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sexta-feira, 4 de maio de 2018

Guiné 61/74 - P18602: Notas de leitura (1063): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (33) (Mário Beja Santos)

Navio Portugal, propriedade da Sociedade Comercial Ultramarina


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Dezembro de 2017:

Queridos amigos,
Entrámos na década de 1950 e socorri-me de um trabalho do investigador António Duarte Silva para procurar situar as transformações operadas na colónia-modelo, no exato momento em que se iniciam as hostilidades anticoloniais, a partir das Nações Unidas e é bem percetível que está em curso a reivindicação da União Indiana para pôr termo ao Estado Português da Índia.
É nesse contexto que a agricultura guineense dá inequívocos sinais de prosperidade e começam as experiências com a cultura do caju. Está em curso o recenseamento agrícola conduzido por Amílcar Cabral e por sua mulher. Não há uma só referência a qualquer tensão étnica e também o comércio prospera.
É nesse contexto que começa a progredir o interesse do BNU pelo domínio absoluto da Sociedade Comercial Ultramarina.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (33)

Beja Santos

Julga-se do maior interesse, agora que chegámos ao dealbar da década de 1950, situar o pano de fundo em que decorre a vida da província. Serve-nos de orientador António E. Duarte Silva e a sua obra "Invenção e Construção da Guiné-Bissau", Edições Almedina, 2010. Começa por nos dizer que a década de 1940 se caraterizou não só pela reorganização e expansão do aparelho administrativo como pela promoção dos assimilados e cabo-verdianos enquanto se dá, em simultâneo, o alargamento da atividade comercial e a chegada das etnias muçulmanas ao litoral povoado pelos animistas; entretanto, o crioulo ia-se impondo como língua franca. Ao tempo, começa a identificar-se uma forma social bissau-guineense, distinta das colónias fronteiras do Senegal e da Guiné Conacri. O recenseamento de 1950 procurou determinar com rigor a população, foi dirigido por António Carreira, um dos nomes incontornáveis da historiografia guineense. Atenda-se aos números apresentados:  
“As distinções fundamentais eram entre civilizados (dotados de cidadania portuguesa) e indígenas, por um lado, e entre portugueses e estrangeiros, por outro. Civilizados seriam 8320 residentes – dos quais 1501 eram originários da metrópole, 1703 provinham de Cabo Verde e os restantes 4644 da própria Guiné. Acresciam 366 estrangeiros, a maioria libaneses. A taxa de analfabetismo dos civilizados ultrapassava os 43%. Quanto à restante população, contaram-se aproximadamente meio milhão de indígenas, distribuídos por 30 grupos étnicos”.

Já se viu como Sarmento Rodrigues apostou na Guiné como colónia modelo, vinha motivado para incrementar o progresso da colónia: transportes, estradas, rios e canais, portos, aviação, assistência sanitária e águas, agropecuária, comunicações, urbanização, rede telefónica e radiodifusão, promoção missionária, cultural e desportiva. Como observa Duarte Silva, inaugurou o seu programa com dois atos emblemáticos na legitimação da colonização, a criação da “Missão de Estudo e Combate à Doença no Sono na Guiné”, as “Comemorações do V Centenário do Descobrimento da Guiné”. Intensificaram-se as relações com o Instituto Francês da África Negra, procurava-se uma duradoura parceria nas investigações etnológicas e “inquéritos de franca utilidade prática sobre a situação biológica, alimentar, sanitária e demográfica das populações, e as suas psicologias e capacidades”. Vale a pena de novo referir a criação do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa e a sua obra de referência o Boletim Cultural. O mandato de Sarmento Rodrigues correspondeu a um período particular de coesão e progresso na história colonial da Guiné, correspondeu também ao apogeu do sistema colonial português, o Governador manteve a política de aliança com os muçulmanos, desenvolveu o aparelho administrativo mediante o preenchimento do quadro de dirigentes com uma elite metropolitana e a entrega da administração intermédia a cabo-verdianos e mestiços. É neste quadro ascensional que irão decorrer as primeiras hostilidades e ameaças de um movimento anticolonial que tem a sua sede nas Nações Unidas.

É tempo de regressar aos relatórios do BNU em Bissau, sente-se que a mudança de gerente torna as análises mais frias e formais, tecem-se comentários dirigidos para uma apreciação de números, dá-se conta do que está a acontecer na agricultura e faz-se a análise da praça. Estamos em 1953, o relator informa que houve uma importante redução nos preços das oleaginosas, quebra essa fortemente compensada com um apreciável aumento da produção. E aparece uma observação em tom lisonjeador, para nos mostrar que os tempos são outros:  
“Este bem marcado progresso da filial no novo importante impulso recebeu – o maior, sem dúvida, desde a sua fundação, – já no início do corrente exercício, com os muitos e vultuosos créditos que, em consequência da extraordinária actividade que aqui desenvolveu, nos poucos dias que durou a sua recente visita a esta província, foram concedidos à praça pelo nosso Excelentíssimo Administrador Senhor Capitão Teófilo Duarte, visita que ficou também assinalada por um rasto de forte e geral simpatia que perdura e cimentará o ambiente favorável que criou a actuação da nossa instituição, objectivos que Vossas Excelências tiveram, como se dignaram a informar-nos, ao aproveitarem a vinda de Sua Excelência a esta província e que constituiu um verdadeiro triunfo”.

Quanto à situação da Praça, não havia praticamente nada de novo:
“Como também sucedeu no anterior, o comércio vendeu, no ano findo, muito menos do que esperava e para que se preparara, pois ao nulo comércio que se continua a registar com os territórios franceses vizinhos e da falta de ouro em pó dessas proveniências, veio juntar-se, logo no início do ano, uma redução de $20 no preço da mancarra e por outro lado o agravamento, que se diz no dobro, do imposto de capitação em que foi convertido o de palhota, diminuíram grandemente o poder de compra do indígena”.

A situação das colheitas é outra preocupação que se espelha neste relatório de 1953:
“Não é possível determinar com rigor a produção agrícola desta província, que as estimativas oficiais avaliam, em amplos limites, entre 119 mil a 143 mil toneladas dos 4 mais importantes produtos. Assim, servindo-nos dos dados respeitantes à exportação e estes com base em elementos colhidos na Filial, pois os oficiais, infelizmente, estão longe de ser coordenados, verifica-se que a produção da mancarra no ano findo foi superior em 3 mil toneladas, a do coconote foi inferior em 6800 toneladas.

Encontra-se em execução o recenseamento agrícola, trabalho que constituiu uma realização dos Serviços Agrícola e Florestais, tendo isso encarregado de planifica-lo e de dirigir a sua execução o Engenheiro Agrónomo Amílcar Cabral. Visa a obtenção de elementos essenciais, qualitativos e quantitativos, tanto a agricultura indígena como da dos não indígenas. Acha-se quase finalizado o trabalho de campo relativo ao recenseamento da agricultura indígena. É executado pelo método de amostragem, através do estudo das explorações familiares em povoações tipo. Assim, obter-se-á uma estimativa dos elementos essenciais da agricultura indígena, aliás a única informação possível nas actuais condições económicas e culturais do agricultor nativo.

O apuramento dos elementos escolhidos será levado a efeito por todo este ano. Entretanto, pode afirmar-se o seguinte:
a) De uma maneira geral as porções são boas, tanto no que se refere às culturas alimentares como às industriais.
b) No sul da província as produções unitárias são geralmente superiores às verificadas noutras regiões, em especial no que se refere ao arroz e à mancarra.
c) Devido à intensificação da cultura da mancarra, as queimadas atingem proporções alarmantes, nomeadamente as praticadas pelos Fulas e pelos Mancanhas.
d) Alguns parasitas prejudicam de maneira sensível as produções das espécies conhecidas por “milho brasil”, “milho cavalo” e “milho preto”.
e) No Quínara, principalmente a produção de arroz foi prejudicada pelas águas vivas.
f) No ano findo, esteve nesta Província o senhor Jean David Bruce, de nacionalidade holandesa, técnico de óleos, que, a convite do ministério do Ultramar, se deslocou à Guiné para estudar as possibilidades da província nos novos métodos de culturas e exportação, as espécies mais recomendáveis às condições ecológicas, com o objectivo de uma produção dirigida mais consentânea com as ricas possibilidades da Província.
g) Foi feita a cultura, em grande escala, por toda a província de sementes de caju importadas de Moçambique, que germinaram bem e em alguns pontos se desenvolveram rapidamente. Essa sementeira foi precedida da vinda a esta Província do professor do Instituto Superior de Agronomia Dr. Carlos Rebelo Marques da Silva que, em missão do Ministério do Ultramar, veio estudar as suas possibilidades económico-culturais”.


Instalações da Sociedade Comercial Ultramarina em Bafatá

Entre Maio e Junho desse ano decorre uma inspeção do BNU na Guiné e aparece um importante documento do seu responsável endereçado à administração da Sociedade Comercial Ultramarina, com a qual gradualmente o BNU vai aumentando a sua participação. Iremos seguidamente tomar nota do seu conteúdo e conhecer a situação de 1954 designadamente do que se estava a passar na agricultura.

(Continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 27 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18568: Notas de leitura (1061): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (32) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 30 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18582: Notas de leitura (1062): Retrato do colonizado e retrato do colonizador, por Albert Memmi; editado por Gallimard (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Guiné 61/74 - P17803: Memória dos lugares (365): Canchungo, depois Teixeira Pinto, de novo Canchungo... Quando, porquê e por ordem de quem? (A. Marques Lopes, cor DFA, ref, ex-alf mil, CART 1690, Geba, e CCAÇ 3, Barro, 1967/68)


Fonte: António Carreira (1947), com a devida vénia

1.  Reprodução parcial do poste de 7 de setembro de 2005 > 

Guiné 63/74 - P160: Teixeira Pinto ou Canchungo ? (Afonso Sousa / Marques Lopes)

Mensagem de A. Marques Lopes:

[A. Marques Lopes, coronel DFA, na reforma, ex-alf mil, CART 1690, Geba, e CCAÇ 3, Barro (1967/68), um dos 10 primeiros membros da nossa Tabanca Grande]

É tendência nossa, quando nos referimos a Teixeira Pinto, dizer "agora Canchungo". Descobri, recentemente, que estaria mais certo dizermos "novamente Canchungo".

É que o nome daquela terra da Guiné chamou-se Canchungo desde os tempos mais remotos. Assim é referida em alguns livros em meu poder quando narram as campanhas do capitão João Teixeira Pinto de 1912 a 1915. Nomeadamente em "A Guiné Através da História", da autoria do Coronel Leite de Magalhães, publicado pela Editorial Cosmos com o n.º 34 da sua colecção Cadernos Coloniais (sem indicação de data de publicação), e em "História da Guiné - Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936", de René Pélissier, publicado pela Editorial Estampa em 1997 (dois volumes).

A imagem que vos envio é retirada de um mapa inserto no livro "Vida Social dos Manjacos", de António Carreira, editado pelo Centro de Estudos da Guiné Portuguesa em 1947. António Carreira foi, nessa altura, administrador da circunscrição de Cacheu, à qual pertencia a povoação de Canchungo.

Mais tarde, ainda não descobri quando, é que foi dado a Canchungo o nome do "pacificador" Teixeira Pinto (que acabou por morrer no combate de Negonamo, em Moçambique, quando continuava a "pacificar").

Os guineenses, natural e logicamente, baniram o nome de Teixeira Pinto e repuseram o nome original da povoação.

A. Marques Lopes



Guiné > Região do Cacheu > Mapa de Teixeira Pinto (1953) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Teixeira Pinto, vila, sede de circunscrição administrativa, e Canchungo, povoação indígena (com mais de 50 casas).

Infogravura: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2017)



2. Comentário do editor:

Em 19947, quando lá esteve o jornalista do "Diário de Lisboa", Norberto Lopes, o nome da povoação era Canchungo... E o administrador da circunscrição era o António Carreira, cuja ação o jornalista, de resto,  muito elogia por estar em consonância com a política do governador geral, o comandante Sarmento Rodrigues  (*). 

Julgo que a terra, capital dos manjacos, passou a chamar-se "Teixeira Pinto", ainda no tempo do governador-geral Sarmento Rodrigues, talvez em 1948... Mas a povoação indígena, Canchungo, continou a existir...

Alguns topónimos guineenses foram "aportuguesados" nessa época: Aldeia Formosa (Gebo), Nova Lamego (Gabu Sará), etc... Mas poucos, se compararmos este território com outros que foram "colónias de povoamento" (Angola e Moçambique),.

O nosso amigo Armando Tavares da Silva prometeu-me mandar, no próximo fim de semana, cópia de uma relação de 1948 com os nomes aportuguesados das diversas povoações das Guiné. Ele vai ver se fala lá da tabanca Portugal. Essa relação pode esclarecer a mudança de designação de Canchungo para Teixeira Pinto. (**)

Note-se que na carta de Teixeira Pinto (1953) (Escala 1/25 mil), coexistem os dois topónimos: Teixeira Pinto, sede de circunscrição administrativa, uma vila "europeia", e  Canchungo, a "povoação indígena" (com mais de 50 casas)...
_______________

Notas do editor:

(*) Vd. Norberto Lopes: "Narrativas da Guiné ((6): Uma vila que nasce e uma vila que morre: o futuro brilhante de Canchungo e opassado glorioso de Cacheu. "Diário de Lisboa", nº 8702, ano 26, quarta-feira, 19 de fevereiro de 1947, pp. 1 e 9. [ Consult em 27/9/2017}. Disponível em http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=05780.044.11053

(**) Último poste da série > 25 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17795: Memória dos lugares (364): Quem se lembra (ou ouviu falar) da tabanca de Portugal, a seguir aos rápidos de Cusselinta e à Ponte Carmona (em ruínas) (carta do Xitole, 1955)? Seria distinta de "Gã Portugal" que terá existido, também na margem esquerda do Rio Corubal, mas na península de Gampará... (Luís Graça / Cherno Baldé / Alcídio Marinho / Luís Branquinho Crespo / Luís Marcelino / Mário Pinto / António Murta)

sexta-feira, 10 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17124: Notas de leitura (935): Autóctones guineenses e portugueses: Contactos sempre difíceis, dos primórdios à independência (Mário Beja Santos)

Ângulo da Fortaleza de Amura
Imagem retirada, com a devida vénia, do blogue Marinha de Guerra Portuguesa


Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Dezembro de 2015:

Queridos amigos,
A investigadora Maria Teresa Vásquez Rocha registou no seu trabalho alguns aspetos fundamentais que outros autores também confirmaram: a precariedade da ocupação do território, no fundo, e até às guerras da pacificação das primeiras décadas do século XX, a presença portuguesa circunscrevia-se a um conjunto de praças e presídios, eram inúmeros os conflitos com os régulos, a presença militar meramente simbólica, não se podia combater a concorrência que percorria livremente o que se chamava a Grande Senegâmbia; tropa mal remunerada e indisciplinada, mal equipada e insuscetível de poder sair das praças e presídios. Só no fim da primeira década do século XX é que o Governador Carlos Pereira mandou demolir as muralhas circundantes da fortaleza de Bissau, foram necessárias conversações morosas com os régulos de Bandim e Indim. Por último, a missionação não dispunha de recursos e o islamismo trazia para os autóctones aliciantes argumentos, era uma rutura menos drástica que o cristianismo pedia. É preciso atender a todos estes fatores para se perceber com a presença portuguesa que dava ao rei o título de Senhor da Guiné era uma quase quimera.

Um abraço do
Mário


Autóctones guineenses e portugueses: 
Contactos sempre difíceis, dos primórdios à independência

Beja Santos

A Revista Africana, que era editada pela Universidade Portucalense, no seu número de Setembro de 1997, publicava o artigo “Guiné: o gentio perante a presença portuguesa (II)”, por Maria Teresa Vásquez Rocha, trabalho que se inseria num projeto de investigação sobre o Islão na Guiné-Bissau, num arco temporal desde os primeiros contactos até à atualidade. A autora começa por dizer que a presença portuguesa deu sinais de crescimento a partir do século XVIII e ao longo do século XIX, expressando-se por relações comerciais, políticas e de caráter religioso. Este último aspeto prende-se com um dos maiores insucessos da missionação portuguesa que logo se viu confrontada com o proselitismo do Islão e a fortíssima e generalizada subsistência das crenças tradicionais africanas. Procurando descrever as Praças, e socorrendo-se de inúmera documentação que encontrou no Arquivo Histórico Ultramarino e que foi tratada em termos paleográficos, escreve claramente: “Uma vez que o apoio dado pela metrópole era reduzido ou nulo, as Praças e suas guarnições eram normalmente decadentes”.

Um dos aspetos singulares deste trabalho é exatamente a epistolografia que deixa bem claro quanto às queixas permanentes do abandono da Guiné. E muita dessa correspondência é endereçada ao governo em Cabo Verde, já que a Guiné apenas se autonomizou relativamente a Cabo Verde em 1879, até aí esteve dependente quase na totalidade de Cabo Verde em termos políticos, administrativos, militares e religiosos, como aliás António Carreira sintetizou admiravelmente: “As Ilhas eram o cérebro, o continente o corpo”.

Os estabelecimentos de Cacheu e Bissau tinham a caraterística particular de os titulares do poder local serem nomeados pelo rei, apesar de ficarem dependentes do governo de Cabo Verde.

O Capitão-Mor de Cacheu era provido nos cargos de Feitor e Juiz, subordinado ao Ouvidor de Santiago. Todo este excesso de acumulações se revelou prejudicial às praças, ao seu bom funcionamento. A documentação analisada permite avaliar casos repetidos de corrupção e grande negligência perante os interesses do Estado.

Para se avaliar como a Guiné era a parcela menor do governo de Cabo Verde, atenda-se ao significado da deliberação do Conselho de Estado, na sua reunião de 14 de Junho de 1653, determinado que os governadores de Cabo Verde visitassem pelo menos duas vezes o distrito da Guiné durante o seu triénio. Voltemos atrás à história das Praças. Em 1696 foi nomeado pela primeira vez um Capitão-Mor para a Praça de Bissau. As povoações de Geba, Farim e Ziguinchor tinham um comandante militar nomeado pelo governador de Cabo Verde. Era frequente enviar-se para estes presídios e praças soldados indisciplinados e punidos, antigos corrécios, que aproveitavam todos os pretextos para se insubordinarem, ou por falta do pagamento do pré, ou pelo fardamento estar desfeito e não ser substituído ou até mesmo por falta de armamento e munições.

No século XVIII, a soberania portuguesa é francamente precária e no século XIX a história da Guiné Portuguesa continua a mover-se à volta das povoações de Cacheu e Bissau, a soberania portuguesa fazia-se sentir apenas entre os rios de Casamansa e de Bolola.


Fortaleza de Cacheu
Imagem retirada, com a devida vénia, do blogue Alma de Viajante

Perante a penúria de meios e a mais completa desarticulação dos recursos, já desde o século XVII se ensaiavam formas de administração contemplando a criação de sociedades de caráter majestático. Em 1670, apareceu a primeira Companhia de Cacheu, com o exclusivo de navegação e comércio da Costa da Guiné. Resta dizer que tudo isto não passava de uma encenação, não havia meios de controlar as frequentes incursões dos concorrentes espanhóis, franceses e ingleses. Também nessa companhia majestática surgiram abusos e irregularidades, foi sol de pouca dura. A segunda Companhia de Cacheu, designada como Companhia de Cacheu e Cabo Verde, foi criada em 1690. À semelhança da primeira, gozava de uma série de benefícios e isenção de direitos. Mais abusos e irregularidades.

Em 1755, foi criada a Companhia do Grão-Pará e Maranhão, que passou a deter o monopólio do comércio das colónias de Cabo Verde e Guiné. Para além do recurso às companhias de caráter majestático, a colonização portuguesa foi levada a cabo por habitantes de Cabo Verde a quem foram concedidas facilidades no comércio a realizar na Guiné do Cabo Verde.

Observemos agora as Praças: viveram quase exclusivamente do comércio, o que quer dizer goma-arábica, cera, algodão, a par do ouro e dos escravos. Para a obtenção dos escravos, verifica-se uma enorme concorrência entre as potências europeias e aqui se pode perceber porque é que os régulos se sentiam muitas vezes lesados pelo facto dos portugueses venderem muitas vezes produtos de qualidade inferior por preços mais onerosos que a concorrência, e por isso batalhavam Para que aparecessem mais comerciantes, que houvesse maior liberdade de comércio, os religiosos também secundavam esta liberdade de comércio.

Estamos agora no fim do século XVIII, começa a questão de Bolama quando Philipe Beaver chega a Bolama à frente de bastantes famílias, vêm com o objetivo de se estabelecerem, Portugal não dispunha de capacidade militar para ripostar e os ingleses faziam contratos com os régulos de Canhambaque e Guínala. A presença religiosa, durante quase todo o século XVI, fora das fortalezas e feitorias, teve sempre caráter esporádico e provisório, havia as visitas dos frades de Santiago que regressavam depois às ilhas após alguns meses de pregação. Também os Jesuítas não foram bem-sucedidos. Os missionários viviam em extrema pobreza, não tinham meios para manter as igrejas. Ainda foram batizados alguns régulos, mas revelou-se trabalho inconsistente. Onde a missionação teve algum sucesso foi junto dos Grumetes, que eram empregados nos trabalhos auxiliares de porto e dos navios, a designação tornou-se extensiva a todos os naturais que, convertidos ao cristianismo, adaptassem normas e apelidos portugueses.

 O islamismo penetrou na Guiné trazido pelos Mandingas, a propagação da doutrina foi um processo lento mas duradouro, com algumas originalidades de aculturação. Mandingas, Fulas e Sossos foram as etnias mais islamizadas. O islamismo, quando comparado com o cristianismo, revelava-se menos exigente para o africano, o cristianismo obrigava a uma drástica rutura com princípio em crenças ancestrais, o islamismo foi sempre mais flexível. Isto para não deixar de referir a questão elementar da monogamia e da poligamia. No termo do seu trabalho, a autora descreve a importância das confrarias (a Qadiriya e a Tidjaniya eram as mais importantes). Os missionários supunham que a conversão do régulo se traduzia automaticamente na tradução do seu povo, não se apercebiam que os régulos eram nomeados pelos conselhos dos homens grandes e estes tinham uma maior influência que o régulo junto das populações.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17109: Notas de leitura (934): “O Adeus Ao Império, 40 anos de descolonização portuguesa”, organização de Fernando Rosas, Mário Machaqueiro e Pedro Aires Oliveira, Nova Veja, 2015 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16935: Notas de leitura (918): O tráfico de escravos nos rios de Guiné e ilhas de Cabo Verde (1810-1850), por António Carreira (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Outubro de 2015:

Queridos amigos,
António Carreira é indiscutivelmente o primeiro obreiro nas investigações acerca do tráfico de escravos nos rios da Guiné, tendo-as confrontado com o seu impacto no arquipélago de Cabo Verde. Este estudo privilegia o período crítico da abolição da escravatura, decidida pelas grandes potências que estavam a postos para entrar em África. Carreira remonta a sua análise a séculos anteriores e mostra como a nossa presença era tão débil que os negreiros estrangeiros por ali circulavam impunemente. E abolida a escravatura, as autoridades de Londres matraqueavam constantemente Lisboa para que fizesse algo que impedisse o tráfico ilícito. Ficamos igualmente a conhecer quem eram os grandes traficantes instalados na Guiné, antes e após a abolição da escravatura. Estes escravos foram predominantemente para o Brasil (Maranhão e Pará) e para as Antilhas, preferencialmente para Cuba.

Um abraço do
Mário


O tráfico de escravos nos rios de Guiné e ilhas de Cabo Verde (1810-1850)

Beja Santos

Em 1981, a Junta de Investigações Científicas do Ultramar dava à estampa um ensaio a que o seu autor, António Carreira, denominou “subsídios para o seu estudo” do tráfico de escravos, no momentoso período da abolição da escravatura e do controlo praticado pelas autoridades britânicas.

Carreira tinha à sua disposição uma matéria-prima indiscutível, os livros alfandegários. Porque os navios que se dirigissem àquelas paragens, quer dos contratadores, quer dos traficantes, teriam obrigatoriamente de registar a entrada na Alfândega da Ribeira Grande, de Santiago, e aí receber o língua (intérprete) para então rumar aos rios. E completada a carregação do navio, este era obrigado a voltar à Ribeira Grande a fim de fazer o despacho, pagar os direitos e então seguir para os portos de destino. Nas praças da Guiné fazia-se o controlo da saída de escravos, era deste modo que se assegurava os recursos financeiros derivados da ocupação das ilhas de Cabo Verde, procedimento que não agradava às autoridades dos rios, e muito menos aos traficantes. A Coroa tinha plena consciência do papel da Ilha de Santiago no apoio ao comércio dos rios e à navegação de longo curso para o Brasil.

Após a Restauração, surgiu a ideia de autorizar o despacho dos navios nos portos de carregamento em vez de irem fazê-lo a Cabo Verde. Há um despacho do Concelho Ultramarino que nos permite saber que “antes da aclamação de El-Rei D. João IV saíam todos os anos de Cacheu para as Índias de Castela 2 ou 3 mil escravos e agora não chegavam 600”. E assim se legalizou a saída direta dos rios da Guiné para o Brasil dos navios de escravos. Aumentou o tráfico clandestino, era impossível a quem estava em Cacheu, Ziguinchor e Bissau inspecionar tão vastíssimas águas. Em litígio com Espanha, o monarca português pretendia dificultar ao máximo o fornecimento de escravos às Índias de Castela, fazendo desviar a corrente do tráfico para o mercado do Brasil. Mas não foram medidas as consequências de que tal medida vibrava um duríssimo golpe a toda a economia de Cabo Verde. Entretanto, a Coroa pretendeu dar alguma autoridade à Praça de Cacheu: criaram-se cargos de Provedor da Fazenda Real, de Feitor e de Escrivão; passou a exigir-se a rigorosa escrituração dos direitos cobrados e, ainda, que “os navios que saírem de Cacheu, em direção ao Brasil serão obrigados a apresentar certidão do número de escravos despachados naquela praça”. Logo a seguir, outra lei procurou corrigir ou atenuar os efeitos da anterior, isentando pessoas que da Guiné embarcassem escravos para Cabo Verde a pagar direitos. Como observa Carreira, a medida foi habilmente aproveitada pelos traficantes sediados em Cabo Verde que passaram a comprar escravos nos rios, traziam-nos para o arquipélago e depois exportavam-nos para as Antilhas e o Brasil. No final do século XVII, deu-se ordem à Companhia de Cacheu e Cabo Verde a construir a fortaleza de Bissau.

Voltando à questão das taxas de direitos a incidir sobre escravos, os regimentos e provisões mostravam-se formalmente rigorosos: a proibição de qualquer tipo de comércio com estrangeiros; a perseguição dos tangomaos nos rios da Guiné; a fiscalização rigorosa de todos os escravos e marfim antes dos navios partirem.

É nestas consultas que Carreira consegue apurar números sobre os escravos. No período de 1756 a 1777 em que o setor dos rios de Guiné e Cabo Verde esteve sob a administração direta da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão esta empresa exportou mais de 20 mil escravos para o Maranhão, para o Pará e para Cabo Verde. Carreira adianta que os números compulsados andarão longe da realidade, terão saído mais escravos do que os registados.

Em fins do século XVIII, o governo criou a Sociedade do Comércio Exclusivo das Ilhas de Cabo Verde e Rios da Guiné, era a sucessora da Companhia do Grão-Pará. Pouco se conhece da sua atividade. Conhecem-se os direitos de saída exatamente no momento em que se prepara a abolição da escravatura. A tabela pela entrada estipulava o seguinte: escravo lotado, 1800 réis; mascavado, 1200 réis; mulecos, 900 réis, mulecos fêmeas, 800 réis; mulecos mascavados, 400 réis.

A economia cabo-verdiana afundava-se, e a agravar o estado geral da crise sobreveio a grande fome em 1772-1774 que vitimou cerca de 22 600 pessoas numa população de 70 000. A economia das ilhas apoiava-se no apanho da urzela e da tecelagem de panos da terra. A urzela dora desde sempre o produto-base de exportação para a Europa, onde se aplicava na tinturaria de tecidos finos. Mas a economia portuguesa não podia absorver tanta urzela e a coroa declarou-se incapaz de acudir à crise de negócios nas ilhas e deu o monopólio a um negociante, o Sargento-Mor Manuel António Martins, monopólio que durou 19 anos. Outros acontecimentos políticos, na aurora do liberalismo, avassalaram Cabo Verde. As autoridades de Lisboa deportaram sob a acusação de miguelista o Batalhão de Infantaria n.º 21, afeto a D. Miguel, que o vulgo alcunhou de “Batalhão Caipira”, iniciava-se um período de tumultos, que acabou com fuzilamentos.

Os rios da Guiné, o comércio geral decaía, a navegação estrangeira por ali andava impune. E nos rios da Guiné estalaram os conflitos étnicos que se irão prolongar até aos últimos anos do século XIX, o principal acontecimento foi a derrota dos Mandingas face aos Fulas. É um período que possibilitou a proeminência de algumas famílias abastadas como Carvalho de Alvarenga e João Marques de Barros. Carreira apresenta uma folgada lista de reinóis (naturais do reino) e cabo-verdianos, e dá-nos conta das atividades de duas importantes figuras: o Coronel Joaquim António de Matos, reinol, e Caetano José Nosolini, cabo-verdiano.

Após o Congresso de Viena, a proibição da escravatura entrou na ordem do dia, mas foram décadas em que o tráfico prosseguiu, inclusive os navios espanhóis apoiados em Cabo Verde navegavam com a bandeira portuguesa. Teve expressão o apresamento, Carreira dá os números, são impressionantes. As exigências diplomáticas de Londres eram muito fortes, é o caso da carta que em Maio de 1835 o embaixador inglês Howard de Walden comunicou ao ministro português o apresamento de uma escuna transportando a bordo 164 escravos pertencentes ao governador de Bissau. Num relatório do diretor de Alfândega de Bissau, datado de 22 de Dezembro de 1857 e dirigido ao Visconde de Sá da Bandeira, afirma-se que em 1842 se cessou a exportação de escravos de Bissau e Cacheu. Não terá sido assim, pois em 1849 há uma nova carta britânica emanada do ministério dos Negócios Estrangeiros referindo que continua a ter lugar a presença de navios negreiros. E Carreira termina dizendo que embora esta questão não tenha sido posta num tom altamente admoestador, tudo indica que tinha havido um recrudescimento do tráfico ilícito nos rios da Guiné.

E quando o tráfico desapareceu completamente, havia que descobrir outras potencialidades para o desenvolvimento económico. É nesta altura que se olha a sério para a Guiné como forte fornecedor de alguns produtos agrícolas.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de Janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16924: Notas de leitura (917): A Libertação da Guiné, de Basil Davidson, Penguin Books, 1969 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16770: Notas de leitura (906): “António Carreira, Etnógrafo e Historiador”, por João Lopes Filho edição da Fundação João Lopes, Praia, Cabo Verde, 2015 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Outubro de 2015:

Queridos amigos,
Correndo o risco de repetir o que sobre António Carreira escreveu a historiadora Maria Emília Madeira Santos, deve-se a este investigador que percorreu toda as etapas da administração colonial a partir dos 16 anos, que frequentou a Escola Superior Colonial e concluiu com alta classificação alguns dos estudos que ainda continuam incontornáveis na historiografia da Guiné Portuguesa, isto a propósito das companhias majestáticas, do tráfico de escravos e da presença dos portugueses nos rios da Guiné entre 1500 e 1900.
Dos seus trabalhos etnográficos, a investigação sobre Mandingas continua a não oferecer contestação e de altíssima importância se mantém a sua laboriosa investigação sobre a panaria cabo-verdiano-portuguesa.
Este livro é uma homenagem de cabo-verdianos, visto que Carreira nasceu em Cabo Verde. É lastimável que o seu nome se mantenha numa semiobscuridade no tocante às universidades portuguesas.

Um abraço do
Mário


António Carreira, etnógrafo e historiador, por João Lopes Filho

Beja Santos

“António Carreira, etnógrafo e historiador” é o título da obra que João Lopes Filho editou na Fundação João Lopes, Praia, Cabo Verde, em 2015 e apresentou na Sociedade de Geografia de Lisboa. Para quem estuda a Guiné Portuguesa e a Guiné-Bissau, António Carreira é um nome cuja importância é mais do que relevante. Nasceu em 28 de Outubro de 1905 na Ilha do Fogo e faleceu em 22 de Abril de 1988. Foi para a Guiné com 11 anos. Aos 16, ingressou na Função Pública, onde permaneceu entre 1921 e 1954. Subiu a escada a pulso: foi capataz de estradas, Aspirante dos Correios e Telégrafos, Aspirante do Quadro Administrativo, Secretário de Circunscrição Civil e Administrador de Circunscrição Civil. Frequentou os Altos Estudos da antiga Escola Superior Colonial, tendo concluído o curso em 1949. Em 1950 foi nomeado Delegado Geral do Censo da População da Guiné. Em 1953, foi condecorado com a medalha de serviços distintos e relevantes no Ultramar pela sua brilhante atuação em serviços importantes da Administração Pública e pela publicação de estudos de índole etnográfica de indiscutível valor.

Reformado da Função Pública em 1954, passou a trabalhar na Casa Gouveia. Foi no exercício dessas funções que o seu nome ficará associado aos acontecimentos de Agosto de 1959, o chamado massacre do Pidjiquiti. Comenta a propósito o historiador Carlos Reis: “O Dr. António Carreira era essencialmente o responsável pelo massacre do cais do Pidjiquiti, enquanto gerente da Casa Gouveia, de acordo com as informações que tínhamos e que, só anos mais tarde se veio a saber não serem exatas. Hoje, sei que o facto de ele ter participado à Polícia que a carga da casa comercial que dirigia não estar a ser movimentada porque os estivadores tinham decidido entrar em greve, é algo que qualquer pessoa comum, naquela época, também faria se estivesse no seu lugar”.

Vinte anos mais tarde, Carreira reconhecia que, “os governantes da Guiné têm-se manifestados hostis à minha pessoa por razões ligadas aos acontecimentos do Pidjiquiti, em 1959, endossando-me a responsabilidade da ocorrência. Ora eu não me sinto com nenhuma responsabilidade direta no caso (…) o que para mim se aparenta curioso é que nunca tivessem apontado os autores materiais do caso: o Comandante Militar, o Comandante da PSP e os restantes agentes do Governo”.

Reformado após uma longa dedicação profissional, Carreira passou a residir em Lisboa, onde se dedicou à investigação científica. Em 1962, passou a fazer parte da equipa do Prof. Jorge Dias, no então criado Centro de Estudos da Antropologia Cultural. Carreira exerceu docência na qualidade de professor convidado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

Frequentava o Centro de Cartografia Antiga onde ia visitar o seu diretor a amigo, Teixeira da Mota. Aprendeu a falar Fula, Mandinga e Manjaco, o que lhe facilitou a elaboração de trabalhos no campo da etnografia, com destaque para: Mandingas; Costumes Mandingas; Vida, religião e morte dos Mandingas; Mandingas da Guiné Portuguesa; Vida Social dos Manjacos; Subsídios para o estudo da língua Manjaca; Mutilações corporais e pinturas cutâneas dos negros da Guiné Portuguesa; Movimento natural da população não civilizada da circunscrição de Cacheu e censo geral da população não civilizada, em 1950.

Realce-se a ligação de Carreira à etnografia, através do seu envolvimento na criação do Museu de Etnografia a convite de Jorge Dias. A partir de 1956, Jorge Dias mudou-se para a Escola de Administração Colonial, mais tarde Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas Ultramarinas. Foi no contexto do desenvolvimento académico da disciplina de Antropologia que fez uma viagem até à Guiné, onde conheceu Carreira através de Teixeira da Mota. O ponto de partida deste museu foi feito com base em recolhas no decurso das missões de estudo das minorias étnicas do Ultramar Português. Em 1962, Jorge Dias criou o Centro de Estudos de Antropologia Cultural, tutelado pela Junta de Investigações do Ultramar. Era uma equipa de luxo, composta por Jorge Dias, Benjamim Enes Pereira, Fernando Galhano e Ernesto Veiga de Oliveira. Jorge Dias incentivou Carreira a recolher objetos africanos no contexto do processo museológico. Tudo indica que Carreira regressou da sua primeira missão de recolha e estudo a Angola, em 1965, com uma coleção composta de 1194 peças. Em 1972, realizou-se a exposição “Povos e culturas”, era a primeira manifestação pública do Museu de Etnologia. Carreira trabalhou ativamente neste projeto, contribuindo com cerca de 3500 peças.

Voltando um pouco atrás, recorde-se que desde 1964 Carreira publicou no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa artigos de história e etnologia sobre a chamada Costa da Guiné e sobre o arquipélago de Cabo Verde. Em 1965, terminou um dos seus livros mais apreciados, “Panaria cabo-verdiano-guineense”.

A sua bibliografia referente à Guiné mantém-se ao melhor nível, deve-se a Carreira importantes estudos sobre “As Companhias Pombalinas de Navegação, Comércio e Tráfico de Escravos entre a Costa Africana e o Nordeste Brasileiro”; igualmente nesta linha publicou “Notas sobre o tráfico português de escravos", tem um título de grande importância, “O tráfico de escravos nos rios da Guiné e ilhas de Cabo Verde (1810-1850): subsídios para o seu estudo”; um dos seus últimos livros é um trabalho incontornável: “Os portugueses nos rios da Guiné: 1500-1900".

Dele, escreveu a historiadora Maria Emília Madeira Santos: “Pode dizer-se que a História de África, em Portugal, recebeu de António Carreira o impulso decisivo que ainda hoje continua a fazer-se sentir nos estudos dos jovens historiadores, nas temáticas de encontros científicos e nos objetivos dos atuais centros de história de África. Foi António Carreira que teve a coragem e a inspiração de colocar, pela primeira vez em português, os africanos escravos ou livres, no centro de gravidade da História de África e da História do Atlântico”.
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16760: Notas de leitura (905): "Adeus África - A Hiistória do Soldado Esquecido", romance de João Céu e Silva, Guerra e Paz, 2015 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Guiné 63/74 - P16033: Nota de leitura (834): Panos de Cabo Verde e Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)

Pano guineense

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Junho de 2015:


Queridos amigos,


Há quem esqueça que as esculturas Nalus e Bijagós são exibidas nalguns dos museus mais exigentes em todo o mundo.

Dentro do artesanato há igualmente expressões de grande valor, mostra de grande sensibilidade, é o caso da panaria, o tecer foi trabalho dos escravos transportados da Senegâmbia para Cabo Verde, o tecer na África Ocidental está documentado desde os tempos mais remotos.

A exposição de que iremos falar realizou-se em 1996 no Museu Nacional de Etnologia e foi um senhor acontecimento, destinada a graúdos e miúdos, muitíssimo bem documentada, foi um primor. Bom seria que estes panos que fazem parte de um riquíssimo acervo do museu deambulassem pelas escolas e pelas localidades onde reside a comunidade guineense instalada em Portugal.

Um abraço do
Mário


Panos de Cabo Verde e Guiné-Bissau

Beja Santos

Entre Abril e Novembro de 1996 decorreu no Museu Nacional de Etnologia a exposição Panos de Cabo Verde e Guiné-Bissau. Por diferentes títulos, foi uma exposição modelar. O museu possui um acervo riquíssimo de panaria cabo-verdiana e guineense. A ideia central da exposição foi a de propor um diálogo com as comunidades cabo-verdianas e guineenses, pensou nos mais novos e em divertimentos multiculturais. Preparou-se igualmente uma excelente documentação, corrigiram-se informações que permitiram avaliar as mutações ocorridas desde a criação do museu (anos 1960) e o fim do século XX. O ponto de partida foi o livro de referência de António Carreira, "Panaria Cabo-Verdiana-Guineense", de 1968, reeditado pelo Instituto Cabo-Verdiano do Livro em 1983.

É sobre a rica documentação produzida que vamos dizer alguma coisa. Nos países da África Ocidental ao Sul do Saara – numa área situada entre o Senegal, a Oeste, e os Camarões a Este – há a tradição de os tecelões produzirem panos de algodão de bandas estreitas, que geralmente não ultrapassam os 25 centímetros de largura, em teares horizontais. Este pano de bandas estreitas é a expressão da tradição e da inovação na tecelagem de Cabo Verde e da Guiné, e está mesmo presente na vida dos emigrantes.

Perde-se na noite dos tempos a tecelagem na África Ocidental, nos apontamentos refere-se a importância da tecelagem no Reino do Gana, por exemplo. Os relatos dos séculos XV e XVI sobre os povos africanos com que se estabeleceram relações comerciais e de amizade dão-nos conta da antiguidade da tecelagem. Cadamosto e Valentim Fernandes referem que a maior parte da gente andava nua mas as mulheres e os homens de estatuto superior usavam roupas de algodão, panos e camisas, compridas e de mangas largas. Os panos vincavam o estatuto social e a hierarquia política dos seus possuidores. Esta tecelagem tem origem em Cabo Verde e depois migrou para a Guiné, onde o pano de bandas continua a ter um papel importante nos momentos ritualizados dos diferentes grupos étnicos; em contratos e cerimónias de casamento muçulmano, nos funerais e no amortalhamento de cadáveres, no pagamento de práticas de adivinhação. Escreve-se nos apontamentos desta exposição que Fulas e Mandingas, no pedido de casamento, a mãe da noiva recebe do emissário do noivo bandas brancas de algodão. Refere-se mais adiante que o vestuário tradicional dos Fulas e dos Mandingas islamizados é o pano de bandas azul-escuro ou claro tingido pelo Saracolés. Os Manjacos e os Papéis usam panos com decoração elaborada e com grande semelhança com a panaria cabo-verdiana.

Era explicado na exposição que os panos apresentados tinham sido recolhidos em 1963, na Guiné, por Fernando Quintino, e em 1964 e 1970, em Cabo Verde, por António Carreira. Os currículos e a vida de investigação de Quintino e Carreira aparecem muito bem detalhados.

Depois produziu-se documentação para o meio escolar, a história dos panos contada na escola. Diz-se concretamente que no século XV já se exportava bastante algodão para Portugal, Flandres e Espanha, e foi com este produto que se passaram a fabricar, a partir do segundo quartel do século XVI, milhares de panos com os quais se adquiriam por compra, escravos na Costa da Guiné.

A produção de panos em Cabo Verde está diretamente relacionada com os primeiros contingentes de escravos que vêm da Guiné (entenda-se, a Grande Senegâmbia). Assim o tecelão surgiu em Cabo Verde com o escravo africano. Sobre o pano artesanal na Guiné-Bissau e a sua recuperação nos anos de 1980 escreve Isabel Mesquitela, alguém de quem aqui se já se falou. Isabel Borges Pereira Mesquitela foi para a Guiné-Bissau em 1986, descobriu que a panaria guineense tinha praticamente desaparecido, procurou contribuir para a recuperação de uma arte ancestral de grande beleza. O declínio da panaria manifestou-se nos anos 1960, entre um pano de importação europeia e um pano produzido num tear Manjaco o preço podia variar sete vezes mais. Para essa recuperação, como ela escreve, selecionou-se Calequisse, Bafatá e Gabu: Calequisse era considerada o berço dos tecelões Manjacos, em Bafatá viviam famílias de tintureiros Saracolés, e o Gabu por ter uma tecelagem diferente da dos Manjacos. Vale a pena ler o que ela escreve:

“A importação do fio de algodão fiado nas fábricas portuguesas, o grande desejo dos velhos artesãos voltarem aos teares, a valorização e promoção dignificada do pano e as boas condições económicas proporcionadas aos tecelões, foram os agentes fundamentais para sucesso da empresa M’Banyala, Panos da Guiné-Bissau (a palavra é de etnia Manjaca e significa mostra de bandas)”.

Noutro contexto, Isabel Mesquitela confessou o seu desalento quando, a partir de 1994, não pôde prosseguir com o seu projeto empresarial, tais e tantos foram os condicionalismos impostos que desviaram de forma drástica os índices de qualidade e de beleza que sempre caracterizaram a tecelagem guineense. Ela escreveu um livro sobre o pano artesanal na Guiné-Bissau, socorreu-se do clássico de António Carreira “Panaria Cabo-Verdiana-Guineense”, descreve minuciosamente o tear Manjaco/Papel e o que o distingue do tear Fula. Explicando como estes panos são feitos em peças chamadas bandas fala da panaria. Um pano de banda estreita mede aproximadamente 1,2 m x 1,8 m. É constituído por seis bandas de aproximadamente 0,2 m x 1,8 m. Às barras transversais das pontas chamam “boca” e o padrão em si, entre duas bocas é denominado corpo. Isabel Mesquitela elenca os padrões recuperados. Dá igualmente atenção ao pano tingido que tem longa história nesta região de África. Segundo António Carreira, os Mandingas eram bastante entendidos na arte de tingidura de panos.

Esta exposição que decorreu no Museu Nacional de Etnologia produziu documentação do maior interesse, incluía mesmo legendas e explicações sobre as peças expostas e incluía glossário explicando, entre outros termos, o que eram anil, banda, pano, pano boca-branca ou pano de pente ou pano d’obra.

Creio que foram deixados vários aliciantes para uma visita ao Museu Nacional de Etnologia. A panaria guineense merece ser conhecida.
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de abril de 2016 Guiné 63/74 - P16013: Nota de leitura (833: “A descolonização da Guiné-Bissau e o movimento dos capitães”, por Jorge Sales Golias, Edições Colibri, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13905: Notas de leitura (651): 1 de Novembro de 2014, na Feira da Ladra (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Novembro de 2014:

Queridos amigos,
Chego ao fim dos meus comentários quanto ao que adquiri neste memorável 1 de Novembro na Feira da Ladra.
É tudo uma questão de paciência, permanecendo acocorado diante de caixas de onde saem imagens díspares; é tudo uma questão de paciência, percorrer bancas e ir perguntando. Ali tudo se encontra, aerogramas, distintivos militares, mas o espírito seletivo não pode transigir com tanto material imperial, só a Guiné e colaterais é que contam.
Este trabalho de António Carreira é soberbo é dá muito que pensar como foi possível endeusar uma unidade política com base em escassos filamentos e articulações históricas económicas. Mas é assim a imaginação do homem, quando tem um fito considerado superior por vezes não olha a meios.

Um abraço do
Mário


1 de Novembro de 2014, na Feira da Ladra (3)

Beja Santos

“Cabo Verde, Aspetos Sociais, Secas e Fomes do Século XX”, por António Carreira, Ulmeiro, 1984, foi a minha última aquisição numa viagem coroada de êxitos em manhã ensolarada. A grande, a grande pechincha, ficou à guarda de um alfarrabista amigo, já não tinha cabedal para trazer os vários quilos de “As grandes polémicas portuguesas”, uma obra de estalo da nossa cultura, venho ajoujado com a Guiné e este precioso trabalho de António Carreira de Cabo Verde.

Se a ele vou dedicar reflexões neste espaço é porque a sua leitura permite desvelar a coesão de um povo, coesão e especificidade, muito rapidamente se fica a entender que aquele slogan da unidade Guiné e Cabo Verde não sendo vazio era destituído da lógica da razão.

Primeiro, as nomenclaturas do arquipélago, nomes portugueses, genuinamente portugueses: Santiago, Mário, Fogo, Brava, ilhéus de Santa Maria, S. Antão, S. Vicente, S. Luzia, S. Nicolau, Sal e Boa Vista, ilhéus dos Pássaros, Branco e Raso.

Segundo, uma organização social típica de um empreendimento povoador com senhores, plebeus, homens de ofícios e degredados, depois os mestiços, o caldeirão da crioulidade. E os escravos, como a maioria. E António Carreira tece um elucidativo comentário sobre as raízes euro-africanas: “Em todo o desenvolvimento deste processo de formação de classes teve influência decisiva o modo como foram distribuídas as terras e se constituíram as grandes fazendas, virtualmente em Santiago e no Fogo. Nestas duas ilhas as melhores terras e as de maiores superfícies tinham sido distribuídas aos reinóis e a estrangeiros feitos morgados por cartas régias; ao passo que em Barlavento se seguiu o sistema de concessões segundo a lei de sesmarias, dando-se a cada agregado familiar uma parcela para a satisfação das suas necessidades e por forma a garantir a sua fixação”. Diferente, profundamente diferente do povoamento que ocorreu na Madeira e nos Açores mas com paralelismos gritantes, a marca profunda da cultura líder que determinou a aculturação, e que chegou aos dias de hoje.

Terceiro, uma região cronicamente assolada por secas e fome, António Carreira deixa-nos aqui páginas pungentes de sofrimento e horror nestas sucessivas crises, cuja última, antes da independência, a de 1947/1948, foi tremenda. Secas influenciadas pelo deserto de Sara, pragas depredadoras e um crescimento populacional explosivo que incitou à emigração, e que levou o cabo-verdiano para os Estados Unidos, para Portugal, para o Senegal e para a Guiné e também para os Países Baixos, entre outros destinos.

Quarto, uma região com unidade religiosa, o primeiro bispado de África aconteceu aqui. E uma religião que proporcionou a difusão do ensino. O bispado de Cabo Verde foi criado em 1533, o seu cabido era constituído por 17 dignidades compreendendo mestres de escola, mestres de gramática e leitores de moral. Santiago, em 1582, tinha 11 freguesias e respetivo pároco. A partir de 1570, os párocos recebiam um estipêndio para ensinar doutrina cristã ao povo, nos tempos e pela maneira que o perlado ordenara, o mesmo é dizer o ensino das primeiras letras.

Quinto, a própria composição dos grupos sociais. Temos o emigrante cabo-verdiano letrado que passa a substituir o “branco da terra” nos lugares cimeiros. Não é por acaso que os postos da administração de Angola e da Guiné têm cabo-verdianos. A percentagem de brancos em Cabo Verde foi sempre baixa em todos os tempos, o que existe é o branqueamento da população, os mestiços, de um modo geral orgulhosos pela sua ascendência.

Sexto, a estrutura familiar cabo-verdiana é ímpar. Em regra, aportaram às ilhas homens brancos desacompanhados das suas mulheres. Pacificamente, constituíam família com mulheres locais, tudo isto era feito sem constrangimento, os relatos são elucidativos de como todos estes brancos se acasalavam, até o clero. É uma estrutura familiar sem qualquer paralelo em África. Julgou-se durante muito tempo que o espírito de cooperação, de entreajuda das comunidades rurais era algo que vinha de África, vinha dos escravos submetidos à disciplina das fazendas agrícolas. Sabe-se que no Norte de Portugal sempre houve a tradição comunitária em todas as fainas agrícolas, é uma hipótese que tenha sido transferida para Cabo Verde, a questão continua em aberto.

Sétimo, o cabo-verdiano é um ilhéu que sonha em emigrar, tem mesmo uma história dramática de emigração compulsiva para outras partes de África. A emigração para o estrangeiro começou muito cedo, através dos navios baleeiros americanos quando estes vinham aos mares do arquipélago à apanha de cetáceos. O estudo de Carreira mostra a importância que os EUA sempre tiveram na emigração cabo-verdiana. Bem assim como Portugal, Dakar-Gâmbia e Guiné. A guerra colonial acentuou a presença cabo-verdiana em Portugal, por falta de mão-de-obra de quem estava a combater ou emigrara para a Europa rica. A construção civil, o trabalho mineiro, os serviços de limpeza da cidade e áreas suburbanas, atraíram cabo-verdianos. O cabo-verdiano tem gosto pela aventura, sofre da “ânsia de invasão”, acultura-se bem. Aprendeu e permutou atividades semi-industriais, caso do fabrico de açúcar de cana, artesanato de têxteis (algodão, lã de carneiro e anil) e panaria (muito bela e original com mais de três séculos e meio). A internacionalização dos mercados pôs termo a muitas dessas atividades. A falta de chuvas, a erosão dos solos, os deficientes sistemas de amanho e preparação das terras foram pondo termo à base de subsistência do cabo-verdiano.

Ilhas povoadas por brancos (muitos deles degredados), gentes da Senegâmbia, um povoamento com características senhoriais e feudais, uma presença religiosa desde a primeira hora, e temos um povo engenhoso, um misto de África e da Europa que se espelha na alimentação, na cultura, na música, na vontade de partir sempre com saudade a marcar a distância. O livro de António Carreira é bastante elucidativo com os dados que apresenta sobre a geografia, a demografia, a organização social, a estrutura familiar. Uma superfície de aproximadamente 4 mil quilómetros quadrados, com jornais e revistas, com um leque precioso de bons escritores, com um gosto entranhado pelo seu património histórico bem tratado, e um povo orgulhoso pelas suas raízes e pela sua abertura. Este mesmo António Carreira em 1968 escreveu um artigo sobre a unidade da Guiné e Cabo Verde, fez declarações genéricas sobre a miscigenação e o estreitamento cultural e económico, com base na presença cabo-verdiana na Guiné. Lendo agora este ensaio, vê-se claramente que o cabo-verdiano é muito mais que africano, tem uma identidade própria não consentânea com parentelas continentais. Percebe-se hoje como Amílcar Cabral usou de tal bandeira para recrutar quadros. Mas a grande diferença não pôde ser mascarada por muito tempo. Agora, as feridas terão que sarar até que os dois países retomem a confiança e a solidariedade sentidas.
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de Novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13889: Notas de leitura (650): 1 de Novembro de 2014, na Feira da Ladra (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13100: Notas de leitura (586): "O Tráfico de Escravos nos Rios da Guiné e Ilhas de Cabo Verde (1810-1850)", por António Carreira e "Mário Soares e a Revolução", por David Castaño (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Novembro de 2013:

Queridos amigos,
António Carreira é um nome incontornável de toda a historiografia da Guiné portuguesa.
Neste seu trabalho publicado em 1981, de forma esquemática dá-nos um quadro das últimas décadas do comércio negreiro, e quando chegou o seu termo qual foi o profundo impacto que teve nas economias de Cabo Verde e dos rios da Guiné.
Com base nestes elementos, pode igualmente estender-se o estudo às consequências do “povoamento” cabo-verdiano no espaço guineense, agora direcionado para a economia agrícola.

E sugere-se a leitura de um livro que adapta a tese de doutoramento de David Castaño para se ter uma visão integrada, do lado português, do conjunto de vicissitudes em que decorreu o processo de reconhecimento da independência da Guiné-Bissau onde Mário Soares teve um papel de indiscutível relevo.

Um abraço do
Mário


O tráfico de escravos nos rios da Guiné na 1ª metade do século XIX

Beja Santos

Devemos a António Carreira algumas das mais significativas peças da historiografia envolvendo a Guiné Portuguesa bem como Cabo Verde. No seu trabalho “O trafico de escravos nos rios de Guiné e Ilhas de Cabo Verde (1810-1850)”, edição do Centro de Estudos de Antropologia Cultural da Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1981, que Carreira chama subsídios ou sucintas notas que possam contribuir para o esclarecimento de alguns dos variados e complexos problemas do tráfico negreiro na área geográfica situada entre o rio Senegal e a Serra Leoa, revelam-se algumas surpresas que os estudiosos não podem ignorar.

O proeminente investigador começa por recordar os pontos fundamentais da regulamentação do tráfico nos rios de Guiné e ilhas de Cabo Verde. Quando se fazia um contrato de arrendamento de uma área de tráfico ficava acordado que os navios que se dirigissem àquelas paragens teriam obrigatoriamente de registar a entrada na Alfândega de Ribeira Grande, de Santiago; e completada a carregação do navio, este era obrigado a voltar à Ribeira Grande, pagar os direitos devidos e depois seguir para os portos de destino. As autoridades das praças da Guiné ficavam, pois, limitadas a fiscalização e cobrança de propinas pela entrada de mercadorias, com este dinheiro pagavam-se os seus ordenados. Também deste modo se controlava a saída de escravos. A situação não era do agrado tanto das autoridades dos rios como dos traficantes, era uma operação morosa que agravava despesas e acarretava mortandade nos escravos. Mas a Coroa não transigia no papel da ilha de Santiago no apoio ao comércio dos rios. Com a Restauração, surgiu a ideia de se autorizar o despacho dos navios nos portos de carregamento, o que permitia o pagamento de direitos dos escravos em Cacheu destinados aos portos do Brasil. Esta medida concorreu para aumentar o tráfico clandestino que não era detetado pelas autoridades de Cacheu, Ziguinchor e Bissau, o resto era verdadeira “terra de ninguém”. A Praça de Cacheu recebeu um provedor da Fazenda e era obrigada a rigorosa escrituração. Traficantes sediados em Cabo Verde passaram a comprar escravos nos rios, levando-os para o arquipélago e depois exportando-os tanto para as Antilhas como para o Brasil. Acelerou a concorrência estrangeira, a legislação torna-se ineficaz, criou-se a Companhia de Cacheu e Cabo Verde e assim se levou por diante a construção da fortaleza de Bissau. Carreira enuncia a cobrança de taxa por escravo e a sua evolução. Compulsada a documentação, Carreira chegou a números de escravos destinados ao Maranhão, ao Pará e outras paragens, no século XVIII Cabo Verde deixara de servir de entreposto à exportação de escravos.

Pelo Tratado de Viena de 22 de Setembro de 1815 decretou-se a proibição do tráfico de escravos ao norte do Equador. Em 1836, a legislação portuguesa decretava “proibida a exportação de escravos, seja por mar, seja por terra, em todos os domínios portugueses sem exceção, quer sejam situados ao norte, quer ao sul do Equador”. Mas no período intercalar havia taxa de direitos de entrada no Brasil oriundos dos rios da Guiné e Cabo Verde, o que significa que os acordos eram para inglês ver. O que Carreira observa é que se assistiu a um declínio do tráfico lícito e ao agravamento da crise económica e financeira na região dos rios da Guiné e o arquipélago de Cabo Verde. Cabo Verde assistia ao definhamento dos pequenos comerciantes, em 1772-1774 houve uma grande fome, uma hecatombe que inviabilizou a recuperação económica. A economia cabo-verdiana teve de se recentrar no apanho da urzela e na tecelagem de panos. As crises sucediam-se e a Corte declarou-se incapaz de acudir à crise de negócios nas ilhas.

Nos rios da Guiné também o comércio em geral decaia, os Djilas tornaram-se figuras de indiscutível importância. É neste contexto que os espanhóis que sempre tinham fugido a embrenhar-se diretamente no tráfico de escravos, passaram a fornecer mercadorias diversas e dinheiro aos traficantes cabo-verdianos – era a corrida ao abastecimento de Cuba. Escreve Carreira: “De 1835 a 1839 circulavam na área, afetos ao tráfico clandestino de escravos, 55 navios registados em nome de cabo-verdianos (…) A um mesmo tempo nos rios da Guiné os conflitos entre as diversas etnias do território, longe de se aplanarem, prolongar-se-iam até aos últimos anos do século XIX, com as inevitáveis repercussões nas relações comerciais e sociais entre as gentes do mato e as das praças e presídios. Entre 1820 e 1850 estes núcleos eram, no Norte (Cacheu e Ziguinchor), liderados por algumas famílias abastadas e em Geba e Bissau treze negociantes principais".

Carreira dá-nos um quadro da atuação do coronel Joaquim António de Matos e de Caetano José Nosolini, dois dos principais negociantes de escravos da época, fica com má imagem dos diferentes locais onde se iam abastecer e em que quantidades. Nosolini será protagonista das incursões inglesas em Bolama em tempos de grande tensão em que a Grã-Bretanha se julgava com direito absoluto sobre a ilha de Bolama.

Por último, uma palavra sobre o combate ao tráfico a cargo dos cruzeiros britânicos e o aprisionamento de navios e de escravos. De 1835 a 1839, com escravos a bordo foram referenciados 36 armadores com um total de 55 navios, 39 foram condenados a penas de multa, com ou sem confisco do casco e carga; do conjunto de navios, 15 eram espanhóis e 40 portugueses. Havia também navios considerados “suspeitos” já que transportavam apenas mercadorias destinadas ao “negócio da escravatura” (aguardente, pólvora, espingardas, terçados, barras de ferro, tabaco, vinho…). Para além destas mercadorias, também estavam sujeitos a apresamento os navios que tivessem escotilhas com grades abertas; gargalheiras, algemas, anjinhos, cadeias ou outros instrumentos de contenção, quantidade extraordinária de selhas, gamelas ou bandejas para a distribuição do rancho, quantidade extraordinária de comida, etc. A confiar na documentação existente, o comércio de escravos reduziu-se bastante a partir de 1841 devido à vigilância dos cruzeiros britânicos. Carreira considera que encontrou uma reduzida documentação, deparou-se com lacunas nas fontes de informação e foi forçado a desistir do propósito do seu estudo.

Imagem retirada do site Revista de História.com.br, com a devida vénia

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Leitura recomendada: "Mário Soares e a Revolução", por David Castaño

“Este livro procura responder a uma simples questão: ao conseguir traçar o seu próprio destino terá Mário Soares contribuído para condicionar e alterar o destino coletivo?”.
Com base na sua tese de doutoramento, o historiador David Castaño procura apresentar um retrato rigoroso e objetivo da afirmação política de Mário Soares nos anos decisivos da revolução de Abril. Trata-se do livro “Mário Soares e a Revolução”, por David Castaño, Publicações Dom Quixote, 2013.

Em síntese, e exclusivamente para os propósitos desta nota, Castaño começa por descrever a formação ideológica de Soares, a sua passagem pelo PCP, as principais etapas da sua oposição ao Estado Novo, a formação da Ação Socialista (embrião do PS), o seu exílio em Paris, o regresso em 28 de Abril de 1974, momento em que se encontra pela primeira vez com Spínola que imediatamente lhe pede apoio para publicitar os propósitos do levantamento militar junto de instâncias internacionais, com relevo para os partidos da Internacional Socialista. É nessa ocasião que Soares pede a Spínola um esclarecimento que reputa de fundamental, quer conhecer o seu desenvolvimento, direito ou indireto, no assassinato de Amílcar Cabral. Spínola responde-lhe prontamente que não teve qualquer comprometimento com a morte de Cabral.

Soares começa o primeiro périplo europeu como enviado da Junta de Salvação Nacional. Após a formação do primeiro governo provisório inicia-se o processo que conduzirá à descolonização. Recomenda-se a todos os interessados por conhecer o enquadramento das diligências que levaram aos acordos de Argel e ao reconhecimento do PAIGC pelo Estado português que consultem esta obra entre as páginas 115 e 168, está aqui o registo das conversações, das tensões entre Spínola e Soares e as manobras diplomáticas desenvolvidas em vários continentes.

É indiscutivelmente uma súmula de factos que dão a visão do lado português desses momentos cruciais que conduziram de facto à independência da Guiné-Bissau.
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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE MAIO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13081: Notas de leitura (585): "O Pano Artesanal na República da Guiné-Bissau", por Isabel Borges Pereira Mesquitela (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11786: Álbum fotográfico de Carlos Fraga (ex-alf mil, 3ª CCAÇ / BCAÇ 4612/72, Mansoa, 1973) (10): Imagens de postais ilustrados (Parte I)


Foto nº 1 [, Um guerreiro... felupe ?]


Foto nº 2  [Uma mulher... papel ou manjaca ?]


Foto nº 3 [. Uma máscara, de etnia não identificada...Nalu, diz o nosso camarada António J. Pereira da Costa, que é colecionador de arte guineense]


Foto nº 4 [, Uma máscara bandá nalú,  diz o nosso Tó Zé; comfirmei num livro do etnógrafo Fernando Rogado Quintino (*)]


Foto nº 5 [Um bela mulher guineense..., possivelmente mandinga, pelos adornos]


Foto nº 6 [, Um  jovem mãe, com filho às costas... Fula ?]


Foto nº 7 [, Máscara de vaca bruta,  bijagó, segundo Fernando Rogado Quintino ]


Foto nº 8  [Imagem de postal ilustrado, muito provavelmente, da coleção de postais ilustrados, edição Foto Serra, Bissau. Campune tatuada, bijagó].


1. Continuação da publicação do álbum de Carlos Fraga, que foi alf mil, na 3ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72, na segunda metade do ano de 1973, indo depois comandar, como capitão, uma companhia em Moçambique, a seguir ao 25 de abril de 1974).(**)

Enquanto fez o seu estágio operacional no CTIG,  o alf mil Carlos Fraga  tirou fotos (e nomeadamente "slides") mas também comprou fotos, incluindo imagens de postais ilustrados.

Publicam-se a seguir 8 fotos da sua coleção de postais ilustrados. Não trazem legendas. Pedimos a colaboração dos nossos leitores para completar ou corrigir as legendas da autoria do editor.

Poucos de nós tinha um conhecimento mininamente sério e aprofundado da composição étnico-linguística da  Guiné e dos seus povos. QA"instrução" que o exército nos deu, era baseada no estereótipo etnocêntrico dos europeus...

Em 1950, os principais grupos étnicos (ou "tribos", como se dizia na época...) eram os seguintes: balantas (160 mil), fulas (108 mil), manjacos (72 mil),  mandingas (64 mil), papéis (36 mil), brâmes (16 mil), beafadas (11 mil), bijagós (10 mil), felupes (8 mil), baiotes (4 mil) e nalus (3 mil) (os números são arredondados por excesso ou por defeito)... Balantas, fulas, manjacos e mandingas representavam, só por sí, 60% do total. A população da Guiné era então de cerca de 510 mil, constituída em 98% por negros. Os mestiços eram pouco mais de 4500 e os brancos não chegavam aos 2300...

Pessoalmente, eu só lidei,  na zona leste (Contuboel e Bambadinca, 1969/71), com fulas, balantas e mandingas (LG)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 24 de dezenbro de 2012 > Guiné 63/74 - P10857: Notas de leitura (442): Três estudos sobre a Guiné Portuguesa: A população de Cacine, a cestaria e o totemismo (Mário Beja Santos)

(...) António Carreira e Rogado Quintino foram dois estudiosos incontornáveis da historiografia, etnografia e antropologia da Guiné Portuguesa. Deixaram uma enorme bibliografia, basta que o leitor navegue no Google, encontrará estudos surpreendentes, alguns deles há mesmo a possibilidade de serem descarregados. 

Encontrei três pequenos estudos cuja utilidade pretendo partilhar com os confrades. O primeiro intitula-se “Guiné – A população do posto de Cacine no decénio 1950-1960”, por António Carreira. Ele vai seguramente ao encontro da curiosidade de quem, por qualquer razão, viveu ou combateu nos regulados de Gadamael, Quitafine ou Cacine. 

Carreira lembra-nos que este território entrou na posse de Portugal depois de 1886, houve retificação de fronteiras até 1929. Deplora a troca do Casamansa pela região de Cacine, dizendo que o primeiro servia de via de escoamento enquanto os cursos de água de Cacine, sinuosos e pouco profundos, não permitem a afluência do comércio do interior. Para que o leitor entenda como o território até ao início da luta armada tinha predominantemente Balantas, Nalus e Fulas, é importante compreender que a prolongada guerra de 1863-1888, travada entre Fulas e Beafadas e Mandingas, fez aproximar da região de Cacine grupos étnicos que até então viviam em outras áreas. Deu-se uma migração de Fulas que passaram a influenciar os Nalus. 

De acordo com o estudo do recenseamento, encontravam-se presentes quase todas as etnias, com raras exceções importantes, como os Bijagós. Depois o autor debruça-se sobre a estrutura familiar dos Nalus, eram profundamente animistas e, tal como os Bagas e os Landumás foram sujeitos à islamização. Possuíram, até à islamização, uma arte excecional, marcada por máscaras e tambores. De acordo com o trabalho de Carreira, dos anos 50 para os anos 60 do século passado deu-se uma evolução demográfica impressionante, ultrapassou os 50 %, os animistas foram predominantes neste crescimento (Balantas, Nalus, Beafadas e Sossos).

Quanto aos dados demográficos, no regulado de Cacine, a povoação de Cacine tinha uma população inferior a 500 habitantes, seguia-se Cassacá, depois Cacoca, Cabaz e Cabochanquezinho no regulado de Gadamael, havia mais população em Sanconhá (Sangonhá), Ganturé, Bricama, Jabicunda. Quanto ao regulado de Quitafine, o maior núcleo populacional era Cassebeche, seguindo-se Canefaque e Calaque. 

O autor discreteia ainda sobre a estrutura familiar, as ocupações por etnias e deplora que o recenseamento não contemple o grau de instrução das populações autóctones e apela a que se venha a conhecer em novos censos dados relevantes sobre as confrarias islâmicas. Este estudo apareceu publicado na revista do Centro de Estudos Demográficos, em 1972. (...)


Vd. também postes de;:




segunda-feira, 20 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11600: Notas de leitura (484): Os Portugueses nos Rios da Guiné (1500-1900), por António Carreira (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Fevereiro de 2013:

Queridos amigos,
Creio que a reedição desta obra era um facto cultural da maior importância para Portugal e Guiné-Bissau. António Carreira até hoje não foi contestado nas suas observações bem cruas sobre a presença portuguesa, a sua incapacidade para travar a presença francesa que culminou num acordo com a perda de um território que secularmente era ocupado pelos portugueses, mesmo que superficialmente – o Casamansa.
Ao exemplificar com a formação tardia do crioulo guineense como língua franca, Carreira destaca a precariedade da nossa ocupação, chefes tradicionais poderosos resistiram à potência colonial.
E como ele lembra, o PAIGC apostou fortemente no crioulo para procura unir os guineenses.

Um abraço do
Mário


Os portugueses nos rios da Guiné (1500-1900), por António Carreira (3)

Beja Santos

Se há título indispensável para conhecer, sob a forma de resumo, a presença portuguesa num território amplo, nos primeiros séculos, e progressivamente minguado até se ter chegado à Convenção Luso-Francesa de 1886 que no essencial consagrou as fronteiras atuais, é este livro de António Carreira. Carreira era já um investigador de créditos firmados quando se lançou nesta edição de autor, coisa estranha, parecia um testamento sobre a sua visão da Guiné, um olhar pessoalíssimo como atesta o que escreveu sobre a presença portuguesa no século XIX. Adiante se verificará como escreveu para a História.

Recorde-se que Carreira enfatiza as guerras e escaramuças entre grupos étnicos, no período entre 1840 a 1899, os portugueses a tudo assistiram impotentes, era impossível qualquer intervenção com tão magros efetivos nas praças, tal o armamento obsoleto e a falta de meios navais. Quem dessa impotência se aproveitou foram os franceses que visavam a consolidação do seu domínio nas chamadas rias do Sul e mesmo no Casamansa. Só depois de tudo perder é que Lisboa decidiu melhorar os efetivos para assegurar a integridade das praças de Geba e Buba, elas foram reforçadas com vista a garantir os direitos de ocupação de todo o território. Carreira reflete sobre este “pandemónio” de praticamente meio século observando que se deveu a múltiplos fatores que ele aliás regista cuidadosamente: a decisão dos Fulas-Pretos de se libertarem da escravização a que se encontravam submetidos pelos Fulas-Forros; a conquista do poder dominava os jovens, eles esforçaram-se pela expulsão dos velhos régulos, déspotas que governavam microsociedades sem nenhum desejo de mudança; e a imposição do islamismo aos povos animistas, em que o papel mais ativo foi desenvolvido pelos almanis do Futa-Djalon.

Dá-se, entretanto, nesse estado de deliquescência a separação do Governo da Guiné do de Cabo Verde, em 1879. Mas mesmo com a autonomização do Governo, não foi possível dominar a situação na periferia das praças, estas continuaram a ser atacadas com frequência. Como o autor regista, de 1864 a 1919, as diversas praças e presídios sofreram pelo menos 30 ataques das populações nativas. Parte das sublevações terminou com a assinatura de tratados em que os régulos e chefes tradicionais intervieram como se fossem entidades soberanas. Tem aqui todo o sentido respigar um texto do governador Correia Lança no seu relatório em 1888: “Nos tratados estabeleceram-se cláusulas que nunca se observaram e obrigações que não se cumpriram”. Aos poucos, cada praça foi equiparada a comando militar. Nos primeiros anos de 1900 tentou-se a instituição de um regime de administração civil denominado as Residências, substituindo os comandos militares. No ano que preludia as medidas efetivas de pacificação foram criadas as circunscrições civis.

Em 1913, o Governo, na convicção de que os Papéis não voltariam a atacar a praça de Bissau, deliberou a demolição das muralhas construídas à volta da fortaleza de S. José, a Amura. A partir de 1919, foram sendo criados centros fixos em locais de reconhecido interesse comercial e administrativo, era mais uma tentativa de ocupar território e de impor a lei portuguesa. E convém não esquecer que mesmo após a pacificação se viveu um período de grande intranquilidade nos anos de 1919 e 1920.

Carreira lembra as diferenças abissais nas culturas guineenses e cabo-verdiana. Na Guiné, as sete escolas primárias oficiais que funcionaram no ano letivo 1899-1900 com 303 alunos destinavam-se a filhos dos colonos, dos funcionários, filhos dos cristãos e grumetes já fora das suas comunidades de origem. Nesse mesmo ano letivo funcionavam nas ilhas de Cabo Verde 42 escolas primárias oficiais com 4275 alunos, além das escolas particulares. Isto serve para compreender como é que a massa esmagadora dos cabo-verdianos usavam na plenitude o crioulo como língua materna e na Guiné, no final do século XIX, o crioulo estava circunscrito aos escassos 7000 cristãos e grumetes residentes nas praças e presídios.

Então, Carreira desenvolve a sua tese observando que parece lícito afirmar que até à segunda metade do século XIX a evolução do processo histórico da Guiné mostra que o território viveu quase fechado a culturas estranhas, com a sua economia de subsistência, esta auxiliada pela comercialização, em modesta escala, de couros, cera, algum marfim, panos e bandas de algodão de confeção local, e pouco mais. Evidentemente, o tráfico de escravos foi, até à sua extinção, uma notável fonte de rendimento dos régulos e seus guerreiros.

A moeda praticamente não funcionava no comércio. Terá sido a introdução do cultivo do amendoim a primeira tentativa positiva de viragem económica. Mas as guerras tribais tudo dificultavam. O mil reis português, em prata, e a moeda divisionária em prata ou em cobre mal circulavam. As moedas verdadeiramente importantes eram a pataca espanhola, o peso mexicano, o peso boliviano, o franco francês (conhecido por peso) e a libra.

Urgindo concluir, estão apontadas as dificuldades que se depararam à fixação dos portugueses na costa africana, elas ajudam a entender como era difícil a formação de um crioulo que pudesse ultrapassar as exíguas áreas que os régulos arrendavam para a implantação das praças e presídios. Tudo contrariou à aceitação do crioulo, os chefes sentiram que esta língua franca faria perigar o seu poder e os modos de vida. E Carreira opina que não se criou nenhum crioulo na área conhecida por Guiné, o que se deu foi a difusão dos rios da Guiné do crioulo nado nas ilhas de Cabo Verde, difusão essa feita pelos lançados crioulófonos para ali enviados a partir dos primeiros anos para o resgate de escravos.

Outra razão que levou à dificuldade em formar-se o crioulo da Guiné foram os dois grandes grupos linguísticos, a língua sudanesa (mandingas e fulas) definido pelo uso de sufixos plurativos e o grupo étnico-linguístico classificado de Semi-Banta, de línguas aglutinantes (balanta, papel, manjaco, felupe, banhum…). São dois grupos que não possuem grandes afinidades com o crioulo. O crioulo guineense, com o andar dos tempos, tornou-se permeável à influência destes dois grupos. A partir de 1900, e depois com a Pax Lusitana, a situação alterou-se. Os próprios negociantes tiveram um papel fundamental na divulgação do crioulo, ele entrou em expansão nas décadas de 1920 e 1930. E Carreira observa que a luta pela independência foi outro dínamo para acelerar a aprendizagem do crioulo.

António Carreira junta um apenso documental do maior interesse para a compreensão da presença dos portugueses e das múltiplas dificuldades que se puseram à sua fixação, inclusive demonstra como o processo da missionação falhou rotundamente, impedindo a cristianização maciça dos guineenses.
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Notas do editor:

Vd. postes anteriores de:

13 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11562: Notas de leitura (480): Os Portugueses nos Rios da Guiné (1500-1900), por António Carreira (1) (Mário Beja Santos)
e
17 de Maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11581: Notas de leitura (481): Os Portugueses nos Rios da Guiné (1500-1900), por António Carreira (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 19 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11597: Notas de leitura (483): Soronda - Revista de Estudos Guineenses - Dezembro de 2000 (2) (Francisco Henriques da Silva)