sexta-feira, 28 de julho de 2023

Guiné 61/74 – P24509: (Ex)citações (429): AVC - No reino dos silêncios (José Saúde)

 

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.


AVC No reino dos silêncios

AVC, um mal que faz hoje 17 anos, 27 de julho de 2023, de existência no corpo deste antigo combatente

Camaradas,

Somos seres humanos cujo estado de saúde, em invulgares momentos, faz o obséquio de nos incomodar. Foi precisamente na madrugada de 27 de julho de 2006 que o meu AVC – Acidente Vascular Cerebral – me tocou à porta, entrou na minha residência e se instalou de vez no meu corpo. Tempos difíceis onde imperou a incerteza. Estive numa finíssima corda entre o sobreviver e o morrer. Essa corda, contudo, manteve-me hirto e eu lá fui, aos poucos, reencontrando um equilíbrio que parecia ausente. A situação, considerada caótica e muito grave, impunha restrições na minha ânsia de viver.

Meditava num além que tendia conduzir-me ao reino dos defuntos, tendo em linha de conta a gravidade que o meu estado de saúde indicava. Mas, recusava perentoriamente caminhar por esse trilho. Utilizei então trilhos, e alguns calcorreei na Guiné, região de Gabu, que me encaminhavam para um porto seguro. Aqui não existia o medo duma emboscada do IN. O autor da enfadonha sorte era minha e só minha, logo, cabia-me sair da “zona da morte”.

Tinha 55 anos de vida e um passado que em nada se enquadrava com a hedionda situação constatada. A ausência da fala incomodava-me. Não conseguia emitir sons. Memorialmente tinha a noção do objeto que o terapeuta da fala colocava à minha frente. Aos poucos lá fui soltando algumas palavras, mas não corretamente. Vinham os engasgos e os sons vocais não traduziam o que dantes me era familiar. Levou anos a conseguir a perceção correta no falar.


Porém, era, e é, no reino dos silêncios que pesquisava, e ainda hoje pesquiso, um amanhã sempre melhor. Contei, e que fique registado para a posterioridade, com ajuda médica, do pessoal da enfermagem, da fisioterapia, da terapia da fala, dos Centros de Fisioterapia que frequentei, do pessoal auxiliar e de toda uma equipa de trabalho que executaram os seus saberes e que me deram vida para que aqui chegasse.

Por outro lado, foi no reio dos silêncios de um AVC, que não dava tréguas, que tive a eficaz colaboração das minhas filhas, dos familiares e, sobretudo, dos amigos, alguns de longa data, que jamais me abandoaram. Todos foram enormes e a todos fica o meu profundo OBRIGADO!

Foi, também, no reino dos silêncios que elaborei duas obras sobre o tema AVC.

Neste contexto, no mês de janeiro de 2009 lancei um primeiro livro sobre a temática do AVC. Agora, e já consciente da realidade, recomeçou a minha empatia pelo mundo da escrita e veio para os escaparates AVC NA PRIMEIRA PESSOA, Edições MEL, Estarreja, e em 2017 AVC RECUPERAÇÃO DO GUERREIRO DA LIBERDADE, Editora Chiado. Recebi, na primeira obra, um convite para participar no Programa Consigo, RTP 2, com a jornalista Dora, enquanto o segundo livro proporcionou-me uma ida à TVI no programa A Tarde é Sua, com a Fátima Lopes. Ambos aceitei, pois claro. Tanto mais que surgiam as minhas viagens por este país fora como participante em seminários onde o tema era, naturalmente, o AVC.

E o certo é que jamais parei, não obstante as limitações começarem cada vez mais a apoquentar. 11 livros já lançados e todas as semanas com uma crónica no Diário do Alentejo, cuja coluna tem como título “Bola de trapos”, desígnio desta minha última obra.

Camaradas, fiquem bem e lanço este um repto: tenham cuidado com o AVC, uma doença que nos chega e sem avisar!


Obs: publicidade na TVI, CNN, da segunda obra, aquando do seu lançamento.

Abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série de 18 DEJULHO DE 2023 > Guiné 61/74 – P24485: (Ex)citações (428): Restos de uma saudade que se definha no tempo e onde a passagem pela Guiné deixou também as sua marcas. De uma juventude saudável a um envelhecer agridoce (José Saúde)

Guiné 61/74 - P24508: Parabéns a você (2189): Luís Paulino, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2726 (Cacine, 1970/72)

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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24486: Parabéns a você (2188): Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892 e CART 2732 (Buba e Mansabá, 1970/72)

quinta-feira, 27 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24507: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (1): CIOE / Rangers - Especialidade em Lamego (Parte 1)

João Moreira, instruendo do 1.º pelotão da 1.ª Companhia, no RI 5.
O Comandante de Pelotão era o Ten Sidónio Ribeiro da Silva e o Comandante de Companhia era o Ten Carvalho.
Foram os dois mobilizados para a Guiné


"A MINHA IDA À GUERRA"

1 - CIOE / RANGERS - ESPECIALIDADE (Parte 1)

João Moreira[1]


Em Abril, após a recruta no RI 5, fui para o CIOE, em Lamego, para tirar a especialidade de operações especiais, mais conhecida por "rangers".

Para quem não passou pelo CIOE não terá a noção da dureza da especialidade. Por isso vou contar algumas situações que "só acontecem lá".
RI 5 - Caldas da Rainha - Da esquerda para a nossa direita: João Moreira, Castro, Seco e Jorge. Os outros três não me lembro o nome deles mas também eram do 1.º Pelotão.

Aproveitávamos o sol, para estudar para os testes e para engraxar as botas, para não haver castigos. Como podem ver,  tive um par de botas novas e um par de botas antigas, que apertavam com fivelas. Os 3 primeiros (eu, Castro e Seco) fomos para Lamego. Eu fui para o hospital militar e perdi a especialidade. Eles completaram a especialidade e depois foram para os "comandos". Seguidamente foram mobilizados para Moçambique, donde regressaram sem problemas.

Quando chegámos a Lamego fomos instalados numa camarata que ficava ao cimo de uma escadaria com cerca de 30 a 40 degraus, que tinha de ser subida e/ou descida sempre que tínhamos que lá ir fazer qualquer coisa. 

 Para além do fardamento que nos estava distribuído, desde que assentamos praça, deram-nos farda camuflada, farda azul, do género da usada pelos especialistas das viaturas de combate usadas em cavalaria.

Como isso fosse pouco, ofereceram-nos 1 G3, 1 Mauser e 1 canhangulo, mais botas de lona como as usadas na Guiné e botas que apertavam com fivelas.

Para nossa distração e sanidade mental a caserna estava equipada com aparelhagem sonora, e para nos "divertir" tocava 24 horas por dia, 7 dias por semana.

Para facilitar a memorização da letra dessa música, era sempre a mesma que tocava (desde o primeiro ao último dia da especialidade).

Como não queriam aborrecer-nos, de vez em quando paravam a música e proclamavam os "mandamentos do ranger" que eram 10, tal como na religião Católica Apostólica Romana.

Para não cairmos na "monotonia", de vez em quando - no meio da música privada e durante a noite - surgia uma voz que dizia qualquer coisa deste género:

"RANGER TENS 3 MINUTOS PARA FORMAR NA PARADA EXTERIOR COM A FARDA X, A ARMA Y E AS BOTAS Z", etc.

E os rangers, que estavam cansados dos "trabalhos diários", tinham que dormir com um ouvido alerta, para poderem levantar-se e cumprir as ordens enviadas por altifalante.

Depois de nos prepararmos, tínhamos que fechar os armários com os aloquetes, descer a tal escadaria de 30 ou 40 degraus, atravessar a parada exterior em passo de corrida - não se podia andar a passo na parada - e apresentar-se ao comandante do pelotão que estava à nossa espera.
De acordo com o atraso éramos "premiados" com 30, 40 ou mais "completas" - ainda se lembram quais os exercícios que as compunham e quantas eram de cada exercício?

Como os instruendos se queixavam que era pouco tempo, os comandantes diziam que era o tempo mais que suficiente, porque ainda dava para fumar um cigarro.

Deu-nos algumas dicas de como proceder para chegar à parada dentro do tempo previsto e ainda poderem fumar o tal cigarro:

  • Dormir com os armários abertos. O receio do roubo foi esconjurado com a pena que estava destinada a quem tentasse roubar. E realmente nunca ouvi ninguém queixar-se de ter sido roubado.
  • Nos 3 ganchos do armário colocar uma das 3 fardas, exceto a nº 2.
  • Nos cantos dos armários colocar 1 das 3 armas.
  •  Calçar as meias.
  • Vestir as calças e prendê-las com o cinto igual ao que usávamos na Guiné para enfiar os carregadores.
  • Enfiar o quico.
  • Pegar na arma e na camisa.

Durante o trajeto até ao local da formatura vestia e apertava a camisa e as calças. Chegados ao local da formatura,  acendia o cigarro, apertava as botas e esperava que o tempo se esgotasse enquanto acabava de fumar.

Ao fim de 3 ou 4 semanas, fui ao médico, porque já não suportava as dores na coluna e perdia a acção muscular.

Eu queria dizer ao médico o nome da minha anomalia mas não me ocorria o nome, porque naquele tempo dizia-se em latim (spina bífida). O médico do CIOE era ortopedista, e pelos sintomas disse que era uma espinha bífida congénita, e aí já pude confirmar o nome. Pediu-me a radiografia e o relatório, porque com aquele problema eu não tinha condições para ser militar, muito menos "ranger".

Quando viu a radiografia e o relatório, disse que me ia mandar para o hospital militar regional, do Porto, porque ele não podia fazer nada.

Chegado ao Porto, e ao hospital militar na Boavista,  fizeram-me os exames e confirmaram a minha deficiência, mas, em vez de mandarem para o hospital principal em Lisboa,  deram-me alta. Regressei a Lamego, e mandaram-me para casa porque tinha perdido a especialidade por faltas

Em Julho voltei ao CIOE, em Lamego. Fui logo falar com o médico, para tentar resolver a situação sem ter que perder a especialidade.

Em resultado do que se tinha passado no hospital, no Porto, o médico optou por pedir a minha reclassificação por não ter condições físicas para a especialidade.

Mas, como eu não tinha "cunha",  atribuíram-me a especialidade de atirador de cavalaria e lá segui eu para a Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, onde se repetiu o meu martírio.


(continua)
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Nota do editor

[1] - Vd. poste de 20 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24490: Tabanca Grande (550): João de Jesus Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72), que se vai sentar no lugar 878 do nosso poilão

Guiné 61/74 - P24506: Contos com Mural ao Fundo (Luís Graça) (6): O "Felgueiras", de 1º cabo hortelão a comendador (1943-2017) - II (e última) Parte

 


O "milagre" do bacalhau do Natal com pencas (ou "tronchudas"). Fotograma de vídeo de Luís Graça (2013).

Fonte: Blogue A Nossa Quinta de Candoz > 30 dxe dezembro de  2013 >  nossas comidinhas (7): O bacalhau com pencas. da ceia de Natal


Segunda e última parte do texto elaborado para a  série literária da autoria do nosso editor Luís Graça, "Contos c0m Mural ao Fundo"  (*)


O  "Felgueiras", de 1º cabo hortelão a comendador (1943-2017) - II (e última) parte

Foi aqui, em pleno "chão manjaco", que o nosso cabo descobriu que tinha jeito para os negócios. E mais: que tinha a estrelinha da sorte a brilhar no seu céu… Um ano depois, voltou a Felgueiras e a Amarante, as suas "duas terras natais".

Vir de férias à metrópole era um luxo só reservado a alguns, aos oficiais e sargentos, milicianos ou do quadro. Raros eram as praças (soldados e cabos) que podiam desembolsar as seis notas de conto que custava a viagem de ida e volta na TAP. Alguns, coitados, faziam das tripas coração, só para poder estar um mês com a família, sendo já casados e com filhos (que mal conheciam ou não conheciam de todo).

Numa região com grande tradição de emigrantes de torna-viagem (Brasil, França…), o "Felgueiras" fez questão de voltar exibindo alguns sinais exteriores de riqueza… Até um carro alugou, no Porto, só para impressionar a família e os amigos que cá deixara. (Poucos, de resto, a maior parte deles espalharam-se pelo mundo fora: uns na Invicta ou em Lisboa, outros na França, outros ainda na guerra do ultramar).

− Sorte ao jogo, azar no amor?!... Vamos lá testar a roleta da sorte…

De há muito que o "Felgueiras" tinha uma paixão, "assolapada", não correspondida, por um antiga colega do colégio de Amarante, a "morgadinha". A rapariga pertencia a uma família com pretensões a ter "origem fidalga"… Fizera o antigo 5.º ano do liceu e o melhor que arranjou, por ali perto, foi um emprego na Câmara Municipal, como escriturária administrativa.

Durante o primeiro ano de comissão, o "Felgueiras" e ela trocaram algumas cartas e aerogramas, mas sempre na condição de "amigos, vizinhos e antigos condiscípulos"… Do colégio ficaram, de resto,  algumas amizades comuns. Não se namoravam, mas ela também teria um fraquinho por ele.  Os pais dela opunham-se, e tinham outros planos para a rapariga, que era filha única: ao que parece, o eleito era um professor primário, que andara a estudar para padre, e que também estava na tropa, em Moçambique, como alferes miliciano. Seguramente, um melhor partido do que "o filho do rendeiro da Lixa"…

Os pais da rapariga não tinham, alegadamente, "dinheiro para mandar cantar um cego" e, muito menos, para mandar restaurar a arruinada fachada da casa, "com brasão", onde viviam, nos arredores de Amarante, herança de um tio-bisavô, cónego da Sé de Braga.

O filho do rendeiro, operário da Tabopan, não era, na verdade, nessa época, um "bom partido", pelo que o "Felgueiras" voltou para a Guiné com um "amargo de boca"…

Convencido de que o dinheiro pode "comprar tudo (ou quase tudo), até o amor", acabada a comissão, o "Felgueiras" voltou com uma malota cheia de notas ("escudos", legítimos, da metrópole, em vez dos "pesos", o patacão, sujo, sebento, da Guiné, trocados lá no Banco Nacional Ultramarino e na "candonga", nos comerciantes de Bissau que cobravam uma taxa de 10%).

Depositou a malota aos pés da rapariga e pediu-a aos pais em casamento, assim, de chofre, à bruta, sem mais cerimónias, "sem o romantismo que se via nas fitas do cinema" (sic)... Os "fidalgotes" nunca tinham visto na vida tanto nota de banco, em maços separados, atados por uma fita… Até desconfiaram que fosse produto de algum assalto…

Estranhamente, a rapariga, a "morgadinha",  levantou-se, lívida, sem pinga de sangue, para logo a seguir correr para o quarto, lavada em lágrimas, num pranto… Os pais esboçaram um pedido de desculpa, mais embaraçados e envergonhados que o pretendente à mão da filha. 

A partir deste dia, o "Felgueiras" esqueceu, para sempre, a sua eleita do coração…  

No dia seguinte, rescindiu o contrato de trabalho que ainda o ligava à Tabopan, e decidiu comprar um bilhete da TAP para visitar Luanda, onde tinha um irmão estabelecido desde que terminara a tropa em 1963.

– Um homem das Arábias, o nosso "Felgueiras" – conclui eu.

− Das Arábias, não, um homem, sim, das Áfricas! – emendou o Arlindo.  
 Mas partiu para Angola com o coração destroçado.

− Males de amores não são fáceis de curar! – comentei eu.

Ex-furriel, camarada do "Felgueiras", maquinista da CP reformado, pai do Jorge, meu vizinho do Marco de Canaveses, voltei a encontrá-lo, ao Arlindo, depois do casamento do filho, mais duas ou três vezes. E foi através dele que fui sabendo mais histórias do "Felgueiras" que, segundo os meus cálculos, terá regressado da Guiné em princípios de janeiro de 1969…

Sabemos que foi ter com um dos irmãos, o mais velho, o Tó, que se radicara em Angola: fora dos primeiros militares a ir para lá, em meados de 1961, tendo sido um dos bravos da Operação Pedra Verde. Em finais de 1963, terá rumado para a Lunda, e andado metido com "garimpeiros". Depois acabaria  por abrir um pequeno restaurante em Luanda, lá na Mutamba, na parte baixa da cidade. 

As coisas melhoraram quando o irmão mais novo, o "Felgueiras",  se tornou sócio. Trouxe dinheiro fresco e sobretudo o tal "jeito para o negócio", talento que tinha descoberto na região do Cacheu, na Guiné. 

O início da década de 1970, antes da crise petrolífera de 1973, foi ouro sobre azul para quem tinha "porta aberta" em Luanda. O "dinheiro sujo" da guerra era ali "branqueado". O "ventre de Luanda" regurgitava, os "comes & bebes", a "diversão noturna" e a "indústria do sexo" deram muito "cumbú" (dinheiro, em calão de hoje) a ganhar a muita gente. Havia até um restaurante muito  conhecido, o "Floresta", que servia sardinhas assadas de Peniche acabadas de chegar do avião da TAP... Enfim, pequenos luxos que o "boom" económico de Angola permitia a alguns, civis e militares...

Inesperadamente, em princípios de 1973, seis meses antes da crise, o "Felgueiras" vendeu a sua quota ao "cota" do irmão Tó, just in time, na hora certa. Parece que adivinhava que o mundo ía ficar louco e que nada voltaria a ser como dantes... Alegava que "queria correr mundo e encontrar a futura mãe dos seus filhos"...

Em troca terá recebido do mano velho um saquinho de "vidrinhos", guardados no fundo de um bau, desde o tempo da Lunda, como uma espécie de pé de meia. O "cota" insistiu que estava ali uma pequena fortuna, mas ele nunca tentara sequer trocar as "pedrinhas" por dinheiro vivo. A Diamang, dizia-se, tinha um braço comprido e o contrabando de diamantes (a "camanga", em bom angolês...) era severamente reprimido. Era um Estado dentro de outro Estado, justificava-se o "cota", seguramente menos atiradiço (e "com mais escrúpulos"...) que o "caçula" da família.

Por razões óbvias, por se tratar de um assunto "delicado, íntimo", eu nunca puxei a conversa para esse lado, das poucas vezes em que ainda estive (ou melhor, falei ao telefone) com o "Felgueiras", nestes últimos anos, depois do casamento do Jorge e da Clara. Nunca saberei, pois, como é que ele conseguiu eventualmente aumentar a sua conta bancária (e o seu património), com o valor de um saquinho de "vidrinhos" da Lunda. Mesmo para o Arlindo, era uma "assunto-tabu".

− Por favor, camarada, quando voltares a estar (ou falar) com ele, nunca toques na história dos "vidrinhos"... Ele ficaria muito aborrecido, se não mesmo melindrado ou até enfurecido... Se há coisas de que ele não gosta de falar, é disso e da rede bombista de 1975...

Quando conheci o "Felgueiras", ele tinha um passado de "empresário de sucesso", acionista do BPN ("pequeno accionista", emendou ele), e chegara a ser inclusive uma "figura grada" da política local e regional. Recordo de me ter confidenciado:

− Nunca fui do reviralho, se é isso que queres saber. Antes do 25 de Abril não me interessava por política. Tocava a minha vidinha… No dia 26 de Abril, apanhei o comboio da democracia, como muito boa gente. E até viajei em 1.ª classe. Fui dos primeiros a ter 'cartão partidário'...

− O "abre-te, Sésamo" do novo regime − ironizei eu... mas julgo que ele não percebeu a piada.

Numa região com grande tradição de caciquismo, é fácil, para quem tem o poder (económico e/ou político), tornar-se cacique. O "Felgueiras" não gostava da palavra... Como também não gostava nada de falar desses tempos nem da sua "pública e notória" participação nos acontecimentos do "verão quente de 75". (Dizia-se, à boca pequena, que também teria chegado a financiar algumas atividades contra os "comunas", o mesmo era dizer, que teria feito parte da "rede bombista" do MDLP, o que nunca foi comprovado...)

Considerava-se, antes de mais, "um português, patriota" (...), "com o coração talvez mais à esquerda e a razão seguramente mais à direita" (...), "mas hoje afastado das lides político-partidárias" (...) "onde quem manda é a canalha, que nunca foi à tropa e muito menos à guerra".  Ou citou-me nomes de alguns conhecidos ou alegados desertores...

− Limito-me a ter as quotas em dia… Mas já ninguém me escreve, ou telefona, pede conselho, convida ou visita. Parece que tenho lepra...

Começou, "modestissimamente" (sic), como autarca, presidente de uma junta de freguesia onde tinha um grande estaleiro e já dava trabalho a um "pelotão de gente". Ajudou o partido a ganhar as eleições municipais num dos concelhos vizinhos. Foi eleito vereador municipal, e chegou inclusive a substituir, por uns tempos, o seu grande amigo e correligionário que iria depois ficar à frente dos destinos do município. 

"Os maiorais da distrital do Porto" chegaram a sondá-lo para aceitar um lugar, elegível, nas listas do partido, como candidato à Assembleia da República, mas ele recusou, com orgulho e desprezo:

− Lisboa ?!... Nem pensar!

O que não o impediu de chegar a a comendador, distinção que ele aceitaria de bom grado, anos mais tarde, das mãos do Presidente da República que ele "ajudou a eleger" (sic)...

Mas, abreviando a sua história como empresário (e depois comendador da Ordem de Mérito): "tocou os seus negócios, alargou o seu estaleiro de construção e obras públicas", ganhou uma fortuna com os contratos de empreitada por adjudicação direta, "fez estradões, pontes, escolas, creches, lares de idosos, campos de futebol, redes de água e saneamento, rotundas, repuxos, viadutos, túneis, e até um cemitério e um quartel de bombeiros"…

− Levei o progresso a quase todo o lado, aqui no Vale do Tâmega e n0 Vale do Sousa, em vários concelhos... Ganhei e dei a ganhar muito graveto. Aliás, este sempre foi o meu lema de vida, ganhar e dar a ganhar, e depois ser grato e estimar sempre quem te quer bem… Perdi dinheiro, isso, sim, e muito, com o túnel do Marão. Veio a crise, vieram os tubarões do fisco e da segurança social, fechei a empresa, mandei mais de 100 homens para o desemprego, dezenas de máquinas e camiões foram parar à sucata… Mas estou vivo, graças a Deus!

− Lamento imenso, afinal foi uma vida de trabalho... E o futebol?

− Ainda fui tentado, no início dos anos 90, nos meus anos de ouro, a meter-me no futebol. Por vaidade, ou por influência de falsos amigos, bajuladores, que gostam de te oferecer presentes envenenados.

− Mas era a tua "coroa de glória", não!?...

− Nem pensar, percebi logo que aquilo era um sorvedouro de dinheiro e um ninho de víboras… O futebol, camarada, é uma amante cara!... E às tantas, deixas de ter sossego, vida privada e corres o risco de teres de recorrer ao teu mealheiro para pagar os ordenados ou os prémios e as avenças dos técnicos e dos jogadores. Hoje é tudo uma canalha, essa rapaziada que gira à volta da bola… E já há não amor à camisola!... Como não há amor à Pátria!... Enfim, felizmente o futebol foi sol de pouca dura...

− E muita ingratidão também, não ?!

− Um gajo passa facilmente de bestial a besta. O povo hoje é ingrato. Tanto te põem-te no pedestal, erguem-te uma estátua, como no ano seguinte já estão a apear-te… Vê o que se passa com o homem da tua terra,  a quem o Marco tanto deve, perdeu as eleições, e já querem tirar-lhe o nome do estádio e da avenida principal… Ingratidão, é um dos nossos piores defeitos, podes escrever aí.

− Deixa-me ser franco contigo: não concordo que, em vida, se dê o nome a ruas, praças, avenidas, estádios, escolas, aeroportos, etc., a gente que ainda está viva. Hoje podes ser um herói, e amanhã um proscrito social. Vê o que aconteceu ao nosso Zé do Telhado, Torre e Espada, desterrado para Angola…

− O Zé do Telhado, o mesmo que limpou o sebo ao Zé Pequeno, na Lixa, tanto quanto sei pelos antigos − apressou-se a complementar o "Felgueiras".

 ... Sim, sim, e  lhe cortou a língua, com uma tesoura, por traição, aqui mesmo, a  Lixa!...− acrescentei eu.

− Sim, isso mesmo. Vejo que estás por dentro da história da minha terra.

− Na nossa terra, ele andou por aqui, entre montes e vales, Penafiel, Lousada, Marco, Baião, Felgueiras... há mais de 150 anos!... Aliás, o seu fantasma ainda anda por lá, pelo Carrapatelo, por Montedeiras, pelas faldas do Marão...

− Já o meu avô me contava essas peripécias... Eu também tenho um pouco esse jeito do Zé do Telhado, que roubava aos ricos para dar aos pobres...

− Exageros do Camilo Castelo Branco, de quem o Zé do Telhado foi vizinho, amigo e guarda-costas, na Cadeia da Relação, no Porto, por volta de 1860/61... E, claro, fez dele um herói romântico...

− Eu, por mim, gosto é de fazer o bem, e muitas vezes sem olhar a quem. Não é por acaso que me chamam (ou chamavam) o "padrinho"… Tenho montes de afilhados na região, o Jorge é mesmo o último. Muitos não os conheço, quando me vêm (ou vinham) cumprimentar, à moda antiga: "Sua benção, padrinho!"...  

Padrinho...?!

− Sim, padrinho, tenho muitos afilhados, de batismo, crisma, casamento. E, no bom tempo, quando eu ainda mandava qualquer coisinha, meti muita cunha para muito boa gente, a começar pelos que tinham mais mérito e necessidades, para empregos nas autarquias, nas empresas, na banca, nas escolas, nos centros de dia, nos lares de idosos, eu sei lá. Até na tropa, quando ainda havia serviço militar obrigatório… Até ao bispo cheguei a ir...

− Sem olhar a quem?!

− Sim, podes crer, sem olhar a quem!... As pessoas também fazem o favor de serem minhas amigas. E eu não me faço rogado quando me convidam para ser padrinho de casamento. Ainda para mais quando o pedido vem de um antigo camarada da Guiné… Neste caso, não foi um pedido, foi uma ordem do amigo e camarada Arlindo!

− Sei que ainda voltaste à Guiné…

− Sim, há uns largos anos atrás, para "matar saudades". Fui com malta de uma ONGD, com trabalho realizado no setor de Canchungo, e para a qual eu fazia as minhas doações, em géneros e em dinheiro. Levaram um contentor com vestuário, material escolar, livros, mobiliário… Havia (não sei se ainda há) uma missão católica que fazia a distribuição. Mas, confesso, fiquei triste com o que vi...

O "Felgueiras" voltou, de facto, aos sítios por onde andara entre 1966 e 1968… Mas aí teve uma "experiência desagradável"… Uma mulher, na casa dos seus quarenta, abeirou-se do jipe dele e gritou-lhe: 

Tuga, tu és o meu pai!

Na realidade, era filha de uma mulher manjaca, cristã, com quem o "Felgueiras" tivera um relacionamento, de apenas "dois ou três meses" (sic), no segundo ano da comissão. Ele ajudava a família com comida e dinheiro, mas nunca deu conta de que ela estivesse grávida, muito menos dele. Ambos tomavam "algumas precauções" (sic)... Feitas as contas, a mulher que dizia ser sua filha, tinha nascido em finais de 1972 ou princípios de 1973. Nunca poderia ser sua filha, já que ele estava a viver em Angola desde o 1.º trimestre de 1969…

− E se fosse minha filha, eu estaria disposto a reconhecê-la e a ajudá-la, inclusive a obter a nacionalidade portuguesa… O meu capitão, esse, ao que parece, é que lá deixou um filho, toda a gente sabia dessa história que, em boa verdade, me entristece.

O "Felgueiras" nunca me quis falar desse caso que manifestamente o incomodava. Foi o Arlindo quem, mais tarde, falou, com mais detalhe e à vontade, da história do capitão da companhia. Dizia-se que tinha feito um filho à lavadeira, mas nunca chegou a conhecer e a reconhecer a criança, que terá nascido ainda antes da comissão terminar, por volta do Natal de 1968. Um dos furriéis da CCS do batalhão, que editava o "jornal de caserna", até fez uma quadra popular, brejeira e satírica, alusiva ao “Santo António”… Toda a malta achou logo que assentava que nem uma luva na figura do comandante da companhia do "Felgueiras" e do Arlindo.

− Tornou-se popular no Batalhão, e alguns sacanas da companhia, que tinham tido problemas com o capitão,  vieram a cantá-la no "Uíge", de regresso a casa, com música de fado e tudo...  
− lembrava-se o Arlindo,

A letra rezava assim:

Santo António foi à guerra,
Na Guiné perdeu os três,
Foi bajuda lá da terra
Quem o menino lhe fez.

O "Felgueiras" achava a brincadeira de mau gosto, e mesmo ofensiva do bom nome do seu comandante, por quem tinha grande admiração e estima. O capitão era, de resto,  popular entre a generalidade da  rapaziada da companhia, mas motivo de chacota  para os do batalhão.

− O meu coração ficou na Guiné – disse-me um dia o Felgueiras", com alguma emoção no tom de voz... 

− E Angola?...

− Em Angola até vivi mais anos, mas era outra gente. Enfim, Angola foi boa para os negócios.

Não lhe perguntei como nem porquê. Também nunca mais o vi. Também soube que casara, que tinha tido 2 filhos e 4 netos, e que entretanto enviuvara para, logo a seguir, em 2017, morrer de cancro no pâncreas. Uma morte quase fulminante, em menos de três ou quatro meses. Um choque para todos, família, amigos e afilhados. E até para os seus inimigos, políticos, que ele também os tinha e não eram poucos. 

− Os anos não perdoam. E os de África contam sempre a dobrar – lamentou-se o Arlindo, que perdeu "um bom amigo e um melhor camarada", padrinho de casamento do seu filho.

O seu compadre  (ou parceiro, como aqui se diz) não tinha completado ainda os 75 anos de idade.

E eu, por mim, só soube da notícia tardiamente, uns meses mais tarde, quando estivera no Norte, por altura das vindimas. A minha homenagem, tardia, chega agora, sob a forma desta história de vida do "Felgueiras" (1943-2017). Lamento a sua morte precoce e tenho pena que ele não tenha chegado a reencontrar o "Paranhos", seu braço direito na "horta do chão manjaco", nem a conhecer os régulos e demais camaradas da Tabanca de Matosinhos.

Talvez algum leitor conheça o "Paranhos" e ainda lhe possa dar, mesmo atrasada, a triste notícia da morte do seu amigo e camarada "Felgueiras". É de todo improvável que o "Paranhos" conheça este blogue... como, de resto,  a maior parte dos camaradas da Guiné, agora no ocaso da vida.

[PS - Costuma-se prevenir o leitor de contos como este, de que qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Por razões éticas e legais de proteção de dados, os nomes aqui referidos são fictícios, exceto os dos países, os dos lugares públicos e os das figuras públicas. Todos os factos aqui narrados podem ou não inspirar-se em factos reais. Se no final o leitor se sentir desconfortável, peço-lhe que volte para a cama e continue a dormir, 
descansado, como eu faço: afinal "a guerra colonial nunca existiu", foi apenas um pesadelo, para alguns, como nós. Ou "pesadelo climatizado", para outros.  E poucos se puderam dar  ao luxo de comer bacalhau com batatas e pencas pelo Natal nos trópicos. Estas "estórias" são, afinal,  apenas "contos com mural ao fudo", onde o leitor pode sempre deixar um comentário ou grafitar umas garatujas... Boa noite.]

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24505: Historiografia da presença portuguesa em África (378): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Dezembro de 2022:

Queridos amigos,
Estamos agora numa verdadeira maratona, depois de missa na capelinha de Catió, a comitiva parte a 8 de maio passando por Aldeia Formosa e paragem no Saltinho, a ponte que terá o seu nome só estará concluída em agosto do ano seguinte, é aguardada com grande expetativa para melhorar a situação de pessoas e mercadorias. Descerrada a placa alusiva à visita, segue-se pelo Xitole, Bambadinca e chega-se a Bafatá. A partir deste momento não vão parar as referências elogiosas ao trabalho de Sarmento Rodrigues, nem aqui nem no Gabu, aliás o ministro do Ultramar é padrinho do filho do régulo de Chanha, Madiu Embaló. E fico a saber que perto de Nova Lamego fica a gruta neolítica de Nhampassaré, nela se fala muito frugalmente no Google. Craveiro Lopes pernoita em Bafatá e agora segue para Farim, o jornalista mete-se ao caminho num jipe, irá conhecer a extensa e densa floresta do Oio e aproveita a circunstância para publicar largo texto sobre a etnia Mandinga retirado de um dos clássicos de António Carreira, "Mandingas da Guiné Portuguesa".

Um abraço do
Mário



O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (4)

Mário Beja Santos

Salazar não viajava, mas pôs os seus presidentes da República a visitar parcelas do império. Eleito em 1951, o general, a sua mulher, o ministro do Ultramar e a sua mulher, partem do aeroporto da Portela em 2 de maio de 1955, pelas 7h30 e aterram em Bissalanca pelas 15h locais. É governador da Guiné Diogo de Melo e Alvim. O jornalista de serviço tece laudas à comitiva e ao séquito político que se vai despedir do presidente da República para esta viagem que não será curta. Fizeram-se obras em Bissalanca para haver uma pista capaz de receber uma aeronave daquele tamanho. Craveiro Lopes visitou demoradamente Bissau, percorreu a desditosa Bolama, atravessa o canal e de São João parte para Fulacunda, visitou Cufar e Catió, onde pernoitou.

Estamos agora a 8 de maio, o jornalista Rodrigues Matias vai-nos traçar o dia movimentado da comitiva presidencial. Craveiro Lopes assiste ao amanhecer a uma missa na capelita branca de Nossa Senhora de Fátima em Catió, e começam os encómios: “Deve esta simples missa de domingo ter valido no espírito da população nativa, por muitos eloquentes discursos e muita argumentação dos missionários católicos.” A viagem vai de Catió a Aldeia Formosa e Saltinho, diz-se que há muitas nativas com saias de seda e homens com chapéus de coco empenhando vergastas com retratos do Homem-Grande na ponta. Neste dia ir-se-á falar muito de alguém que marcou profundamente a Guiné, Sarmento Rodrigues. Diz o jornalista no Saltinho: “Por sobre os topos dos rochedos, com a água a escoar-se-lhe por baixo, através dos aquedutos, ao longo de centenas de metros, passa, desde o tempo do governador Sarmento Rodrigues, a estrada de cimento para Bafatá.”

Craveiro Lopes veio assistir ao trabalho da construção da ponte que terá o seu nome. Estará concluída em agosto de 1956, tem quatro vãos com o comprimento total de 144 metros. Esta infraestrutura permitirá mais rápida ligação com a parte Sul da província e, assim, mais facilmente a circunscrição de Bafatá poderá encaminhar os seus produtos para os portos fluviais da Guiné. Craveiro Lopes descerrou uma placa alusiva a esta visita, imagem que se publicou no texto anterior.

O destino seguinte é Bafatá, para lá chegar percorre-se Xitole, Bambadinca e atravessa-se a ponte sobre o Colufi. O jornalista observa que agora estamos à vista desarmada em terra de Fulas, é outra coisa: “Quem viaja pelo interior de África, cedo se habitua ao espetáculo comum do nativo normalmente vestido com muita deficiência e pouco asseio. Por isso, a estranheza o assalta, ao entrar na região dos Fulas. Tudo é diferente. Há um ar lavado e um aroma de civilização cobrindo tudo.” A cavalo ou a pé, avistam-se os régulos paramentados de guarnições de prata e ouro. O administrador, na sessão solene, agradece o foral concedido a Bafatá e prontamente tece elogios a Sarmento Rodrigues: “Há alguns anos tivemos um governador desta província que jamais podemos esquecer, por ter dedicado a Bafatá o maior carinho e amor, desenvolvendo-a, tanto cultural como economicamente. Deve-lhe Bafatá escolas, hospital, enfermeiros, pontes, estradas, fontes, água, parte do seu cais. Mas, acima de tudo, o carinho e a bondade com que a todos tratava, quer a civilizados que a indígenas. Ainda como governador desta província, idealizou a grande obra que V.ª Ex.ª vai inaugurar: a ponte Salazar.” E, de seguida, a ponte foi mesmo inaugurada. O jornalista aproveita para citar Fausto Duarte e como este estudioso se referiu às dificuldades sentidas nas investigações quanto à origem dos Fulas, e aproveita o relato para descrever aspetos etnológicos e etnográficos importantes quanto a esta etnia.

À noite, Craveiro Lopes assistiu a um torneio de luta envolvendo Fulas e Mandingas. O jornalista faz-nos uma bonita descrição: “Joelho em terra. Coreografia de mãos. Cabeça contra cabeça. Pega pelos antebraços. Salto de uma das mãos para as espáduas. Um molho de músculos espantosamente retesados. Bailados de pés, em cata de equilíbrio estável. Rodopios para a esquerda e para a direita. Um dos contendores levanta o outro do chão e, rapidamente, sem lhe dar tempo a que os pés se fixem de novo na areia, estende-o de costas em terra.”

Dorme-se em Bafatá e o jornalista aproveita para nos dar uns apontamentos históricos: “Filhos de Geba, conduzidos pelo Capitão-Mor Gonçalo Gamboa Ayala foram plantar de estaca a povoação de Farim. Tinha presídio com guarnição, ambulância, aquartelamentos, escola régia e fonte de água potável. Em 1907, é transferida a residência oficial de Geba para Bafatá e no ano seguinte juntaram-se ao presídio a ambulância e a escola régia e foi criada uma estação telégrafo-postal. Em 1912, era criada a circunscrição de Geba, com sede em Bafatá. Dois anos depois, ligada à margem esquerda do Colufi, por uma ponte, a povoação era vila. Geba morreu.”

Estamos agora a 9 de maio, Craveiro Lopes vai visitar o Gabu. A caravana segue logo de manhã para Nova Lamego. O jornalista dá-nos informações: “A circunscrição do Gabu foi criada em 1931, compreendendo 9 mil quilómetros dos territórios da parte Leste da Guiné. Foi sua sede, até 1948, a vila de Gabu Sara, agora batizada Nova Lamego, em homenagem à terra de naturalidade do homem que a fundou junto à povoação Fula de Sara e que lhe deu o primeiro nome de Vila Lamego – o Tenente A. Leopoldo.” É uma povoação essencialmente comercial. Ficamos a saber que a maioria da população indígena é islamizada, composta principalmente por Fulas-pretos e Fulas-forros, aparecendo, por ordem decrescente, os Mandingas e os Fula-Fulas. É após esta exposição que ele nos vai dar uma importante informação sobre o passado da Guiné: “Perto de Nova Lamego fica a gruta de Nhampassaré, estação neolítica de grande importância, descoberta recentemente pelo Dr. Amílcar Mateus, e onde forma encontradas centenas de objetos de pedra lascada, de pedra polida e cerâmica com gravuras incisas e estampadas em quartzo, quartzite e dolerito. É esta a primeira descoberta do género na Guiné.”

Haverá desfile dos povos da região. Antes, Craveiro Lopes entregou a cinco dos régulos presentes medalhas de prata e cinturões de prata com talabarte; a outros, medalhas de cobre, medalhas comemorativas, bandeiras e retratos. Haverá um cortejo apoteótico, uma série de bailados, não faltará música de todos os instrumentos. Craveiro Lopes visitou a fonte de Cabo Sara, mandada construir em 1945, na sequência da “política de água potável”, gizada por Sarmento Rodrigues. Ficamos a saber que o então ministro do Ultramar era padrinho de Manuel Maria Sarmento Rodrigues Embaló, este era filho do régulo Fula-forro de Chanha, Madiu Embaló.

A comitiva presidencial regressa de avião até Bafatá, o jornalista aproveita para conversar com um dos onze régulos do Gabu, Alarba Embaló, este não esconde uma admiração profunda por Sarmento Rodrigues, é um fervoroso adepto do desenvolvimento rural, quer mais tratores e mais escolas. Regressado a Bafatá, Craveiro Lopes não para, vai visitar os belos jardins do Parque das Águas, a enfermaria regional e a missão católica.

A comitiva presidencial jantou e pernoitou em Bafatá, partindo de manhã cedo para Farim. O jornalista foi de jipe, cerca de 80 quilómetros atravessando as florestas do Oio. Ele julga que tem todo o sentido, indo a comitiva em direção a Farim, onde predominam os Mandingas, fazer uma larga citação sobre esta etnia, elementos que ele vai buscar a um importante livro de António Carreira.

Os dois volumes respeitantes à viagem de Craveiro Lopes à Guiné e Cabo Verde, Agência Geral do Ultramar, 1956
Craveiro Lopes durante a visita de Isabel II a Portugal, 1957
Ponte Craveiro Lopes, imagem do nosso blogue
Bafatá e a Ponte Salazar
Imagem antiga do mercado de Bafatá

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24488: Historiografia da presença portuguesa em África (377): O General Craveiro Lopes na Guiné, maio de 1955 (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24504: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (5): O "Felgueiras", de 1º cabo hortelão a comendador (1943-2017) (Parte I)

Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Setor L1 > Missirá> Pel Caç Nat 52 > c. 1973/74 > A horta.  Não havia quartel ou destacamento que não tivesse a sua horta... E hortelãos diligentes e trabalhadores, na maior parte dos casos mal aproveitados...

Foto (e legenda): © Luís Mourato Oliveira (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Texto, em duas partes, elaborado para a série literária do nosso editor Luís Graça, "Contos com Mural ao Fundo" (*), 


O "Felgueiras", de 1º cabo hortelão 
a comendador (1943-2017)


Conhecemo-nos, por um mero acaso, num casamento em Braga, a terra dos arcebispos (um dos quais, o Dom Lourenço Vicente, do séc. XIV, meu longínquo conterrâneo, senhor das terras da Lourinhã). 

A história do "Felgueiras"  já me tinha sido contada, muito por alto, pelo pai do noivo. Antigos camaradas da Guiné, tinham estado numa companhia independente, colocada no setor de Teixeira Pinto (hoje Canchungo), na região do Cacheu.  

− Fomos e viemos no mesmo navio: para lá no "Niassa", para cá no "Uíge"... −  acrescentou o Arlindo, o pai do noivo.

Por nascimento e residência, eram de concelhos vizinhos, do Norte. Conheceram-se na tropa e ficaram amigos desde então. O Arlindo era do Marco de Canaveses, filho e neto de ferroviários, ele próprio maquinista da CP, já reformado.

Eu é que vinha do Sul e sentia-me ali um pouco deslocado, apesar dos laços afetivos que criara (e que ia mantendo
 desde há cerca de 40 anos), na região do Vale do Tâmega, berço, juntamente com o Vale do Sousa, deste pequeno, belo, velho e às vezes cansado mas sempre supreendente país que se chama Portugal.

Eu fazia parte do grupo dos convidados da noiva,  Clara. Tinha sido orientador da sua dissertação de mestrado, na área da gestão em saúde, na Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade NOVA de Lisboa. Acabámos por estabelecer relações de convívio e até de amizade. Conheci o Jorge, o noivo, por ocasião da discussão, em provas públicas, desse trabalho académico.

O Jorge era médico, interno de medicina geral e familiar, na altura colocado em Lisboa. Não arranjei alibis nem tive argumentos  para recusar o insistente e amável convite da Clara (e, por extensão, do Jorge) para ir a Braga ao seu casamento. 
Confesso que nunca gostei de batizados, bodas e funerais. Mas neste caso faltou-me mesmo uma boa desculpa, consistente e convincente, para declinar o convite.

Mas não vou falar mais dos noivos, jovens, simpatiquíssimos e felizes, nem da festa, líndissima, que deram num hotel de charme, nos arredores de Braga, rodeado de vinhedos e de carvalhos.

A figura do padrinho do noivo, ou melhor, a sua história de vida, é que me prendeu a atenção, logo de imediato. Encorpado, de estatura meã, olho azul, verbo fácil, sotaque tipicamente nortenho, bom copo – e, no passado, "melhor garfo" −, simpático, sedutor, bem humorado, às vezes também sarcástico e truculento, pareceu-me logo à partida que ficaria bem na minha série dos "Contos com mural ao fundo".

−"Felgueiras", um seu criado! – e estendeu-me a mão, em gesto franco, amistoso e descontraído, como é timbre da gente de Entre Douro e Minho.


Gostei logo da sua apresentação, sem pompa nem circunstância. Fiquei a saber que "Felgueiras" era "nome de guerra", como de resto já o suspeitava. (Sem querer, não pude deixar de notar, na mão que apertou a minha , um vistoso "cachucho", com um pedra que bem poderia ser um diamante.)

−Na tropa e, depois, na Guiné, éramos conhecidos, não pelos apelidos paternos – os Silva, os Ribeiro, os Magalhães… − mas pelos nomes das terra ou do sítio donde provínhamos: o Alenquer, o Peniche, o Setúbal, o Paranhos… Eu era (e continuo a ser) o Felgueiras.

−Então hoje já aqui estamos pelo menos três antigos camaradas da Guiné – respondi eu, beneficiando da cumplicidade do pai da noiva que fizera as despesas da minha apresentação.


No contexto festivo de uma animada, ruidosa e farta boda nortenha, o topónimo "Guiné" funcionou logo como uma espécie de senha ou palavra-passe. A par do Alvarinho que foi servido com os aperitivos, ajudou de imediato a quebrar eventuais barreiras.

−Então, à saúde dos noivos! – atalhou logo o "Felgueiras".

− À saúde dos noivos! – repeti eu. – E também à nossa, aos velhos camaradas da Guiné que, como tal, tratam-se por tu! – acrescentei logo de seguida, sabendo que o tratamento por tu, noutras circunstâncias forçado, deslocado, indelicado e até deselegante, contribuiria aqui para criar um clima propício à confidência, à desinibição, à cumplicidade e à partilha de memórias entre três veteranos de guerra.

−Então, à saúde da noiva e do noivo, e dos seus convidados!... E, já agora, à memória dos rapazes que por lá ficaram naquelas terras de Cristo! – brindou o Arlindo, o pai do Jorge, o noivo.

− Mouros e morcões, somos todos iguais, todos portugueses e.... "irmões"!  – brincou comigo o "Felgueiras", visivelmente bem disposto e feliz.

Tinha-se dado o clique para, ganhando a confiança dos meus interlocutores de ocasião, poder explorar melhor (e até aprofundar) a história, que me parecia algo insólita, do "Felgueiras". 

Um pouco de fora ficava o pai da noiva, que tinha feito o serviço militar já depois do 25 de Abril, sendo mais novo do que nós os três, eu, o Arlindo e o "Felgueiras".

Ao longo do dia, e sobretudo depois do copioso e demorado almoço, com as diversas iguarias da mesa minhota, fomos dando uns dedos de conversa, enquanto o "Felgueiras", padrinho,  fazia sala com o noivo e os seus convidados, como lhe competia. Mas, de tempos a tempos, vinha ter comigo e com o Arlindo, puxava-nos o braço e retomávamos o fio à meada, entre uns golos de uísque velho que foi o nosso digestivo com o café.

Enfim, com o "material" recolhido nesse dia e com mais umas conversas posteriores, com ele e com informantes privilegiados que o conheciam, a começar pelo Arlindo, pude traçar um primeiro retrato-robô do "Felgueiras", de resto uma figura em tempos conhecida e até popular, na região do Vale do Tâmega. Os mais novos, naturalmente, já não se lembrarão dele.

Não confessei a ninguém, como me convinha, a minha intenção de recolher umas notas biográficas sobre  "Felgueiras".  Para o leitor, também não preciso de justificar a minha escolha. No final, fará o seu juízo crítico. Por mim, tratava-se de uma figura tão digna como outras que figuram na minha série, afinal seres humanos como eu, com as suas pequenas misérias e grandezas, tendo como traço de união a guerra que um dia se travou na Guiné, entre 1961 e 1974, "guerra colonial", para uns, "guerra do ultramar", para outros, "guerra de libertação" para os militantes e simpatizantes do PAIGC.

O nosso camarada tinha sido 1.º cabo de infantaria e estado na Guiné, entre 1966 e 1968. Passo por cima de detalhes mais concretos, porque ainda há muita gente viva desse tempo e dos lugares por onde passou o "Felgueiras" (bem como o Arlindo e demais camaradas aqui citados).

Era apontador de armas pesadas de infantaria mas, por "azar", não fora colocado no esquadrão do pelotão morteiros, adido à companhia, como ele tanto gostaria. Coube-lhe, isso sim, integrar o 3.º pelotão da companhia, pelotão esse que só tinha 2 furriéis. Na prática, iria comandar uma seção de atiradores, ao substituir um 2.º sargento do quadro permanente que ficara em Lisboa com uma úlcera no estômago, a primeira "baixa" da companhia.

− A Dona Úlcera no Estômago foi uma boa madrinha de guerra para alguns safados − atirou o "Felgueiras".

Na realidade, o "Felgueiras" não dera as habilitações literárias corretas, aquando da inspeção militar. Não era caso virgem, outros o fizeram antes e depois dele... Apresentou apenas o diploma da 4.ª classe da instrução primária e indicou como profissão a de operário fabril. Queria, intencionalmente, safar-se do Curso de Sargentos Milicianos (CSM), e de uma mais que provável mobilização para o ultramar como "furriel atirador"… 


Ainda teve a veleidade de sonhar com uma especialidade que o tirasse do mato: cripto, escriturário, ou até mesmo sacristão, mecânico ou estofador… "Condutor auto, nem pensar", por causa das colunas logísticas e das minas. "E enfermeiro, ainda pior: sempre tivera horror ao sangue". Mas orgulhava-se de não ter posto cunha a ninguém, muito menos ao seu patrão, o industrial José Joaquim Gonçalves de Abreu, o  dono da Tabopan,  político de peso do regime, presidente da câmara local, futuro deputado e comendador.

E, no entanto, o melhor que lhe coube na rifa foi o posto de 1.º cabo atirador de armas pesadas de infantaria.

−Vou ficar no quartel, pensei. Ele haverá lá um morteiro 81, um canhão sem recuo…

− Seguramente uma Breda, ou uma Browning… − acrescentei eu.

 Santa ingenuidade!, fui logo parar à 'tropa-macaca', a que saía para o mato! – lamentou-se o "Felgueiras". 

E explicou:

− Azar o meu: quando cheguei ao quartel, o morteiro 81 já tinha dono, havia lá um esquadrão de morteiro, uns gajos já velhinhos, completamente 'apanhados do clima', que lá viviam no seu buraco quais lagartos…

Mas lá conseguiu convencer o capitão de que tinha outras competências, da vida civil, que valeria a pena aproveitar e pôr ao serviço da companhia em vez de o "mandar para o mato"...

Acabou por ficar no quartel com a responsabilidade da horta e do espaldão da Browning 12.7, tendo para o efeito um abrigo "privativo", cheio de cunhetes de munições até ao teto, incluindo balas tracejantes. 

− Ainda fiz o gosto ao dedo, num dos grandes ataques ao quartel. Era um arma do carago, a Browning!... Devo ter despachado uns gajos mais cedo, com carimbo para o inferno, nesse ataque, em que eles vieram quase ao arame farpado...

Enfim, foi o início de um "período de mordomias" que ele nunca teria se fosse um simples "furriel atirador"…

Tinha de facto alguns conhecimentos (básicos) de hortofruticultura. Quando miúdo, ajudava o pai e os irmãos mais velhos na quinta que trabalhavam, de renda, na Lixa, em Felgueiras, em regime da parceria agrícola, versão moderna da servidão da gleba. O pai chegou a estar emigrado em França, onde tratava de cavalos num "château" da região do Loire.

Com as remessas de dinheiro, "bem suado e poupado", que mandava de França, lá conseguiu pôr o filho mais novo a estudar, primeiro no seminário menor da Diocese do Porto, e depois num colégio privado em Amarante.

O "Felgueiras", "mau aluno, cábula" (sic),  lá conseguiu "à rasca"  completar o almejado 5.º ano do liceu, mas, para grande desgosto do pai que lhe desejava melhor sorte do que a de "filho de rendeiro", desistiu de prosseguir os estudos.  E este não teve outro remédio senão o de dar ordens terminantes à mãe para pôr o filho a trabalhar na Tabopan, logo que completasse os 16 anos. Tinha lá um tio materno que era encarregado e que o podia, de algum modo, proteger.

A Tabopan, na altura, era uma das grandes fábricas da região, dava trabalho a muita gente e era o sustento de muitas famílias de Amarante e arredores. Isto ainda antes da febre da indústria do calçado que, no caso do concelho de Felgueiras, irá enriquecer alguns e desgraçar muitos, sobretudo depois da entrada do País na CEE, em 1986, e da vinda de pipas de massa para a modernização das empresas… 

De facto, de um dia para o outro o pobre "sapateiro remendão" dava lugar a um "garboso industrial" que se pavoneava de Ferrari vermelho, entre Felgueiras e a Foz do Douro… As máquinas que os "sapateiros" (alguns, não generalizemos...) compraram, foram os famigerados Ferraris, que puseram Felgueiras no mapa…
 
− Por más razões... − reconheceu o "Felgueiras", quando eu abordei este tema... delicado para os felgueirenses.

Para o nosso cabo, a Tabopan foi uma das suas "faculdades da Universidade da Vida" (sic), a par da tropa e, depois, da Guiné.

−Abriram-me os olhos!

Self made man, gosta muito de evocar a "escola da vida" em que se formou e não esconde o seu desdém pelos "doutores de Coimbra".

−Mais vale um ano de tarimba do que dez de Coimbra!... Era o que se dizia até à reforma do Marquês de Pombal… − contemporizei eu.

−No meu caso, valeram mais os quatro anos de Tabopan e outros tantos de tropa, Guiné e, depois, Angola. (Fiquei a saber que ele também tinha passado por Angola, depois de vir da Guiné.)

Na Tabopan, com as boas graças do tio que procurou puxar por ele, o "Felgueiras" percorreu quase todas as secções, desde a produção à distribuição, do armazém ao escritório, onde aprendeu a escrever à máquina no teclado HCESAR.

−Quando assentei praça, já era um homem feito e vivido. Mas já que estamos aqui entre amigos e camaradas, juro que nunca fui um gajo 'putanheiro' e muito menos… 'azeiteiro'.

− O que é bem diferente de dar uma facadinha no matrimónio, de vez em quando – acrescentou, timidamente, entre dentes, o Arlindo, olhando em redor, não fossem as senhoras ouvi-lo...

− Ora… quem as não deu?! –interrogou-se o “Felgueiras”.

− Jesus Cristo, que, tanto quanto se sabe, não era casado… − galhofei eu 

− E os padres!, acrescenta aí − ouviu-se a voz do "Felgueiras" com um sorriso maroto. − E eu estou à vontade para falar deles, até sou amigo de alguns como o senhor cónego Melo.

Sete ou oito meses depois, lá vai o 1.º cabo "Felgueiras" (mais o furriel Arlindo) no T/T "Niassa" a caminho da Guiné.

Mas passemos por cima dessas peripécias da pequena história pátria: não se deu mal com as novas funções que lhe foram atribuídas, a de 1.º cabo hortelão da companhia (uma especialidade que, diga-se de passagem,  não existia na tropa).

A horta cresceu e ajudou a equilibrar as "finanças" da companhia.

−Não sei se havia essa categoria no exército, a de 1.º cabo hortelão… Não me lembro – repliquei eu.

−Os furriéis, que eram quase todos do Norte, chamavam-me o "Pencas", os alferes que eram do Sul, puseram-me a alcunha do "Couves"… Os meus camaradas, soldados e cabos, esses, tratavam-me, como sempre me trataram, desde a IAO, por "Felgueiras"… E foi essa alcunha que vingou.

− "Pencas"… mas porquê. ?

− Imagina que no segundo Natal que passámos no mato, em 1967 (e ainda haveríamos de passar um terceiro…), eu apostei com o meu capitão, que era nortenho, que ele iria ter pencas (a couve "tronchuda"…) na noite da Consoada, a acompanhar o bacalhau…

−Meu capitão, arranje-me o bacalhau, as batatas e o azeite, que eu trago-lhe as pencas. Para si, para mim e para o resto do pessoal.

Ele não acreditou e perdeu a aposta (uma nota de 100 pesos, ainda se lembrava o "Felgueiras",  ou uma garrafa de uísque velho)…

−No primeiro Natal, mal chegámos, em finais de 1966, comemos uma merda liofilizada, uns grelos, um desconsolo.

O clima da Guiné não ajudava a criar pencas, a couve portuguesa, devido às temperaturas elevadas… Por outro lado, não fazia frio nem geada, muito menos neve, para "cozer" as "tronchudas", antes do Natal… Mas a verdade é que o "Felgueiras" conseguiu obter sementes pelo correio… mais uns "pozinhos de perlimpimpim" (sic). Em dezembro, afinal, fazia frio de rachar, à noite!... 


Com o "Paranhos", seu "ajudante de campo", conseguiu operar "o milagre das pencas" lá na região do Cacheu. Primeiro, fez um viveirinho de plantas. Depois, plantou-as e pôs, a toda a volta, no talhão das couves, uma rede em tecido camuflado,  para as pencas não apanharem o sol direto (ou em excesso) e evitar a passarada… 

Ninguém acreditava, até o comandante de batalhão foi lá um dia visitar a horta… 

− Sim, senhor, nosso cabo... Bela horta! 

Enfim, "houve bacalhau com batatas e tronchudas na noite de Natal, se calhar pela primeira vez na Guiné!"...

− Foi uma alegria, sobretudo para a rapaziada do Norte, do Minho e do Douro Litoral… Sim, porque os gajos de Trás-os-Montes têm a tradição do polvo, e vocês, os alfacinhas, a mania do peru recheado... Com a tua licença, uma merda afrancesada...

Foi um sucesso, a horta. E as "tronchudas" ficaram na memória de todos, mesmo que nem todas vingassem. A horta cresceu e multiplicou-se para gáudio do capitão, do 1.º sargento e do furriel vagomestre…

O nosso cabo tinha especial habilidade para descobrir talentos, tendo desde logo garantido o concurso do tal "Paranhos", que também trabalhara num quinta do Porto, antes da tropa.

− No tempo em que ainda havia quintas no Porto, justamente em Paranhos… Hoje o betão e o alcatrão tomaram conta de tudo – esclareci eu que ainda conheci o Porto… "rural", em 1975.

− E consegui depois arranjar mais dois ou três civis de uma tabanca próxima. Tinham em tempos trabalhado na horta das missões católicas do Cumeré, se não me engano. Eram manjacos, cristãos, falavam razoavelmente o português. Foram-me recomendados pelo capelão do batalhão, um gajo do Norte, também porreiraço. Eram pagos em patacão e em géneros. Formávamos uma bela equipa, tenho saudades deles, confesso... Chamavam-me o "irmão hortelão". O meu braço direito era o "Paranhos", que sabia muito mais de horta do que eu.

Foi aproveitada uma antiga "ponta", abandonada, que pertencera em tempos a um cabo-verdiano, da Ilha da Brava. A terra era fértil e a água doce abundante. Até tinha um poço com uma nora, desconjuntada, que foi reparada.

− Na realidade, a "ponta", com uns bons hectares, não tinha sido totalmente abandonada. De facto, uma parte, junto à casa, continuara a ser cultivada por uma família manjaca, cristã, que trabalhava para o cabo-verdiano, ainda antes da guerra.

− O que é que lhe aconteceu, ao dono, o tal cabo-verdiano? − perguntei eu, curioso.

− Nunca soube ao certo, contavam-se várias versões da história. Dizia-se que era compadre do Amílcar Cabral e que estaria em parte incerta. Uns juravam que tinha ido para Conacri. Outros garantiam que tinha sido morto em 1962, quando se deslocava na sua camioneta até Canchungo. Também era comerciante de arroz e mancarra.

− Não seria um tal Brandão?

− O nome já não me lembro, nem para o caso aqui interessa. Era conhecido dos meus manjacos, e não seria mau tipo: deixou boas recordações (e filhos fora do casamento, ao que parece).

Veio-se a descobrir, mais tarde, por finais de 1964 ou princípios de 1965, graças ao "trabalho de sapa" do agente da PIDE de Teixeira Pinto, que o tal manjaco, que fora empregado do cabo-verdiano, e que desde 1962 tomava conta da "ponta", fazia parte de uma "célula civil" do PAIGC… Foi acusado de ajudar (e até de abastecer) os "turras do Choquemone".

− Acho que se chamava Gomes e ainda por cima era o sacristão da igreja local, o sacana… – acrescentou o "Felgueiras" – mas isso já não era do meu tempo… nem da minha conta.

Foi preso, interrogado, torturado e, com sorte, deportado, sem julgamento, para a Ilha das Galinhas, nos Bijagós, e depois para o Tarrafal.

− Houve quem, por menos, tivesse acabado numa vala comum ou na bolanha com um balázio na testa – confidenciou o "Felgueiras"... – Pelo menos os meus manjacos contaram-me algumas merdas que a polícia administrativa de Canchungo terá feito no início da guerra.

− A polícia administrativa, os "cipaios",  ou a milícia do régulo…? Como é que ele se chamava?

− Não me lembro, mas adiante… Disseram-me que mais tarde o Gomes foi solto, já a gente tinha acabado a comissão. Deve ter sido por volta de 1969, por ordem do Spínola.

O administrador do Canchungo acabou por tomar conta da propriedade e, em data posterior, cedeu-a à tropa. Tinha uma bela casa de sobrado, de traça colonial, que foi logo ocupadas pelos alferes.

A mulher e os filhos do Gomes foram recambiados para a ilha de Pecixe, donde eram originários. A casa e uma parte da horta foram cercados de arame farpado, passando a ser integradas no perímetro do quartel que, de resto, confinava com a tabanca.

A "ponta" sempre dera boa e abundante fruta tropical como a banana, o mango, a lima, a papaia, o abacate, o abacaxi… O nosso cabo introduziu culturas hortícolas europeias, adaptadas ao clima e ao terreno, graças a sementes que conseguiu obter da granja de Pussebé onde, por ironia, tinha trabalhado o eng.º Amílcar Cabral, e outras que encomendou à Intendência ou mandou vir da metrópole, pelo correio, através de um antigo colega, mais velho, do colégio de Amarante, que se formara como regente agrícola. 


Os terrenos, por sua vez,  foram lavrados e estrumados. Bosta era coisa que não faltava na "vacaria" do quartel… Como estavam de pousio, começaram logo a produzir em grande.

A produção de frutas e legumes dava para abastecer não só a companhia como o pessoal da CCS  e a outra unidade de quadrícula que estava em Teixeira Pinto. Para gáudio do médico do batalhão que, logo de início, alertara o comando para as insuficiências nutricionais que os militares iam sofrer ou já estavam a sofrer. Havia muita falta de "frescos", frutas e legumes, as companhias eram abastecidas, com alguma irregularidade, quer por colunas terrestres quer por avioneta (que também trazia o correio).

Com os restos do rancho e com as sobras da horta, o nosso cabo montou uma pocilga (uma "corte") e um galinheiro. Passados escassos meses, a companhia já era autossuficiente em galinhas, frangos, ovos e até leitões.

Quando o furriel vagomestre foi evacuado
 para o Hospital Militar 241, em Bissau, e dali para a Metrópole, com uma hepatite (o raio de uma doença que "toda a gente queria apanhar", já  que dava, na altura, direito a evacuação imediata para o Hospital Militar de Belém, especializado em doenças infecto-contagiosas…), o capitão, por sugestão do 1.º sargento, achou que o "Felgueiras" era o homem certo para o lugar certo. Para já, não havia nenhum sargento ou furriel disponível para o lugar de vagomestre e, quanto ao substituto, já pedido, só viria lá para as calendas gregas. 

Interinamente, o nosso cabo, "até porque afinal tinha estudos", ficaria a desempenhar o cargo de vagomestre. Como, de resto, ficou, até ao fim da comissão, "a contento de todos".

− A fazer as vezes de um furriel e a ganhar como 1.º cabo, estás a ver?!

Por outro lado, o 1.º sargento ia também, muito em breve, deixar a companhia para frequentar, em Águeda, a Escola Central de Sargentos. Tratava o "Felgueiras" de modo algo paternal, e os dois sempre tiveram uma boa relação desde a IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional). De resto, a companhia irá ficar sem sargentos: um outro 2.º sargento do quadro permanente, que era operacional, teve um problema disciplinar, e acabou por ser colocado em Bissau. O 1.º sargento não chegou a ser substituído em tempo útil. Na prática, foi o capitão quem assegurou o serviço de secretaria com o 1.º cabo escriturário.

O "Felgueiras", que sabia escrever à máquina, e era voluntarioso, também ajudou a montar a secretaria da companhia e até chegou a fazer alguns trabalhos, a "stencil", quando o "escritas", o 1.º cabo escriturário, não dava conta do recado. E os dois, o 1.º sargento e o "Felgueiras" lá se entendiam com a "contabilidade criativa" da horta e da pecuária, incluindo a vacaria que tinha sempre meia de dúzia de cabeças de gado vacum, que o "Felgueiras" ia comprar aos fulas de Sonaco.

− Foi um pai e um mestre, para mim! – disse-me o "Felgueiras", já no fim da tarde, quando os mais novos, na festa do casório, se divertiam ao som de uma banda de música rock… − Nunca mais o vi. Pena que t
enha morrido, cedo, com o posto de capitão SGE, ao que me disseram. 

Para o comandante da companhia, capitão de infantaria, miliciano, 33 anos, solteiro, "homem bom", antigo seminarista, professor de português num colégio particular, a "horta", a "corte", a "vacaria" e o "galinheiro" da companhia foram uma bênção do céu. Resolveram uma grande parte dos problemas de abastecimento e de segurança alimentar da companhia (e até do batalhão). 


O capitão ficou, por outro lado, bem visto pelos seus superiores hierárquicos, pelo empenho e apoio que deu a estas iniciativas. E até os comandantes das companhias em redor não lhe regateavam elogios. Mas "ninguém mexeu uma palha para seguir o seu exemplo"...

Por outro lado, com a "contabilidade criativa" do 1.º sargento, a companhia passou a ter um "histórico superavit". Não cabe aqui contar, neste espaço, como é que o capitão reinvestiu esse patacão em obras para a melhoria do bem-estar dos militares (camaratas, casas de banho, campo de futebol…) e da população civil (posto escolar, centro médico, chafariz…), juntamenente com o patacão que vinha do batalhão para a "psico-social". Até deu para fazer obras de ampliação e beneficiação da pequena igreja local, para contentamento do capelão.

− Um homem com H, um grande capitão, mesmo que já não tivesse grande jeito (nem idade) para alinhar no mato e comandar tropas… 

− Voltaste a encontrá-lo?

− Sim. Estivemos, pelo menos,  em dois encontros, em convívios anuais da companhia, que eu organizei por aqui perto, um em Fafe, e outro no Marco de Canaveses. 

− No Marco?

− Sim, na tua terra de adoção... Ainda hoje, vinte e tal anos depois, a malta fala da grande almoçarada que eu proporcionei: a vitela assada à moda de Fafe, em Fafe, num ano; e logo, a seguir, num outro ano, o anho assado com arroz de forno,  lá no Marco… Até convidei o Ferreira Torres, de quem eu era amigalhaço, mas o homem nessa data tinha outros compromissos. Mas, mesmo assim, foi lá de propósito só para me dar um abraço e saudar a rapaziada.

− E essa história da padaria e dos leitões assados, de que me falou aqui o nosso camarada (e teu compadre) Arlindo?

− Foi a cereja no bolo, camarada! – respondeu o "Felgueiras", orgulhoso. − Vim no "Uíge", fizeram-me uma festa de despedida, fui car
regado em ombos… Até parecia que eu era um herói de guerra, carago!

− Conta lá como isso foi, camarada. Se me deres licença, quero tomar boa nota dessa história.

− Pois, foi assim… Quando substitui o vagomestre (que Deus nosso Senhor o tenha em bom descanso!), havia muitas queixas das nossas praças, em relação ao pão que era servido às refeições. Até então, andava tudo de bico calado… Quando eu assumi funções, não houve cão nem gato que não reclamasse. "O casqueiro está uma merda, ó Felgueiras!"… 

− O costume, dá a mão ao vilão, morde-te logo a mão! − atalhou o Arlindo que estava a seguir a conversa.

− Bom, tive que tomar providências imediatas. O capitão deu-me carta branca. Arranjei um rapaz do Carregado, o "Alenquer", que andava a coçar o cu pelas tabancas, e promovi-o a ajudante de padeiro. Já era padeiro na vida civil. Em contrapartida, o padeiro da companhia era um básico, que nasceu sem jeito para nada a não ser para a sornice. Melhorámos a mistura das farinhas, fizemos obras no forno, começamos a fazer pão com chouriço e torresmos ao fim de semana… E às tantas um leitãozinho. E não é que a coisa pegou? 

E depois, já com um brilhozinhonos olhos, o "Felgueiras" arrematou:

O Schulz, não, mas o Spínola, ainda "periquito", chegou a lá ir atrás do cheiro, ainda em 1968. Ele adorava o nosso pão… O leitão, às tantas, não chegava para as encomendas. Começámos também a "trabalhar para fora", até para restaurantes em Bissau… A rapaziada fazia umas "horas extraordinárias", mas todos comíamos da 'gamela'… 

− Queres dizer...?

− Isso mesmo, ao fim do mês, havia mais patacão para cada um poupar ou gastar… Tudo com o "ámen" do capitão que nestas coisas tinha vistas largas... Pergunta ao "Paranhos", se por acaso o encontrares lá nessa tal Tabanca de Matosinhos, de que me falaste, e que eu não conheço, mas um dia ainda tenho mesmo que lá ir… Almoço à quarta-feira, é isso?

− Sim, vou-te dar os contactos e as coordenadas... Vais adorar, há lá malta do teu tempo e da região do Cacheu.

(Continua)

© Luís Graça (2018). Última versão, revista e melhorada: 26/7/2023.
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Nota do editor:

Último poste da série > 20 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24491: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (4): Amigos para sempre!