da cintura para cima, com algumas argolas em volta do pescoço, servindo de enfeite, talvez. Estava sentada, ao lado de um balaio de arroz com casca, com as mãos ao lado da cara, falando aflita, numa linguagem incompreensível, e de vez em quando, tirava as mãos da cara, fazia gestos para a frente, ao mesmo tempo que balançava o corpo para a frente e para trás. Na sua frente, estavam duas crianças, também magras e nuas. Estas três pessoas, eram no momento, os habitantes da aldeia.
Os soldados africanos, chamados pelo alferes, para traduzirem as palavras da mulher, diziam:
- Ela se lastima, por os militares lhe terem morto os seus dois filhos, e diz para se irem embora, que aqui não há mais ninguém. Também diz que tem quatro filhas, que desapareceram um certo dia pela madrugada, e que as visitam de vez em quando, pois neste momento eram guerrilheiras, transportadoras de material de guerra”
.

E agora, outro relato tirado de outro texto:
“Em Portugal visitámos a família deste militar, por diversas vezes. Era de uma aldeia da Serra da Estrela, tinha uma irmã e um irmão, ambos casados. A mãe andava sempre vestida de preto e dizia:
- Ainda não fui, mas não tarda muito tempo. Sou viúva duas vezes, do meu Joaquim, que Deus lhe guarde a alma em descanso, e do meu António, que era a cara do pai, quando nasceu, e que foi dar o corpo às balas, e que morreu na guerra, lá na África. E mostrava sempre o farrapo do camuflado ensanguentado, que o Cifra lhe mandou, e a fotografia do António, que beijava e encostava ao coração”
.

Tenham um bom tempo neste mês de Natal, todos vós e vossas famílias, queridos companheiros e, já agora, que o ano que vem nos traga saúde e algum carinho, pelo menos da família.

Tony Borie, Dezembro de 2022.

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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23889: Boas festas 2022/2023 (5): Mensagens dos nossos camaradas e amigos: José Firmino; Ernestino Caniço; José Carlos Mussá Biai e Luís Fonseca