Mostrar mensagens com a etiqueta Antonio Grillo. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Antonio Grillo. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3059: Memória dos lugares ( 9): Bambadinca , 1963 (Alberto Nascimento, CCAÇ 84, 1961/63)


1. Mensagem, com data de 12 do corrente, de Alberto Nascimento, ex-Sold Cond Auto, CCAÇ 84 (Bambadinca, 1961/63) (*)


Amigo Luís:


Desde que comecei a ver no blogue as imagens aéreas de Bambadinca [, do tempo da tua CCAÇ 12, 1969/71,] tive vontade de dizer algo sobre a Bambadinca do meu tempo [, 1963]. Aí vai uma pasta com um boneco (mal feito), a descrição que a memória me permite e algumas fotografias de diversos destacamentos onde estive.

Um Grande Alfa Bravo

Alberto Nascimento




2. Memória dos lugares (**)> A Bambadinca do meu tempo

Texto e imagens: © Alberto Nascimento (2008). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Bambadinca, Março de 63

Desde que comecei a ver as imagens aéreas de Bambadinca apresentadas no blogue, perguntei a mim próprio:
- Onde está a Bambadinca que eu conheci?

A não ser as fotografias que identificam alguns edifícios que julgo reconhecer e outros que reconheço, como a casa do chefe de posto e a igreja (despromovida a capela), não consigo sequer identificar a velha estrada ao longo da qual e de ambos os lados se localizava toda a povoação.

Era assim a Bambadinca do meu tempo:

Vamos partir cá do fundo, do antigo atracadouro da jangada, já desactivado há muito, depois da construção da ponte e para onde eu ia ver o Macaréu logo que começava a ouvir o seu rugido, ora próximo ora afastado, até conseguir vencer as curvas sinuosas do leito do rio Geba.

No princípio da povoação a estrada era ladeada por casas de comércio de portugueses e outros.

Do lado esquerdo só contactei e me lembro da última casa onde eu comprava os cigarros e que era gerida por um português, grande especialista na manipulação da balança decimal, quando pesava a mancarra e outras sementes que os agricultores precisavam de vender. Na pesagem dos sacos de mancarra era curioso ver que cada saco nunca pesava os dez quilos, mas ele, boa alma, considerava e pagava os dez quilos. Os agricultores saíam enganados mas felizes, ou talvez não... Entre esta casa e a seguinte, a do libanês Amin, havia um grande espaço que dava acesso à tabanca, que começava com um grupo de moranças em fila, na posição perpendicular à estrada.

Ao fundo a tabanca alargava-se para a esquerda e com maior aglomeração para a direita e depois na direcção da estrada, até encostar às traseiras da casa do Amin.

Na continuação desta casa só mais acima, já em frente ao quartel, havia uma construção que teria sido um armazém de mancarra mas à qual só conheci a função de prisão.




Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1969 > O famoso e imponente bagabaga, existente nas imediações de Bambadinca. No topo vê-se o Humberto Reis, ex-Fur Mil Op Esp, CCAÇ 12 (1969/71).

Foto: © Humberto Reis (2008). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Voltemos ao lado direito da estrada.

Havia deste lado também uma longa fila de casas comerciais das quais se destacava a Casa Gouveia, mas das outras não me lembro nadinha... nem dos donos... nem o que vendiam... nada, apagou-se tudo. Também é verdade que, para além dos 45 anos que passaram, pouco ou nenhum contacto tive com essas pessoas, porque os meus tempos livres, que eram curtos, dedicava-os a outros contactos.

Recordo que, a seguir às casas comerciais, havia um espaço não muito grande já em frente à tabanca, onde se realizava o mercado.



A poucos metros do mercado havia um caminho para a direita que logo no início atravessava com uma ponte rudimentar, mas que permitia a passagem de uma viatura, um curso de água onde as mulheres lavavam a roupa. Este caminho dava acesso à destilaria de aguardente de cana do português Lapa e, uns quinhentos metros mais à frente, a uma nascente de água muito limpa onde nos abastecíamos, duas a três vezes por dia, para as necessidades do quartel.

Voltando à estrada, depois deste caminho e em frente à casa do Amin, tenho ideia da existência de uma construção que não recordo o que era.

Mais acima, um largo onde se situavam, à direita em posição perpendicular à estrada, a casa do chefe de posto, à esquerda o quartel, constituído por duas construções, uma pequena mais próxima da estrada para o oficial e sargentos, a outra maior para os praças.

 

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > c. 1969/70 > Vista (parcial) da tabanca de Bambadinca, com o Rio Geba ao fundo. Em primeiro plano, as instalações do comerciante, branco, português, Rendeiro... (Natural da região de Aveiro, mais exactamente da Murtosa, tinha ido muito jovem para a Guiné, creio que com 17 anos; vivia com uma mandinga, de quem tinha uma numerosa prole; convidava-nos, a nós, milicianos, com alguma frequência, para ir jantar lá em casa... A esposa, que eu nunca conheci, fazia uma deliciosa galinha de chabéu... Gostava de o voltar a encontrar. Juntamente com o Zé Maria, era o único comerciante branco que restava (ou de que eu lembro) em Bambadinca, em 1969/71, outrora um entreposto comercial florescente)... Parece que havia outros comerciantes ou encarregados de lojas comerciais (plo menos, Casa Gouveia e uma loja libanesa), mas eu não tinha contactos com eles. (LG)

Foto: ©
Humberto Reis (2008).Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Em frente, junto à vedação do quartel, estava o gerador que, por economia,  só funcionava poucas horas depois do anoitecer, após o que tudo passava a funcionar a petróleo. Até a iluminação exterior do quartel era feita com alguns Petromax e vulgares lanternas. Felizmente, a geleira onde se refrescava a Sagres 7dl, só funcionava a petróleo e enquanto este não faltasse, havia cerveja fresca, isto quando havia cerveja...

Continuando na estrada, a seguir ao quartel e com vedações quase encostadas ficava a última construção, a igreja onde oficiou, até à sua detenção, o padre Grillo [, o missionário italiano, acusado pela PIDE de estar ligado ao PAIGC].

Depois a estrada continuava até à bifurcação para a direita e para a esquerda e era nesta zona que existia um cemitério. A estrada que seguia para a direita dava acesso à pista se aterragem.

Bambadinca era assim...Só isto...

O recrudescimento da guerra alterou-a fisicamente mas, na minha opinião, nem a guerra nem o após guerra, deu ao seu povo algo de bom, a não ser uma nação que, com o rumo que os políticos têm seguido, não sei quando poderá dar-lhe o que ele merece e a que tem todo o direito. Se continuarem permitir que a Guiné beneficie de algumas migalhas cedidas por interesse por barões da droga, que transformaram o seu território num entreposto, sabe-se lá com que apoios internos, se não houver um governo que decida governar o país para o seu povo e devolver-lhe a visibilidade e dignidade que lhe pertence, por direito herdado dos seus ancestrais, seja qual for a sua etnia e a sua cultura...

Então começarão a perguntar-se: Valeu a pena? E se esta pergunta chega a ser feita, depois de tantos sacrifícios, ela significa a descrença total ou mesmo a desistência de um povo.

Por enquanto, depois da guerra, Bambadinca ficou apenas com umas instalações militares, que me parecem maiores que a própria povoação.

Alberto Nascimento

3. Comentário de L.G.:

Obrigado, Alberto, pelo teu precioso croquis e pelas ainda tão vivas memórias de Bambadinca do teu tempo (1963). Sobre a Bambadinca do meu tempo (1969/71), não vou acrescentar mais nada a tudo aquilo que já foi abundantemente escrito no nosso blogue, por mim próprio e por outros camaradas que lá estiveram, ainda mais tempo do que tu...

Deixa-me só acrescentar que só conheci dois comerciantes, brancos, de origem portuguesa, o José Maria e o [Rodrigo Fernandes] Rendeiro... O que  te vendia cigarros e quiçá roubava no peso da mancarra aos camponeses podia ser o Zé Maria (a primeira loja, na zona 1 do teu croquis)... A loja (e residência do Rendeiro, essa ficava do lado direito da rampa de acesso ao quartel, já próximo do quartel, em frente aos correios, que era do lado esquerdo...

Em meados de 1969 Bambinca era um importante praça de guerra, sede de batalhão, sede do Sector L1 da Zona Leste... Era um posto administrativo, tinha muita população (nem toda fiel às NT) e uma escola... Não sei o que terá acontecido ao sírio Amin nem ao português Lapa, dono de uma destilaria de aguardente de cana no teu tempo...

No teu tempo, também ainda não havia o reordenamento de Bambadincazinho, nem se usaria a desactivada Missão do Sono como destacamento avançado, lá pernoitando, todos os dias, um Grupo de Combate (das unidades adidas, como a CCAÇ 12) para guardar as costas ao senhor tenente-coronel e aos senhores majores...

Fico a agora a saber onde era o tristemente famoso cemitério de Bambadina de que o pobre do Abibo Jau me falava tanto: nunca fiz questão de o visitar... E à igreja só lá ia quando era transformada em morgue...

Tens razão: ninguém em Bambadinca, nem nem no resto da Guiné, ganhou com a guerra. Se é que alguém ganhou com a guerra, na Guiné e em Portugal... Ou até mesmo se alguém ganhou a guerra...

Voltei lá, em 3 de Março de 2008: não aguentei muito tempo, fiquei deprimido, não sei o que me deu, uma tristeza infinita...

Enfim, publicar-te-ei , oportunamente, as outras fotos que mandaste, com memórias de outros lugares: Santa Luzia, Prábis, Farim, Buruntuma, Piche... Obrigado, por quereres prtilhá-las com os teus camaradas da Guiné. Luís


_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores:

10 de Julho de 2008 >
Guiné 63/74 - P3044: Estórias avulsas (16): Os cães de Bambadinca (Alberto Nascimento, CCAÇ 84, 1961/63)

11 de Junho de 2008 >
Guiné 63/74 - P2930: Bambadinca, 1963: Terror em Samba Silate e Poindom (Alberto Nascimento, ex-Sold Cond Auto, CCAÇ 84, 1961/63)

(**) Vd. útimo poste desta série > 30 de Março de 2008 >
Guiné 63/74 - P2703: Memórias dos lugares (8): Destacamento de Ponte Balana (Nuno Rubim)

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2930: Tabanca Grande: Alberto Nascimento, ex-Sold Cond Auto, CCAÇ 84, 1961/63



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Ponta Brandão > 1970 > Dois velhos balantas, possivelmente sobreviventes da repressão que se abateu sobre Samba Silate e sobre o Poindom, logo no início da guerra, em 1963, dois episódios da guerra colonial aqui evocados por um camarada nosso, ex-soldado condutor auto, Alberto Nascimento, cujo pelotão, o 1º, da CCAÇ 84 (1961/63), esteve destacado em Bambadinca.

Foto do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

Foto: © Humberto Reis (2008). Todos os direitos reservados.


1. Mensagem de Alberto Nascimento, com data de 9 do corrente:

Caro Dr. Luís Graça:

Sou um ex-militar, soldado condutor auto, que cumpriu dois anos de serviço na então província da Guiné, entre 6 de abril de 1961 e 9 de abril de 1963, integrado na Companhia de Caçadores 84.

Como não podia deixar de ser, estes dois anos de convivência com as populações das várias etnias com quem tive contacto, mantiveram em mim o desejo de acompanhar, o mais perto possível, a vida daquele país e daquelas gentes tão maltratados antes e depois da independência.

Sou um dos visitantes assíduos do seu blogue Guiné 63/74, na tentativa de identificar alguns lugares por onde passei ou estive destacado, já que a CCAÇ 84, três meses depois de aterrar no aeroporto de Bissalanca, foi literalmente fragmentada e enviada para os mais diversos pontos do território, tendo o meu pelotão tido como último destacamento, entre Novembro de 1962 e 7 ou 8 de Abril de 1963, Bambadinca, sob o Comando de Bafatá.

O primeiro destacamento, ainda em Julho de 1961, foi Farim, após os primeiros e ainda pouco violentos ataques a Bigene e Guidaje. Seguiu-se o destacamento de Nova Lamego, conforme é dito no seu blogue (P 1292 - Contributos) onde o pelotão foi dividido por Buruntuma, Piche e Canquelifá. Só estou a mencionar o 1º pelotão da Companhia, porque à grande maioria dos camaradas dos outros pelotões só voltei a ver nos dias que antecederam o embarque para a Metrópole.

Como a memória se perde no tempo por indocumentação, ou porque a essa memória se teve medo de atribuir qualquer importância (existiam e ainda existem muitos complexos sobre a guerra colonial), resolvi dar o meu contributo para esclarecer uma dúvida colocada no seu blogue, sobre quem teria participado nos massacres de Samba Silate e Poindom, no início de 63 (*).

Sem conseguir precisar o mês, um dia soubemos que a PIDE estava em Bambadinca para deter o padre António Grillo, italiano da Ordem Franciscana, acusado - não sabíamos se por denúncia se por investigação - de colaborar, proteger, e fornecer alimentos a elementos do PAIGC, a partir de Samba Silate.

Este episódio motivou a intervenção militar do Comando de Bafatá com uma força equipada com as já na altura obsoletas auto-metralhadoras e lança-chamas. Essa força foi reforçada em Bambadinca com grande parte dos efectivos aí destacados e seguiu para Samba Silate.

Contar com pormenor o que se passou no decorrer da operação é impossível, já que fui colocado num posto de onde só podia abarcar uma pequena parte da povoação, que ocupava uma área enorme, mas o constante matraquear das auto-metralhadoras e G3 deixavam antever um morticínio.

Quando a meio da tarde o Comando deu por terminada a operação é que fui, pelo caminho, vendo a destruição provocada pelos lança-chamas, auto-metralhadoras e G3. Samba Silate estava, na sua maior parte, destruída. Num largo da povoação estavam concentrados um grande número de prisioneiros, um dos quais, talvez movido pelo desespero e terror, intentou a fuga, tendo sido abatido. Os outros foram divididos entre Bafatá e Bambadinca, de onde poucos ou nenhuns saíram.

Poindom foi o outro alvo de uma operação militar de Bafatá e Bambadinca, com o apoio da força aérea. O avanço militar terrestre fez-se pela bolanha enquanto os aviões despejavam bombas e rockets sobre a povoação e a mata que a antecedia, para anular eventuais grupos de elementos do PAIGC que poderiam impedir o avanço terrestre. Um dos aviões sobrevoava o rio [Corubal], metralhando tudo o que tentasse a travessia.

Quando consideraram que a mata estava "limpa", avançámos para a povoação que estava quase totalmente arrasada, sendo visíveis muitos corpos sob os escombros das palhotas. No interior de uma delas que ficou de pé, encontrámos um grupo de homens aterrorizados: já não me lembro se os fizemos prisioneiros ou deixámos ficar a chorar os mortos. Desta operação guardo bastantes recordações, quase todas na mente, apenas uma física, uma colher de madeira que encontrei no chão.

Sem pretender glorificar estas acções, que tiveram pouca ou nenhuma resistência, sinto que, com mais ou menos importância, elas fazem parte da história da CCAÇ 84 e do início de uma época de guerra que a maior parte do povo da Guiné e, no caso, de Bambadinca e Poindom e os muitos militares que nos sucederam nessas povoações, certamente não desejaram e que tantas vítimas causou em ambos os lados.

Se entender que este esclarecimento tem alguma importância para a história militar na zona de Bambadinca, dou por bem empregado o tempo, não por mim, mas pelo nome da CCAÇ 84 cuja existência no território está quase completamente apagada, não obstante estes e outros episódios, nomeadamente o do nosso destacamento na zona de Catió, que foi emboscado, com o resultado de vários feridos que foram evacuados para Lisboa e um morto, um militar que não pertencia à CCAÇ 84 (mas que, por opção sua, se encontrava no sítio e hora errados).

Os meus cumprimentos
Alberto Manuel do Nascimento

2. Comentário de L.G.:

Obrigado, Alberto, pela mensagem que me mandaste, e que eu tenho a obrigação de publicar. Os acontecimentos passados, no já longínquo ano de 1963, no início da guerra, na zona leste, no sector de Bambadinca, mais concretamente em Samba Silate e Poindon (subsector de Xime, no meu tempo), fazem parte da nossa história militar e da história da nossa presença na Guiné (hoje, República da Guiné-Bissau). Fazem parte da tua vida, da tua história e da história dos teus camaradas da CCAÇ 84.

Até agora não tínhamos testemunhos directos desses acontecimentos, em Samba Silate e no Poindom, que possivelmenet remonta ao 1º trimestre de 1963, nem sequer tínhamos notícias, a não ser algumas referências, um pouco difusas, imprecisas, de conversas com antigos soldados meus, guineenses, da CCAÇ 12 com quem privei, em Contuboel de depois Bambadinca, entre Junho de 1969 e Março de 1971, e em particular do Abibo Jau (fuzilado em 1974 pelo PAIGC).

O teu testemunho é importante, sendo tu contemporâneo e testemunhas dos acontecimentos. Parece ser, além disso, um testemunho sério e honesto de alguém que viu directamente os resultados da destruição da tabanca de Samba Silate pelas NT e participou na operação contra o Poindom. O teu depoimento parece-me consistente. Por exemplo, relatas a história da prisão e expulsão do missionário italiano, o Padre Grillo, história essa que eu próprio ouvi, ainda há pouco tempo, quando estive na Guiné-Bissau (29 de Fevereiro a 7 de Março de 2008). Ainda hoje essa história está na memória das gentes de Bambadinca, e seguramente entre a comunidade cristã. O Padre Grillo não terá o único sacerdote católico a ter problemas com as autoridades portuguesas, por razões políticas (Veja-se, por exemplo, o caso - embora ficcionado - do padre Francelino, de Catió, que entra na estória da Pami Na Dono, a guerrilheira, escrita pelo nosso camarada Mário Vicente ou Mário Fitas).

Como sabes (partindo do princípio que conheces as regras do nosso convívio), procuramos não fazer juízos de valor sobre o comportamento dos nossos camaradas, individualmente. Evitamos também em falar de massacres (**), por falta de informação documental, detalhada, proveniente de fontes independentes (ou, no mínimo, fidedignas). Deixamos esse trabalho aos historiadores.

De qualquer modo, temos a ideia de que, no início da guerra, as coisas passaram-se assim, um pouco por todo o lado. Praticou-se a política de terra queimada, usou-se o terror e a repressão. Atenção: de ambos os lados... Nem as NT nem o PAIGC eram meninos de coro... O próprio Amílcar Cabral admitia que a colaboração das populações locais poderia ter que ser obtida pela força, em certas circunstâncias. Nenhuma guerra, de resto, é limpa, asséptica, cirúrgica . Infelizmente, há sempre efeitos colaterais. Não sõa só combatentes, de um lado e de outro, que morrem ou ficam inválidos. Há as populações civis que são sempre as grandes vítimas da guerra, directas e indirectas. Da guerra, de todas as guerras.

Isto não serve de desculpa para excessos eventualmente cometidos tanto pelas NT como pelo PAIGC. Mas espero, ao menos, que isto te ajude, a ti e a nós todos, a exorcizar alguns dos nossos malditos fantasmas e quiçá pesadelos que ainda nos perseguem, ao fim destes anos todos.

Seis anos depois e de ti, eu próprio passei, várias vezes, por Samba Silate e pelo Poindom. Em operações, patrulhamentos, etc. Em Samba Silate ainda havia, em 1969, alguns restos calcinadados de moranças da tabanca. No Poindom, pelo contrário, eramos recebido a tiro de costureirinha, de morteiro e de RPG...

Pelo que tu nos contas, no Poindom parece ter-se tratado de uma operação militar, com aviação, napalm, etc. No caso de Samba Silate, terá havido colaboração da PIDE e da autoridade administrativa de Bambadinca com as NT (incluindo a cavalaria de Bafatá, pelo que deduzo das tuas mensagens...). As operações terão sido, por sua vez, coordenadas pelo comando de Bafatá. É isso ?

Infelizmente, também não têm aparecido, no nosso blogue, nem grandes nem pequenas notícias da tua companhia, a CCAÇ 84. Obrigado também por isso. E pela tua manifestação de simpatia e solidariedade pelos nossos dois povos, os guineeneses e os portugueses, que foram afinal as grandes vítimas desta longa, estúpida e inútil guerra.

Meu caro Alberto: ficas desde já convidado a integrar, de pleno direito, a nossa Tabanca Grande. Manda-me, se não te importares, pelo menos uma foto actual, tua, digitalizada (em formato jpg), e se possível algumas fotos do teu tempo em Bambadinca, também digitalizadas. Faz um esforço por te lembares e reconstituires mais memórias desse tempo. Julgo seres o mais velho camarada de Bambadinca. É raro aparecer malta do teu tempo (1961/63).

Um grande abraço de todos nós, teus camaradas, e em especial dos que passaram pelo triângulo Bambadinca - Xime - Xitole, e que estão bem representados na nossa tertúlia.

L.G.
_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. referências a Samba Silate, Poindom e Nhabijões:

11 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIII: Aos nossos queridos nharros (Zé Teixeira)

Nota de Luís Graça:

(...) "Em pleno chão fula, foram os balantas, os beafadas e os mandingas que aderiram mais facilmente (ou foram condenados a aderir) à guerrilha. Os fulas, pelo contrário, reforçaram a sua velha aliança secular com os tugas. Fulas e balantas cultivavam um ódio de estimação. Eu, pessoalmente, nunca consegui falar, olhos nos olhos, a um balanta de Nhabijões...

"Os demónios étnicos e velhas contas por liquidar vieram, infelizmente, ao de cima, a seguir à nossa saída da Guiné. Bambadinca, tal como no início da guerra, em 1963, foi depois da independência palco de crimes contra a humanidade, nomeadamanente de execuções sumárias de dirigentes fulas, de ex-comandos e outros ex-militares que estiveram integrados nas NT. Ou seja, desta vez, de sinal contrário. A extensão destes crimes está por investigar.

"Provavelmente nunca chegaremos a conhecer toda a verdade dos crimes praticados nas décadas de 1960 e 1970 na Guiné, por nós e pelo PAIGC, em nosso nome e em nome do PAIGC. Os fuzilamentos do Cumeré, de Bambadinca e de outros sítios, praticados por ou em nome dos guerrilheiros no poder, não podem todavia fazer esquecer, ignorar ou branquear a repressão exercida pelas autoridades coloniais no início da guerra: Samba Silate e Poidon, por exemplo, não honram a memória dos tugas. Foram lugares de massacres no início da guerra.

"Eu não estava lá, mas os meus meus nharros, os mais velhos, os homens grandes, contavam-me estórias desse tempo, do terror branco de Bambadinca. Terror branco ou crioulo, já que a administração colonial da Guiné era basicamente preenchida por funcionários oriundos de Cabo Verde, ou de origem caboverdiana... Na Missão do Sono de Bambadincazinha, a G-3 a tiracolo, enquanto fazíamos horas para o sol esplendoroso de África aparecer e fazer espantar os nossos medos e os nossos fantasmas nocturnos. E com aquela espécie de inocência de criança com que os fulas falavam destas coisas trágicas e macabras da guerra e da morte aos senhores da Guiné, que eram os tugas...

"Tive as relações mais afáveis, afectuosas e cordiais que me foi possível manter com os fulas, com os meus queridos nharros, mas eu sabia que as relações entre iguais, logo as relações de amizade, eram impossíveis entre nós: eu, fardado, representava uma potência estrangeira, colonial; eles, fardados, soldados de 2ª classe, pertenciam a um tempo e a mundo que já não existia... Os fulas estavam condenados pela história: infelizmente, eles não tinham alternativa... Corrompidos pelo poder colonial, conduzidos pelos seus altos dignatários a um beco sem saída, os fulas acabaram por esclher o lado errado da barricada. Nem mesmo neutrais eles poderiam ter sido...

"Enfim, especulo: que sei eu, ao fim e ao cabo, das complexas relações das principais etnias da Guiné, entre si, e com o poder colonial, durante os anos de guerra ?!... No entanto, subscrevo, de coração aberto, o belíssimo texto que o Zé Teixeira me enviou e que passo a inserir no blogue... O Zé foi talvez dos poucos que, graças ao seu papel de enfermeiro (e também por mérito pessoal e pelas suas qualidades humanas), consegui saltar a barreira da espécie: ele, tuga, foi aceite e amado pela população fula, e ainda hoje tem verdadeiros amigos fulas" (...).

28 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCIV: Nhabijões: quando um balanta a menos era um turra a menos (Luís Graça)

(...) "Os balantas foram, segundo o testemunho insuspeito dos meus soldados (fulas), as maiores vítimas da repressão colonial nesta década. Seis anos depois (é difícil confiar na memória dos africanos que não usam calendário, mas isto ter-se-á passado em 1963, depois do início oficial da guerra), Samba Silate (cuja população terá sido parcialmente massacrada pela tropa ou pela polícia administrativa de Bambadinca, não posso precisar) e Poindom (regada a napalm pela força aérea) ainda despertam aqui [, em Nhabijões,] trágicas recordações: evocam o tempo em que todo o balanta era suspeito aos olhos das autoridades militares e administrativas, presumivelmente coadjuvadas pela PIDE (Tenho dificuldade em explicar aos meus soldados, que não falavam português quando os conheci em Contuboel, o que é isso, o que é essa sinistra polícia…).

"Há uns anos atrás, nos anos do terror, ser encontrado fora da sua tabanca ou do seu perímetro, de catana na mão ou faca de mato à cintura - que é ronco ou adorno para um balanta que se preze - , eis um belo pretexto para um balanta ser preso, levado para o posto administrativo de Bambadinca, sumarianente interrogado e às vezes, hélàs!, mais sumariamente ainda liquidado.

"A justificação era simples, segundo os meus nharros: "um balanta a menos, era um turra era menos" (sic)… Admito que haja aqui alguma dose de fanfarronice e de exagero, por parte dos fulas, históricos inimigos e vizinhos dos balantas… Mas não há fumo sem fogo: estas histórias parecem-me ter consistência…

"Donde esta hostilidade passiva que julgo poder ler nos olhos e nas atitudes da população de Nhabijões que alimenta a guerrilha, em homens e mantimentos, provavelmente mais por razões de parentesco do que por simpatia para com o PAIGC: ao avistarem-me, fardado, na sua tabanca – a mim, tuga, representante da tropa ocupante - os mais velhos baixam a cabeça ou viram-me as costas como se sentissem acabrunhados com a minha presença… Quem se sente mal, sou eu, que venho invadir-lhes a sua privacidade e perturbar os seus irãs…

"Devia ser esta, aliás, a atitude com que caminhavam para a morte: sem medo mas também sem revolta, com uma estranha dignidade ancestral, a pá e a pica em cada uma das mãos. Sim, por que o método era tão requintado como o dos nazis, a crer na descrição que me fazem alguns dos meus informadores, os mais velhos, como o Abibo, por exemplo – o Abibo, o bom gigante do Abibo, que sofre de epilepsia e tem elefantíase no escroto…

"Ou até senão mais: a própria vítima abria a estreita vala onde devia caber o seu próprio corpo, três palmos abaixo da superfície, e onde ficava deitado… à espera que o carrasco da polícia administrativa (sempre os africanos para as tarefas sujas…) se dignasse dar-lhe o passaporte para a eternidade: um tiro de pistola, uma lata de gasolina, um fósforo…

"Ter-se-á passado assim ? Um frémito de horror passa-me pela espinha acima. Recuso-me a aceitar que isto se tenha passado debaixo da bandeira verde-rubra da minha pátria, com a cumplicidade ou até o envolvimento (activo ou passivo) das tropas portuguesas ou dos representantes das autoridades portuguesas… Faço, ao menos, votos para que estes crimes sejam apenas imputados à odiosa PIDE… Enfim, nunca o saberei… Ou melhor, poderei perguntar-lhes onde era o sítio... O Adibo e outros falam-me do antigo cemitério de Bambadinca, um sinistro local de outrora onde hoje as alfaces crescem, viçosas" (...) (**).

(**) Irónica e desgraçadamente, o Abibo Jau, antigo soldado da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71), o nosso bom gigante mas também o nosso torcionário - no meu tempo, Soldado Arvorado nº 82 107 469, pertencente à 1ª secção, 1º Grupo de Combate, sob o Comando do Alf Mil Op Especiais Francisco Magalhães Moreira - será sido executado sumariamente, sem julgamento, pelo PAIGC, juntamente com o Cap Graduado Jamanca, comandante da CCAÇ 21, em finais de 1974 ou princípios de 19775, perto de Samba Silate, em Madina Colhido:

12 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIX: O fuzilamento do Abibo Jau e do Jamanca em Madina Colhido (J.C. Bussá Biai)

(...) "Eu (com os meus quase 11 anos) e muitos outros, em 1974, vimos os militares do PAIGC em dois camiões de fabrico russo, um deles completamente tapado de toldo. Passaram por Xime, de manhã, para Madina Cudjido (Colhido, como vocês dizem). Passados uns 30 minutos ouvimos muitos tiros. Só que por volta da hora do almoço ouvimos [dizer] que foram lá fuzilados 8 pessoas. E das pessoas que nós ouvimos que tinham sido fuzilados - não sei se corresponde a verdade ou não - um deles era o tal Abibo Jau (2) que esteve na CCAÇ 12 em Xime. A outra pessoa seria o Tenente Jamanca, da CCAÇ 21 que estava em Bambadinca.

"Mas tudo isso não me espanta porque os meus irmãos e primos que cumpriram o serviço militar no exército português, em Farim e depois em Bissau e Bambanbadinca, também foram presos, mas felizmente não lhes aconteceu o pior" (...).

(3) Vd. poste de 15 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXV: Pidjiguiti, 3 de Agosto de 1959: eu estive lá (Mário Dias)

(...) "Antes de concluir, parece-me que o termo massacre, aplicado aos acontecimentos do Pidjiguiti, é um pouco exagerado, não por o número ser muito inferior aos 50 habitualmente referidos, mas porque o conceito que a palavra implica, se refere à chacina indiscriminada, a uma carnificina injustificada do género descrito nos livros de história como passar tudo a fio de espada.

"Com respeito aos massacres de populações balantas e beafadas na região de Bambadinca nos primeiros anos de 60, referidos no blogue-fora-nada, embora não os possa negar ou confirmar, tendo eu saído da Guiné em Fevereiro de 1966, nunca deles ouvi falar o que é estranho pois, como se diz na Guiné, noba ka ta paga cambança - aforismo com um sentido semelhante ao as notícias espalham-se depressa. Numa terra como a Guiné onde tudo se sabia e comentava, é estranho que nunca tivesse ouvido falar em tal acontecimento. Deve ter sido muito bem ocultado (...)".

18 de Novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1292: Madina do Boé: contributos para a sua história (José Martins) (Parte I)

Companhia de Caçadores n.º 84

Ficou colocada em Bissau após a sua chegada à província em 6 de Abril de 1961, oriunda do Regimento de Infantaria nº 1, na Amadora.Em 15 de Fevereiro de 1962 foram atribuídos pelotões ao BCAÇ 238 destacados para Nova Lamego para reforço da guarnição.A unidade regressou à metrópole em 9 de Abril de 1963.