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sexta-feira, 4 de março de 2011

Guiné 63/74 - P7896: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (76): Na Kontra Ka Kontra: 40.º episódio




1. Quadragésimo episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 3 de Março de 2011:



NA KONTRA
KA KONTRA


40º EPISÓDIO

Chegado a Bambadinca, respirou fundo e foi logo saber da possibilidade de o levarem para Bafata. Foi-lhe dito que estava ali um civil, com uma carrinha de caixa aberta, que ia para Bafata e com certeza o levaria.

Enquanto esperava foi conversando com camaradas já seus conhecidos. Querendo saber pormenores da morte do seu amigo Dionildo é-lhe dada uma nova versão do que se passou no segundo ataque a Madina Xaquili, quando ele Alferes Magalhães já estava em Bafata. Foi-lhe dito que não havia a certeza do que aconteceu, em relação ao Dionildo naquela fatídica noite. Quando o ataque se deu havia, fora do “arame”, um grupo que incluía o Dionildo.

Continuando, foram dizendo que o corpo do Dionildo não chegou a ser encontrado. Que podia ter-se dado o caso de os guerrilheiros terem levado o corpo, ou até o Dionildo ter sido feito prisioneiro. O que é certo é que, possivelmente para evitar burocracias que na tropa são terríveis, o caso foi encerrado e o Dionildo foi dado como morto … e oficialmente enterrado. A tropa tem destas coisas…

Chegado a Bafata de boleia com o Senhor Dionísio Castro,  depressa retoma a sua vida de trabalho no quartel e passa a sair mais, dada a sua melhoria a nível psíquico. Torna a ir ao cinema e encontra o seu amigo Ibraim. Talvez por já terem passado mais de dois meses, desde o último encontro, desta vez o Ibraim parece ter esquecido tudo o que podia ter contra o Alferes e num “NA KONTRA” efusivo retomam a amizade, aparentemente perdida.

Nos dias seguintes dão longos passeios pelos arredores de Bafata tendo o Ibraim mostrado locais lindíssimos que sem um cicerone assim nunca um metropolitano lhe poria os olhos em cima. Num fim de tarde o Ibraim leva o amigo à tabanca do Nema para observarem uns enormes morcegos pretos, durante o dia pendurados numas árvores, que por essa razão poucas folhas têm. À hora a que chegam podem ver os morcegos a começar a abandonar os galhos onde se penduram aos cachos. Sobrevoam em voo rasante a superfície da água do rio Geba, que chegam a tocar uns cem metros mais à frente.

Tão depressa o Alferes pensa que eles vão beber água ao rio, depois de estarem durante todo o dia ao sol, como logo o Ibraim lhe explica que os morcegos ao tocarem a água não a bebem directamente mas se limitam a molhar os pelos do peito chupando depois essa água durante o voo.

Noutra ocasião, em passeio pela tabanca da Rocha onde Ibraim mora, este conta ao Alferes que tem uma nova namorada mas, tal como antes, não se abre muito sobre esse assunto. O Alferes não pode deixar de pensar que talvez o seu amigo o ache muito namoradeiro e portanto uma “ameaça”, dado que tempos antes o Alferes lhe tinha mostrado interesse em arranjar uma namorada africana. Chega-lhe a dizer que tem noiva na Metrópole e que até pensa casar em Março próximo. O amigo continua a remeter-se ao silêncio no que diz respeito à sua nova namorada.

Grande parte da tabanca da Rocha

Os dias vão passando e em determinada altura o Ibraim confidencia ao amigo que pretende ir para a Metrópole trabalhar. O pai, Régulo de Canquelifá, estaria disposto a ajudá-lo com dinheiro. O Alferes, medindo bem as palavras, pois não quer criar outra situação de melindre, diz-lhe que na Metrópole a vida não está fácil, principalmente para um africano e que ficaria lá totalmente desinserido do resto da sociedade. Enriquecer só com o fruto do trabalho será uma ilusão.

Pareceu ao Alferes que o amigo não gostou das suas advertências dado que nos dias a seguir deixou de o ver pelo cinema. Passam duas semanas sem o Ibraim ser visto. Avoluma-se no Alferes a ideia de que o amigo estivesse novamente agastado com ele.

Numa ida ao cinema onde ia ver o “Marnie” do Hitchcock, novo “NA KONTRA” com o amigo que explicou o motivo da sua ausência, concluindo o Alferes que o Ibraim não tinha nada contra ele.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7890: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (75): Na Kontra Ka Kontra: 39.º episódio

quinta-feira, 3 de março de 2011

Guiné 63/74 - P7890: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (75): Na Kontra Ka Kontra: 39.º episódio




1. Trigésimo nono episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 2 de Março de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


39º EPISÓDIO

Atravessam Matosinhos. Chegam junto da zona portuária, sempre agradável de se observar pela azáfama de todo aquele pessoal na transferência de mercadorias de e para os navios. Atravessam a ponte móvel para Leça e dirigem-se para a praia, descansam um pouco e continuam até à Capela da Boa Nova, local ermo mas cheio de beleza. Além da capela, só por ali existe o Farol da Boa Nova e um restaurante, magnífica obra do jovem arquitecto Siza Vieira.

A capela da Boa Nova em Leça.

Sentados num muro, têm uma longa conversa sobre o que poderá ser o futuro de ambos.

- Lembras-te do tostão que aquele miúdo nos deu naquele dia no largo da Sé?

- Sim lembro, responde. E beijam-se.

- Então já nos podemos casar.

A conversa continuou e acabaram por chegar aos pormenores do casamento: Casariam na Capelinha da Boa Nova. Almoçariam com os poucos convidados, só a família directa, no restaurante ali ao lado, edifício projectado pelo que foi seu professor, Siza Vieira. Fariam a tradicional viagem no carro dos pais, percorrendo toda a costa de Portugal até ao Algarve. As férias do próximo ano, a que ele ainda tinha direito, seriam uma boa altura para o casamento.

O restaurante projectado pelo Arq. Sisa Vieira junto à
capela da Boa Nova.

Com a sua vida sentimental estabilizada, poucos dias depois o Alferes Magalhães regressa à Guiné.

Desta vez o trajecto é feito de noite. Se a viagem para a metrópole era duplamente agradável além do mais por se efectuar de dia, agora, por razões contrárias é duplamente desinteressante. Na ilha do Sal, onde o avião faz escala, o nosso Alferes ainda pôde ver, ao lusco-fusco, os contornos dos morros vulcânicos que caracterizam a ilha.

Chegado a Bissau resolve não se instalar no Quartel de Santa Luzia, no tal quarto de oito camas onde a qualquer hora da noite pode ser acordado pelos camaradas que chegam e partem para o mato. Tenta o “Grande Hotel”, perto do Hospital, que diga-se, em tempos já tivera ar condicionado. Está cheio. Só consegue um quarto no “Hotel Internacional”, não longe daquele. Uma autêntica espelunca. Fica porém com um quarto só para si onde pode descansar à vontade.

Logo que pode vai aos Adidos marcar a passagem no Dakota para Bafata e aí fica a saber que o avião já está lotado. Dão-lhe Guias de Marcha para seguir pelo Rio Geba até ao Xime numa lancha de desembarque, uma LDG, depois para Bambadinca numa coluna de viaturas e finalmente noutra coluna para Bafata, já à vontade, sem problemas de guerra.


O Alferes Magalhães a bordo da LDG com destino ao Xime.

Em princípio fica um pouco preocupado por não ir de avião, mas pensando melhor: Na LDG não havia grande perigo pois a maior parte do rio tinha quilómetros de largura não podendo haver qualquer ataque. No chamado Geba Estreito, ao chegar ao Xime, aí sim já se estava ao alcance de uma qualquer arma inimiga, mas ali contava com a grossa blindagem da embarcação, o seu poder de fogo que incluía dois canhões “Bosfors” de 40mm e mais que tudo sabia que era sempre feita a segurança na margem direita do rio, na zona de Mato de Cão, por um pelotão de tropas nativas comandadas pelo seu camarada Évora Santos. Sabia que em tempos costumavam implantar minas na picada do Xime até à Ponte do Rio Udunduma, mas já há alguns meses que isso não acontecia pelo que também não ficou preocupado, tanto mais que à frente da coluna seguiria um grupo de picadores.

A LDG, onde vai o Alferes Magalhães, a chegar ao Xime.

Chegado a Bambadinca, respirou fundo e foi logo saber da possibilidade de o levarem para Bafata. Foi-lhe dito que estava ali um civil, com uma carrinha de caixa aberta, que ia para Bafata e com certeza o levaria.

Enquanto esperava foi conversando com camaradas já seus conhecidos. Querendo saber pormenores da morte do seu amigo Dionildo é-lhe dada uma nova versão do que se passou no segundo ataque a Madina Xaquili, quando ele Alferes Magalhães já estava em Bafata. Foi-lhe dito que não havia a certeza do que aconteceu, em relação ao Dionildo naquela fatídica noite. Quando o ataque se deu havia, fora do “arame”, um grupo que incluía o Dionildo.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7885: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (74): Na Kontra Ka Kontra: 38.º episódio

quarta-feira, 2 de março de 2011

Guiné 63/74 - P7885: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (74): Na Kontra Ka Kontra: 38.º episódio




1. Trigésimo oitavo episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 1 de Março de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


38º EPISÓDIO

Os passageiros saem do avião, são conduzidos num autocarro até à gare e pouco depois recolhem as malas que vinham despachadas no porão. O nosso Alferes com as malas num carrinho dirige-se para a saída, hesitando ao passar pela porta ostentando os dizeres “nada a declarar”. Neste momento a única coisa que o preocupa é saber se a namorada está ou não à sua espera. Será muito importante que esteja pois disso dependerá muita coisa do seu futuro e, de imediato, umas óptimas férias, longe da guerra.

Ao chegar à zona da saída, o Alferes Magalhães pára. Passa uma vista de olhos por todas as pessoas que estão encostadas à balaustrada de separação, à espera dos viajantes. Não vê a sua namorada. O seu coração como que pára. Será o desmoronar de muitos projectos. Continua a andar, decidido a sair do aeroporto, tomar um táxi e ir para casa dos pais, que por terem já alguma idade não foram esperá-lo.

Ao passar o fim do gradeamento de separação uma rapariga, para ele uma estranha, que aliás tinha visto encostada à balaustrada, agarra-se-lhe ao pescoço aos beijos. Ele afasta-a pegando-a pelos ombros para lhe ver melhor a cara e simultaneamente, ele reconhece-a e ela diz-lhe:

- Então só por ter cortado o cabelo assim curto já não me conheces?

De momento ele ficou como que mole, sem acção para nada. Ultimamente tinha-lhe acontecido muita coisa adversa. Nos últimos tempos, esta seria a primeira auspiciosa. Reagiu, como sempre, e enlaçaram-se agora por vontade mútua.

Sentam-se no bar do aeroporto, não a falar da Guiné, que de momento tinha ficado para trás, mas a combinar o que irão fazer nos próximos dias, além de namorar, como se algo mais houvesse para fazer…

Ela, professora do liceu, andava com muito trabalho pois andava a fazer o estágio pedagógico e o exame de Estado final aproximava-se. Assim, ele teve tempo para rever a família e os amigos. Com estes, sim, viria a conversar muito sobre a Guiné.

Todos os momentos em que ela estava livre eram aproveitados para os dois estarem juntos. Fazem passeios pelos locais mais bonitos da zona do Porto: Passeiam pela marginal do Douro. Sobem num dos elevadores da ponte da Arrábida e atravessam pela ponte para o lado de Gaia para daí desfrutarem a maravilhosa vista do Porto.

O Porto e o Barredo vistos de Gaia.

Passam pelo Barredo onde, em tempos, numa tasca tinham almoçado umas iscas de bacalhau feitas num fogareiro à porta do estabelecimento. Nessa altura ele, como estudante de Arquitectura, andava a realizar um trabalho sobre essa parte antiga da Ribeira do Porto. Sobem pela Rua Escura até à Sé. Deslumbram-se com a vista do Porto antigo, com a Torre dos Clérigos em destaque. Em determinada altura, no terreiro da Sé, um miúdo dirige-se a ela pede:

- Senhora, dê-me um tostãozinho.

- Olha, se eu tivesse um tostão casava-me.

Metendo a mão ao bolso o rapazito pega num tostão e dá-lho dizendo:

- Pegue, já se pode casar.

Claro que o miúdo teve a sua recompensa, continuando os dois namorados o passeio.

O terreiro da Sé, no Porto com a Torre dos Clérigos ao fundo.

Noutro dia, já perto do final das férias dele, vão de eléctrico pela Avenida da Boavista até ao Castelo do Queijo. Apesar de se estar em fins de Novembro a proximidade do mar ameniza muito a temperatura, convidando a uma caminhada ao longo da marginal até ao molhe sul do Porto de Leixões. Os titãs, modernas estruturas portuárias colocadas nos extremos dos paredões, fazem lembrar o lendário Colosso de Rodes.

Um dos “titãs”.

Atravessam Matosinhos. Chegam junto da zona portuária, sempre agradável de se observar pela azáfama de todo aquele pessoal na transferência de mercadorias de e para os navios. Atravessam a ponte móvel para Leça e dirigem-se para a praia, descansam um pouco e continuam até à Capela da Boa Nova, local ermo mas cheio de beleza. Além da capela, só por ali existe o Farol da Boa Nova e um restaurante, magnífica obra do jovem arquitecto Siza Vieira.

A capela da Boa Nova em Leça.

Sentados num muro, têm uma longa conversa sobre o que poderá ser o futuro de ambos.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7882: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (73): Na Kontra Ka Kontra: 37.º episódio

terça-feira, 1 de março de 2011

Guiné 63/74 - P7882: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (73): Na Kontra Ka Kontra: 37.º episódio




1. Trigésimo sétimo episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 28 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


37º EPISÓDIO

Os aviões vêm de Lisboa durante a noite, passando pela ilha do Sal em Cabo Verde e regressam durante o dia à Metrópole. Não atravessam o continente africano. Os países a sobrevoar não o permitem por Portugal ser um país colonialista. De qualquer modo vai-se sempre a ver a costa de África. Sabendo disso o nosso Alferes, ao fazer o check-in, pede um lugar à janela e do lado direito da cabine.

Chamam para o embarque. O nosso Alferes tem que mostrar o cartão de embarque e um documento, o Passaporte Militar, trazido de Bafata. Depois de muito procurar, de esvaziar várias vezes os bolsos e um pequeno saco que levava com ele, o dito documento não aparece. Todos os passageiros já tinham embarcado. Sem Passaporte Militar o Alferes Magalhães ia ficar em terra.

Quando a Hospedeira que estava a controlar as entradas já não via solução para a situação do Alferes, pelo intercomunicador chama o comandante do avião. Chegado este, pede ao Alferes para tornar a procurar o passaporte. Os bolsos e a saqueta são novamente revirados do avesso, mas nada. Com voz sumida, o Alferes admite que o documento pode estar, por engano, na mala que tinha despachado para o porão do avião. É então que o Comandante, vendo quão importante era para um militar em guerra, ir à Metrópole de férias, dá a seguinte ordem:

- Tirem as malas todas do avião até aparecer a do Senhor Alferes.

A mala apareceu mas não o Passaporte Militar e o Alferes estava na mesma situação de não poder embarcar.

Nova revista nos bolsos e como por milagre num deles aparece agora o desejado papel. Mil desculpas ao Comandante e à Hospedeira, não demorando o avião a levantar, rumo a Lisboa.

Era a primeira vez que o nosso Alferes fazia este percurso. Tinha vindo para a Guiné num cargueiro transformado para levar tropas, o “Ana Mafalda”. De avião a diferença para melhor era abismal. Ao longo do percurso que, de avião dura cerca de quatro horas, vai-se sempre a ver a costa de África, quase toda deserto. O mar junto às dunas toma várias tonalidades, do verde ao azul escuro. Maravilhoso, não deixa de pensar o nosso passageiro de última hora. Já depois da refeição servida a bordo, um prato quente de lombinhos com cogumelos e sobremesa de papaia, o Alferes, com a ajuda de um mapa fornecido a bordo, consegue identificar, na borda do deserto, a povoação de Villa Cisneros, capital do Sara Espanhol.

Vila Cisneros na Prov. Espanhola do Sara

Mais ou menos a meio do território de Marrocos o avião começa a afastar-se da costa e não demora a que apareça na linha do horizonte a costa algarvia. Sensação agradável, estava-se a chegar a “casa”. Passa-se na vertical de Portimão e pouco depois aterra-se no Aeroporto da Portela em Lisboa.

De Lisboa ao Porto foi um instante tendo o Alferes apreciado pela primeira vez lindas vistas aéreas de Portugal, sobretudo ao sobrevoar o Douro, com a recente Ponte da Arrábida, o porto de Leixões, Leça e as demais praias bem suas conhecidas.

A partir do momento em que o avião toca na pista e se sente que a viagem terminou o nosso Alferes, nos largos minutos que antecedem a ordem para se sair da cabine, faz um balanço de todos os últimos acontecimentos vividos na Guiné: A namorada estará à sua espera e não deixa de pensar na Asmau; a morte do Samba, que veio complicar tudo ainda mais no que a ela diz respeito; o que se passará com o Ibraim? E o Dionildo a quem nunca mais ouvirá um F…? São pensamentos que de alguma forma muito o perturbam. Conta agora com trinta e cinco dias pela frente e com a namorada para lhe fazer esquecer tudo isso. Os amigos também ajudariam.

Os passageiros saem do avião, são conduzidos num autocarro até à gare e pouco depois recolhem as malas que vinham despachadas no porão. O nosso Alferes com as malas num carrinho dirige-se para a saída, hesitando ao passar pela porta ostentando os dizeres “nada a declarar”. Neste momento a única coisa que o preocupa é saber se a namorada está ou não à sua espera. Será muito importante que esteja pois disso dependerá muita coisa do seu futuro e, de imediato, umas óptimas férias, longe da guerra.

Ao chegar à zona da saída, o Alferes Magalhães pára. Passa uma vista de olhos por todas as pessoas que estão encostadas à balaustrada de separação, à espera dos viajantes. Não vê a sua namorada. O seu coração como que pára. Será o desmoronar de muitos projectos. Continua a andar, decidido a sair do aeroporto, tomar um táxi e ir para casa dos pais, que por terem já alguma idade não foram esperá-lo.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV.

Vd. último poste da série de 28 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7875: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (72): Na Kontra Ka Kontra: 36.º episódio

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7875: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (72): Na Kontra Ka Kontra: 36.º episódio




1. Trigésimo sexto episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 27 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


36º EPISÓDIO

O Alferes ficou aparvalhado, sem saber o que dizer. Passava-se alguma coisa com o seu amigo. Antes de ir para Madina Xaquili davam-se como verdadeiros amigos e agora a reacção do Ibraim era perfeitamente incompreensível. Estendeu o dinheiro, recebeu o bilhete e entrou. Sentado à espera que o filme comece pensa em tudo o que podia ter provocado aquela reacção, não chegando a conclusão alguma. Decide que no fim do espectáculo irá tirar tudo a limpo, confrontando o amigo com a reacção que tinha tido.

Depois dos documentários, que desta vez foram sobre as Pousadas de Portugal, e começado o filme dessa noite é que o Alferes se apercebe que se trata do “Deserto Vermelho” de Antonioni. Óptimo filme, mas nestas circunstâncias talvez preferisse um tema menos pesado, quiçá uma “coboiada”.

O que é certo é que no intervalo metade da assistência já não voltou à sala. O filme era realmente difícil.

No fim o Alferes deixou sair todo o pessoal e só depois de dirigiu para a saída. O Ibraim não teria justificação para não falar com ele.

Ou porque já não havia necessidade de controlar as entradas, dado o género de filme, ou porque o Ibraim efectivamente não se queria encontrar com o amigo, o que é certo é que o Alferes não conseguiu descortiná-lo. Acabou por ir para o quartel convencido que o Ibraim tinha algo contra si. Por um lado quer resolver a situação, por outro tem receio de enfrentar a realidade que lhe pode ser adversa e decide estar algum tempo sem ir ao cinema para não ter um NA KONTRA que se poderia transformar num KA KONTRA, nada desejado.

Como depois do trabalho permanece mais tempo no quartel, dedica-se novamente ao jogo da “lerpa”, continuando a perder, como sempre acontecia.

Azar ao jogo, sorte no amor, eis que chega do Porto, a resposta da sua namorada. Dedica-se agora a escrever-lhe longas e apaixonadas missivas. Raramente joga às cartas.

Pelo motivo que é conhecido não vai ao cinema durante várias semanas. Algumas vezes joga às cartas e até ganha… o que o preocupa. Os dias vão passando.

O Alferes Magalhães sentado à porta do bar de oficiais do
Comando de Agrupamento.

Num fim duma manhã, estando a trabalhar no seu local de trabalho, na Sala de Operações, vêm chama-lo pois estava lá fora um militar nativo com galões de Alferes que lhe queria falar. Não era mais do que o João Sanhá de Madina Xaquili. Há um NA KONTRA efusivo. Ambos estão felizes por se reverem, no entanto o Alferes Magalhães nota que o semblante do João é mais carregado do que habitualmente. Não foi preciso esperar muito tempo para saber a razão. O João vai contando que agora lá na tabanca já não há moranças. Que as coberturas das palhotas que não arderam durante os ataques estavam agora sobre os abrigos para estes não se esboroarem. Quanto aos ataques, referiu que já tinha havido vários e no que houve na semana seguinte ao primeiro, quando o Alferes Magalhães já estava em Bafata, morreu o Dionildo. O João carregou ainda mais o semblante.

Consternação do Alferes. Terrível. O seu amigo Ibraim vira-lhe a cara e agora o seu amigo Dionildo morria.

Reage mais uma vez a uma má notícia e, como era seu costume, convida o João para almoçar. No Senhor Teófilo comem uma bela cachupa, que a esposa dele tinha cozinhado nesse dia.

De regresso ao quartel, depois de se despedir do João, não deixa de pensar e repensar: Morre o Samba, o Ibraim não lhe fala e o Dionildo, de quem se tinha tornado grande amigo morre agora também. Se antes repetia, porquê o Samba, agora repete sem cessar: Porquê o Dionildo?

Os dias continuam a passar. Com o reatar da correspondência com a namorada e “as coisas” a correr pelo melhor, o nosso Alferes resolve ir de férias à Metrópole. No princípio de Novembro de 1969 e no dia aprazado toma o avião, o Dakota, para Bissau. O avião sobrevoa a relativa baixa altitude regiões que ele sabe muito bem serem autênticos santuários do PAIGC, como o Oio. Chega a ver pessoas em tabancas controladas pelos guerrilheiros. A viagem é curta e depressa o avião se faz à pista do Aeroporto de Bissalanca.

O Dakota onde vai o Alferes Magalhães sobrevoando a
tabanca da Ponte Nova.

Passa dois dias em Bissau antes de embarcar para a metrópole. Encontra-se com amigos e com os Alferes do seu curso de Mafra que ficaram a trabalhar no Quartel General. São dois dias já de verdadeiras férias. Não deixa de ir à “Casa Gouveia” comprar algumas prendas para os familiares, mas sobretudo para a sua namorada.

Na manhã do embarque deixa o aposento, que ocupava com mais sete camaradas nas instalações do Quartel de Santa Luzia e, pedindo um táxi, dirige-se para Aeroporto.

O Alferes Magalhães na camarata do QG.

Os aviões vêm de Lisboa durante a noite, passando pela ilha do Sal em Cabo Verde e regressam durante o dia à Metrópole. Não atravessam o continente africano. Os países a sobrevoar não o permitem por Portugal ser um país colonialista. De qualquer modo vai-se sempre a ver a costa de África. Sabendo disso o nosso Alferes, ao fazer o check-in, pede um lugar à janela e do lado direito da cabine.

Chamam para o embarque. O nosso Alferes tem que mostrar o cartão de embarque e um documento, o Passaporte Militar, trazido de Bafata. Depois de muito procurar, de esvaziar várias vezes os bolsos e um pequeno saco que levava com ele, o dito documento não aparece. Todos os passageiros já tinham embarcado. Sem Passaporte Militar o Alferes Magalhães ia ficar em terra.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7861: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (71): Na Kontra Ka Kontra: 35.º episódio

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7861: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (71): Na Kontra Ka Kontra: 35.º episódio




1. Trigésimo quinto episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 24 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


35º EPISÓDIO

O calor aperta e resolve tornar ao quartel. Não vai pela avenida principal, que a essa hora e a subir é penoso percorrê-la. Vai antes por um caminho totalmente arborizado e plano que conduz à mãe d’água de Bafata, zona muito aprazível onde até há mesas e bancos para piqueniques, local que é conhecido por Sintra de Bafata. Pelo caminho cruza-se com bandos de macacos-cão que estão sempre por ali à espera que se lhe dê qualquer coisa para comer. Da mãe d’água, onde também há um grande chafariz, até ao quartel só tem que subir um pequeno desnível, passando ao lado da casa do Comandante do Esquadrão. Não é raro neste local verem-se uns enormes “lagartos” com mais de um metro de comprimento mas perfeitamente inofensivos.

O Alferes Magalhães no caminho de Sintra de Bafata.

Chegado ao quartel vai deitar-se. O Comandante tinha-lhe atribuído três dias de descanso e portanto aproveita.

O nosso Alferes passa os três dias concedidos quase exclusivamente a descansar. Come dorme e sobretudo vai pensando o que fazer da sua vida. O dia-a-dia do quartel não o ajuda muito a resolver a situação.

Começa a pensar no fim da comissão que se aproxima e também nos seus familiares da metrópole. Pensa na namorada que lá deixou e com quem, nos últimos tempos não tem mantido correspondência. Talvez ela já tivesse arranjado outro namorado, ou talvez não… Mesmo assim resolve escrever-lhe. Se ela ainda lhe responder terá aí um grande apoio para continuar a aguentar o passar dos dias, das horas, dos minutos…

Com tempo de sobra e contrariamente ao que era habitual, escreve-lhe uma grande carta ocupando quatro aerogramas. Diz-lhe uma “pequena mentirinha”: Que esteve dois meses isolado numa tabanca no mato. Relata-lhe os “perigos” por que passou, repete, como suas, as palavras do Furriel de Madina Xaquili que demonstrou a intenção de levar para lá a esposa e aí viverem felizes para sempre. Refere-lhe que agora cada dia que passa se sente mais só, que ainda gosta muito dela, o que desta vez não é mentira.

Quando vai entregar a carta no SPM ainda hesita enviá-la, mas por fim, sem nada a perder, deixa-a cair na caixa do correio. Se houver resposta irá demorar alguns dias.

No primeiro fim de semana em que há cinema, não perde a oportunidade, acima de tudo para rever o seu amigo Ibraim. Está um calor sufocante mas porque há a ameaça de um tornado tem que levar no braço um impermeável da tropa, que vestido lhe chega aos pés, protegendo-o totalmente.

A rua onde se situa o Cinema.

Vai directo ao recinto, ao ar livre, onde se projecta o filme. Lá chegado vê logo o Ibraim. Está a vender os bilhetes e a controlar as entradas. Nem sequer repara no cartaz que anuncia o filme dessa noite. Deixa entrar as pessoas que estavam à porta e sem mais ninguém para o porteiro atender, dirige-se ao seu amigo:

- Ibraim, há tanto tempo que não nos vemos. Tenho muitas coisas para lhe contar. Estive dois meses numa tabanca…

O porteiro, sentado a uma pequena mesa onde tinha os bilhetes e o dinheiro das entradas, sem sequer levantar os olhos para o amigo, mantendo-se a olhar para o maço de bilhetes como se estivesse muito atarefado, responde:

- Senhor Alferes, agora tenho muito que fazer e não podemos conversar.

O Alferes ficou aparvalhado, sem saber o que dizer. Passava-se alguma coisa com o seu amigo. Antes de ir para Madina Xaquili davam-se como verdadeiros amigos e agora a reacção do Ibraim era perfeitamente incompreensível. Estendeu o dinheiro, recebeu o bilhete e entrou. Sentado à espera que o filme comece pensa em tudo o que podia ter provocado aquela reacção, não chegando a conclusão alguma. Decide que no fim do espectáculo irá tirar tudo a limpo, confrontando o amigo com a reacção que tinha tido.

Depois dos documentários, que desta vez foram sobre as Pousadas de Portugal, e começado o filme dessa noite é que o Alferes se apercebe que se trata do “Deserto Vermelho” de Antonioni. Óptimo filme, mas nestas circunstâncias talvez preferisse um tema menos pesado, quiçá uma “coboiada”.

O que é certo é que no intervalo metade da assistência já não voltou à sala. O filme era realmente difícil.

No fim o Alferes deixou sair todo o pessoal e só depois de dirigiu para a saída. O Ibraim não teria justificação para não falar com ele.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7854: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (70): Na Kontra Ka Kontra: 34.º episódio

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7854: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (70): Na Kontra Ka Kontra: 34.º episódio




1. Trigésimo quarto episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 23 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


34º EPISÓDIO

Na reunião com o Furriel, para lhe entregar o comando, o Alferes chega a dizer-lhe que lhe tinha passado pela cabeça ignorar a ordem para ir embora e permanecer na tabanca. Além das boas recordações que tinha dos dois meses passados ali, estava sobretudo com muita pena de abandonar toda aquela gente africana que, independentemente da guerra, dentro de dias iria ficar isolada de Galomaro devido às chuvas. Para permanecer na tabanca, bastar-lhe-ia enviar uma mensagem para o Comando de Galomaro, com conhecimento ao Comando de Bafata a perguntar qual ordem cumpria, se a da coluna para o levar, se a que recebera do Coronel quando da sua visita à tabanca dizendo-lhe que o Alferes só sairia dali quando todos tivessem abrigos. Nesta altura dos acontecimentos os abrigos já não seriam suficientes e sobretudo seria necessário abrir valas entre abrigos.

Iria a mensagem, viria a resposta, entretanto a coluna tinha partido e o Alferes tinha ficado, sem contudo praticar qualquer desobediência. Na tropa as coisas podem assim acontecer.

O Alferes não tem coragem para tanto e resolve partir. Despede-se de todos os que ficam, especialmente do Dionildo com quem tinha estabelecido uma relação que ultrapassava o âmbito militar e se transformara numa verdadeira amizade pessoal.

O João Sanhá e alguns milícias prometem visitá-lo quando forem a Bafata.

O nosso Alferes sobe para uma viatura e a coluna põe-se em marcha. A consumação dum KA KONTRA. À frente, pela segunda vez nesta zona, segue uma equipa de picadores.

É então que o Furriel que ia ao lado do Alferes lhe pergunta se tinha gostado de estar na tabanca. O Alferes já possuído de uma profunda tristeza por ter deixado Madina Xaquili e o seu povo desata num choro convulso. Os seus olhos parecem dois chuveiros. O Furriel não compreendendo o porquê da situação fica mudo. Mais à frente o Alferes reage, limpa o rosto e reata a conversa com o furriel, mas não sobre Madina Xaquili.

Chegam a Galomaro e antes de ser levado a Bafata, o Alferes Magalhães ainda tem tempo de conversar com o Capitão, Comandante da Companhia, pondo-o a par dos acontecimentos da noite anterior.

Antes de subir para um Unimog para prosseguir viagem não deixa de perguntar, quer ao Capitão quer a elementos africanos, se não estariam aí a família do Chefe de Tabanca, fugida de Madina Xaquili, pois o Alferes sabia que a Asmau tinha aí um tio. A resposta foi negativa pelo que continuou viagem.

Chega a Bafata e ao Comando de Agrupamento. Põe a bagagem no seu antigo quarto e dá-se um grande NA KONTRA com todo o pessoal do quartel ávido de saber como as coisas tinham corrido lá na longínqua tabanca, incluindo o baptismo de fogo do Alferes. Faz a apresentação formal ao Comandante a quem relata os últimos acontecimentos em Madina Xaquili.

Já sozinho sente uma sensação muito estranha que nunca tinha tido: Esteve dois meses fora mas o que lhe parece é que já há anos não ia a Bafata. Só encontra uma explicação: A intensidade com que tinha vivido em Madina Xaquili. Horas, minutos, segundos tinham-se multiplicado por dias, meses, anos. Tinha visto a guerra de perto pela primeira vez. Tinha namorado. Tinha casado. Tinha-se divorciado. A morte do Samba não lhe saia da ideia. Tinha bem presente o convívio diário com aquela extraordinária gente, pura e sincera. Era pois uma sensação que nunca tinha sentido: Que o mundo tinha ficado para trás e que nada mais havia para fazer. Não via no trabalho insípido que novamente o esperava no quartel, algo que o fosse tirar da melancolia que agora o estava a possuir.

Como sempre acontecia em situações difíceis reage o melhor que pode. Fala com todos os camaradas contando a sua experiência na tabanca. Toma um banho de chuveiro que não deixou de achar estranho, pela “mordomia”. Vai almoçar, como anteriormente era habitual, com os Alferes do Esquadrão, ali ao lado, sentado numa cadeira, debaixo de um tecto e servido pelo inestimável Cabo Marques. Mais “mordomias”.

A seguir ao almoço, enquanto os outros Alferes vão dormir a sesta, o Alferes Magalhães vai rever Bafata. Passa a cumprimentar o Senhor Teófilo, dono do restaurante próximo e continua avenida abaixo, com o Sol a pique, mas não acusando o calor. Revê o café das libanesas e chega ao café-restaurante Transmontana onde toma um café, servido pelo Infali, homem triste mas sempre simpático, com quem o Alferes sempre conversa. Aliás numa das conversas referiu que, como “bom muçulmano” tinha quatro mulheres. O ar triste devia vir daí…

O Alferes Magalhães no café Transmontana, servido pelo Infali.

Tomado o café vai rever o Mercado. Ao lado na Piscina, debruçado na balaustrada sobre o rio Geba, revê os pescadores nas suas canoas.

Os pescadores do rio Geba.

O calor aperta e resolve tornar ao quartel. Não vai pela avenida principal, que a essa hora e a subir é penoso percorrê-la. Vai antes por um caminho totalmente arborizado e plano que conduz à mãe d’água de Bafata, zona muito aprazível onde até há mesas e bancos para piqueniques, local que é conhecido por Sintra de Bafata. Pelo caminho cruza-se com bandos de macacos-cão que estão sempre por ali à espera que se lhe dê qualquer coisa para comer. Da mãe d’água, onde também há um grande chafariz, até ao quartel só tem que subir um pequeno desnível, passando ao lado da casa do Comandante do Esquadrão. Não é raro neste local verem-se uns enormes “lagartos” com mais de um metro de comprimento mas perfeitamente inofensivos.

O Alferes Magalhães no caminho de Sintra de Bafata.

Chegado ao quartel vai deitar-se. O Comandante tinha-lhe atribuído três dias de descanso e portanto aproveita.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7847: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (69): Na Kontra Ka Kontra: 33.º episódio

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7847: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (69): Na Kontra Ka Kontra: 33.º episódio




1. Trigésimo terceiro episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 22 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


33º EPISÓDIO

Por fim, pela picada de Padada começam a chegar os elementos da operação. Rapidamente os dois Alferes metropolitanos, depois de se cumprimentarem, chegam à conclusão que não há condições para o pessoal de Galomaro ficar dentro da tabanca. Não havia alojamentos e era perigoso, pois em caso de ataque não havia abrigos para todos. Comeriam na tabanca o jantar que o “legionário” estava já a preparar e depois iriam instalar-se, emboscados, na orla da mata, para pernoitar.

É quase noite quando o contingente de quase sessenta homens, metade africanos, começou a sair da tabanca. Não iam em fila indiana mas sim em grupos. Quando os últimos elementos estavam a passar pelo “cavalo de frisa” da picada de Padada, os primeiros estavam já a entrar na mata. Neste momento aconteceu o que se acharia improvável, ou talvez não, como sempre tinha pensado o Alferes Magalhães.

Ouve-se um tiro seco, que não seria de G3, mas não deu tempo a conjecturas como acontecera quando um sentinela disparou sobre um porco do mato. Os sentinelas metidos na mata já tinham abandonado os seus postos. Quase em simultâneo começa um tiroteio infernal. Os guerrilheiros estariam a instalar-se para um ataque e tiveram que iniciar a contenda face ao aparecimento da tropa portuguesa. Esta reagiu de imediato pelo que foi uma autêntica batalha campal. Segundos depois começam a rebentar algumas granadas de morteiro 82 e de RPG 7 mas muito dispersas pois não houve tempo para regular o tiro e era a primeira vez que Madina Xaquili era atacada. Vir-se-ia a verificar que não produziram qualquer estrago material.

Não havendo a certeza, tudo leva a crer que os guerrilheiros vieram no encalço dos homens da operação. Embora com algumas consequências para a tropa que ia pernoitar fora do “arame”, este acto evitou um ataque bem organizado à tabanca, que provocaria com certeza muitas baixas, principalmente civis.

O nosso Alferes apenas se limitou a “acariciar” o seu cano de morteiro 60. A posição das duas facções era tal que não pôde efectuar qualquer disparo. Podia atingir as suas próprias tropas.

Tão depressa começou o recontro, como depressa acabou. Silenciadas as armas e com os guerrilheiros a efectuar a retirada fez-se a contabilidade dos estragos, lamentavelmente, só humanos: Vários feridos ligeiros provocados por estilhaços e um morto africano, que alguém viria a dizer que teria sido atingido pelo primeiro disparo que se ouviu, estando o atirador em cima de uma árvore. Disso, a certeza nunca se teve.

A meio da manhã do dia seguinte chega a coluna de Galomaro que inicialmente era só para levar o seu pessoal que tinha entrado na operação. Dado o ocorrido vinha também remuniciar a tabanca. Manhã cedo seguiu a mensagem do Alferes Magalhães a dar conta do acontecimento pois, como é sabido, de noite não se conseguia comunicar com a sede da Companhia. A coluna já tinha partido para Madina Xaquili. Mas porque em Galomaro se ouviu o ataque, o comandante determinou que se levassem as respectivas munições ainda antes de receber qualquer mensagem.

Também o Comando de Galomaro não esperou pela confirmação do ataque e informou, nesse sentido, o Comando de Bafata. Assim por troca de mensagens durante a noite entre os dois Comandos, a coluna também trazia uma ordem para levar embora, para Bafata, o Alferes Magalhães.

A situação na zona estava a degradar-se pelo que o Coronel de Bafata iria com certeza, a curto prazo, reforçar a guarnição aí sediada e o nosso Alferes não fazia parte de tal quadrícula.

Pouco tempo teve o Alferes para preparar a partida. Andando de um lado para o outro dá as últimas instruções e pôde ver de fugida que, além das munições, também tinham trazido para reforço do armamento, uma velha metralhadora Degtyarev de disco, apreendida ao inimigo.

São tiradas as últimas fotografias, sobretudo com o pessoal africano, com quem o nosso Alferes tinha criado grandes amizades.

O Alferes Magalhães, o João Sanhá e parte do Pelotão de Milícia.

Na reunião com o Furriel, para lhe entregar o comando, o Alferes chega a dizer-lhe que lhe tinha passado pela cabeça ignorar a ordem para ir embora e permanecer na tabanca. Além das boas recordações que tinha dos dois meses passados ali, estava sobretudo com muita pena de abandonar toda aquela gente africana que, independentemente da guerra, dentro de dias iria ficar isolada de Galomaro devido às chuvas. Para permanecer na tabanca, bastar-lhe-ia enviar uma mensagem para o Comando de Galomaro, com conhecimento ao Comando de Bafata a perguntar qual ordem cumpria, se a da coluna para o levar, se a que recebera do Coronel quando da sua visita à tabanca dizendo-lhe que o Alferes só sairia dali quando todos tivessem abrigos. Nesta altura dos acontecimentos os abrigos já não seriam suficientes e sobretudo seria necessário abrir valas entre abrigos.

Iria a mensagem, viria a resposta, entretanto a coluna tinha partido e o Alferes tinha ficado, sem contudo praticar qualquer desobediência. Na tropa as coisas podem assim acontecer.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7837: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (68): Na Kontra Ka Kontra: 32.º episódio

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7837: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (68): Na Kontra Ka Kontra: 32.º episódio




1. Trigésimo segundo episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 21 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


32º EPISÓDIO

No dia seguinte ao incidente tudo já decorria como se nada tivesse acontecido, apenas se notava uma menor alegria nos semblantes dos africanos.

À hora do almoço, depois do patrulhamento habitual, já estavam os dezasseis metropolitanos sentados à mesa para almoçar quando chega o João e se dirige ao Alferes:

- Tenho uma coisa importante a dizer-lhe. Gostava que fosse a sós. O Alferes levantou-se, apreensivo, e afastou-se um pouco com o João. Este, em voz baixa, continuou:

- Toda a família do Chefe da Tabanca, Adramane, incluindo a Asmau foi embora durante a madrugada. Não me pergunte como saíram da tabanca nem para onde foram pois já interroguei os milícias que estavam de sentinela e nem eles nem mais ninguém me adiantou o que quer que fosse.

O Alferes esteve por momentos pensativo mas logo agradeceu ao João despedindo-se com um até logo. Rapidamente compreendeu que nenhum africano, milícia ou civil, lhe iria adiantar alguma coisa sobre a fuga. Tratava-se muito simplesmente da solidariedade africana. Aconteceu o que é normal entre a população fula desta zona. À mínima ameaça da guerrilha, abandonam as suas tabancas e aproximam-se de Bafata, ainda zona de paz. Aliás o Alferes Magalhães e a sua tropa estavam ali para isso mesmo; impedir por persuasão a fuga da população. Consumada a fuga não havia mais nada a fazer.

Com certeza para a partida do Adramane teria contribuído, mais que tudo, a morte do marido da sua filha Asmau. O Alferes não deixava de pensar nessa razão, o que o levava permanentemente a interrogar-se: Porquê o Samba? Parece-lhe um castigo divino. De qualquer forma a situação por muito tempo o iria atormentar.

Passados uns dias, com tudo a decorrer normalmente, é recebida uma nova mensagem para fazer uma outra operação à zona de Padada. O Comando de Galomaro entendeu que seria necessário passar à ofensiva e não ficar dentro do “arame” à espera que o inimigo lá fosse.

Desta vez o Alferes Magalhães não participa na operação. Por um lado está preocupado com a defesa da tabanca no caso de um ataque, por outro, o contingente com que se iam encontrar em Padada, reforçado com elementos africanos, idos directamente de Galomaro já era comandado por um Alferes. Os dois grupos reunidos perfaziam cerca de cem homens dispondo de algumas armas pesadas. O miserável cano velho de morteiro ficaria na tabanca para sua defesa. A operação era de dois dias e iriam dormir na zona de Padada fazendo, a partir da madrugada, uma emboscada em trilhos recentemente utilizados pelos guerrilheiros. No dia seguinte regressariam a Madina Xaquili e uma coluna de Galomaro viria buscar o seu pessoal.

Estava a chegar o fim do segundo dia e como não se ouviu qualquer rebentamento para a zona da operação, tudo levava a crer ter sido mais uma acção sem resultados.

Por fim, pela picada de Padada começam a chegar os elementos da operação. Rapidamente os dois Alferes metropolitanos, depois de se cumprimentarem, chegam à conclusão que não há condições para o pessoal de Galomaro ficar dentro da tabanca. Não havia alojamentos e era perigoso, pois em caso de ataque não havia abrigos para todos. Comeriam na tabanca o jantar que o “legionário” estava já a preparar e depois iriam instalar-se, emboscados, na orla da mata, para pernoitar.

É quase noite quando o contingente de quase sessenta homens, metade africanos, começou a sair da tabanca. Não iam em fila indiana mas sim em grupos. Quando os últimos elementos estavam a passar pelo “cavalo de frisa” da picada de Padada, os primeiros estavam já a entrar na mata. Neste momento aconteceu o que se acharia improvável, ou talvez não, como sempre tinha pensado o Alferes Magalhães.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7830: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (67): Na Kontra Ka Kontra: 31.º episódio

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7830: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (67): Na Kontra Ka Kontra: 31.º episódio




1. Trigésimo primeiro episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 20 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


31º EPISÓDIO

Um elemento da coluna tinha accionado um engenho explosivo, ficando com o corpo todo dilacerado. Nunca se chegou a saber se o engenho já lá estava na passagem anterior. Provocou ainda pequenos ferimentos nos que iam mais perto. Não produziu mais danos pois o Alferes Magalhães tinha sido muito preciso nas instruções dadas, no sentido de irem afastados uns dos outros seis ou sete metros. Um dos feridos ligeiros foi o Dionildo, que soltando meia dúzia de c… e f… depressa se recompõe.

Como autómatos, os homens tinham-se atirado para o chão e os mais nervosos, contrariamente às instruções recebidas, fizeram alguns disparos sem qualquer objectivo. Seguiu-se o silêncio, quer dos homens, quer dos animais da floresta. É então que o Alferes Magalhães com a garganta cheia do pó vermelho da picada, num grito rouco pergunta ao João Sanhá:

- Quem foi atingido?

À pergunta do Alferes Magalhães: - Quem foi atingido? O João Sanhá logo respondeu:

- Foi o Samba. Está todo desfeito.

O Alferes pelo hábito de conviver com o Dionildo solta, mas só para si, um c… f…

- Logo ele.

Naquele momento o Alferes quereria que tivesse acontecido aquilo a qualquer outro milícia menos ao Samba. Pensou na Asmau que mesmo que não ficasse viúva iria com certeza ficar com um homem mutilado, dependente. Gostou muito da Asmau e ainda gosta e isso está a angustiá-lo muito. Um sentimento de culpa instala-se nele. Pensa, sem qualquer razão, que podia ter dispensado o Samba, naquele dia. Tinha subestimado o inimigo quando pensava que qualquer aproximação a Madina Xaquili se faria pelo lado de Padada e sentia-se culpado.

O Alferes Magalhães monta uma defesa com alguns elementos metidos na mata, pois nunca se sabia com o que se contava, e depois de concluir que aquela mina não passava de um acto isolado, manda de imediato quatro homens à tabanca para que o rádio-telegrafista faça um rápido pedido de evacuação.

O Samba acaba por morrer durante o transporte para a tabanca.

Cerca de uma hora depois chega um helicóptero que parte como veio. A guerra estava ali e as coisas iriam precipitar-se.

Embora o Samba não tivesse família na tabanca toda a população organiza e participa no “choro”. Para todos os metropolitanos mais parecia uma festa. Houve música e cantares, tendo o Adramane disponibilizado uns cabritos para todo o pessoal comer.

Dada a falta de condições para conservar minimamente o corpo, ao fim da tarde é enterrado no “cemitério”, local incaracterístico, situado na mata logo a seguir à zona desmatada. O Alferes acompanhou todos os rituais embora sempre acabrunhado. Da cabeça dele não saía a pergunta: - Porquê ele? Tentou ver a Asmau, para lhe dar uma palavra de conforto, mas não conseguiu descobri-la. Devia estar recolhida na morança dos pais.

Tinha mandado uma mensagem para o comando de Galomaro a contar o sucedido e aproveitou para pedir um reforço de material e munições, especialmente para o cano do morteiro 60. Pouco comeu ao jantar e logo se dirigiu para o “bentem” para conferenciar com o Chefe da Milícia. Se o Alferes Magalhães andava incomodado com a morte do Samba, o João estava apavorado com o agravar da situação. Não era para menos, tratava-se da primeira acção do PAIGC nas imediações da tabanca. Talvez já não fosse colher os próximos produtos das suas lavras…

Coube ao Alferes Magalhães, com a sua melhor preparação militar, acalmar o João e explicar-lhe que se tinha que reagir e sobretudo não demonstrar aos subordinados qualquer sentimento de insegurança. Acrescentou que, perante o acontecido, os comandos de Galomaro e de Bafata iriam com toda a certeza reforçar a guarnição da tabanca. Convencido ou não o João parece mais calmo.

Como o Braima estava presente com o seu kora, depois da sua participação no “choro”, o Alferes pede-lhe para tocar qualquer coisa, o que ajudou muito a desanuviar o pesado ambiente.

Todos estiveram no “bentem” até mais tarde nessa noite a ouvir os acordes do Braima. O Alferes achava por um lado que os guerrilheiros depois daquela acção não iriam aparecer de imediato pois achariam que a tropa Portuguesa estaria a postos, por outro lado a mina detonada não se dirigiria à sua tropa mas sim a uma futura coluna de reabastecimento de Galomaro. Pensou em todas as possibilidades. Tinha-se enganado sobre a direcção da primeira aproximação do PAIGC e não queria cometer mais erros. Não tornaria a deitar-se tão cedo como era costume para não dar vantagem ao inimigo, se num ataque o apanhassem a dormir, tanto mais que é ele que manobra o morteiro 60. Poupar as dezasseis granadas era também essencial e só confiava nele próprio para isso.

Antes de se deitarem foram os três graduados dar uma volta pelos postos de sentinela, que à noite eram todos dentro da tabanca, incutindo ânimo e sentido de responsabilidade de forma a não se deixarem dormir e estarem de ouvidos bem atentos. Como a escuridão era total a vista não ajudaria muito a detectar uma possível aproximação dos guerrilheiros.

No dia seguinte ao incidente tudo já decorria como se nada tivesse acontecido, apenas se notava uma menor alegria nos semblantes dos africanos.

À hora do almoço, depois do patrulhamento habitual, já estavam os dezasseis metropolitanos sentados à mesa para almoçar quando chega o João e se dirige ao Alferes:

- Tenho uma coisa importante a dizer-lhe. Gostava que fosse a sós. O Alferes levantou-se, apreensivo, e afastou-se um pouco com o João. Este, em voz baixa, continuou:

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7809: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (66): Na Kontra Ka Kontra: 30.º episódio

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7809: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (66): Na Kontra Ka Kontra: 30.º episódio




1. Trigésimo episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 17 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


30º EPISÓDIO

Em determinado momento de um fim de tarde o rádio-telegrafista vem ter com o Alferes e entrega-lhe uma mensagem acabada de chegar do comando de Galomaro. Não é demais referir que com o rádio que se possuía, um AN GRC 9, só se conseguia comunicar com Galomaro de dia e só em Morse. Se por qualquer motivo, ataque, evacuação, etc. fosse necessário comunicar durante a noite com a sede da Companhia…

Depois de o Alferes ter ido buscar o livrinho de descodificação pôde ver o que a mensagem dizia: Ordem para no dia seguinte fazer uma operação de reabastecimento de munições à tabanca próxima de Cantacunda.

Recordando o que já foi dito. Na noite anterior o Alferes Magalhães, de acordo com ordens superiores, tinha combinado, com o comandante do pelotão de milícia João Sanhá, a ida neste dia a Cantacunda, tabanca em auto-defesa, em operação de reabastecimento de munições. Como sempre, essa conversa teve lugar no local habitual, ambos sentados no “bentem”, grande estrado de querintim, debaixo de um mangueiro bem no centro da tabanca. Não fossem as combinações guerreiras, o local de onde se via o relampejar ao longe e se ouviam os pios de som metálico dos morcegos frutívoros nos mangueiros, pareceria o centro do paraíso.

Neste dia, bem cedo, porque se pretendia regressar a Madina Xaquili para o almoço, segue a coluna. Os cerca de oito quilómetros até Cantacunda são percorridos sem percalços. O itinerário é considerado seguro pois os guerrilheiros do PAIGC só tinham mostrado actividade para Sul, ou seja, para os lados da tabanca abandonada de Padada, do rio Corubal e de Madina do Boé, entretanto abandonada pelas tropas portuguesas e agora “santuário” do PAIGC.


A coluna de reabastecimento à tabanca em auto defesa de Cantacunda.

Em Cantacunda entregaram-se os cunhetes de munições, tiraram-se as fotografias da praxe com o chefe da tabanca, iniciando-se de seguida o regresso a Madina Xaquili .


Na tabanca de Cantacunda a entregar os cunhetes de munições. O Alferes Magalhães sentado no “bentem” entre o Comandante da Milícia João Sanhá e o Chefe da tabanca.

Sensivelmente a meio do percurso, já com a descontracção do regresso, um forte rebentamento fez estremecer toda a picada bem como os corpos dos homens da coluna apeada, comandada pelo Alferes Miliciano Magalhães Faria. Uma nuvem em cogumelo, de fumo e pó avermelhado, eleva-se nos ares, e é vista também da tabanca de Madina Xaquili onde o Alferes Magalhães está sediado. Da mesma forma faz estremecer os corações de todos os habitantes da tabanca, em especial das mulheres dos milícias que integravam a coluna.

Visão aterradora a partir de Madina Xaquili, especialmente para as mulheres dos milícias que integravam a coluna.

Um elemento da coluna tinha accionado um engenho explosivo, ficando com o corpo todo dilacerado. Nunca se chegou a saber se o engenho já lá estava na passagem anterior. Provocou ainda pequenos ferimentos nos que iam mais perto. Não produziu mais danos pois o Alferes Magalhães tinha sido muito preciso nas instruções dadas, no sentido de irem afastados uns dos outros seis ou sete metros. Um dos feridos ligeiros foi o Dionildo, que soltando meia dúzia de c… e f… depressa se recompõe.

Como autómatos, os homens tinham-se atirado para o chão e os mais nervosos, contrariamente às instruções recebidas, fizeram alguns disparos sem qualquer objectivo. Seguiu-se o silêncio, quer dos homens, quer dos animais da floresta. É então que o Alferes Magalhães com a garganta cheia do pó vermelho da picada, num grito rouco pergunta ao João Sanhá:

- Quem foi atingido?

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Fevereiro de 2011 Guiné 63/74 - P7801: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (65): Na Kontra Ka Kontra: 29.º episódio

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7801: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (65): Na Kontra Ka Kontra: 29.º episódio




1. Vigésimo oitavo nono da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 16 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


29º EPISÓDIO

Estavam assim os dois graduados, descontraídos, quando para os lados de Padada, onde se situavam as sentinelas metidas na mata, se ouve um tiro aparentemente de arma automática.

Conforme as instruções que havia e que envolviam toda a população da tabanca, um dos militares foi percutir uma velha jante de viatura que se tinha pendurado numa árvore. Era o sinal de alarme para todos o pessoal ir para os abrigos que lhe estavam destinados. Como já havia abrigo para a população civil, aí se reuniram todas as mulheres, crianças e os poucos homens que não pertenciam à milícia. Deve aqui referir-se que a jante, neste caso, desempenhava as funções do “Grande Tambor” existente em quase todas as tabancas ou o característico tronco oco utilizado pelos balantas, maior que os utilizados nos batuques e por isso de som cavo. Todos eles eram tocados sempre que, por motivo importante, era necessário reunir toda a população.

Há dias já se tinha feito um ensaio dessa situação mas agora era a sério. Fora dos abrigos só se encontram os três graduados. Passaram-se uns minutos sem mais nada acontecer. Teria sido abatido um sentinela? Ou apenas o disparo de um deles? A quem? Os três interrogavam-se.

- João, é preciso mandar um grupo de homens ver o que passou com os sentinelas.

Para alívio de todos tão depressa foram como vieram. Aconteceu que um dos sentinelas viu ao seu alcance um porco do mato e, contrariamente a todas as regras, não perdeu a oportunidade de o abater. Claro que não se podia deixar passar este acto sem uma punição, embora pequena dada a pouca formação militar de todos os milícias. De acordo com o João, o milícia em questão integraria a próxima operação apesar de ter participado na anterior e, principalmente, teria que dividir o animal com a tropa metropolitana.

Dado o sinal para acabar a situação de alarme toda a tabanca voltou aos seus afazeres. O Furriel aproveita e vai deitar-se um pouco, tendo o nosso Alferes pedido ao João para mandar chamar o Samba, pois queria falar com ele. Queria resolver a situação da Asmau rapidamente.

Sentados os dois à mesa das refeições foi rápida a conversa. O Alferes disse que já tinha falado com o Adramane e que iam resolver já o assunto. Para abreviar e não haver constrangimentos de discurso pode dizer-se que o Samba deu ao Alferes o equivalente a meia vaca para ficar com a Asmau. Foi um montante muito inferior ao que tinha dispendido, mas o Alferes Magalhães resolve o seu problema e o Samba também.

Passam uns dias e o nosso Alferes, agora mais liberto, dedica-se além dos patrulhamentos, a colher mais informações sobre os hábitos de todos os habitantes da tabanca. Passa a andar mais com o João vendo o evoluir das suas lavras. Ao princípio achava um pouco estranho que os milícias trabalhassem para ele aparentemente de forma gratuita mas agora já sabe que era uma ancestral prerrogativa de qualquer chefe. Os chefes de tabanca e os régulos chegavam a ter lavras longe da sua morança mas perto das moranças dos súbditos, que tinham que as trabalhar para proveito do seu chefe. Aqui, com o Chefe da Milícia passava-se procedimento semelhante. Não será de esquecer que esses mesmos chefes asseguravam o bem estar dos homens que para ele trabalhavam, distribuindo -lhes os excedentes das produções.

Tinha visto a sementeira da mancarra e acompanha agora o crescimento das plantas. Assiste ao aconchegar de terra às mesmas. Repara nas plantações de mandioca com largos sulcos, para melhor drenarem as águas da chuva e também para protegerem as raízes, não ficando fora da terra nem ensopadas em água, quando chove muito. Fica a saber, contrariamente ao conhecimento que tinha, que a raiz da mandioca se pode comer crua, pois vê comê-la aos africanos. Acha muita piada às enxadas de madeira que usam para trabalhar a terra: Autênticas preciosidades da pré-história. Acaba por comprar algumas para levar para a Metrópole quando regressar de vez. Vê que o João guarda a mancarra descascada, destinada a semente, em grandes garrafões de vidro.

Uma das enxadas com que trabalhavam a terra.

Repara nas cabaças de recolher o vinho de palma com forma de grandes peras e sobretudo nos funis feitos com folhas de palmeira, para lá em cima da árvore conduzirem a seiva da incisão para a cabaça.

Em determinado momento de um fim de tarde o rádio-telegrafista vem ter com o Alferes e entrega-lhe uma mensagem acabada de chegar do comando de Galomaro. Não é demais referir que com o rádio que se possuía, um AN GRC 9, só se conseguia comunicar com Galomaro de dia e só em Morse. Se por qualquer motivo, ataque, evacuação, etc. fosse necessário comunicar durante a noite com a sede da Companhia…

Depois de o Alferes ter ido buscar o livrinho de descodificação pôde ver o que a mensagem dizia: Ordem para no dia seguinte fazer uma operação de reabastecimento de munições à tabanca próxima de Cantacunda.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Fevereiro de 2011 Guiné 63/74 - P7794: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (64): Na Kontra Ka Kontra: 28.º episódio

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7794: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (64): Na Kontra Ka Kontra: 28.º episódio




1. Vigésimo oitavo episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 15 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


28º EPISÓDIO

Continuam a andar pela mata, pouco densa nessa zona, calcando o capim que já atingia quase um metro de altura. O Samba ao lado do Alferes nada dizia, continuando de olhos baixos.

- Samba, se eu me divorciasse da Asmau estavas na disposição de casar com ela?

Nesta altura, pela primeira vez, o milícia levanta a cabeça e encara o Alferes. Admite que a Asmau ainda pode ser sua.

- Mas meu “Alfero” não tenho “patacão” que chegue para dar ao pai dela.

- Já falei sobre isso com o Adramane e podes crer que de alguma forma se há-de resolver o nosso assunto. Vou pensar bem sobre isso e depois tornamos a falar.

O nosso Alferes estava decidido a resolver a situação. Chegado do patrulhamento, tomou outro banho, almoçou com os seus homens e “dormiu” o que pensava ser a última sesta com a Asmau.

À noite no “bentem” conversou com todo o pessoal mas sobretudo com o João, tendo com ele sido abordada a questão do divórcio.

Acabou por ir dormir e, como é costume dizer-se, dormir com um problema debaixo do travesseiro é meio caminho andado para o resolver.

Mais uma vez dormiu ao lado da sua mulher sem nada acontecer. Desta vez pesava o problema que de momento o afligia. Por um lado queria divorciar-se da Asmau, “passando-a” ao Samba, por outro não queria perder muito dinheiro com a “transacção”.

Deitado ia pensando no problema. Por mais que o tentasse resolver de outra maneira acabava sempre por chegar à mesma conclusão. Achando que teria que ser assim, acabou por adormecer ao lado da mulher africana mais espectacular da Guiné.

Acordou cedo, como era costume quando andava preocupado. Foi tomar o seu banho e dirigiu-se à mesa de refeições para tomar o pequeno almoço. Só estava presente o “legionário” que começava a preparar as coisas para o “café” do resto da tropa. O Alferes apenas saudou o cozinheiro com um bom dia. Não estava para grandes falas e o “legionário”, que estava mais ou menos a par da situação, respeitou o laconismo do seu chefe.

Passado pouco tempo o pessoal tinha tomado o pequeno almoço e estava reunido para se ir fazer o patrulhamento dessa manhã. Todos já sabiam quem desta vez ia. Os que iam num dia não iam no seguinte. Dos presentes fazia parte o Samba, apesar de no dia anterior ter participado. O Alferes sabia muito bem o porquê da sua presença. Quereria saber se o Alferes já tinha algo a dizer-lhe que lhe possibilitasse o juntar-se com a Asmau. Para não haver equívocos o Alferes dirige-se-lhe:

- Samba, como sabes, hoje não vais na coluna. Sobre a nossa conversa, podes ter a certeza que ainda hoje falo contigo e tudo se há-de resolver pelo melhor. Podes ir.

O nosso Alferes já sabia como ia resolver o assunto mas queria assentar bem as ideias. Além de não querer falhar em algum procedimento, não queria, acima de tudo, que algum dos intervenientes saísse “ferido”.

Foram fazer o patrulhamento. Os guerrilheiros ainda não tinham andado por aquelas bandas. O capim era agora um óptimo indicativo da presença humana. A uns três quilómetros de Madina Xaquili, ao passarem junto da picada para Padada no local onde esta cruzava uma linha de água, o alferes verifica que ali seria um óptimo local para montar uma emboscada se se viessem a notar intenções de aproximação por parte do PAIGC. Era um local em que, a partir de uma zona arborizada e protegida, se podia “varrer” uma larga área do outro lado da linha de água. Podia ter-se perfeitamente debaixo de fogo um “bigrupo” inteiro, embora se soubesse que eram mandados à frente um ou dois elementos incaracterizados com funções de reconhecimento.

Regressaram à hora de almoço sem terem, mais uma vez, detectado quaisquer vestígios. Todo o pessoal se sentia aliviado com isso. Depois de almoço o nosso Alferes não vai dormir a sesta. A Asmau já não o motivava como antes e também queria trocar algumas impressões com o Furriel. Fica pois à conversa com ele à medida que iam esgotando o resto de uma garrafa de bagaceira e fumando mais que o costume, sobretudo o Alferes.

Estavam assim os dois graduados, descontraídos, quando para os lados de Padada, onde se situavam as sentinelas metidas na mata, se ouve um tiro aparentemente de arma automática.

Conforme as instruções que havia e que envolviam toda a população da tabanca, um dos militares foi percutir uma velha jante de viatura que se tinha pendurado numa árvore. Era o sinal de alarme para todos o pessoal ir para os abrigos que lhe estavam destinados. Como já havia abrigo para a população civil, aí se reuniram todas as mulheres, crianças e os poucos homens que não pertenciam à milícia. Deve aqui referir-se que a jante, neste caso, desempenhava as funções do “Grande Tambor” existente em quase todas as tabancas ou o característico tronco oco utilizado pelos balantas, maior que os utilizados nos batuques e por isso de som cavo. Todos eles eram tocados sempre que, por motivo importante, era necessário reunir toda a população.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7787: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (63): Na Kontra Ka Kontra: 27.º episódio

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7787: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (63): Na Kontra Ka Kontra: 27.º episódio




1. Vigésimo sétimo episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 14 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


27º EPISÓDIO

Praticamente o Alferes e a sua mulher só se encontram na cama. Será pouco para um relacionamento saudável.

Aos poucos começa a haver desinteresse mútuo na cama. Parece repetir-se o que se tinha passando com o João Sanhá e a sua primeira mulher Kadidja, pois o João só comia a comida feita pela outra mulher, a Mariama.

Os dias vão passando e o desinteresse de um pelo outro acentua-se. Ao fim e ao cabo tudo o que aconteceu talvez não passasse de uma fantasia do Alferes Magalhães que, depois de realizada, nada mais interessava.

Passou um mês do dia do casamento. A situação estava a tornar-se insustentável e o nosso Alferes começa a pensar como há-de sair da situação em que se tinha metido. Tinha agora plena consciência dos problemas que se podem criar com a diferença de culturas. Também aprendeu que o amor não se pode reduzir à cama.

Apesar de o Alferes Magalhães ter os patrulhamentos diários que lhe ocupam muito do seu tempo e até certo ponto o distraem, não deixa de pensar na sua situação de vida com a Asmau e na forma de a resolver. Como tem o Furriel que lhe resolve quase todos os problemas de comando, tem mais tempo para conversar com o João e o resto da população da tabanca.

Os autênticos concertos de kora dados pelo Braima, à noite, no “bentem”, ajudam à distracção de todos e especialmente do Alferes. Mas tudo isso não basta, o seu grande problema actual mantém-se.

Foi nessas conversas nocturnas que vem a saber que o milícia Samba não se importaria de ficar com a Asmau se o Alferes se divorciasse. Subsistia porém o problema de o Samba não ter dinheiro para a “transacção”.

Poderia haver um divórcio formal, passando pelo pai da Asmau em que este devolveria o dote ao casal, em partes iguais, ou o Samba poderia entender-se com o Alferes sobre o pagamento que lhe teria que fazer para ficar com a Asmau.

O Alferes fala com o Adramane e ambos concordam em que não haveria divórcio formal, ficando o Alferes com a liberdade de “negociar” com o Samba.

No patrulhamento do dia seguinte saem, como costume em fila indiana, afastados uns dos outros seis ou sete metros, conforme as instruções do Alferes, seguindo atrás deste o seu “ordenança” o Dionildo. Logo ao entrar na mata o Alferes dirige-se ao Dionildo:

- Desta vez quero que troques a tua posição com o Samba. Vais lá à frente e diz-lhe para ele vir para aqui.

- F… meu Alferes, fui despromovido?

- Não penses que te livras assim de mim. Só quero conversar com o Samba e depois volta tudo ao mesmo.

Depressa a ordem foi cumprida. Quando o Samba ia a passar pelo Alferes para se posicionar à distância combinada, este diz-lhe para se colocar a seu lado pois queria conversar com ele. Continuando a andar ao lado do Alferes o Samba não tira os olhos do chão. Em voz baixa como a dupla situação exigia, o Alferes vai-o pondo à vontade falando de algumas banalidades e de seguida passa a abordar o assunto que diz respeito aos dois.

- Samba, podes crer que ao chegar aqui a Madina Xaquili, se soubesse que tu gostavas da Asmau e só não tinhas casado com ela por não teres dinheiro para dar ao seu pai, eu não teria feito o que fiz. Gostei muito da Asmau, mas agora as coisas já não estão a correr bem entre nós.

Continuam a andar pela mata, pouco densa nessa zona, calcando o capim que já atingia quase um metro de altura. O Samba ao lado do Alferes nada dizia, continuando de olhos baixos.

- Samba, se eu me divorciasse da Asmau estavas na disposição de casar com ela?

Nesta altura, pela primeira vez, o milícia levanta a cabeça e encara o Alferes. Admite que a Asmau ainda pode ser sua.

- Mas meu “Alfero” não tenho “patacão” que chegue para dar ao pai dela.

- Já falei sobre isso com o Adramane e podes crer que de alguma forma se há-de resolver o nosso assunto. Vou pensar bem sobre isso e depois tornamos a falar.

O nosso Alferes estava decidido a resolver a situação. Chegado do patrulhamento, tomou outro banho, almoçou com os seus homens e “dormiu” o que pensava ser a última sesta com a Asmau.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7779: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (62): Na Kontra Ka Kontra: 26.º episódio

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7779: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (62): Na Kontra Ka Kontra: 26.º episódio




1. Vigésimo sexto episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 13 de Fevereiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


26º EPISÓDIO

Antes o nosso Alferes ainda vai à mesa onde já estavam os seus homens à espera que o “legionário”, o cozinheiro, lhes servisse o almoço. O Dionildo, com um c… f… pelo meio, não deixou de lhe perguntar se tinha dormido bem. Os outros, já meios desinibidos, não deixaram também de “brincar” com o seu Alferes. Este quando já não estava a achar graça à brincadeira, pega em duas cervejas que estavam embrulhadas com um pano molhado para as arrefecer e dirige-se para o pé da sua amada.

Ambos sentados numa esteira à porta da morança iniciam a sua primeira refeição. Com a primeira colherada de arroz que o Alferes mete à boca faz uma careta, sorri para a Asmau, engole-o, levanta-se, vai ter com o “legionário” e pouco depois está novamente sentado para continuar a refeição.

O nosso Alferes tinha ido buscar um pouco de sal pois, apesar de já saber que os africanos da tabanca cozinhavam o arroz sem sal, não lhe tinha ocorrido que a Asmau o pudesse cozinhar assim. Convencer a Asmau a comer com sal seria uma violência idêntica à de ele próprio passar a comer sem o mesmo. Não foi difícil ultrapassar esta “pequena” divergência. Para todos os problemas que antevira antes do casamento tinha tentado achar a resolução. Houve, no entanto, o “tal pormenor” de que se tinha esquecido: Os hábitos alimentares que eram muito diferentes. Passar a cozinhar o arroz separado, ou um pouco de sal dissolvido em água quente para aspergir na “bianda” do Alferes resolveria o “pequeno” problema.

Era sabido que os africanos da tabanca praticamente só comiam arroz para acompanhar o que quer que fosse, que diga-se, nunca era muito. Muitas vezes o arroz era só acompanhado com um molho à base de folhas de certas plantas. Carne ou peixe era só uma vez por festa.

Nos dias seguintes o Alferes Magalhães, que tinha à sua disposição os géneros alimentares da sua tropa, consegue com algum custo e a ajuda do cozinheiro “legionário”, que a Asmau cozinhe outros pratos, sem ser arroz. Ela põe todo o seu empenho na aprendizagem, mas nem sempre as coisas saem perfeitas. A diferença de culturas vinha ao de cima. O nosso Alferes ia suportando tudo por amor à sua bela Asmau.

O retorno aos patrulhamentos alivia um pouco o Alferes da tensão ligada à confecção da comida pela Asmau. Depois de uma manhã cansativa era sempre bom tê-la à espera mesmo que a comida não estivesse uma perfeição. E com uma “boa sesta” tudo se esquecia.

Os dias vão passando. Os patrulhamentos cada vez são mais profundos na mata. Vestígios da guerrilha, nada. O nosso Alferes teria todos os motivos para se sentir feliz e satisfeito com aquela vida, mas a questão da comida feita pela Asmau agudiza-se dia a dia. Era uma sobrecarga para a Asmau e insatisfação para o Alferes.

Passam-se três semanas nesta situação e o Alferes depois de muito pensar achou que tinha encontrado a solução para o problema da comida. Depois de conversar com a sua mulher, decide que ela fará comida só para ela ou irá comer com os pais e ele passará a comer com os seus homens. De imediato parece que tudo isso resulta, mas não será bem assim.

Praticamente o Alferes e a sua mulher só se encontram na cama. Será pouco para um relacionamento saudável.

Aos poucos começa a haver desinteresse mútuo na cama. Parece repetir-se o que se tinha passando com o João Sanhá e a sua primeira mulher Kadidja, pois o João só comia a comida feita pela outra mulher, a Mariama.

Os dias vão passando e o desinteresse de um pelo outro acentua-se. Ao fim e ao cabo tudo o que aconteceu talvez não passasse de uma fantasia do Alferes Magalhães que, depois de realizada, nada mais interessava.

Passou um mês do dia do casamento. A situação estava a tornar-se insustentável e o nosso Alferes começa a pensar como há-de sair da situação em que se tinha metido. Tinha agora plena consciência dos problemas que se podem criar com a diferença de culturas. Também aprendeu que o amor não se pode reduzir à cama.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7763: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (61): Na Kontra Ka Kontra: 25.º episódio