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quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19335: (D)outro lado do combate (41): Carta de Aristides Pereira a 'Nino' Vieira, escrita em Cassacá, em 22 de janeiro de 1964 (Jorge Araújo)


Cassacá em 2018. Foto do camarada Patrício Ribeiro, com a devida vénia [P18697].


Mapa de Cacine, Sector de Quitafine (Frente Sul). Cassacá, local onde foi manuscrita a carta de Aristides Pereira, em 22 de janeiro, e, também, o da realização do I Congresso do PAIGC, organizado entre 13 e 17 de Fevereiro de 1964, estava situada a quinze quilómetros a sul de Cacine e a trinta da fronteira com a Guiné-Conacri.



Jorge Alves Araújo, ex-Furriel Mil. Op. Esp./RANGER, CART 3494 
(Xime-Mansambo, 1972/1974): coeditor do nosso blogue


GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE  

CARTA DE ARISTIDES PEREIRA A 'NINO' VIEIRA, ESCRITA EM CASSACÁ EM 22 DE JANEIRO DE 1964, UM ANO DEPOIS DO ATAQUE A TITE
  
- AS ORIGENS DO PRIMEIRO CORPO DO EXÉRCITO DO PAIGC - 

Os relatos publicados nos P19254 e P19259 suscitaram-me particular interesse, do ponto de vista histórico, por recuperarem mais alguns dos episódios do período que antecedeu o início do conflito armado no CTIG, nomeadamente durante o ano de 1962, por permitirem identificar os principais actores de cada um deles. 

Estes e muitos outros que, na fita do tempo, se foram sucedendo acabariam por influenciar, para o bem ou para o mal, os comportamentos sociopolíticos em cada um dos lados em confronto, que culminaram com o ataque ao aquartelamento de Tite, localizado na região de Quinara, facto ocorrido em 23 de Janeiro de 1963.

No primeiro caso [P19259], o depoimento do ancião autóctone que surge no vídeo a falar da sua experiência e das suas memórias, e que se considera ser um dos primeiros sete ex-combatentes que tomaram a decisão de aceitar fazer parte do universo da guerrilha nacionalista, dá conta que uma das primeiras "barracas" [acampamentos] criada no Cantanhez, região de Tombali, foi em Caboxanque.

No segundo caso [P19254], é relevante o facto de ser reduzido o número de efectivos militares na Guiné, uma vez que a CCAÇ 153, comandada pelo, então, capitão e infantaria José dos Santos Carreto Curto, era a única companhia em todo o Sul da Guiné em 1961, com um pelotão em Buba e uma secção em Aldeia Formosa. Mais tarde fez deslocar um Gr Comb para Cacine. Estiveram também aquartelados em Cufar numa fábrica de arroz, bem como em Catió, até que a situação se agravou em termos operacionais [Vd. P19264 e P19291; notas de leitura do camarada Beja Santos].

Em função do vasto território em que se movimentou, particularmente nas Regiões de Tombali e Quínara, o capitão Carreto Curto, que no passado dia 30 de Novembro nos deixou, e a sua CCAÇ 153, viveu/viveram momentos difíceis e dramáticos, pois ficaram associados ao começo [oficial] da guerra no CTIG.


Entretanto, em 26 de dezembro de 1962, como reconhecimento da sua acção/ intervenção psicossocial, o capitão Carreto Curto foi agraciado com a Medalha de Prata de Serviços Distintos com palma [imagem ao lado], devido ao facto de "como comandante de companhia no Comando Territorial Independente da Guiné, desde Junho de 1961, ali vem exercendo, por meio de acções de reconhecimento e de objectivo psicossocial, uma actividade altamente meritória de que tem beneficiado todo o sector do batalhão [BCaç 237], revelando, a par de notáveis qualidades de organização e disciplina, excepcionais dotes de comando, de iniciativa e de audácia, transmitindo a todos os subordinados uma confiança ilimitada, o que permitiu criar e desenvolver na sua unidade [CCAÇ 153] um espírito de corpo tal, que a mesma pode ser apontada como exemplo de disciplina, de eficiência e de sacrifício no cumprimento do dever. Os serviços prestados por este oficial ao Exército e à Nação, na presente conjuntura da Guiné, devem ser considerados relevantes e distintos".

Quanto ao ataque ao aquartelamento de Tite acima referenciado, o nosso blogue tem um vasto espólio de narrativas que pode (e deve) ser consultado. Em cada leitura que se faça, descobre-se, por vezes, novos detalhes que suscitam outros pontos de interesse e investigação, que merecem ser aprofundados. É isso que vamos tentar fazer numa próxima oportunidade, triangulando conteúdos e adicionando-lhe novas informações contraditórias.

Recupero, a esse propósito, entre outras, a entrevista dada em 2001 por Arafam ["N'djamba" Mané; Bissau, 1945.09.29 / Madrid, 2004.09.04] ao jornal "O Defensor", órgão de Informação das FARP – Forças Armadas Revolucionárias do Povo da Guiné-Bissau e reproduzida em 2015 no sítio das FARP, por iniciativa do major Ussumane Conaté. Esta entrevista foi/está dividida em quatro partes, por diligência do camarada José Teixeira, 1.º cabo aux enf CCAÇ 2381, "Os Maiorais", Buba, Quebo, Mampatá e Empada; 1968/1970 – P16794; P16812; P16823 e P16851.

O testemunho do camarada Gabriel Moura [falecido em 2006], do Pel Mort 19, escrito em «Tite (1961/1962/1963) Paz e Guerra», pp 83/88, é outra leitura obrigatória, uma vez que ele foi o primeiro militar português a responder ao fogo da força que atacou o aquartelamento de Tite, pois encontrava-se de guarda naquela ocasião [P17649].

Com o objectivo de fazer a ponte ligando duas peças da historiografia da guerra: o ataque a Tite (23Jan1963) e o I Congresso do PAIGC (Cassacá; 13/17Fev1964), enquanto processo na organização e desenvolvimento da luta armada durante o ano de 1963, tomei a iniciativa de partilhar convosco uma carta manuscrita por Aristides Pereira, em Cassacá, e enviada a 'Nino' Vieira, a 22 de janeiro de 1964, ou seja, um ano após o primeiro evento.

A elaboração deste escrito do dirigente Aristides Pereira [Boavista, Cabo Verde; 1923.11.17 / Coimbra; 2011.09.22] dirigido ao principal Cmdt da guerrilha 'Nino' Vieira [Bissau; 1939.04.27 / Bissau; 2009.03.02 (assassinado)] surge na sequência de alguns acontecimentos que estão na génese da reunião magna [congresso]. 

Recorda-se, pela sua pertinência, por um lado, a visita de Luís Cabral [Bissau; 1931.04.11 / Torres Vedras; 2009.05.30] à zona de Quitafine e tabanca de Cassacá em finais de 1963, por outro, as informações recolhidas em todos os contactos estabelecidos com os combatentes e aquelas que lhe chegavam das frentes. 

Estes factos levaram a que o irmão [Amílcar Cabral (Bafatá; 1924.09.12 / Conacri; 1973.01.20, assassinado dez anos depois de Tite)] aceitasse, como necessária, a realização de uma reunião geral dos responsáveis pelo PAIGC, no sentido de se poder discutir e aprofundar estas questões, de maneira a tirar delas todas as lições para o futuro, numa altura que estava concluído o primeiro ano da luta armada.


Citação: (1965), "Desfile de combatentes do Exército Popular comandados por Nino Vieira", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43728 (2018-12-9)

A operacionalização de cada uma das diferentes acções projectadas para antes, durante e depois do I Congresso podem (devem) ser consultadas no livro de memórias de Luís Cabral: «Crónica da Libertação», (1984), Lisboa, Edições 'O Jornal', Publicações Projornal [Vd. trabalho de recensão realizado pelo camarada Beja Santos – P7216; P7223; P7232; P7241 e P7259].

Como dimensão histórica, cito uma passagem [P7232] onde é referido o seguinte:

 "Em finais de 1963, Luís Cabral faz a sua primeira visita ao Quitafine, a partir de Sangonhá, depois partiram para a base de Cassacá, onde foi recebido por Manuel Saturnino [da Costa; n-1942-]. Em Cacine estava instalado o primeiro quartel das tropas portuguesas [CART 496], a que se seguiu Gadamael [CART 640]. Segundo Luís Cabral, as tropas portuguesas estavam confinadas a Cacine".

Para um melhor conhecimento da evolução do contexto operacional desenvolvido pelas NT - unidades militares -, sedeadas naquela região, sugere-se a leitura do importante trabalho de investigação historiográfica elaborado pelo nosso camarada Manuel Vaz, ex-Alf. Mil da CCAÇ 798, iniciado no P19261, que saudamos.


2. A CARTA DE ARISTIDES PEREIRA A 'NINO' VIEIRA, ESCRITA EM CASSACÁ, EM 22 DE JANEIRO DE 1964

Neste segundo ponto apresentamos, de acordo com o acima exposto, a transcrição da carta, de quatro folhas, manuscrita em Cassacá, por Aristides Pereira, e enviada a 'Nino' Vieira, em 22 de janeiro de 1964.

Eis o seu conteúdo:

"Cassacá, 22 de Janeiro de 1964

"Meu caro Nino,

"É com imenso prazer que te saúdo, bem como a todos os camaradas, daqui deste ponto livre da nossa terra.

"Como sabes, devia encontrar-me contigo e com o Arafam ["N'djamba"] Mané, a 20 [Fev'1964], aqui na Zona. Com efeito, no dia 20 estava no interior, mas não foi possível fazer a reunião, dadas as novas condições que se apresentaram na tua [zona], grandemente atacada pelo inimigo [NT], e também porque o Arafam certamente se atrasou na missão.

"Entretanto, nós, em Conacri, em especial o Amílcar [Cabral], temos tudo preparado e desejamos que o encontro da missão do Arafam se faça o mais breve possível, não sendo possível neste mês, nos primeiros dias do mês de Fevereiro [1964].

"Seria bom se o encontro se pudesse realizar na tua barraca [acampamento], mas as condições não o permitem. Temos, pois, que nos contentar com um local mais próximo da fronteira [Sul], onde as condições de segurança dos presentes são maiores. Sugiro-te Cassacá, que já conheço. Entretanto, espero a tua resposta. Devo dizer-te que consideramos este encontro dos acontecimentos mais importantes na história da nossa luta e ele vai marcar uma nova etapa do nosso combate."


[Este encontro… é (foi) o I Congresso do PAIGC realizado em Cassacá, entre 13 e 17 de Fevereiro de 1964].


Citação: (1964), "I Congresso do PAIGC em Cassacá", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_85098 (2018-12-9)

Fonte: CasaComum; Fundação Mário Soares. Pasta: 07223.002.046. Título: I Congresso do PAIGC em Cassacá. Assunto: Amílcar Cabral e grupo de (dezanove) milicianos em Cassacá [região libertada do sul da Guiné-Bissau], por ocasião do I Congresso do PAIGC. Data: Fevereiro de 1964. Opaco/Transparente: Opaco Negativo/Positivo: Positivo. PB/Cor: Preto e Branco. Fundo: Arquivo Mário Pinto de Andrade. Tipo Documental: Fotografias.

"Esperamos fazer vir para assistir no último dia da reunião [I Congresso; 17Fev1964], alguns jornalistas estrangeiros, aos quais seria distribuído um documento sobre os problemas tratados na reunião. Queremos ainda que no fim dos trabalhos e diante dos jornalistas, o Secretário-Geral do Partido faça o "baptismo" do primeiro destacamento do nosso Exército. Esse corpo teria cerca de 150 homens cujas fardas viriam ainda de Conacri.

"Estou certo que compreendes bem o interesse que esta reunião tem para a fase nova da luta que estamos vivendo, no plano interior, e no plano exterior, o que isso pode representar como reforço da nossa posição no plano internacional e sobretudo, junto dos países vizinhos, em especial o Senegal.

Tinha muito interesse em ver-te também para discutirmos o problema do material que te falta. Autorizei que fosse tirado do material do Norte, 10 carabinas e 10 cxs de balas 7,62 mm PM para te mandar. Não compreendo com o que se teria passado com as balas 7,62 mm. No barco em que vieste estavam 30 cxs para a Zona 11. Houve engano com certeza. Estão no barco 2 morteiros para a tua Zona, assim como algumas minas antitanque e antipessoal.

Continuo aqui na barraca do Manuel [Saturnino da Costa?], aguardando a tua resposta amanhã, para poder regressar depois de amanhã. O Embaná vai comigo para trazer as coisas [será que se trata do Fiere Embaná, que desertou do PAIGC e se apresentou no quartel de Tite, em Maio'1971, ao tempo do BART 2924 (P18746)?].


"O Zé traz uma grande barraca e 3 macas para doentes.

"Devo dizer-te que o Comité dos 9 soube reconhecer e avaliar os trabalhos do nosso Partido. Esperamos, no entanto, ainda, qualquer coisa de mais concreto.

"O segundo assunto importante que queria tratar contigo é o da vinda dos dois amigos que deviam vir ver e filmar coisas no interior. Eles chegam a Conacri a 29 [Jan de 1964] e devem vir, como combinámos, a 1 ou 2 de Fevereiro. Dá-me a tua opinião sobre o caminho que devem seguir. 

"Entretanto, sugiro que estejas em Sangonhá, que visitem Bricama para ver gente do povo no mato, sem casa. Vêm depois a Cassacá, onde fariam o resto do filme (combatentes, casas destruídas, etc.). Seria decerto mais interessante se lhes fosse possível ver a base central, mas não creio que isso seja possível. Diz o que pensas sobre o assunto. Eles regressariam de barco à República da Guiné."







Reprodução do original da carta de Aristides Pereira

Citação: (1964), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/ 11002/fms_dc_39103 (2018-12-9).

Fonte: CasaComum; Fundação Mário Soares. Pasta: 07062.034.025. Assunto: Constituição do primeiro destacamento do Exército [Popular]. Visita do Comité dos 9 [OUA]. Vinda de "dois amigos" para filmar no interior. Remetente: [Aristides Pereira]. Destinatário: Nino Vieira. Data: 22 de Janeiro de 1964. Observações: Doc incluído no dossier intitulado Manuscritos de Amílcar Cabral. Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Correspondência.

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de BOAS FESTAS.

Jorge Araújo.

15DEZ2018.
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segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18188: Notas de leitura (1030): A Guiné-Bissau, os acontecimentos de 14 de Novembro de 1980 e um relatório do CIDAC de Dezembro do mesmo ano (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Abril de 2016:

Queridos amigos,
Este relatório do CIDAC fala sem complexos de um diagnóstico da doença que estava a vitimar o regime de Luís Cabral. Doença que todos viam e que a todos comprometia. É por vezes radical, excessivo e injusto, quando fala da carga deletéria dos "pides" e "comandos", pondo tudo no mesmo saco, ainda por cima antes e depois da independência da Guiné-Bissau. Vale a pena insistir que não dispomos de nenhum documento válido sobre o alegado comprometimento dos comandos em golpes de Estado.
É um relatório que diagnostica os principais problemas e que, curiosamente, segue de perto a argumentação expendida por um ideólogo do PAIGC ao tempo, Hélder Proença. Documento em que se insiste que continuava por perceber qual o projeto político do Movimento Reajustador, como se iria ver mais tarde não passava de um projeto da tomada do poder, nunca iriam aparecer diretrizes políticas claras para a estafada reconciliação e para a resolução dos problemas prementes do país, que persistem.

Um abraço do
Mário


A Guiné-Bissau, os acontecimentos de 14 de Novembro de 1980 e um relatório do CIDAC de Dezembro do mesmo ano

Beja Santos

O CIDAC tem um longo historial de cooperação com a Guiné-Bissau, antes e depois do 25 de Abril. Após os acontecimentos de 14 de Novembro de 1980, em que um autointitulado Movimento Reajustador apeou Luís Cabral da direção do PAIGC, uma delegação do CIDAC visitou Cabo Verde e a Guiné tendo produzido um detalhado relatório acompanhado de conclusões. Procede-se a seguir, e abreviadamente, ao alinhamento das principais linhas do documento.

Em jeito de diagnóstico, são referidos os seguintes pontos: esvaziamento das estruturas partidárias, com crescente dificuldade na mobilização popular; para compensar a crise na mobilização das massas, a direção do PAIGC teria reforçado as suas posições autoritárias, recorrendo a medidas de forte censura e ao endurecimento da Segurança (esta praticava tortura e prisões indiscriminadas). De igual modo, observava-se condescendência em relação aos crescentes privilégios da camada dirigente, incluindo a acumulação de erros na política económica. Era patente o descontentamento popular, agravado pelas roturas de abastecimento, o que tinha originado uma situação de fome no país que estava a atingir um ponto explosivo. Aristides Pereira alertara há pouco, e severamente, para tais situações no decurso de uma reunião do Conselho Superior de Luta. Também as FARP já escondiam o descontentamento com a nova hierarquização e a perpetuação dos baixos salários, eram visíveis grandes tensões entre os militares. Mas há dois pontos que não se podem ignorar. Em 10 de Novembro a ANP aprovara uma nova Constituição do país, e os debates tinham sido altamente polémicos, sobretudo à volta das seguintes matérias: ausência de uma referência expressa à obrigatoriedade do Presidente ser cidadão guineense, a concentração de poderes no Presidente, a admissão da pena de morte e as discrepâncias, consideradas negativas e inferiorizantes, em relação à Constituição de Cabo Verde. Por outro lado, assistia-se a um cesarismo em que Luís Cabral despachava direta e exclusivamente os assuntos dos Negócios Estrangeiros, os da FARP e da Segurança, que passavam completamente à margem do primeiro-ministro Nino Vieira. Tudo conjugado, tinham-se avolumado pressões à volta o comandante de Nino para que ele assumisse as suas responsabilidades. A fazer fé no relatório, estaria, por parte de Luís Cabral, a ser preparada uma ação para prender Nino, possivelmente a 16 de Novembro, festa de aniversário da FARP.

Passando aos acontecimentos de 14 de Novembro, vejamos a sua sequência. Foram dadas instruções para deter todos os dirigentes como medida de precaução e para libertar os presos políticos, foram interrompidas as comunicações com o exterior. O único foco de resistência efetivo veio da parte do homem forte da segurança, Buscardini que, cercado, provavelmente se suicidou. Entre os factos relevantes do desencadear dos acontecimentos, há a registar a insólita intervenção de Rafael Barbosa na rádio. Este autoproclamou-se líder e desencadeou um movimento de regozijo nos bairros de Bissau. O seu discurso na rádio foi interrompido por ordem do Conselho de Revolução. Três horas depois discursa Nino. Rafael Barbosa gozava manifestamente de grande popularidade. Deu-se também uma dinâmica anti-cabo-verdiana, manifestou-se descontroladamente, porventura por razões que tinham vindo a ser recalcadas desde a independência: ressentimentos que remontam ao período colonial; desigualdades de condições entre cabo-verdianos e guineenses que pertenceram aos quadros do funcionalismo ultramarino no que respeitava a aposentações e reformas. Mais se adianta no relatório que existiam ao tempo na Guiné-Bissau cerca de 200 funcionários cabo-verdianos em postos de responsabilidades no aparelho de Estado, e escreve-se: nem a Guiné-Bissau pode prescindir destes quadros nem Cabo Verde tem a capacidade para os absorver.

Numa segunda fase do golpe, divulga-se a sigla “Movimento Reajustador”, reafirmando sempre a permanência da linha política de Amílcar Cabral e chega-se a convidar Aristides Pereira a vir até Bissau. Com o maior mediatismo possível, fez-se a denúncia dos fuzilamentos dos guineenses e mostraram-se valas comuns, denúncia que terá provocado um autêntico e sincero traumatismo coletivo.

O Movimento Reajustador, à data da elaboração do relatório do CIDAC ainda não tinha revelado claramente qual o projeto político que o corporizava. A expressão reajustador tornou-se rapidamente simpática, incluía nos seus objetivos prioritários o combate às injustiças, a determinação em resolver a crise económica, em satisfazer as necessidades mais prementes do povo, e não deixando de propor a revisão do processo da unidade Guiné-Cabo Verde. A adesão ao movimento foi maciça e espontânea, quer dos poderes regionais (a exceção do presidente do Comité de Estado do Gabu) quer da população quer mesmo da generalidade dos quadros dirigentes. O relator carateriza este movimento como uma revolução nacionalista e populista que não evitou o despoletar de reações racistas contra os mestiços. Para tranquilizar toda a classe política afeta ao PAIGC, foi proclamada uma linha política de continuidade e fidelidade às orientações do PAIGC, particularmente às do III Congresso. Sékou Touré reconheceu o regime escassas horas depois da sua implatanção, enviou a Bissau uma forte delegação governamental e fez uma oferta de mantimentos de primeira necessidade. Podem-se explicar estas atitudes pelas seguintes razões: antigo contencioso pessoal de Sékou Touré contra Luís Cabral, fundado em preconceitos racistas, e um recente conflito fronteiriço tinha azedado as relações entre os dois regimes, à volta de uma zona de águas territoriais onde prosseguiam as prospeções petrolíferas.

A posição oficial cabo-verdiana foi de condenação, trocaram-se cartas ao mais alto nível, o seu conteúdo dava para perceber que a rotura caminhava para o irreversível. O relator não deixa de apontar os aspetos que ele considera negativos: prisão de Luís Cabral, bem como a de alguns membros do Conselho Superior de Luta e de Conselho Executivo de Luta; a indefinição da direção política; a condenação emocional dos fuzilamentos e da descoberta de valas comuns não podia iludir que os “pides” e os “comandos” tinham sido os maiores criminosos ao serviço de opressão colonial, “mesmo depois da independência”; os ataques a Aristides Pereira, envolvendo-o na responsabilização por desvios; a libertação e a intervenção espalhafatosa de Rafael Barbosa; o bloqueamento das estruturas supranacionais do PAIGC.

Mas já na fase das conclusões, comenta-se que a reação nacionalista só terá frutos políticos positivos se for acompanhada pelo combate às forças de orientação política antipopular, comentando-se também que deve ser analisado o frequente apelo ao retorno ao país dos guineenses no estrangeiro, particularmente os quadros técnicos incluindo aqueles que têm estado organizados em movimentos de oposição ao PAIGC como a FLING e a UPANG. A este respeito diz-se que não se pode esquecer que estas organizações representam interesses bem específicos de camadas privilegiadas. O comunicado público do CIDAC apela à libertação dos atuais presos políticos, justificando: “A libertação dos detidos seria um passo fundamental para o diálogo interno e externo, além de não parecer fundamentado que continuem presos os camaradas que, sem prejuízo de erros e desvios, dirigiram as lutas de libertação e de reconstrução nacional, no momento em que são acolhidos e integrados elementos da oposição”.
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18175: Notas de leitura (1029): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (16) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Guiné 61/74 - P17055: Notas de leitura (930): “O PAIGC perante o dilema Cabo-Verdiano (1959-1974)”, por José Augusto Pereira, Campo da Comunicação, 2015 (3) (Mário Beja Santos)

Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Novembro de 2015:

Queridos amigos,
O mestre José Augusto Pereira legou-nos uma investigação que deve ser tida em conta, a todos recomendo a sua leitura. Se em determinadas matérias mostrou aplicação e tratou com rigor uma boa parte da bibliografia, compulsou nos arquivos da PIDE aqueles relatórios onde se registavam dissensões, quebras de confiança na política seguida pelo secretário-geral, e até a tentativa de criação de partidos em que não houvesse misturas entre guineenses e cabo-verdianos. Recorde-se que quando Amílcar Cabral chegou à região em 1960 foi logo confrontado pela contestação dos guineenses se juntarem a cabo-verdianos na luta e num qualquer ideal federativo. Os melhores investigadores de Cabral alegam que a ideia de unidade era muito corrente nessa época, o que é inteiramente verdade, mas Cabral ao longo dos anos foi assistindo ao desmantelamento dessas uniões, do Egito ao Mali. E ele não podia ignorar a questão estrutural de que os cabo-verdianos não eram bem-amados na Guiné, eram encarados como o braço longo do colonialismo. É assim que se percebe que ainda há muita investigação a fazer e muitos mitos a desmontar.

Um abraço do
Mário


O PAIGC perante o dilema Cabo-Verdiano (3)

Beja Santos

“O PAIGC perante o dilema Cabo-Verdiano (1959-1974)”, por José Augusto Pereira, Campo da Comunicação, 2015, é seguramente uma investigação rigorosa, com aturada consulta da bibliografia mais pertinente, não hesito em considerar esta investigação como apropriada para o conhecimento de uma realidade tantas vezes omitida – o PAIGC da luta da Guiné e o PAIGC clandestino e impaciente por passar à subversão, o que jamais sucedeu.

Acompanhou-se o desenrolar do trabalho de José Augusto Pereira: o confronto entre duas realidades socioeconómicas e culturais diferenciadas e com pontos de aproximação; a história do PAIGC na luta armada guineense e as sucessivas hesitações entre agitação política e a promessa de desembarque em Cabo Verde. É esta faceta da crise que é sucessivamente silenciada, acrescendo que muitos cabo-verdianos de modo algum se identificavam com o lema “unidade e luta”.

A impaciência dos militantes cabo-verdianos está bem documentada. Jorge Querido, o responsável máximo pela atividade do PAIGC em Cabo Verde escreve para Conacri pedindo orientações e armamento, a resposta demorava. Os clandestinos em Lisboa também vociferavam, Amílcar Cabral procurava apaziguar. Osvaldo Lopes da Silva que, entre 1970 e 1972, recebera formação em marinha de guerra no Mar Negro, URSS, quando chegou a Conacri pediu a Cabral a perspetiva da luta do povo cabo-verdiano para a independência, os cabo-verdianos queriam ser tratados como uma entidade, e não como um apêndice da luta da Guiné. Esta reivindicação não era original, Abílio Duarte em Abril de 1970, defendeu que o problema de Cabo Verde devia ser tratado por toda a direção do partido, Amílcar Cabral opôs-se, recusou atitudes chauvinistas, era inaceitável só pensar em Cabo Verde. Morto Cabral, no decurso do II Congresso do PAIGC, foi criada a Comissão Nacional de Cabo Verde, presidida por Pedro Pires. Doravante, este organismo procurará assegurar a condução dos contactos com os militantes clandestinos em Cabo Verde, a organização de militantes em Portugal e cativar os emigrantes cabo-verdianos residentes na Europa e nos Estados Unidos da América.

Além de impacientes com o impasse cabo-verdiano, estes militantes sentiram que havia sintomas de crise na Guiné, grassava o cansaço e a desmotivação, os próprios relatórios da PIDE/DGS referem atos de indisciplina entre combatentes da etnia Balanta na zona do Boé, em finais de 1967 e dificuldades em recrutar combatentes na zona Norte. Esses mesmos relatórios da PIDE referem críticas de guineenses acerca do alegado tratamento privilegiado que Amílcar Cabral dispensava aos cabo-verdianos, distribuindo-lhes cargos de direção. Refere o autor que o arquivo da PIDE é fundamental para estas informações que dão conta das variadas tensões entre dois povos. José Augusto Pereira considera, no entanto, que esta leitura se revela desajustada quando sinaliza o percurso dos fundadores e dirigentes do topo do partido, a partir de 1973 passam a predominar quadros oriundos da Guiné que ficarão em maioria e os militantes cabo-verdianos em minoria. Mas até ao assassinato de Cabral o topo da linha dirigente era constituído exclusivamente por cabo-verdianos. Os órgãos dirigentes reuniram pouco e mal nos anos de 1971 e 1972, Cabral ausentava-se imensas vezes, daí não ter acompanhado de perto da degradação da situação interna do PAIGC. Esta questão é profundamente incómoda, mas investigadores como Peter Karibe Mendy não iludiram o ressentimento prevalecente na sociedade guineense e que tinha como alvo os funcionários oriundos das ilhas, rotula-os como “instrumentos da brutal dominação portuguesa”.

A grande ironia desta contestação do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde não invalidou que os quadros cabo-verdianos tivessem um papel determinante na condução da luta, mas a desconfiança foi sempre recíproca, houve dissensões no PAIGC manifestamente a partir de 1967. Recorde-se que Honório Sanches Vaz tentou criar o Partido Democrático Orgânico da Guiné, Cabral determinou a sua execução e a dos seus seguidores. José Augusto Pereira repertoria outras tentativas de dissidência, são constantes nos relatórios da PIDE. Por exemplo, Mamadu Injai, que ao tempo do assassinato de Cabral era o responsável pela segurança do secretário-geral, tinha estado ligado à Junta Militar dos Patriotas da Guiné-Bissau, foi destituído e Cabral procurou recuperá-lo. Trata-se de um capítulo importantíssimo desta obra que justifica uma leitura muito cuidadosa para acabar com a mitologia de que alguns rancorosos encabeçaram a conjura que liquidou Cabral. Em testemunhos subsequentes à rutura de 1980, quadros com grandes responsabilidades como Osvaldo Lopes da Silva, Herculano Vieira, Corsino Tolentino e Silvino da Luz referiram a difícil convivência entre militantes guineenses e cabo-verdianos.

Nas conclusões da obra, o autor volta a chamar à atenção para o significado das contradições da divisa “unidade e luta”, um programa da ação política com que guineenses e cabo-verdianos se conformaram durante a fase da luta, mas mantendo prudentes distâncias. Mas igualmente os militantes cabo-verdianos em Cabo Verde manifestavam o seu descontentamento perante as formas de condução da luta e registaram os atos de contestação dos guineenses e como eles igualmente hostilizavam os cabo-verdianos. Aristides Pereira, eleito secretário-geral em 1973, toma medidas cautelosas, atrai para a direção do partido Nino Vieira e Chico Té ou Francisco Mendes, isto a par da criação da Comissão Nacional de Cabo Verde.

Muita água correu debaixo das pontes entre 1974 e 1980, é a fórmula de revisão constitucional que constitui a última gota que apressará a desunião. Uma desunião que encerrava em si própria contradições e paradoxos já que os governos de Luís Cabral eram compostos essencialmente por guineenses que não contestavam a sua condução dos negócios políticos, Luís Cabral tornar-se-á no bode expiatório de todos os desmandos praticados nesse período em que tentou o planeamento económico e a criação de empresas que cedo caminharam para o desastre.

Quando terminamos a leitura deste livro tão interessante, confirmamos que esse lema da “unidade e luta” é uma das razões do grande sucesso da luta do PAIGC e o fator essencial para uma dissidência dos dois povos, não se prevendo no horizonte uma quebra de desconfiança a dois.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17046: Notas de leitura (929): “O PAIGC perante o dilema Cabo-Verdiano (1959-1974)”, por José Augusto Pereira, Campo da Comunicação, 2015 (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13439: Notas de leitura (617): “Guiné-Bissau - Páginas de História Política, Rumos da Democracia", por F. Delfim da Silva (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Janeiro de 2014:

Queridos amigos,
Fernando Delfim da Silva é nome proeminente na política guineense. Licenciou-se em Filosofia em Leningrado, esteve ligado ao sistema educativo e foi dirigente da juventude Amílcar Cabral.

Entrou na rampa ascendente em 1990, como diretor geral da Presidência do Conselho de Estado, foi depois secretário de Estado e várias vezes ministro; foi prisioneiro político em 1972/73 e em 1985/86.

Este seu livro é assumido como uma coletânea de memórias da sua experiência política, tem um aporte sobre o processo eleitoral e o modo de o emendar e uma análise aos partidos políticos então existentes (conjuntura de 2003).

Trata-se de um depoimento incontornável, estranhamente silenciado em análises posteriores de gente credenciada. Coisa que faz parte dos chamados silêncios africanos…

Um abraço do
Mário


Fernando Delfim da Silva:
Memórias e considerações de um político guineense (1)

Beja Santos

Desafortunadamente, os escritos oriundos de antigos combatentes do PAIGC e de políticos guineenses pós-independência são raros e nem sempre esclarecedores.

Devemos a Luís Cabral, depois da sua prisão, após o golpe de Estado de 14 de novembro de 1980, um depoimento de inegável importância sobre a vida e obra de Cabral, é uma crónica que não deixa equívocos sobre a articulação estreitíssima entre o líder e a sua obra; Aristides Pereira começou por ser comedido e até entediante sobre a história do PAIGC e o fim da unidade Guiné-Cabo Verde, no final da vida, numa longuíssima entrevista a José Vicente Lopes foi de uma franqueza inesperada; Bobo Keita, uma figura militar de segunda grandeza, aceitou ser entrevistado e trouxe dados pertinentes sobre o regime de Nino e lançou uma outra luz sobre o assassínio de Amílcar Cabral; Filinto Barros, um dos políticos mais experientes e íntegros do PAIGC, escreveu um romance primoroso sobre a condição dos ex-combatentes numa Guiné-Bissau já desalentada, Kikia Matcho, o seu derradeiro testemunho foi publicado sem ser revisto, trata-se de um texto intragável onde o antigo político acusa muita gente de gestão danosa sem explicar muito bem quais os corretivos que deviam ter sido aplicados.

E há outros depoimentos, até aos dias de hoje, basta recordar o que aqui se escreveu sobre os livros de considerações políticas atuais assinados por Leopoldo Amado e Julião Soares Sousa. O nome de Fernando Delfim da Silva e o seu livro “Guiné-Bissau, Páginas de história política, rumos da democracia”, Firquidja Editora, Bissau, 2003, não me podia deixar indiferente.

Convivi com Delfim da Silva em 1991, quando ele, pela noitinha, a caminho de casa, e depois de ter trabalhado nos serviços da Presidência da República, me dava boleia entre a Pensão Central e a Cicer, salvou-me muitas vezes de dar trambolhões na noite sem lua; em 2010, quando eu estava a ultimar “A Viagem do Tangomau”, acedeu várias vezes a conversar comigo sobre a história recente da Guiné-Bissau, registei os seus pontos de vista, estou certo que nos despedimos com respeito e consideração mútuos.

O livro do antigo ministro dos Negócios Estrangeiros divide-se entre considerações de por vezes do grau íntimo sobre políticos guineenses e uma vasta apreciação sobre o processo eleitoral, isto em vésperas das eleições de 2004, após o afastamento compulsivo de Kumba Yalá da Presidência da República onde este, pouco antes da partida, dissolvera a Assembleia Nacional Popular. Por razões compreensíveis, não cabe nesta recensão dissecar as suas opiniões sobre um sistema eleitoral mais apropriado para a Guiné-Bissau, vamos ater-nos às considerações políticas.

Ele chama ao seu depoimento a história de uma geração, “uma história que ninguém sabe quando vai terminar, nem como vai terminar”. Geração vitoriosa, que levou a Guiné à independência, geração do 14 de novembro de 1980, que cindiu o PAIGC a que se seguiu o golpe da polícia política no chamado “caso 17 de outubro de 1985”, e depois a guerra civil de 1998-1999, com outros episódios pelo meio menos relevantes mas muitíssimo significativos de um poder autocrático que procriou um golpismo militar permanente.

É um livro de recordações, por vezes circulares, por vezes ordenadas na cronologia dos factos. Recorda as primeiras eleições legislativas e presidenciais livres, as de julho de 1994, acreditava-se então numa transição política de sucesso. Politicamente, sempre segundo Delfim da Silva, foram falhanços atrás de falhanços, daí ele considerar de primeiríssima importância a necessidade de se construir um modelo de maior justiça eleitoral, o livro termina por uma abordagem e descreve-os resumidamente, são apontamentos de consideração obrigatória para a historiografia política guineense.

Delfim da Silva afastara-se da política quando foi estudar filosofia na então Leninegrado. Em 1990, diz ter acreditado no processo de transição democrática e tornou-se num estreito colaborador de Nino Vieira. Acompanhou a revisão constitucional de maio de 1991 que revogou o artigo 4.º que consagrava o PAIGC como (única) “força política dirigente da sociedade e do Estado”, que tornou possível o aparecimento de legislação sobre os partidos, a liberdade de imprensa, o direito de reunião e manifestação e a liberdade sindical, entre outros.

Ninguém debateu nem ninguém escreveu, nem ninguém anteviu que a competição interpartidária podia vir a acarretar um populismo extremamente corrosivo no quadro de uma democracia parlamentar de fresca data. Parece ter havido uma confiança cega na transição democrática. O PAIGC vivia ferreamente atado aos princípios definidos por Cabral quanto ao partido-Estado, desde 1964. A omnipresença do PAIGC parecia um dogma, como escreveu Amílcar Cabral:

“Estamos organizados como um partido: por tabanca, por zona e por região. O Sul da Guiné é dirigido por um Comité Nacional das Regiões Libertadas do Sul, e o Norte é dirigido por um Comité Nacional das Regiões Libertadas do Norte. Isto constitui uma estrutura básica de Governo. De facto, as regiões libertadas têm já todos os elementos de um Estado – serviços administrativos, serviços de saúde, serviços de educação, forças armadas locais para a defesa dos ataques portugueses, tribunais e prisões. O problema imediato é alargar o nosso Estado até abarcar todo o país. A transição para a estrutura do Estado não será um problema”.

E assim aconteceu, o PAIGC instalou-se em Bissau, em outubro de 1974, e teve a ilusão da sua capilaridade por todo o território, planificou a economia, a direção política imaginou uma industrialização pujante, cercou-se de uma polícia política e instalou o esbirrismo, com os insucessos procuraram-se complôs irresponsáveis, caso dos comandos africanos; a latência da tensão entre os nacionais e os cabo-verdianos atingiu o clímax com uma nova proposta de revisão constitucional.

Nino coordenou o golpe, o poder militar superou o poder político, deu-se a cisão com os cabo-verdianos e a prisão de figuras importantíssimas da luta, guineenses de gema. Reforçou-se o poder autocrático, graças a militares como Ansumane Mané. Delfim da Silva recorda figuras que ele classifica como importantes, caso de Sanussi Cassamá que em julho de 1992 ascendeu a chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, nele se depositou esperança da reforma das Forças Armadas, institucionalizando-as em parâmetros modernos, adequados à tradição democrática. Sanussi Cassamá morreu de doença e sucedeu-lhe Ansumane Mané.

Estava lançada, com insidiosa violência, a questão militar que parecia resolvida desde o Congresso de Cassacá, em fevereiro de 1964. A questão militar entrou de enxurrada na vida política guineense a partir de 1980: o descontentamento dos antigos combatentes, a arrogância dos agentes da segurança do Estado, a clique militar à volta de Nino, uma burocracia de Estado montada à custa dos heróis indiscutíveis, fomentaram rivalidades e espírito de complô que irão desembocar na humilhação de Victor Saúde Maria, na paranóia de um “golpe militar Balanta” e no caso de Paulo Correia e de outros dirigentes, fuzilados em 1986.

(Continua)
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Nota do editor

Ultimo poste da série de 25 de Julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13435: Notas de leitura (616): “Pluralismo Político na Guiné-Bissau", coordenação de Fafali Koudawao e Peter Karibe Mendy (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Guiné 63/74 - P12688: Notas de leitura (560): A descolonização da Guiné: Depoimentos de protagonistas - Parte 1 de 4 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Setembro de 2013:

Queridos amigos,
Ao longo de anos, foram-se reunindo vários painéis sobre a descolonização da Guiné nos conceituados encontros da Arrábida.
Como se pretende, dentro das nossas modestas possibilidades, fazer um arquivo do que de essencial se tem escrito sobre a Guiné, a sua guerra, a sua história, a sua cultura, e até a sua descolonização, não teria sentido deixar de dar a voz a diferentes protagonistas e aos seus depoimentos por vezes muito relevantes.
Faz-se aqui a síntese do painel de Agosto de 1995, em breve se dará seguimento aos outros que tiveram lugar naquela idílica serra da Arrábida.

Um abraço do
Mário



A descolonização da Guiné: Depoimentos de protagonistas (1)

Beja Santos

No site que se indica (http://www.ahs-descolonizacao.ics.ul.pt/guine.htm) o confrade tem acesso a sucessivas jornadas de trabalho promovidas no âmbito dos Estudos Gerais da Arrábida dedicadas à descolonização portuguesa. A Guiné foi alvo de várias jornadas de trabalho, aqui se sintetiza a primeira, pelo adiante se resumirão as posteriores. Em 29 de Agosto de 1995, depuseram o general Mateus da Silva (membro do MFA e Encarregado do Governo da Guiné depois do 25 de Abril) coronel Carlos de Matos Gomes, Oficial dos Comandos, que pertenceu à primeira Comissão Coordenadora do Movimento dos Capitães na Guiné e é o conhecido escritor Carlos Vale Ferraz, José Manuel Barroso, jornalista, capitão miliciano na Guiné e membro do MFA da Guiné e coronel Florindo Morais que foi o último comandante do Batalhão dos Comandos Africanos na Guiné.

O general Mateus da Silva referiu a atmosfera de uma quase contestação aberta dos militares a que se seguiu uma consciencialização política. Exemplificou com a revista ZOE que circulava desde Agosto de 1972 em todas as unidades do território com uma linha editorial que veladamente criticava a política do regime; e as reuniões realizadas na messe de oficiais de Bissau e no agrupamento de transmissões, em Agosto e Setembro de 1973, onde se falava já abertamente no derrube do regime. Na Guiné se foi construindo um ambiente específico que justificou ali um golpe de Estado em 26 de Abril, assinalou a contestação ao Congresso dos Combatentes, o facto da maior parte dos militares que veio a participar no 25 de Abril ter passado pela Guiné. E observou:
“A Guiné era a única colónia onde o MFA estava organizado antes do 25 de Abril; por duas vezes, antes do 25 de Abril, se encarou localmente a hipótese de iniciar a revolução. A Guiné foi o único território onde o MFA tomou a iniciativa de acompanhar o 25 de Abril com um golpe que destituiu o poder político-militar no território”.

A chegada do tenente-coronel Carlos Fabião, em 7 de Maio, veio reforçar a linha do MFA: reunia-se todos os fins de tarde com os quatro elementos da Comissão Central do MFA. Em 24 de Maio Fabião emitiu uma diretiva: “A partir desta data todos os militares que estão na Guiné pertencem ao MFA”. Repertoriou as múltiplas reuniões havidas na Guiné antes do 25 de Abril. Depois do 16 de Março, houve que estabelecer uma organização mais sólida para o levantamento e requereram-se apoios à Guiné. Aos poucos, constituiu-se na Guiné a direção da conspiração em que tomaram lugar o comandante do Batalhão de Comandos, os comandantes do Batalhão de Paraquedistas, o comandante da Polícia Militar, o comandante das Transmissões, o comandante da Engenharia e o comandante da Artilharia. Na manhã de 26 de Abril, o general Bethencourt Rodrigues foi detido na Amura, seguiu para Cabo Verde e daqui para Lisboa. Mateus da Silva, por decisão do MFA da Guiné, tomou posse como encarregado de Governo. As manifestações populares surgiram logo no dia 27, anulou-se a PIDE/DGS, libertaram-se os presos da Ilha das Galinhas. A grande instabilidade surgiu do Batalhão de Comandos, Spínola dissera repetidamente:
“Nunca o PAIGC tomará conta disto porque em último caso, se nós sairmos, vão ser vocês os líderes da futura Guiné”. A população agitava-se nas ruas, os Comandos entraram numa grande instabilidade.

Em 12 de Maio, Mário Soares reuniu-se com Aristides Pereira em Dakar, Senghor estava de visita à China, foram recebidos pelo primeiro-ministro Abdou Diouf, terminada a reunião em privado, todos se lançaram nos braços uns dos outros, a confraternizar como irmãos desavindos que finalmente se tinham reencontrado.

O coronel Matos Gomes debruçou-se sobre vários contextos: as linhas étnicas que atravessavam a composição do Batalhão de Comandos; o facto de que os mísseis implicaram uma resposta para os contrariar mas tornavam claro que aquela guerra estava de facto perdida, esclarecendo que tinha sido na Guiné que surgiram praticamente todos os oficiais que vão desempenhar um papel decisivo no MFA, reforçando a ideia de que o que se passara na Guiné em 26 de Abril foi um golpe autónomo onde não participaram os spinolistas. Num clima já de debate, foi discutido o documento “A Situação Político-Social na Guiné”, documento de apoio a uma reunião que foi feita em Bissau, em Setembro de 1973.

José Manuel Barroso debruçou-se sobre a perspetiva militar que ele pôde observar desde 1972 em que era ponte assente que os militares não permitiriam que a Guiné não se transformasse numa segunda Índia, mesmo que tivessem de atuar contra a metrópole. Descreveu a rede de contactos montada por Spínola com figuras de oposição, financeiros e importantes jornalistas. Por exemplo, Spínola estabeleceu relações privilegiadas com o diretor da República, Raul Rego. No seu depoimento, Barroso contou uma conversa havida com Spínola logo a seguir ao assassinato de Amílcar Cabral: “Isto é um perfeito disparate. Apesar de tudo, o Amílcar era um tipo com fortes raízes portuguesas, era um interlocutor, agora não sei quem é que vem. Apesar de todas as asneiras que nós possamos ter feito para trás, hoje, o assassinato do Amílcar é um erro”.
Mais adiante observou que a continuada negociação do governo de Marcello Caetano para a obtenção de novas armas (mísseis red eye) era uma tentativa de ganhar tempo para que as forças portuguesas na Guiné dispusessem de alguns recursos militares que aumentassem a sua capacidade de defesa. Baseava esta observação em conversas havidas com altos dirigentes políticos do Estado Novo que lhe confirmaram que era preciso encontrar uma forma de negociar numa posição de muito mais força, aquelas novas armas não dariam superioridade militar às forças portuguesas, eram uma antecipação a meios aéreos que o PAIGC viesse a ter, eram meios de defesa, era mísseis antiaéreos.

Na mesa redonda abordaram-se alguns assuntos delicados como os militares do Batalhão de Comandos terem, na sua esmagadora maioria, recusado a proposta de virem para Portugal e serem integrados nas Forças Armadas Portuguesas, preferiram receber vencimentos até Dezembro de 1974; falou-se de pouco significado que teve a agitação dos movimentos esquerdistas polarizado pelo Movimento para a Paz que aspiravam para um regresso imediato irresponsável a Portugal; referiu-se como o potencial humano militar estava praticamente esgotado no 25 de Abril, uma percentagem esmagadora das subunidades importantes na quadrícula, que eram as companhias, eram em cerca de 90 % comandadas por milicianos, de um modo geral impreparados; exprimiu-se também a situação altamente sensível de que se estava a transferir poder, já não era um reconhecimento de Portugal da independência da Guiné-Bissau, o que eles asseguraram fazer e não cumpriram e os fuzilamentos e outras malfeitorias praticadas só a Guiné-Bissau pode responder perante a comunidade internacional, as autoridades na Guiné cumpriram estritamente o que foi assinado nos acordos de Argel.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE FEVEREIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12669: Notas de leitura (559): "Guerra Colonial - Uma História por contar", edição da Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, Externato Infante D. Henrique (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12250: A guerra vista do outro lado... Explorando o Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum (6): Carta de Marga ('Nino' Vieira) a Aristides Pereira, presumivelmente de meados de 1964, em que refere um desembarque das NT em Gampará, que terá provocado a morte de "22 pessoas do povo e umas vintenas de vacas" (sic)

1. Transcrição de mais um documento do Arquivo Amílcar Cabral (*), disponível no portal Casa Comum (projeto ligado à constituição de uma "comunidade de arquivos de língua portuguesa", liderado e desenvolvido pela Fundação Mário Soares).

Trata-se  de um manuscrito, de 5 páginas, não numeradas, sob a forma de carta, entregue por mão própria, assinada por Marga (pseudónimo de 'Nino' Vieira, comandante da Frente Sul,  mais  conhecido, no seio da sua tropa,  por Caby, ou Kabi, seu verdadeiro nome de guerra) (**) em que comunica a Aristides Pereira  (no exterior, em Conacri, com o cargo de secretário-geral adjunto do PAGC) que:

(i) chegou ao chão dos Nalús [, ou seja, o Cantanhez,  região de Tombali],  depois de concluída uma  missão nas outras zonas; (ii) dá conta do desaparecimento do comandante Honório Vaz na Zona 7;  (ii) relata sumariamente  as consequências do ataque  das tropas portuguesas  desembarcadas em Gampará, dias antes de ele chegar à região de Quínara; (iv) fala de queixas do povo contra Malam Sanhá (, comissário político que tinha feito, antes da guerra, trabalho de mobilização de pessoal na região de Fulacunda, sob as ordens diretas de Amílcar Cabral); (v) manda lista de camaradas que têm cometido crimes (sic) contra a população na região  de Quinara (, já antes o problema da violência perpretada contra elementos da população por combatentes do PAIGC, se tinha levantado, no Congresso de Cassacá, realizado de 13 a 17/2/1964, no setor de Quitafine) ; e ainda (vi) refere  ataque das tropas portuguesas à base central [, presume-se. no Cantanhez

Repare-se ainda no trecho da carta em que, depopis da denúncia do Malam Sanhá e de outros camaradas sobre os quais recaem graves acusações, o 'Nino'  manifesta ao Aristides  o seu interesse em falar direta e pessoalmente, sem qualquer intermediário,  "com o Secretário Geral [Amílcar Cabral], a fim de  [expor-lhe] uns certos problemas respeitantes à n[ossa] luta". Não podia ser mais explícito: "Tenho certos assuntos que pretendo pôr ao Secretário face a face". O mesmo é dizer que secretário só há um...

A carta não tem data, mas pertence ao lote da correspondência dos responsáveis da zona sul, relativa aos anos de 1963/64 (algumas  são ainda de 1962, quando já havia ações de sabotagem e escaramuças com as autoridades portuguesas, por exemplo, o ataque, gorado,  á esquadra de polícia de Catió, em que o próprio 'Nino' participa!).

Entretanto, cotejando-a  com outra, de 29/8/1964, [, também dirigida ao Aristides Pereira, escrita com a mesma  letra (perfeitamenet legível, e num português relativamente desenvolto, acima da média da literacia de outros comandantes) e em que Marga (i) se queixa da falta de professores, tendo só um professor, o Areolino,  para tantas alunos, (ii) agradece o relógio que lhe enviaram, e (iii)  requisita  sabão "asepso" (sic), ] não temos dúvidas de que se trata de correspondência datada dessa altura (agosto/setembro de 1964)...


Revisão e fixação de texto: L.G. (*)
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2. De Marga [Nino Vieira,  comandante da frente sul, então com 25 anos, foto à esquerda, disponibilizada por Virgínio Briote (**)] para Aristides Pereira [, secretário geral adjunto do PAIGC, desde 1964,  a viver em Conacri, e então com 40 anos]

Camarada Aristides:

A vossa saúde em companhia dos n[ossos] camaradas, são os meus maiores desejos. Nós bastante bons graças ao Devino [Divino] e ao povo.

Comunico-vos que vim [acabei] de chegar no dia 7 ao [chão dos] Nalus, depois de ter conduzido a missão, que fui confiado a cumprir nas outras zonas. Claro que fiz uma boa viagem, donde contactei face a face com os camaradas e o povo, explicando-lhes a razão que levou o Secretariado a tomar estas decisões, a fim de melhorar a nossa condição de luta no interior.

Passei por diversas bases e tabancas do povo. Demorei um mês para concluir toda essa volta. Não tenho encontrado nenhum obstáculo durante a minha viagem, nem tão pouco tenho visto reservazinhas [sic] da parte dos camaradas. Depois de ter contactado com o povo, manifestaram bastante os seus apoios quanto à luta e à decisão que foi tomada ultimamente para unificação das zonas.

Temos colocado responsáveis dos sectores e de bases em todos os pontos indicados.

O camarada Honório Vaz não se encontra na Z[ona] 7 e ninguém sabe do paradeiro deste. Alguns dizem que está na zona e os outros dizem que foi para o Senegal.

Dias antes de [eu] chegar a Gampará, as tropas portuguesas desembarcaram aí, onde destruíram todos os bens do povo. Mataram 22 pessoas do povo  e umas vintenas de vacas.

Junto [h]ouve pessoas do povo que têm participado queixas contra o Malam Sanhá e outros. Junto segue a lista dos camaradas que têm cometido crimes contra a população na área de Quínara. Junto queria contactar com o Secretário Geral [Amílcar Cabral], a fim de expô-lo [expor-lhe] uns certos problemas respeotantes à n[ossa] luta. Tenho certos assuntos que pretendo pôr ao Secretário face a face.

Da minha ida a Cubisseco, aproveitei de [para] trazer para a base central a camarada Carlota da Silva, afim de auxiliar o Areolino Cruz nas instruções [aulas de alfabetização], porque ele sozinho não pode. Trouxe-a comigo depois de ter trocado com ela algumas impressões, na apresentação do João Tomaz e Guerra. Ela já se encontra na base e deve começar a dar instruções [aulas], dentro destes dias.

O Sadjá Bambé disse para dizer ao Luís [Cabral] de mandar-lhe o seu relógio se já estiver pronto. Agradeço mandar-nos oferecer fardas, porque as que os camaradas tinham, foram destruídas pelos portugueses.

No dia 20 deu-se um grande ataque nos arredores da base. As tropas inimigas avançaram até à base central e destruiram aí [sic]. Tinham com eles um guia que conhece muito bem o caminho.

Agradeço ainda de mandar-me oferecer sabão assép[tico], se possível. As mercadorias ainda não atravessaram a fronteira mas vou fazer tudo com que isso atravesse [sic].

Podem confiar [a]o portador desta [carta] de trazer aqueles materiais para defesa dos rios.

Portanto termino. Desejando-vos a todos um bom sucesso nos vos[sos] afazeres. Marga [Nino Vieira]


Fonte
(s.d.), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_39133 (2013-11-3)

Para ampliar o documento clicar aqui:

Casa Comum

Instituição: Fundação Mário Soares

Pasta: 04613.065.047Assunto: Comunica que chegou a Nalús depois de concluída a missão nas outras zonas. Desaparecimento de Honório Vaz. Ataque das tropas portuguesas em Gampará. Queixas do povo contra Malam Sanhá; lista de camaradas que têm cometido crimes contra a população na área de Quinara. Ataque das tropas portuguesas à base.

Remetente: Marga (Nino Vieira)

Destinatário: Aristides Pereira

Data: s.d.

Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Correspondência 1963-1964 (dos Responsáveis da Zona Sul

Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral

Tipo Documental: Correspondencia

Direitos: A publicação, total ou parcial, deste documento exige prévia autorização da entidade detentora.

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 31 de outubro de 2013 > Guiné 63/74 - P12229: A guerra vista do outro lado... Explorando o Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum (5): Relatório de 22/12/1966, assinado por Brandão Mané, sobre a situação militar na região Xitole-Bafatá, reportando importantes perdas em homens e material

(**) Sobre o 'Nino' Vieira,  vd. aqui poste de 9 de março de 2009 >  Guiné 63/74 - P4001: Nuvens negras sobre Bissau (19): 'Nino' Vieira (1939-2009): tão bom combatente como mau político (Virgínio Briote)

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10383: Notas de leitura (403): Relatório do Conselho Superior de Luta ao III Congresso do PAIGC (1977) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 9 de Julho de 2012:

Queridos amigos,
Trata-se do III Congresso do PAIGC, ainda se vivia no mito da unidade Guiné-Cabo Verde.
O postulado ideológico aparece claramente definido, a ligação entre partido e movimento de libertação, o centralismo democrático consorciado com a dinâmica revolucionária. Aristides Pereira refere sucessos industriais que no ano seguinte, Luís Cabral, noutro documento já aqui apresentado, não ilude insucessos, desvios, inviabilidades. Tudo faltava à Guiné e confundiram-se desejos com a política praticável. As fábricas fecharam, os financiamentos volatizaram-se, a divida externa acumulou-se. Começava a espiral infernal de onde nunca mais se saiu.

Um abraço do
Mário


Relatório do Conselho Superior de Luta ao III Congresso do PAIGC (1977)

Beja Santos

Com o intuito de se juntar toda a documentação que permita seguir a evolução política do PAIGC no período de pós-independência, procede-se a um resumo das matérias abordadas no seu relatório por Aristides Pereira no decurso do III Congresso do PAIGC. Convém recordar que o II Congresso ocorrera em 1973, havia que eleger uma nova Direção após o assassinato de Amílcar Cabral e definir a linha de rumo que desembocasse na independência.

A Guiné-Bissau estava agora confrontada pelo modelo de desenvolvimento na era pós-colonial. Aristides Pereira lembra as dificuldades vividas durante o período da libertação total (que ele denomina por “política de abertura em relação aos nacionais que, enganados pela demagogia colonialista, tenham combatido nas fileiras do inimigo”), refere o novo Estado como confrontado pela ausência de infraestruturas básicas, pelo desequilibro e dependência do comércio externo e por uma grave falta de quatro técnicos qualificados. A seguir, debruçou-se sobre os fundamentos da orientação política e ideológica do PAIGC e recorda: “Desde a sua criação o PAIGC definiu-se como a vanguarda e o motor da luta. Cabral dizia que uma luta, para poder avançar a sério, tem que ser organizada e só pode ser organizada a sério por uma direção de vanguarda. Que o PAIGC adotara a designação de partido porque, para dirigir um povo para a libertação e para o progresso é fundamentalmente preciso uma vanguarda. O PAIGC nasceu, assim, como um verdadeiro partido político”. Seria esta a riqueza da dualidade Partido-Movimento, e voltou a citar Cabral: “Nós, que lutamos contra o colonialismo português somos todos um movimento de libertação nacional, toda a gente é partido. Mas só entra de facto no partido aquele que de verdade tem uma só ideia, um pensamento que só quer uma coisa e tem que ter um dado tipo de comportamento na sua vida privada e social”. Isto para justificar porque é que o PAIGC é a força política dirigente da sociedade no estádio de desenvolvimento que exige a direção de um processo revolucionário num contexto de democracia nacional.

Depois, a sua exposição dirigiu-se para o desenvolvimento económico e recordou que o PAIGC favorecia um modelo de planificação, de estatização, sem perder de vista a necessidade do desenvolvimento e modernização da agricultura, da reforma agrária (em Cabo Verde) e da nacionalização das terras e de outros bens pertencentes a inimigos provados da liberdade do povo; o controlo do comércio externo e a coordenação do comércio interno era o corolário lógico do modelo estatista. Procedeu a um balanço do que estava a ser feito quanto ao dinamismo industrial, elencando as realizações: fábricas de parquete-mosaico e de pranchas, fábrica de sumos e compotas, fábrica de espuma para colchões e almofadas, fábrica de cerâmica de Bandim, restruturação da CICER, criação da companhia de eletricidade e águas de Bissau. Para o período até 1980 encarava-se a hipótese de instalar mais indústria: complexo industrial de Cumeré, produção de mel e cera no Gabu; cerâmica em Bafatá; fábrica para a produção de oxigénio e acetileno de Bissau; fábrica de farinha e óleo de peixe de Cacheu; fábrica de curtumes; fábrica de artigos de plástico; fábrica de leite reconstituído; fundição e oficinas metalo-mecânicas; unidade de transformação da castanha de caju; unidade de fabrico e de coloração de tecido em bandas. Referiu-se igualmente ao desenvolvimento da rede de energia elétrica, a criação de uma empresa para estudar o aproveito das bauxites, a criação de três empresas mistas de pesca, mais adiante falou no défice do comércio externo, dos armazéns do povo e da necessidade de encontrar resposta para a rede de transportes, área em que já se criara a Silo Diata, que possuía 37 autocarros e a Guinémar.

Quanto à definição do Estado, Aristides Pereira é inequívoco: “O Estado nasceu como um instrumento ao serviço do Partido para a realização do seu programa. É ao Estado sob a direção do Partido que incumbe a execução do seu programa económico, social, cultural, de defesa e de segurança. A direção do Estado pelo Partido deverá fazer-se na base de uma relativa autonomia e aí intervêm a administração central e os escalões intermédios e de base". O capítulo referente à unidade Guiné-Cabo Verde revela-se nebuloso, uma vez mais fica-se com a ideia que se tratava de um preceito assente na areia: “Partindo da análise das nossas realidades históricas e tendo em conta que no mundo atual a unidade é uma exigência da luta dos povos pela sua liberdade e progresso, Amílcar Cabral teve a lúcida visão de inscrever a opção da unidade como um princípio de base da nossa organização partidária e da nossa luta pela realização da suprema aspiração do nosso povo à liberdade e ao progresso". As afirmações não passam de verbosidade: “Se é certo que a unidade pressupõe diferenças entre as partes componentes, não é menos evidente que, tratando de nações, para que a unidade seja uma força, a formação jurídico-política da unidade deve ser antecedida pela materialização gradual da unidade de existência dos povos traduzida por formas superiores de cooperação e comunhão, através das novas realizações de intercâmbio e complementaridade (...) para além de todos os fatores históricos, étnicos, culturais, que podem fundamentar a unificação de uma nação ou a associação de dois ou mais povos, será preciso possuir-se um conjunto de interesses comuns, conscientemente definidos, para que a unidade seja bem-sucedida”. E deixou um aviso: “Hoje, é cada vez mais premente a necessidade dos nossos Estados definirem uma estratégia comum de desenvolvimento, a qual permitirá evitar o estabelecimento de estruturas concorrenciais ou divergentes, que esvaziariam a unidade do seu conteúdo”.

Posto isto, analisou o funcionamento das organizações de massa e o funcionamento do PAIGC. Este é reafirmado no centralismo democrático, mediante crítica e autocrítica e com uma direção coletiva. Faz-se um apelo à formação permanente dos militantes e quadros. A política externa continua no não alinhamento, o PAIGC aparece imbrincado com o MPLA, a FRELIMO e o MLSTP, em sintonia com a organização da unidade africana, havendo que não descorar relações de excelente vizinhança com a Guiné-Conacri e o Senegal. Foram endereçados agradecimentos à URSS, a Cuba, à OLP e à FRETILIN. Decorrente desta alocução que abrangeu as principais áreas políticas, o congresso aprovou uma resolução geral onde importa destacar: - o PAIGC é um movimento de libertação no poder e pratica uma política de unidade nacional; haverá que consagrar nas leis fundamentais dos dois países o princípio de que o PAIGC é a força política dirigente da sociedade, o PAIGC deverá continuar a praticar a política de democracia nacional revolucionária, o que implica que todas as camadas sociais sejam mobilizadas para participarem ativamente nas tarefas do desenvolvimento nacional e o Estado deve organizar as suas estruturas e instituições e controlar as suas atividades em observância estrita do princípio da defesa intransigente dos interesses das massas trabalhadoras.

O III Congresso terminou em 20 de Novembro de 1977. Em Dezembro terão lugar uma série de execuções de antigos comandos guineenses. Nos bastidores do Congresso travou-se luta renhida para a constituição da nova lista da Direção, os guineenses protestaram com uma alegada desproporção de nomes cabo-verdianos. E em 1978 tornou-se indisfarçável o descalabro do aparelho económico e a rutura financeira agravou todos os problemas. As cúpulas passaram a contar as espingardas e a participação popular evaporou-se.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Setembro de 2012> Guiné 63/74 - P10380: Notas de leitura (402): "Les Héros de la Guinée-Bissau: La Fin D'Une Légende", de Lourenço da Silva (Francisco Henriques da Silva)

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Guiné 63/74 - P10247: Notas de leitura (390): Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História, entrevistas de José Vicente Lopes (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 20 de Junho de 2012:

Queridos amigos,
Aqui termina a digressão pelos temas da luta armada e da rotura entre Guiné e Cabo Verde, pelo olhar de Aristides Pereira.
Ele que foi o dirigente político que mais conviveu com Amilcar Cabral irá certamente surpreender quem ler aqui as suas respostas às perguntas afiadas de José Vicente Lopes. É o olhar de um ancião que responde serenamente assumindo as suas limitações. Há temas controversos, como é evidente, por exemplo nega que tenha havido execuções no Congresso de Cassacá, em Fevereiro de 1964, o que é contraditado por muitas outras opiniões. E revela-se cheio de coragem a dissecar o muito que separa os guineenses dos cabo-verdianos, é mesmo pungente ouvi-lo dizer que não esteve à altura de contribuir para reparar os danos causados pelo golpe de Estado de 14 de Novembro.
É acima de tudo um livro luminoso, até nos desabafos pessoais.
Recomendo vivamente a sua leitura.

Um abraço do
Mário


Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História (3)

Beja Santos

Aristides Pereira, já retirado de afazeres partidários ou de Estado, concedeu a José Vicente Lopes uma entrevista sobre a sua vida e a sua atividade política. Surpreendendo pela língua desatada, dá respostas abertas, na maior parte dos casos esclarecedoras, a perguntas por vezes bem afiadas. Nunca antes se pronunciara sobre os diferendos entre a Guiné e Cabo Verde de uma forma tão acutilante. E ficamos igualmente a saber que esses diferendos eram bem conhecidos de Amílcar Cabral e diz abertamente: “Na altura do seu assassinato ele estava precisamente no fogo cruzado. Os guineenses achavam que ele só queria saber dos cabo-verdianos, que estavam a comer bem e não sei que mais; os cabo-verdianos da parte deles, achavam que ele só dava atenção à luta armada na Guiné e que Cabo Verde não servia para nada”. O líder do PAIGC sentia-se incompreendido e injustiçado e adianta uma questão que era muitas vezes escamoteada pelos próprios cabo-verdianos: “Havia o problema de como o caso de Cabo Verde era gerido num quadro de extremo secretismo, imposto por uma luta com as nossas características. Esses cabo-verdianos não entendiam que Cabral não desse conhecimento a todos eles das medidas que a direção do partido estava a tomar para desenvolver a luta armada em Cabo Verde. Ora, isso era impossível. Havia infiltrações. Apareceu o Bibino, que foi a Cuba, formou-se lá com os outros e que quando deserta fornece as informações todas à PIDE. Isso apesar das medidas que Cabral tomou”. E não tem papas na língua quanto ao contencioso entre Abílio Duarte e Amílcar Cabral e as dificuldades de relacionamento entre Amílcar Cabral e o seu irmão Luís.

No capítulo alusivo à independência da Guiné-Bissau, Aristides elogia a visão diplomática de Cabral, a sua progressiva aproximação da ONU, seria aqui que a proclamação da independência tinha que ter reconhecimento. Fala sobre a missão da ONU em territórios libertados, elucida que foi José Araújo quem acompanhou os observadores da ONU e fala sobre o itinerário da missão: “Entraram pelo Sul. O Araújo levou-os até quase Quínara. Houve dificuldades. Um dos membros, o tunisino chegou uma altura em que não quis mais avançar. Os combatentes disseram-lhe: nós vamos carregá-lo. Fizeram uma maca e levaram-no. O sueco e o equatoriano, mais o fotógrafo japonês, comportaram-se muito bem. Terminada a missão, fizeram um relatório que deu as bases para a proclamação da independência”. Finda a missão, começou-se a trabalhar a todo o vapor no recenseamento e nas eleições.

E assim chegamos ao 25 de Abril e às negociações, Aristides pormenoriza um encontro com Mário Soares em Dakar e depois o encontro em Londres. O entrevistador interroga-o sobre os temores de parte a parte. Veio à baila a questão da futura aviação do PAIGC e ele responde: “Na altura da proclamação da independência já estavam estudantes nossos a formarem-se para pilotos de MIG e helicópteros. Tanto assim que logo após a entrada em Bissau esses jovens fizeram demonstrações. Com a independência, mais tarde, esses pilotos foram desviados para a aviação civil”. E faz insinuações sobre alegadas ingerências de Spínola na Guiné já independente: “Até deixar o poder, ele procurou manobrar o tempo todo, criando tensões desnecessárias. Tivemos informações nesse sentido. Aliás, vem daí a confusão dos comandos africanos e outras coisas mais. Da nossa parte, estávamos abertos a uma solução acerca dos comandos com os portugueses mas soubemos que o Spínola tinha dado garantias a alguns chefes desses comandos… E tivemos indicações de que eles estavam a concentrar-se numa das ilhas dos Bijagós”.

Espraia-se sobre os problemas relacionados com a independência de Cabo Verde e das incidências que teve a sua deslocação para a Prainha: as desinteligências e pruridos entre Luís Cabral e Pedro Pires, as objeções de Nino e de Chico Té em que o secretário-geral do PAIGC se deslocasse para outro país, por exemplo. E assim chegamos à desagregação do PAIGC, um processo que ele regista a partir do III Congresso do PAIGC, em Bissau, em 1977. Vieram ao de cima os fatores da desagregação. De novo Aristides faz insinuações sobre o apodrecimento guineense: “Eu penso que tudo veio da nossa instalação em Bissau. Aliás, o próprio Cabral, mais ou menos, previu isso: chegar a Bissau era uma desgraça para nós. O Spínola tinha aquilo minado. A propaganda contra os cabo-verdianos, a tendência para uma sociedade de consumo, ter vivendas luxuosas, viaturas, mulheres, etc., tudo isso foi o nosso fim”. Dá pormenores de comportamentos, de questiúnculas, as fragilidades morais, e depois o golpe de Estado de Nino Vieira em que ficamos a saber que de há muito havia relações estudadas entre Nino e Luís Cabral, deplora a decadências de Osvaldo Vieira, a sua convicção de que Osvaldo estava seriamente ligado à conspiração que desembocou na morte de Cabral. E refere-se igualmente a todo o esforço para impedir a rutura, mas cedo se tornou claro que era um caminho sem retorno.

Confessa a sua fraqueza e incapacidade para ter gerido melhor a situação explosiva que se viveu, diz mesmo que a situação enveredara pelo irracional: “O cabo-verdiano tornou-se o culpado de todo o mal na Guiné. Portanto, o Nino aí teve responsabilidades agravadas, embora eu lhe faça um desconto, tendo em conta as suas limitações intelectuais, políticas e morais”. E volta a refletir sobre o choque de civilizações, a dificuldade sentida pelos cabo-verdianos quando viam gente a comer com a mão, eles diziam abertamente serem incapazes. É um acervo de considerações que exigem leitura ponderada, Aristides refere-se mesmo a outros dirigentes como Paulo Correia, Victor Saúde Maria, Mário Cabral e Vasco Cabral.

E termina assim esta gama de reflexões acerca do arrependimento dos guineenses que fizeram ou aderiram ao 14 de Novembro: “Aprenderam por conta própria que não eram os cabo-verdianos os responsáveis da desgraça da Guiné, como procuraram fazer crer com o 14 de Novembro. Nós, da nossa parte, diga o que se disser, viabilizámos o nosso país enquanto eles fizeram o contrário. Todos os sacrifícios consentidos redundaram em nada, para a desgraça do povo humilde da Guiné que, infelizmente, teve o azar de apanhar essa gente como dirigente”.

A longa entrevista, prossegue mas já fica centrada nos problemas cabo-verdianos e na sua compreensão pelos problemas contemporâneos, terminando por notas pessoais como, por exemplo, o drama da morte do seu filho Eugénio.

A partir de agora, este longo e apurado trabalho de José Vicente Lopes é de leitura obrigatória para quem se interesse pelo estudo da luta armada na Guiné e pelas sequelas da rutura entre Guiné e Cabo Verde, a partir de 1980.
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Nota de CV:

Vd. postes da série de:

3 DE AGOSTO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10221: Notas de leitura (387): Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História, entrevistas de José Vicente Lopes (1) (Mário Beja Santos)
e
6 DE AGOSTO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10230: Notas de leitura (388): Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História, entrevistas de José Vicente Lopes (2) (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 8 DE AGOSTO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10241: Notas de leitura (389): O Ultramar e a revisão constitucional de 1971, Revista Vida Mundial de 16 de Julho de 1971 (José Manuel Matos Dinis)

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Guiné 63/74 - P10230: Notas de leitura (388): Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História, entrevistas de José Vicente Lopes (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 18 de Junho de 2012:

Queridos amigos,
Aristides Pereira é muitas vezes compelido, ao longo desta indeterminável entrevista (bem estruturada, por sinal) a abordar questões altamente sensíveis, de que sempre fugira. Por exemplo, o que estivera por trás do complô que levara ao assassinato de Cabral, os fundamentos racionais ou manipulados da profunda desconfiança/hostilidade entre guineenses e cabo-verdianos. Há momentos em que se fica mesmo com a ideia que o território guineense foi um imenso laboratório para uma experiência revolucionária que levasse a uma utopia de unidade. E há um discurso de uma ingenuidade que desarma: o Amílcar decidiu, o Amílcar é quem sabia, o Amílcar escolheu as cores da bandeira e a letra do hino, o Amílcar trabalhava noite e dia…
Será que o n.º 2 do PAIGC ao longo desta entrevista teve consciência que criou a imagem de um líder que tudo pensava e que tudo orientava, com a aquiescência de devotados executantes?
Dá para pensar.

Um abraço do
Mário


Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História (2)

Beja Santos

Trata-se de uma longuíssima entrevista, obviamente estruturada entre entrevistado e entrevistador, o escopo que nos interessa tem a ver com os acontecimentos vividos por Aristides Pereira entre 1960 e 1974 em Conacri bem como os acontecimentos associados à cisão entre cabo-verdianos e guineenses. Aristides Pereira não se esquiva a responder a perguntas diretas e revela, sem papas na língua, as questões de fundo que levaram à separação dos dois países.

A sua sensibilidade chega a surpreender. Ele, Aristides, respondia pela logística, sob todos os pontos de vistas: material bélico, manutenção das pessoas, fardas, comida, combustível, dinheiro, eram um escravo do trabalho de manhã à noite. Cabral redige todos os documentos essenciais, desde o panfleto até às cartas a chefes de Estado, é pensador, responsável pela atividade diplomática, conferencista, o dirigente incontestado. Descreve ponto por ponto uma quase saga de meia-dúzia de dirigentes que se instalam em Conacri, em 1960, numa completa míngua de recursos e passo a passo vai ganhando credibilidade na cena internacional a par dos avanços na luta da libertação. O dinheiro era escasso mas os países amigos forneceram armas, equipas de treino, camiões, bolsas de estudo, comida, equipamentos de saúde. Conta como não foi fácil a implantação do PAIGC na Guiné-Conacri e mesmo ao nível da Organização da Unidade Africana.

Entrando na questão polémica do que divide e aproxima cabo-verdianos de guineenses, recorda a impaciência dos cabo-verdianos, a começar por Abílio Duarte, que queriam entrar na luta nas ilhas com o mesmo entusiasmo com que se lutava na Guiné. Cabral esforçou-se por levá-los à compreensão de que não havia o mínimo de hipóteses de instalar a guerrilha nas ilhas, até mesmo conselheiros internacionais dissuadiram-nos dessa intensão, seria uma carnificina e nenhuma potência amiga estada disposta a enviar barcos.

E assim chegamos à morte de Amílcar Cabral. Em Março de 1972, Amílcar tinha feito uma denúncia de um plano feito contra ele, com base num documento que lhe fora fornecido pelo PCP na URSS. Interrogado como é que a conspiração tinha ganho tal dimensão sem que os cabo-verdianos se tivessem apercebido, ele responde: “Isto surpreende quem não estava lá. Parte-se do princípio que o partido era o grupo que estava em Conacri, ou então era verdade. O grosso dos militantes estava no interior do país e não em Conacri. Mas porquê os cabo-verdianos que estavam lá não nos avisaram também? Eles eram os visados principais, sendo o Cabral o cabeça”. Mas afinal também havia implicados cabo-verdianos e ele fala em nomes. Considera que Sékou Touré sabia do complô, em Conacri havia racismo, mas perfilha que o ditador de Conacri tinha mais a perder do que a ganhar com o desaparecimento de Cabral. Descreve os acontecimentos que ele próprio viveu em 20 de Janeiro e depois a conversa desliza para as intenções de Cabral a seguir à independência. Afinal, que país Amílcar pretendia constituir na Guiné? Cabral admirava o combatente balanta e a sua dedicação ao trabalho. E assim se chega à ideologia de Cabral. Aristides continuava convicto que Amílcar não era um comunista: “Para ele, ter ideologia não era ser comunista, socialista ou mesmo capitalista. Não ter ideologia era no sentido dos dirigentes africanos, uma vez no poder, não terem uma conceção própria do mundo, do desenvolvimento dos seus povos e países, apenas estavam preocupados em ter poder pelo poder. Cabral, estudioso que era desse problema dava um sentido preciso à ideologia, era saber o que se queria em determinadas condições da luta”.

Sinceramente, é uma resposta ténue, frouxa, para quem conviveu em permanência com Cabral, que socialismo pretendia o líder, será que em anos a fio, nunca debateram sonhos, falaram de projetos, acalentaram esperanças? E depois Aristides sucede a Cabral, havia que encontrar consensos quando a desconfiança dos guineenses aos cabo-verdianos era muito elevada. E vem uma confissão: “Goste-se ou não, o Amílcar foi morto como cabo-verdiano. Da parte cabo-verdiana, principalmente aqueles que estavam em Conacri e que sofreram vexames, humilhações, etc. eu também não via como é que eles iriam suportar bem um guineense como secretário-geral”. Aristides considerou que os guineenses o iriam aceitar como substituto de Cabral, sem grande margem de reticências, porque sempre tinha assumido a posição de cabo-verdiano. Havia um claro, indisfarçável problema de poder: “A luta tinha chegado a um ponto tal que a independência era inevitável, era questão de mais dia, menos dia. De maneira que eu via a possibilidade de, de facto, os guineenses darem mais assentimento a mim do que ao Luís (Cabral), por exemplo, para liderar o PAIGC. Ao contrário de mim, o Luís foi sempre considerado guineense, porque nasceu na Guiné, e apresentava-se como sendo 100 % guineense. Mas, é claro, há a questão da cor, que contradiz tudo, e o guineense é sensível a isso ainda hoje”. O discurso volta atrás, às peripécias do assassinato. Admite o envolvimento de Osvaldo Vieira mas recusa que ele estivesse a comandar fosse o que fosse, já não tinha essa faculdade, incapacitado pelo alcoolismo, acredita mais que fosse o Mamadu Indjai a comandar. Todo o julgamento foi uma barafunda em que os guineenses apresentaram um conjunto de culpados, puseram-nos no carro, liquidaram-nos em território guineense. Aristides Pereira admite que Victor Saúde Maria deve ter morrido com este peso na consciência. Aristides vai mais longe, refere Nino Vieira envolvido na tramoia, também Chico Mendes e Carlos Correia também sabiam. Amílcar Cabral terá sido traído por toda esta gente.

Segue-se o Congresso de Madina de Boé, elege-se uma nova direção e discute-se a proclamação do Estado da Guiné-Bissau. No congresso Vitor Saúde Maria apresentou os resultados do inquérito ao assassinato de Amílcar Cabral, nitidamente mal orientado e mal dirigido, via-se à légua que se escondiam dados fundamentais e acrescenta: “Foi nessa base que se liquidou muita gente logo a seguir ao 20 de Janeiro que nem havia razão para liquidar”.

Questionado sobre se Amílcar Cabral também se sentia guineense, Aristides responde afirmativamente. O jornalista não desarma e pergunta-lhe como é que um filho de cabo-verdianos que passou parte da infância e da adolescência em Cabo Verde e fez estudos superiores em Portugal se sentia mais guineense do que cabo-verdiano, ao que Aristides responde: “Já formado, anticolonialista, pensou sempre na independência da Guiné. Na verdade, primeiro, ele pensou a luta a nível de Cabo Verde apenas. Talvez porque a situação da Guiné fosse muito mais gritante, ter adquirido essa posição firme de lutar pela Guiné e Cabo Verde, dois territórios a que se sentia ligado. A estratégia era essa: conseguir um território onde se podia facilmente estabelecer a luta armada. Então ele, com essa perspetiva, consolidou essa decisão e também a sua consciência de que tinha responsabilidades em relação à Guiné além de cabo-verde”. E acrescenta, referindo-se a Cabral: “Era um produto cabo-verdiano especial”.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10221: Notas de leitura (387): Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História, entrevistas de José Vicente Lopes (1) (Mário Beja Santos)