quinta-feira, 16 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24147: (In)citações (234): A (nossa) Cédula Pessoal (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto)


1. Mensagem do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66), com data de 13 de Março de 2023, com uma lembrança curiosa, a nossa Cédula Pessoal. Quem ainda a conserva? 


A Cédula Pessoal

Olá companheiros

Há mais de 50 anos que vivemos fora de Portugal. Assim, qualquer nosso escrito relacionado com a situação actual do País ou mesmo da Guerra Colonial que se travou em África, gera alguma polémica. É normal mas, tudo o que escrevemos é a verdade, talvez seja a nossa verdade, mas se virem ao pormenor e meditarem um pouco, a decisão final é que tudo o que foi escrito é a verdade. É intencional, passa ao lado disto ou daquilo, por vezes foca-se em pormenores sem importância, mesmo surgindo frases com pouco ou nenhum senso, mas lá no fundo no fundo, está a verdade.

Agora sim, vamos ao escrito de hoje que fala da “Cédula Pessoal”, lembram-se?

Ufff… quando vivemos oito ou mais décadas de vida, não é tão fácil de suportar como parece, no entanto, ainda seria pior se não houvesse nada para lembrar, porque isso iria parecer que todos esses anos vividos pareciam vazios. Como tal, a verdade é que o maior desafio aqui, é ter algo para se lembrar, é preencher o nosso pensamento com todos esses anos vividos, tal como fosse uma reflexão, ou seja, continuar a viver uma vida, mas uma vida de que agora… os outros se irão lembrar.

Porque apesar da idade avançada, continuamos a coleccionar sensações, histórias e lendas, ou seja, reinventando o nosso agora pequeno mundo fora de um mercado árduo de trabalho que sempre tivémos e, tendo ainda tanto para dizer, mesmo que às vezes seja entre lágrimas, suspiros ou com algumas dores no corpo, vamos organizando para os vindouros o sotão da nossa já longa existência, e claro, com tudo isto, vamos também recolhendo alguma força para continuar.

E felizmente, pelo menos nas madrugadas em que já estamos vigilantes, vamos escrevendo livremente numa linguagem do antigamente, porque a mentira ou a ocultação de qualquer medida emanada de um qualquer sistema de controle, ia concerteza destruir o foco de resistência que ainda vamos tendo, principalmente a algumas poderosas forças do mundo moderno em que presentemente vivemos, onde tentam sempre repudiar e não compreender o modo como descrevemos as nossas recordações de juventude, como por exemplo, a participação na Guerra Colonial ou até o valor da simples Cédula Pessoal, que embora não tivesse a nossa fotografia era o único documento que nos identificava.

Ainda hoje guardamos religiosamente a nossa Cédula Pessoal que bastante gostamos e que até tem uma capa verde que continua a dar esperança, embora já tenha alguma ferrugem no arame do agrafo que segura as suas páginas mas, o nosso nome continua lá desenhado, logo no cimo, a seguir à palavra “nascimento”.

E, dá-nos um certo alívio pensar, reviver o respeito que ainda sentimos pelo País onde nascemos. Aquela bandeira verde e rubra e o mapa de Portugal com a Beira Litoral e a Extremadura, a lareira com fogo de lenha, a candeia a azeite que nos alumiava nas noites de trevas, o colchão cheio com palha de centeio onde dormíamos, a fome e a miséria de inverno que por vezes éramos obrigados a passar, a roupa velha e coçada que vestíamos que tinha sido usada pelo nosso pai e pelos irmãos mais velhos ou… a ida para a Guerra Colonial na Guiné.

Juramos. Sentimos uma inveja mesmo invejosa de quem não recorda. Porquê? Porque são seres livres, rebeldes e indomáveis que, quando lhes apetece partem e vão embora sem remorsos nem pesos, não como nós, que sempre recordamos os anos vividos no nosso Portugal. Éramos uns “putos de rua” alegres, descalços e, praticamente não sabíamos que o mundo existia para lá da nossa aldeia. Estava sempre tudo bem. As doenças que aceitávamos como normais eram curadas com receitas domésticas, no entanto se algo era mais grave, havia a possibilidade de se aviar um qualquer xarope na “botica”, que até funcionava perfeitamente e… com a chegada da primavera tudo ficava bem.

Vivíamos ao redor de um povo crente, trabalhador, envolvido nas lides da lavoura e que acreditava… até demais. Se alguma praga ou doença desconhecida aparecia e o profissional da saúde, onde havia pelo menos um no Dispensário da Assistência Nacional aos Tuberculosos não conseguia curar, então agarravam-se à fé e… havia a possibilidade de ir ao Santuário de Fátima a pé, pedir à Nossa Senhora que rogasse por nós lá no céu. Assim, se isto também não funcionasse e não querendo ser desilegantes, pelo menos caminhar dias e dias seguidos, devia fazer algum bem à saúde, embora não curando a doença, se infelizmente fosse a da tuberculose. Verdade?

Tudo isto na nossa aldeia na Beira Litoral, porque para as famílias no interior norte, também havia a possibilidade de cumprir a mesma promessa de caminhar os caminhos de Santiago, que os levava a Santiago de Compostela mas, tinham o problema de precisar de passaporte para passar a fronteira o que não era permitido ao cidadão trabalhador rural do interior.

No entanto, podiam mostrar a tal Cédula Pessoal para se identificar, no entanto, os Carabineiros não aceitavam e desconfiavam, e claro, imediatamente entravam em contacto com a Guarda Fiscal da fronteira Portuguesa, que depois de um interrogatório e umas “chibatadas” lhes perguntavam porque é que queriam ir para Espanha, que até dava ascesso para se poder fugir “d’assalto prá França”, tendo ali o Santuário de Fátima mais perto e não era preciso nenhum documento! Mas… como a maior parte dessas humildes pessoas eram analfabetas, criavam estas situações embaraçosas que se podiam evitar. Verdade?

Voltando à Cédula Pessoal, era o único documento de identificação que para nós povo simples das vilas e aldeias, talvez até cidades existia. Depois… já mais crescidos, já se usava um Bilhete de Identidade que servia para quem queria inscrever-se na universidade ou ter um emprego publico, o que para nós, povo do interior era uma miragem, pois nem sapatos usávamos, depois era preciso tirar o retrato, requerer-se na sede do concelho na Vila, os pais acompanharem-nos para assinar, e claro, lá vinha o interrogatório “para que raio queriam um Bilhete de Identidade pró rapaz” e… custava dinheiro. Verdade?

No nosso caso, fomos recrutados, treinados e mentalizados de que já éramos homens de combate invencíveis e, sempre identificados pela Cédula Pessoal embarcaram-nos no porão do navio Ana Mafalda, que na altura era um dos que podia encostar ao cais de Bissau, navegando para sul do oceano.

E, não foi ao desembarcar, foi passado quase os dois longos anos que por lá fomos sobrevivendo, aí sim, deram-nos um cartão de identificação, que era uma “espécie de uso e porte de arma abrangente”, ou seja, incluía vários modelos de armas e, estávamos autorizados, claro, em caso extremo… a poder mesmo tirar a cavilha ou puxar o gatilho e disparar… ferindo ou matando outro ser humano legalmente. Verdade?

Felizmente e dada a nossa especialidade que era “operador cripto”, portanto um soldado desarmado, nunca nos foi distribuída uma arma e como tal nunca usámos as regalias do referido cartão para identificação e… tal como nós, houve milhares de companheiros que regressaram à Europa na mesma situação. Verdade?

Até um dia destes, companheiros.
Tony Borie

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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24109: (In)citações (233): Volta, Zé Belo, estás perdoado! (dizem os "sámi")

Guiné 61/74 - P24146: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXII: Selecionado para a 1ª Companhia de Comandos Africanos, em finais de 1969

Lisboa >  2009 >  Da esquerda para a direita, o cor inf 'comando' ref Raul Folques e o ten general 'comando' ref Almeida Bruno  (1935-2022) (os dois primeiros comandantes do Batalhão de Comandos da Guiné, e ambos Torre e Espada) e o nosso saudoso grã-tabanqueiro Amadu Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015).

Foto (e legenda): © Virgínio Briote (2015). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Continuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), a partir do manuscrito, digital,  do seu livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada) (*).

O seu editor literário, ou "copydesk", o seu camarada e amigo Virgínio Briote,  facultou-nos uma cópia digital; o Amadu, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de nove dezenas de referências no nosso blogue.


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > O autor, em Bafatá, sua terra natal, por volta de meados de 1966. (Foto reproduzida no livro, na pág. 149)

Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné Conacri,  começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii)  depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido,  por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757; 

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló.

 

Capa do livro do Amadu Bailo Djaló, "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.  

Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um    luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXII:   

Selecionado para a 1ª Companhia de Comandos Africanos, 
em finais de 1969 (pp. 153-157) 

Nos inícios de julho de 1969, estava eu em Bafatá [1], chegou uma ordem, a mandar recolher todos os militares africanos [2] que tivessem sido Comandos.

Quando cheguei a Bissau, já lá se encontravam os meus antigos companheiros, o Braima Bá e o Tomás Camará. Mandaram-me apresentar ao capitão Almeida Bruno [3], no Comando-Chefe, junto ao palácio do Governador.

 Entrei com o capitão Bruno para uma grande sala e, momentos depois, regressou com dois oficiais superiores e um deles deu-me um papel para eu escrever a minha identificação completa.

Depois, perguntou-me se eu era capaz de comandar uma companhia com 150 homens. E, se cada um deles tinha uma arma, cada arma 5 carregadores, cada carregador 18 balas, quantas balas eu precisava de levantar da arrecadação. Fiz as contas rapidamente e entreguei o papel, que, depois de verificado, estava com o resultado certo. Logo de seguida, mandaram-me apresentar em Brá, à 15ª CCmds.

Estive cerca de 5 dias. em Brá, até se apresentarem todos os que tinham sido convocados. Depois, iniciou-se um curso com um instrutor, o capitão Barbosa Henriques.

Foi um curso muito acelerado, de cerca de quarenta e cinco dias. Acabámos em setembro de 1969, depois regressámos às respectivas companhias e, eliminados os que chumbaram nas provas, ficámos à espera que chegasse o mês de janeiro, para dar início à formação da Companhia.

Em novembro, fui transferido para o D. B. de Intendência, por trás da Amura, em Bissau. Como era meu desejo passar a época de Natal em casa,  fui autorizado a ficar mais uns dias em Bafatá.

Quando regressei a Bissau voltei a procurar o capitão Almeida Bruno. Disseram-me que tinha mudado para a Amura.

 Passei por lá e encontrei-o a matar o bicho na cantina. Depois de o cumprimentar, apresentei-lhe o meu problema e pedi que me transferisse para a 15ª CCmds, em Brá. O capitão telefonou para o QG, deu o meu nome e nº e depois agradeceu-me por o ter vindo ver.

Uns dias depois, voltei a encontrá-lo e disse-lhe que ainda não havia resposta ao meu pedido. O capitão voltou a ligar para o QG, para a 4ª Rep e fiquei a saber que o pedido de transferência já tinha sido deferido e que faltava apenas a publicação em Ordem de Serviço. Lembro-me de o ouvir dizer que tratassem do assunto com urgência.

Quando entrei ao D.B.I., a sentinela disse-me que, no dia anterior, na distribuição das prendas de Natal, tinham chamado por mim e que o capitão disse que se calhar tinha morrido e ninguém sabia. Dirigi-me ao gabinete do capitão, comandante da companhia, e ele perguntou-me por que ainda não tinha aparecido. Expliquei as razões, que tinha estado de manhã na Amura, mas não ficou muito convencido que eu estava a falar verdade. E depois, virou-se para mim e perguntou:

  Mas quem é o teu comandante, o capitão Almeida Bruno ou eu?

Repreendeu-me e disse para eu nunca mais ir ao Comando-Chefe. Também não fiquei muito satisfeito e dirigi-me à Amura, para falar com o capitão Bruno e pedi-lhe que esclarecesse o assunto com o meu comandante de companhia do D.B.I.. Depois, quando ia a sair pela porta de trás da Amura, vi o capitão, o meu comandante do D.B.I. a olhar para o relógio. Já estou arrumado, pensei, mas continuei a andar em passo calmo.

Quando cheguei ao Depósito, D.B.I., a sentinela disse-me para ir ao gabinete falar com o capitão. Assim fiz e quando lhe pedi licença para entrar, o capitão respondeu:

  Não dou, mas entra! Onde é que estiveste?

 Fui à Amura.

 E o que é que acabámos de falar, ainda há minutos? Por que foste à Amura?

Depois de eu lhe explicar as razões, ele disse que tinha homens disciplinados e rematou:

–  Não me venhas agora dar mau exemplo. Podes sair.

As coisas aqui nunca correram muito bem. O capitão andava desconfiado de mim, e eu nunca soube as razões de tal procedimento.

 Uma vez, estava eu de sargento de piquete, apresentei-me na parada ao alferes, oficial de dia e ele olhou para mim dos pés à cabeça, sem nada dizer. Assim, voltei a pedir-lhe licença e ele respondeu que não dava, porque não me conhecia. 

E tu conheces-me, perguntou-me?

 Eu também não o conheço, mas é minha obrigação apresentar-me ao oficial de dia. 

Ele disse que eu tinha razão, de facto. Chamou o 1º sargento, apontou para mim e perguntou-lhe;

  Quem é este gajo? Desde quando está cá? Chega cá um militar transferido, fica aqui na parada para se apresentar! Qualquer dia vem cá um terrorista matar-me na parada!

Quando acabou, perguntei:

  Meu alferes, dá-me licença? Apresenta-se o 1º. cabo tal e tal, nº tal, que está de sargento de piquete.

Então ele avisou que nenhum de nós podia sair, fosse para onde fosse.

No dia seguinte dirigi-me ao gabinete do capitão, para lhe solicitar uma dispensa de três dias para me deslocar a Bula. O capitão perguntou-me se a transferência já estava resolvida. Que sim, senhor, que estava, respondi. Então, ele pediu o meu nome e nº e disse-me que não me queria lá mais na companhia.

Todos os elementos de identificação conferidos, na secretaria bateram à máquina a guia de marcha e às 10h00 entregaram-ma. Apanhei um táxi para Brá e fui apresentar-me à 15ª CCmds.

 Depois da concentração de todo o pessoal, fomos para o Cumeré, frequentar um curso de quadros com a duração de 15 dias. Regressámos a Bissau e começámos a preparar a formação da 1ª CCmds da Guiné, que iria ser comandada pelo capitão João Bacar Djaló.

Foi no Estádio Lino Correia [5], a apresentação da companhia [6], num dia histórico da minha carreira militar.

Quando a cerimónia terminou, regressámos ao quartel e, no dia seguinte embarcámos na ponte-cais. Uma imagem inesquecível. No porto estavam uma centena de donzelas a despedirem-se de nós. Depois o barco arrancou. Íamos para Fá Mandinga, fazer 4 meses de curso de comandos e dois no terreno operacional. Ao todo, meio ano de sacrifício.
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Notas do autor ou do editor literário, VB:

[1] Nota do editor: no BCaç 2856?

[2] Nota do editor: unidades de Comandos compostas na totalidade por militares oriundos da Guiné. Teve início em 14 de Julho de 1969 um estágio/instrução para preparar e seleccionar os futuros graduados da que viria a ser a 1ª. Companhia de Comandos da Guiné. A instrução decorreu em Brá e esteve a cargo do cap art Comando Barbosa Henriques (1ª.Fase) e do cap inf Comando Garcia Lopes (2ª.Fase). Frequentaram este estágio 36 militares com experiência de combate e 18 soldados recrutas do CSM. Terminou em 06 de setembro de 1969. Em novembro e dezembro de 1969 foi feito o recrutamento e selecção das praças para a formação da 1ª. Companhia de Comandos e em 11 de Fevereiro de 1970 teve início o 1º. Curso de Comandos destinado à formação de Companhias de Comandos da Guiné, que se realizou em Fá Mandinga, sendo responsável pela instrução o cap inf Comando Garcia Lopes, coadjuvado por instrutores e monitores da 15ª Cª. Comandos

Extraído de “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África”, 14º Volume, Comandos. Em “Resenha (...)” vol.7, t.II, pg.648: 

“Foi [a 1ªCCmds] organizada em Fá Mandinga a partir de 09 Julho 1969, exclusivamente com pessoal natural da Guiné e foi formada com base em anteriores Grupos de Comandos existentes junto dos batalhões, tendo iniciado a sua instrução em 06 Fevereiro 1970 e efectuado o juramento de bandeira em 26 Abril 1970. A sub-unidade ficou colocada com sede em Fá Mandinga, (...) após ter terminado o seu treino operacional na região de Bajocunda, de 21 Junho a 15 Julho 1970.”; e ainda, segundo o mesmo título, a págs. 531, no que respeita à 15ª CCmds, “em 04 Maio 1969 regressou a Bissau, já com os efectivos reduzidos a 2 Gr Combate, onde se manteve para recuperação e colaboração (...), de 14 Julho 1969 a 11 Fevereiro 1970, na instrução ministrada em Brá a graduados e praças de outras subunidades», vindo a embarcar de regresso à Metrópole em 10 Março 1970.

[3] Nota do editor: o capitão cavalaria comando João de Almeida Bruno foi ajudante-de-campo do Governador e CCFAG general António de Spínola, entre maio de 1968 e julho de 1970, data em que regressou a Lisboa. Em março de 1971 foi promovido a major e voltou à Guiné, assumindo a chefia do COE. A partir de 14 de Julho de 1972 acumulou a chefia daquele COE com o comando do Batalhão de Comandos da Guiné, cargos que desempenhou até 27 de julho de 1973.

[4] Nota do editor: Fortaleza construída em 1696 pelo Capitão-Mor José Pinheiro e reconstruída em 1753. A muralha voltou a ser reconstruída em 1946, era então Governador-Geral o Almirante Sarmento Rodrigues. A fortaleza tem um terreiro quadrado com cerca de 150 metros, rodeado de mangueiras.

[5] Nota do editor: na 6ª feira, 6 fevereiro 1970. (O estádio, inaugurado em 1948, chamava-se Sarmento Rodrigues antes da independência. )(LG)

[6] Nota do editor: “A nossa força militar africana tem-se afirmado gradualmente e inclui agora uma unidade de elite, a 1ª. Companhia de Comandos Africanos, formada exclusivamente pelos filhos nativos da Guiné... A vossa ascensão à posição de Comandos do Exército português marca uma etapa significativa no progresso de todos os Guineenses.” General António de Spínola, discurso em 11 de fevereiro de 1969.

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Subtítulo: LG]

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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24131: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXI: Finalmente, Bafatá, a minha linda princesa do Geba...

quarta-feira, 15 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24145: Historiografia da presença portuguesa em África (359): "Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos", por António Carreira, 2.ª edição revista; Universidade Nova de Lisboa, 1983 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
Veja-se o pormenor da capa deste livro, parece objeto estranho, mas é peça em chapa de ferro espessa, destinada à prisão de escravos pelos tornozelos e pelos pulsos, simultaneamente. O indivíduo era obrigado a permanecer sentado, sem se poder levantar; a peça é provida de um fecho com chave, tem 35cm de comprimento, e é proveniente de Ouro Preto, pertence à coleção do Museu Nacional de Etnologia. No seguimento da primeira narrativa, estamos chegados agora à existência de companhias majestáticas, António Carreira encontrou documentação do maior interesse nos arquivos, refere os dois grandes mercados do tráfico, a Senegâmbia e Angola e a importância de Santiago, daqui "a mercadoria" partia para o Brasil e Cuba. Obra fértil em explicações quanto à importância da economia cabo-verdiana, a contabilidade das companhias majestáticas, ficamos a saber como era identificados os escravos, a conhecer os tipos de instrumentos de prisão, de tortura ou de humilhação, a dor maior virá na descrição dos tipos de castigos corporais, é arrepiante. Obra pioneira, é justo aqui realçá-la por ter aberto portas a estudos mais fundamentados para o conhecimento de aspetos do nosso colonialismo que permaneceram muito tempo na penumbra.

Um abraço do
Mário



Notas sobre a escravização, a pensar sobretudo na Senegâmbia (2)

Mário Beja Santos

O livro Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos, por António Carreira, 2.ª edição revista, Universidade Nova de Lisboa, 1983, é obra pioneira. Estava esgotada a edição de 1977, havia muitas solicitações, as investigações sobre o comércio negreiro estavam em alta. Carreira adianta explicações: “Concordámos com a ideia da reedição até porque durante os últimos meses voltámos a frequentar com assiduidade os Arquivos Históricos do Ministério das Finanças e Ultramarino, fazendo pesquisas nos livros de contabilidade das Companhias monopolistas do século XVIII com vista a detetar novos elementos sobre o tráfico negreiro e o comércio em geral nas áreas de Cabo Verde, Cacheu, Bissau, Angola, Pernambuco, Maranhão e Pará (…) Por duas razões insistimos na análise do tráfico português: chamada de atenção dos estudiosos deste País para a necessidade de se ocuparem em trabalhos de investigação arquivística, para o que fornecemos pistas; tentativa de anular a alergia que eles têm manifestado a respeito do tema”.

O comércio negreiro feito por portugueses irá sofrer uma profunda alteração em 1755 com a criação da Companhia do Grão-Pará e Maranhão, que iria atuar numa área entre o Cabo Branco a Angola, limites que vieram a ser restringidos para a área entre o Cabo Branco e o Cabo das Palmas, limitação que tinha em vista a formação de uma outra empresa, a Companhia de Pernambuco e Paraíba, atuando no setor de Angola. Interessa-nos falar da primeira, António Carreira encontrou farta documentação sobre este tráfico e procura explicações para o seu reduzido volume: a existência entre grupos étnicos de cultura islâmica de um forte poder dos régulos, em particular dos Mandingas; o desvio de levas de escravos para os mercados do interior (no Senegal, no Mali, e zonas periféricas). É uma pertinente investigação, que ele assim remata: “A conclusão a tirar da análise da evolução do tráfico através dos tempos e dos sectores é de que foi a Angola a grande sacrificada. O sector Senegal-Serra Leoa gozou de verdadeiro privilégio. O território angolano sofreu uma sangria demográfica em benefício da América do Sul (em especial o Brasil) e central (Cuba)”. Mas também esclarece o seguinte: “Por reduzidos que tivessem sido os contingentes saídos dos rios de Guiné e de Cabo Verde, não podiam ser tão insignificantes. E se não tivéssemos levado a efeito o levantamento da contabilidade da empresa monopolista do século XVIII, pouco ou nada se podia apresentar”.

A posição portuguesa que fora de relevo no século XVI e até às primeiras décadas do século XVII não suportou a concorrência da Inglaterra, da Holanda e da França, que passaram a ter um papel dominante nesta área do Atlântico. E tece o seguinte comentário: “O nosso traficante era tímido e hesitante. Não se aventurava a empates de dinheiro a médio ou longo prazo. Tanto na Inglaterra como na Holanda as casas reinantes e a alta finança investiam no tráfico e em navios para o corso. O século XVII marcou a viragem para a formação de companhias fortemente apetrechadas, destinadas aos tratos e aos resgates. A situação na Guiné e em Cabo Verde continuou a piorar e levou à formação da Companhia de Cacheu, Rios e de Comércio da Guiné, mal terminou o prazo concedido a esta empresa foi criada a Companhia do Estanco, do Maranhão e Pará, empresa que foi muito mal recebida. Anos volvidos é formada outra empresa, a Companhia de Cacheu e Cabo Verde”.

O investigador António Carreira analisa um conjunto de fenómenos sociopolíticos e económicos suscitados pelo aparecimento do ouro e de diamantes no Brasil, que vai criar um entusiasmo entre os portugueses para ali irem viver, e disserta sobre as relações económicas entre a colónia brasileira e Lisboa. Os dados que compulsou permitiram-lhe apresentar dados sobre os escravos comprados pela Companhia do Grão-Pará e Maranhão, o papel económico desempenhado pela urzela de Cabo Verde, os panos de algodão produzidos nas ilhas de Cabo Verde, a natureza de subsídios, donativos e outras taxas, as alcavalas cobradas na última fase do tráfico e assim chegamos à marcação a ferro quente dos escravos. Escreve Carreira: “Numa primeira fase a marcação tinha por finalidade principal a identificação dos escravos pertencentes à Coroa, fossem eles adquiridos, fossem recebidos em pagamento de direitos ou de rendas pelos contratadores. Poucos anos depois, os contratadores, para não serem defraudados, passaram igualmente a marcar os seus escravos”.

Refere também a identificação dos escravos, e desperta-nos para alguns aspetos curiosos quanto a designações:
“Adultos: cabeça; peça; marfim ou ébano de Guiné; escravo ou negro lotado; escravo ou negro com ponta de barba; escravo ou negro boçal; escravo de grilhão; escravo mulato; escravo mascavo ou mascavado.
Adolescentes: moleque ou moleca; moleque ou moleca lotado; molecão ou molecona; molecona de peito atacado (a que tivesse os seios bem formados); mocetão ou mocetona.
Crianças: minino; cria de peito; cria de pé (a que anda).
Peça-de-Índia definia o escravo jovem, alto, robusto e sem defeitos físicos. Em época adiantada do tráfico, usou-se a bitola de 1,75m de estatura para designar a peça-da-Índia.
Escravo ou moleque lotado era aquele que, pela sua compleição física, podia fazer parte de um lote para efeito de venda.
Escravo barbado ou com ponta de barba correspondia ao adolescente com barba bem formada. Era já homem.
Escravo boçal era todo aquele que não se soubesse expressar em crioulo ou português, e não tivesse ainda sido submetido à catequese e batismo.
Escravo ladino era o escravo esperto que se fazia compreender facilmente em crioulo ou português, ou que tivesse alguma profissão ou ofício.
Escravo de grilhão era todo aquele que tivesse sido alguma vez castigado com a pena de prisão com grilhão nos pés.
Escravo mulato correspondia ao produto de mestiçagem de sangue entre homem branco e mulher preta ou mesmo de pais mestiços.
Escravo fujão era aquele que tivesse propensão para fugir ao trabalho ou à tutela do seu senhor.
Escravo mascavado era aquele que possuísse aleijão ou deformidade física.”


Carreira também nos dá uma lista de tipos de instrumentos de prisão, é uma lista horrível, inclui instrumentos de tortura, de prisão ou de humilhação, devem ter sido copiados e aperfeiçoados os modelos usados pela Inquisição. Esta lista de castigos corporais merece a Carreira bastante detalhe, custa ler tanta violência, tanta severidade e tanta desumanidade.

É vasta e muito útil a bibliografia que António Carreira anexa sobre o tráfico português de escravos. Obra pioneira pois, é justo relembrá-la pelo timbre de rigor e a abertura que deu a novas investigações.

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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24129: Historiografia da presença portuguesa em África (358): "Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos", por António Carreira, 2.ª edição revista; Universidade Nova de Lisboa, 1983 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24144: S(C)em Comentários (8): "Meter o chico" não é uma expressão assim tão deselegante como pode parecer hoje: muito boa gente "meteu o chico", gostaram da guerra e por lá quiseram continuaram (António Graça de Abreu, autor de "Diário da Guiné", 2007)



BI militar do nosso amigo e camarada António Graça de Abreu: (i) ex-alf mil, CAOP1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74; (ii)  membro da nossa Tabanca Grande desde 2007; (iii) tem 320 referências no blogue; (iv) é escritor,  autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp).


1. Comentário de António Graça de Abreu ao poste P24141 (*)

(...) Oh, Luís, "meter o chico" não é uma expressão tão deselegante como possa parecer hoje. Muito boa gente "meteu o chico." No nosso blogue temos um ror de camaradas, gente boa, que "meteu o chico", gostaram da guerra e por lá quiseram continuar. Alguns deles estão na génese do necessário 25 de Abril. Eu, que sou tudo menos perfeito, não tenho complexos de direita, nem de esquerda, não gosto é que me lancem poeira para os olhos. (...)

2. Ciberdúvidas da Língua Portuguesa > Consultório:

Pergunta: 

"Durante o tempo em que prestei serviço militar, era frequente designar por "Chicos" os militares do quadro permanente, e por «meter o chico» o acto de, após o serviço militar obrigatório, seguir a carreira militar. Gostaria muito de saber a origem dessa expressão. Muito obrigado."

José João Roseira  Eng. eletrotécnico reformado  Vila Nova de Gaia, Portugal  

Resposta:

"A expressão é de facto muito conhecida, com o sentido referido pelo consulente, mas infelizmente não encontro a sua origem comentada em nenhuma fonte. Talvez algum consulente nos possa dar uma pista."

Carlos Rocha  6 de setembro de 2010

in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/a-origem-da-expressao-meter-o-chico-portugal/28744 [consultado em 14-03-2023]

3. No nosso blogue encontrámos uma referência (mas há mais...) à expressão "meter o chico": vd. excerto do poste P20240 (***)

(...) o termo 'chicalhada' era uma forma de se referir, em termos depreciativos, os oficiais e sargentos do quadro das Forças Armadas, o pessoal da carreira militar, os quais eram em geral muito mais velhos do que os soldados do contingente geral, os furriéis milicianos e os alferes milicianos. 'Meter o chico' era um termo depreciativo, designando uma acção desprezível de um furriel ou alferes miliciano que, no final da comissão, optava pela continuação na vida militar: veja-se por exemplo o Fado do Miliciano, do Cancioneiro do Niassa, que o J.M.A. Santos diz ser a versão do Exército do Fado da Marinha. (...)

S(c)em (mais) comentários... (***)
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Notas do editor:

terça-feira, 14 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24143: Ser solidário (254): Bilhete-postal que vai dando notícias sobre a "viagem" da campanha de recolha de fundos para construir uma escola na aldeia de Sincha Alfa - Guiné-Bissau (3) (Renato Brito)



1.
Mensagem enviada ao nosso Blogue, em 8 de Março de 2023, por Renato Brito, voluntário na Guiné-Bissau, que integra um projecto de construção de uma escola na aldeia de Sincha Alfa:

Bom dia Carlos Vinhal,

Partilho mais um bilhete-postal que vai dando notícias sobre a "viagem" da campanha de recolha de fundos para construir uma escola na aldeia de Sincha Alfa - Guiné-Bissau.
Está agendado para o dia 30 de março um mercado de venda de objectos em segunda-mão em Merano – Itália. Os objectos foram em parte doados por meninos de uma escola primária onde apresentei as fotografias da Guiné-Bissau.

Outros foram oferecidos por amigos e conhecidos.

Sempre com a ideia de divulgar simultaneamente aspectos relevantes do país, desta vez um pouco da gastronomia. Pesquisando descobri que o embondeiro para além de ser uma árvore imponente produz um fruto que é também um super alimento. A sua polpa contém duas vezes mais cálcio que o leite e seis vezes mais vitamina C do que uma laranja.

Encontra-se uma descrição desta árvore na página 33 desta publicação com um curioso título “Plantas usadas por chimpanzés e humanos no Cantanhez, Guiné-Bissau”.
Publicado pelo Repositório da Universidade de Lisboa, está disponível para consulta e download neste endereço internet: https://repositorio.ul.pt/handle/10451/45219
Encontrei também este simpático livro, publicado pela Fundação Slow Food, com receitas tradicionais da Guiné-Bissau onde vem descrito como fazer o sumo de cabaceira.
Disponível para consulta e download aqui: https://www.fondazioneslowfood.com/wp-content/uploads/2015/04/ricette_guinea_bissau_POR.pdf

Envio-lhe também a imagem que deu origem ao desenho no bilhete-postal.
Este embondeiro existe em Cabuca e deve ter assistido à chegada dos portugueses.

Cumprimentos,
Renato Brito

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Nota do editor

Último poste da série de 10 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24054: Ser solidário (253): A ONGD "Na Rota dos Povos", com sede em Gondomar, na sua segunda viagem, por via terrestre, levando mais uma carrinha adaptada para pessoas com mobilidade reduzida, até Catió (Joaquim Costa)

Guiné 61/74 - P24142. Blogues da nossa blogosfera (181): Lista de provérbios crioulo-guineenses (página do professor Hildo Honório do Couto, departamento de Linguística, Universidade de Brasília) - II (e última) Parte (M a U)



Guiné-Bissau > Região do Óio > Maqué > 20 de Novembro de 2006 > Poilão, árvore sagrada, habitada pelos irãs, imponente, secular, frondosa, impressionante... mas que deixa de estar ao alcance do machado, da motosserra, do buldózer... Está presente nos provérbios guieenses... Mais uma foto do famoso poilão de Maqué, tirada pelo nosso camarada Carlos Fortunato, ex-fur ml da CCAÇ 13 (Os Leões Negros) (1969/71), na sua viagem de 2006 à Guiné-Bissau e à região do Óio.

Foto (e legenda): © Carlos Fortunato (2007). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Continuação do poste P24140 (*):
 recuperação da página do professor Hildo Honório do Couto (Departamento de Lingüística, Universidade de Brasília), sobre provérbios crioulo-guineenses.  Foi capturada pelo Arquivo.pt, podendo ser vista aqui:

https://arquivo.pt/wayback/20090520131527/http://www.unb.br/il/liv/crioul/prov.htm




LISTA DE PROVÉRBIOS - II (e úlima) Parte  (de M a U)


NOTA: As seguintes letras têm valor especial:

N = "ng" do inglês (como em "song")  
 [veja-se: 
Deus fala: pui mon, N judau (= Deus disse: faça sua parte que eu lhe ajudo)]

c = "ch" em inglês (church) [Cuba lê-se "tchuba"]

j = também como em inglês (judge) [Jagudi lê-se "Djagudi]

ñ = como no português "nh" ou "ñ" em espanhol 
 [Galiña lê-se "galinha"]

s = "s" mesmo (saco), nunca como [z] de "casa" [Sibi lê-se "cibi";  sancu lê-se "santchu"]

Nota do editor LG: O leitor português de Portugal pode adaptar a tradução que é em português do Brasil: Si bu misti kume fruta, bu ten ku regua (=se queres comer fruta, precisas primeiro de regar a árvore)... Não quisemos mexer na tradução do autor, por respeito ao seu trabalho)

(139) 

(i) Mandadu ta frianta pe, ma i ka ta frianta korson; 

(ii) Mandadu i ta frianta pe, ma i ka ta frianta korson (= mandar alguém dá descanso ao pé mas não ao coração)

(140) 

(i) Manpatas kru ta kai, kusidu ta kai; 

(ii) Manpatas ta kai kusidu, kai kru (= o fruto do mampatás cai tanto maduro quanto verde)

(141) Mentros ka ta sinti fedos di si boka (= o mentiroso não sente o mau cheiro da própria boca)

(142) 

(i) Mesiñu ki bu ka ta pui na bu caga, ka bu pul na caga di bu kunpañeru; 

(ii) Mesiñu ku bu sibi kuma bu ka na pul na bu caga ka bu pul na caga di utru (= curativo que você não põe em sua ferida, não o ponha na ferida do outro)

(143) 

(i) Mininu koredor, lebal na kabu di reia; 

(ii) Mininu kuridur lebal na ka u di reia;

 (iii) Mininu si falau i ma bu kuri, lebal na kau di reia (= se o menino corre muito, é só levá-lo a terreno arenoso)

(144) Mursegu kuma i na misa Deus, riba di si kabesa k' si urina ta kai (= o morcego mija para cima, a urina cai em sua cabeça)

N

(145) Na no kombersa, ka bu pui boka, pui oreja (= em nossa conversa, não ponha a boca mas o ouvido)

(146) N dadu N da, N ka ta kria kacur (= se dou o que ganhei, não crio cachorro)

(147) Noba ka ta pidi pasaju (= novidades não pedem licença)

(148) Ñambi iasadu, i ka sabi sibi si ta kusidu (= nunca se sabe se o inhame assado está bem cozido)

(149) Ñulidura di pis ka ta tuji barku pasa (= o olhar de esguelha do peixe não impede que o barco passe)

O

(150) Onsa, tudu brabu ki brabu, i ka ta sibi pe di kabasera (= Por mais brava que seja a onça, não sobeno imbondeiro)

P

(151) Paja di kasa, tudu kunpridu ki kunpridu, i ka ta ciga di asna pa bas (= a palha do teto, por mais comprida que seja, não ultrapassa a asna)

(152) Palabra di tras, i uanjan di kosta (= palavras ditas na ausência de alguém ferem)

(153) Panela na fala kaleron: ka bu tisnan (a panela diz à caldeira: não me chamusque)

(154) Panga bariga ka ta kontra ku bunda largu (= caganeira nunca dá em quem tem cu grande)

(155) Papagaiu ta kume miju, pirikitu ta paga fama (= papagaio come milho, periquito leva a fama)

(156) Pati ku pati ka ta kria kacur (= dar e dar de novo não cria cachorro)

(157) Pekador pode kunpridu o kunpridu ma garafa mas iel (= por maior que o homem seja, a garrafa é sempre maior)

(158) Pekadur dalgadu i ta dana moransa (= alguém de maus costumes estraga toda a comunidade)

(159) Pinton cupti galiña, galiña ka paña raiba, pinton k' paña raiba (= o pintinho bica a galinha, que não se zanga; quem se zanga é ele)

(160) Piskadur k' torkia si kanua pa kabalu, i sibi ke k' manda (o pescador que troca a canoa por cavalo sabe porquê)

(161) 

(i) Po pudi tarda o tarda na iagu, i ka ta bida lagartu; 

(ii) Po, tudu tarda ki tarda na iagu, i ka ta bida lagartu (= por mais que fique na água, o pau não vira crocodilo)

(162) 

(i) Praga di buru ka ta subi na seu;

(ii) Praga di buru ka ta ciga na seu (= praga de burro não sobe ao céu)

(163) Puru ka ta kume si ramasa (= o nobre não come o que vomita)

(164) Puti furadu ka ta enci iagu (= pote furado não se enche de água)

R

(165) 

(i) Rabu di sancu i kunpridu, ma si bu rikitil i ta sinti dur; 

(ii) Rabu di sancu i kunpridu, ma si bu na rikitil i ta sinti (= o rabo do macaco é comprido, mas se você o beliscar ele sentirá)

(166) Ratu si ka fila ku si kunpeñeru, i ka ta cama gatu pa raparti elis (= se o rato não se entende com os companheiros, não chama o gato para intermediar)

(167) Ris di lokokon ta nobela ton (= a raiz do lokokon se enrola sobre si mesma)

(168) Riu ka ta inci mar, mar ku ta inci riu (= não é o rio que enche o mar, é o mar que enche o rio)

S

(169) Sabi di ordija kamiñu di fonti (= o caminho da fonte tem cheiro de rodilha)

(170) Saku linpu ka ta firma (= saco vazio não fica em pé)

(171) Sancu beju, gelgelidora ka ta manda i kuspi manpatas ki ieki (= o macaco velho, o coceguento não manda cuspir no mampatás que enche a boca)

(172) 

(i) Sancu ka ta fala kuma si fiju fiu; 

(ii) Tudu fiu ki fiu, nunka bu ka ta fala kuma bu fiju fiu; 

(iii) Tudu fiu ku bu fiu, bu ka ta fala kuma bu fiju fiu (= o macaco nunca diz que seu filho é feio)

(173) 

(i) Sancu ka ta jukta i fika si rabu; 

(ii) Sancu ka ta jukuta pa i fika si rabu (= o macaco não pula sem levar o rabo consigo)

(174) 

(i) Sancu kunsi po ki ta fural uju;

(ii) Kon kuma i ka kunsi po ku ta matal, ma i kunsi kil ku ta fural uju (= o macaco conhece o pau que lhe furou o olho)

(175) Sancu nega papia pa ka paga dasa (= o macaco não fala para não pagar imposto)

(176) Saniñu dana lugar di mankara, ma i ka ta sinti kansera i regua (= o esquilo estragou a plantação de amendoim, mas teve o trabalho de regá-lo)

(176) Sapatu beju ka ta perta si dunu (= sapato velho não aperta o dono)

(177) Seta ka ta de kabesa (= aceitar não dói a cabeça)

(178) 

(i) Si bu banbu na kosta di lifanti, bu ka ta masa paja; 

(ii) Kin ku banbu na kosta di lifanti, i ka ta rosa urbaju; 

(iii) I bambu na kosta di lifanti (= quem anda nas costas do elefante não roça o orvalho)

(179) Si bu da tapada, ka bu suta kau ku bu bati pitu nel (= se você tropeçar, não bata o peito onde tropeçou)

(180) Si bu misti kanblec, bu na kebra kabas (= se você quer cacos, quebre a cabaça)

(181) 

(i) Si bu misti konta, bu ten ku misti liña; 

(ii) Bu misti konta, bu ten k' misti liña; 

(iii) Si bu misti konta bu ten ku misti liña, pa bia, si ka el, di bó i ta dana (= se você quer a conta tem que aceitar a linha)

(182) Si bu misti kume fruta, bu ten ku regua (=se você quer comer fruta, precisa regar [a planta])

(183) Si bu misti obi morna, suta fiju di kantadera (= se você quer ouvir morna, açoite o filho da cantadeira)

(184) Si bu misti obi pasada di bajudesa di bu mame, suta fiju di dona kasa (= se você quiser saber histórias do passado de sua mãe, bata no filho da dona da casa)

(185) Si bu na kuji manpatas, bu ta jubi riba prumedu, pa ka utru bin kai na bu kabesa (= se você colhe mampatás, olhe para cima primeiro a fim de não cair sobre sua cabeça)

(186) (i) Si bu oja dukut muri, dakat ku matal; (ii) Si bu oja kusa muri, sibi kusa ku matal (= se alguém morreu, alguém o matou)

(187) Si bu oja kabesa pirdi, punta bariga (= se a cabeça dói, pergunte à barriga)

(188) Si bu oja karna na pinga, sibi kuma i gurdu (= se você perceber que a caren respinga, saiba que é gorda)

(189) Si bu oja lebri brinka ku lubu, sibi kuma onsa sta pertu (= se você vê a lebre brincar com a hiena, saiba que a onça está por perto)

(190) Si bu oja sancu ba fonti, sibi kuma i ka leba kalma (= se você vir o macaco indo à fonte, saiba que não leva cabaça)

(191) 

(i) Si bu pidi galiña di matu siti, i ta falau pa bu jubi na si kabesa, si tene kabelu, i pa bia i tene siti; 

(ii) Galiña di matu kuma: ora ku bu na pidil siti, bu ta jubi prumedu na si metadi di kabesa; 

(iii) Galiña di matu kuma, antu di bu pidil siti, bu ta jobe nda si si kabisa moju; 

(iii) Galiña di matu kuma, ora ku bu na pidil siti, bu ta jubi prumedu na si metadi di kabesa (= se você pedir óleo de palma à galinha, ela diz para você olhar para a cabeça dela: se tiver penas é porque tem óleo)

(192) Si bu sibi kuma bu ka ten bon porta, ka bu Nguli kuku di tanbakunba (= se você sabe que não tem saída larga, não engula coco de tambacumba)

(193) Si bu sibi kuma bu tene karanga, ka bu bai na metadi di jinti (= se você sabe que tem piolho, não se misture com as pessoas)

(194) 

(i) Sigridu di boka nunka i ka ta kanba dinti; 

(ii) Sigridu di boka ka ta kanba dinti (= segredo de boca não deve ultrapassar os dentes)

(195) Sila ku Prera, dus kurpu nun korson (= Sila e Pereira, dois corpos em coração)

(196) Sintidu di minjer kurtu suma ponta di si mama (= a inteligência da mulher é curta como a ponta de seu seio)

(197) Siti riba con di bijago (= o óleo de palma volta à terra dos bijagós)

(198) Sonbra di pe di kuku, i ka ta taja si fiju (= a sombra do coqueiro não proteje seus filhos)

(199) 

(i) Sonbra di sibi ka ta sonbria bas del, son la fora; 

(ii) Sonbra di sibi ka ta sonbra bas del, son la fora (= a sombra do cibe não sombreia seu pé, mas fora dele)

(200) 

(i) Sorti na pe ki sta; 

(ii) Sorti di pekador sta na si sola di pe (= a sorte está no pé)

(201) 

(i) Sufridor ki ta padi fudalgu; 

(ii) Sufridur ta padi fidalgu (= o sofrimento nos faz nobres)

(202) Sukundi sukundi ka ta para na kamiñu (= o esconde-esconde não pára no caminho)

(203) Susa boka te bu ka kume siti (= sujar a boca com óleo de palma sem comê-lo)

(204) 

T

(i) Tapada ta tuji baka kume fison; 

(ii) Tapadu altu ta tuji baka kumi fison (= a cerca impede a vaca de comer o feijão)

(205) Tartaruga kuma kil ki na bin, sinta bu pera (= a tartaruga diz: sente-se e espere o que virá)

(206)

 (i) Tartaruga misti baja, ma rabada ka ten; 

(ii) Teteriga meste baja mas i ka tene rabada; 

(iii) Tataruga kuma i misti baja, ma i ka ten rabada (= a tartaruga quer dançar, mas não tem ancas)

(207) Tataruga kuma si pe i kurtu ma i ta lebal tudu kau ki misti (= a tartaruga diz que suas pernas são pequenas mas a levam onde ela quer)

(208) Teteriga tene kaska, ma e sabe kabu k' e ta morde Nutru (= as tartarugas têm casco, mas sabem onde morder umas às outras)

(209) 

(i) Tudu beju ku algin beju i ka ta mati bajudesa di si mame; 

(ii) Tudu beju ku [bu] beju, bu ka ta mati bajudesa di bu mame (= por mais velho que alguém seja, não alcança a juventude de sua mãe)

(210) Tudu jiru ku bu jiru bu ka ta pila iagu (= por mais esperto que você seja, não pode pilar a água)

(211) Tudu koitadi ku N koitadi nunka N ka ba parau pratu (= por mais pobre que eu seja, nunca lhe estendi o prato)

(212) Tudu riku ku bu riku bu ka pudi kunpu kasa di feru (= por mais rico que você seja, não pode construir uma casa de ferro)

U

(213) Uju di sancu dalgadu, ma ningen ka ta pui la dedu (= o olho do macaco é pequeno, mas ninguém põe o dedo nele)

(214) Uju ka ta kume, ma i kunsi kusa sabi (= o olho não come, mas sabe o que é saboroso)

(215) Uju sta burmeju, ma i ka ta kema lala (= o olho está vermelho, mas não queima a relva)

(216) 

(i) Un dedu un dedu i ta kaba puti di mel; 

(ii) Un dedu un dedu ta kaba puti di mel (= de dedada em dedada acaba o pote de mel)

(217) Un son mon ka ta toka palmu (= uma mão sozinha não bate palmas)


BIBLIOGRAFIA (*)

Andreoletti, Luis. [1984?]. Ditus kriolus. Pessano (MI): Stampa MIMEP.

Biasutti, pe. Arturo. 1987. Vokabulari kriol-portugis. Bubaque: Missão Católica (Apêndice)

Bull, Benjamim Pinto. 1989. O crioulo da Guiné-Bissau: filosofia e sabedoria. Lisboa/Bissau: Mininistério da Educação / INEP.

Chataigner, Abel. 1963. Le créole portugais du Sénégal: observations et textes. Journal of African languages 2,1.44-71.

Couto, Hildo Honório do. 1996. Os provérbios crioulos da Guinee-Bissau. Revista internacional de língua portuguesa 16.100-114.

----------------------------------. 1999. O uso de provérbios nas regiões crioulófonas. Lenguas criollas de base lexical española y portuguesa. Frankfurt/Madri: Vervuert/Iberoamericana, p. 321-334.

Montenegro, Teresa. 1994a. Um mundo de provérbios. Tcholona 1,2/3.55-57.

------------------------. 1994b. Provérbios crioulos: a arquitetura das imagens. Soronda - Revista de estudos guineenses 18.39-76.

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segunda-feira, 13 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24141: Notas de leitura (1563): Cadernos Militares - Convencer a malta do Exército dos malefícios da descolonização (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
Interrogava-me em Mafra que livros os nossos instrutores utilizavam para justificar a legitimidade da guerra para onde íamos e o contexto em que estava a decorrer a descolonização e os múltiplos desastres que acarretara. Dizia-se com a maior das displicências que estávamos em África há cinco séculos e que não vieramos só para fazer negócios, aqui tínhamos arribado como um farol da civilização ocidental, para desenvolver e cristianizar. Mal desembarcados em Bissau, logo se perguntava qual o grau de civilização e cultura aqui aportada, mal líamos umas brochuras e ficava-se a saber que a administração a sério, a tentativa cultural a sério, o plano de infraestruturas gizado para toda a colónia era uma obra recente, encetada pelo Governador Sarmento Rodrigues que pusera a Guiné no mapa, a tal colónia que quase representava um lugar modestíssimo de praças e presídios. Há que reconhecer que os instrutores dos oficiais e sargentos milicianos fizeram um esforço homérico que vamos tentar convencer que não havia para ali qualquer tipo de conversa da treta.

Um abraço do
Mário



Convencer a malta do Exército dos malefícios da descolonização

Mário Beja Santos

O Estado-Maior do Exército deu à estampa durante a guerra colonial um conjunto de Cadernos Militares, seguramente destinados a apoiar a ação dos formadores, com responsabilidades em preparar oficiais e sargentos milicianos para questões prementes envolvendo o campo ideológico. A seu tempo aqui se falou do Caderno Militar consagrado à Guiné, recorda-se que o então Tenente-Coronel Hélio Felgas publicou o livro Guiné 65, vamos ver hoje o Caderno Militar n.º 4 assinado pelo Major de Infantaria Nuno Sebastião B. S. Valdez Tomás dos Santos, publicado em 1969 e intitulado "O Problema da África Atual".

Contextualizando o que aconteceu em África depois da II Guerra Mundial, elenca as mudanças ocorridas em França, na Grã-Bretanha, na Bélgica, Itália e Espanha, potências detentoras, de protetorados, colónias e até de um império, como era o caso da Itália. Escreve o autor: 

“Nessa época, a vida dos povos africanos era tranquila e sem outras preocupações além das de ganhar o seu sustento diário. As potências coloniais asseguravam, gratuitamente, o ensino e a justiça, defendiam os africanos das suas mais terríveis doenças e impediam as guerras tribais. Os povos africanos estavam atrasados em muitas centenas de anos em relação à civilização dos europeus. Mas, de uma maneira geral, o progresso ia-se firmando, pouco a pouco, em todo o continente”.

O autor tenta explicar as dificuldades da colonização africana, logo o clima insalubre, a descoberta dos medicamentos para tratar as principais doenças tropicais é bastante recente, as biliosas e as febres palustres enfraqueciam e envelheciam precocemente os brancos. E o autor, sem pestanejar, faz uma afirmação de arromba: “Tudo o que existe construído em África é obra do homem branco”

Fica-se a pensar o que é que o senhor major sabia das minas de África do Sul e de outras riquezas extraídas exclusivamente por africanos em toda a África Austral. Mas o autor dá outra explicação para os grandes obstáculos da colonização efetiva: 

“O continente africano só aparentemente é rico. Em regra, os solos são pouco profundos e, salvo nas regiões equatoriais, ou nas de montanha, não produzem mais do que capim e árvores de pequeno porte”

Lê-se e não dá para acreditar. O autor faz questão de não ignorar um dos mais graves motivos de atraso, a educação. Mas dá-se outra explicação:

“Em consequência do desfasamento de civilizações, para os africanos menos evoluídos, como é óbvio, é difícil aprender aquilo que não tem caráter prático e aplicação imediata na sua vida. Em contrapartida, são completamente abertos a novos processos de caça, de luta e à melhor maneira de utilização dos recursos da selva. Não são grandes trabalhadores. Mas não é exato dizer que são preguiçosos e mandriões. Em meados deste século, pretos e brancos estavam a trabalhar em perfeita colaboração no aproveitamento de todos os recursos do continente africano. Quando a semente desse trabalho imenso estava a caminho de germinar surgiu a descolonização”.

E trata os ventos de mudança, atribuindo a expressão a um político inglês “de quem já hoje ninguém recorda o nome” (Harold Macmillan, então Primeiro-Ministro da Grã-Bretanha), fala da origem das independências africanas, sentencia que houve abdicação dos países europeus colonizadores, uns verdadeiros desastrados, e que de um modo geral, as populações dos países independentes, estão dececionadas com o resultado. Falando especificamente da Bélgica: 

“No que era há dez anos a colónia mais rica e mais bem administrada de toda a África hoje, a autoridade do governo só se faz sentir regularmente nas cidades. Fora das aglomerações urbanas reina a lei do mais forte. Latrocínios, pilhagens, assassinatos – são meros acidentes um dia-a-dia de desordem constante”

O senhor Major Nuno Tomás dos Santos devia ser perito em estratégia e influente conhecedor em geopolítica, afirma categoricamente: 

“Grande parte dos novos países africanos não têm população suficiente para constituir uma nação. Um ou dois milhões de habitantes, ignorantes, pobres, vivendo de uma agricultura itinerante, sem nenhuma noção de como se administra e que fins procede um Estado, não são suficientes para formar um País. E como essa escassa população se divide em tribos que falam línguas diferentes, têm costumes muito diversos e, acima de tudo na vida, se odeiam entre si, é evidente que não poderão nunca constituir uma verdadeira nação”.

E o leitor destes Cadernos Militares informa os seus subordinados sobre a instabilidade política, económica e financeira destes Estados, o resultado destas independências estavam à vista: recrudesceram as lutas tribais, agravaram-se as doenças, espalhou-se o espetro da fome. O anexo do documento informa os interessados sobre a atitude dos países limítrofes em relação aos elementos subversivos.

 Veja-se o que o senhor major diz do Senegal e da República da Guiné. No Senegal, o presidente Senghor tem apoiado tanto o PAIGC como a FLING, o auxílio manifesta-se essencialmente na permissão de trânsito de elementos e material do PAIGC; procura-se evitar a permanência demorada de grupos terroristas no seu território, pois Senghor tem tido a preocupação de controlar o armamento do PAIGC em trânsito, mandando escoltar as colunas terroristas do Exército ou da Guarda Republicana, não quer desvios de armamento para a região do Casamansa. Na República da Guiné, Sékou Touré tornou o território um paraíso para os terroristas, cede-lhes bases, campos de treino, meios de transportes. Pelo seu efetivo e organização, crê-se que o PAIGC é presentemente uma força dentro da República da Guiné, com a qual terão de contar os elementos adversos ao regime de Sékou Touré.

E não há mais comentários a fazer. "A Expansão Portuguesa em Culinária", por Fernando Castelo-Branco, edição da Petrogal, 1989, é um belíssimo álbum com instantâneos alusivos ao reflexo dos Descobrimentos e da Expansão na alimentação e na culinária dos portugueses, bem como na dos povos que sofreram influência desse processo histórico. 

O historiador Fernando-Castelo Branco discreteia sobre a influência portuguesa em culinárias ultramarinas e sobre influências ultramarinas na culinária portuguesa. Vamo-nos cingir à Guiné, refere um comentário do sociólogo brasileiro Gilberto Freire que refere a cozinha luso-africana da Guiné. Estranhamente, o autor não nos dá quaisquer informações sobre esta culinária luso-africana. Nada ficamos a saber sobre esta culinária, felizmente que já se fez aqui recensão à gastronomia guineense, ao seu chabéu, à sua galinha à cafreal e à sua canja de ostra, mas apanhamos com uma citação dos Lusíadas:

“Por aqui rodeando a larga parte
De África, que ficava a Oriente:
A província Jalofo, que reparte
Por diversas nações a negra gente;
A mui grande Mandinga, por cuja arte
Logramos o metal rico e luzente,
Que do curvo Gambeia as águas bebe,
As quais o largo Atlântico recebe;

As Dórcadas passámos, povoadas
Das Imãs que outro tempo ali viviam.”


A Guiné dos tempos atuais
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Nota do editor

Último poste da série de 10 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24135: Notas de leitura (1562): "Livro de Vozes e Sombras", de João de Melo; Publicações D. Quixote, 2020 (Mário Beja Santos)