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sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20229: Notas de leitura (1225): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (27) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Maio de 2019:

Queridos amigos,
A história de um batalhão em verso pode franquear as portas à investigação histórica e à convocação de uma série de escritores que, por portas e travessas, conheceram andanças um tanto parecidas como as do bardo. É esta manta de retalhos que se está a pôr em construção. O BCAV 490 tem determinada quadrícula, encontra-se na obra de Hélio Felgas o grande ecrã para o terreno em que as nossas tropas vão atuar, não há ilusões, é tudo áspero e difícil, há que combater e reconstruir, intimidar e fazer frente a guerrilheiros que têm estado a marcar pontos.
O autor do "Tarrafo", Armor Pires Mota, tem muito a testemunhar e na vizinhança, mais propriamente em Binta, as tropas da CCAÇ 675 vão entrar em ação e pôr o PAIGC a respeito, é a todos os títulos indispensável retomar a leitura de um documento extraordinário, o "Diário" de JERO.
Há que confessar que é entusiasmante trabalhar assim.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (27)

Beja Santos

“Em Farim aquartelada
a primeira Companhia.
Para Cuntima e Jumbembem
a nossa tropa seguia.

Quando a gente cá chegou,
fomos logo informados
que havia muitos malvados,
mas ninguém se assustou.
Algum tempo se passou
sem darmos notícias de nada.
20 dias a guerra parada
sem se ver nenhum terrorista
e a companhia do Baptista
em Farim aquartelada.

Com os homens à sua beira
saía o Sr. Capitão
patrulhando toda a região
em direcção à pedreira.
Saía de qualquer maneira,
fosse de noite ou de dia,
para ver se conseguia
alguns bandidos apanhar
e fartando-se de andar,
a primeira Companhia.

2 Companhias navegaram,
por Porto Gole passando,
em Bambadinca pernoitando,
a Bafatá eles chegaram.
A Contuboel e Canhamina passaram.
A 88 para Cambaju vem,
o Batalhão em Sucucó tem
de fazer grande operação
e duas Companhias então
para Cuntima e Jumbembem.

O 500 bom camarada
teve grande acidente.
Ia matando muita gente,
quando saiu fora da estrada.
A camioneta ficou amachucada
e o 502 a cabeça partia,
o 36 um braço torcia,
e o 90 também ficou mal.
E com destino a outro local
a nossa tropa seguia.”

********************

Já se fez recurso ao que nos diz a história da unidade, mas precisamos de um pano de fundo, ninguém desconhece que o estudo da guerra da Guiné, referente a este período, é parcimonioso em bibliografia, de tudo quanto se tem publicado é praticamente ininteligível o pensamento estratégico do Brigadeiro Louro de Sousa, entre 1963 e 1964, e é clamorosa a falta de documentação quanto ao pensamento estratégico de Arnaldo Schulz, é incompreensível a falta de investigação universitária, vive-se num quadro quase fantasioso em que a guerra da Guiné teve um período eruptivo, estendeu-se a guerrilha, as forças portuguesas foram apanhadas desprevenidas, pediram-se reforços, vieram minguados, estendeu-se a quadrícula, gradualmente apareceram mais efetivos, mais Marinha e Força Aérea, mas a guerrilha crescia e em 1968 Salazar terá encontrado um homem providencial para pôr cobro a tantos avanços, o Brigadeiro Spínola, parece que Louro de Sousa e Arnaldo Schulz não deram bem conta do recado. Porquê, em termos historiográficos, não se sabe, é buraco negro.

Dentro dessa pouquíssima bibliografia, e para que se entenda o mundo de que o vate é porta-voz, vamos recorrer a um trabalho de Hélio Felgas, que comandou de 1963 a 1965 o Batalhão de Caçadores 507, não muito longe de onde se irá posicionar o BCAV 490. Em 1967, o então Tenente-Coronel Hélio Augusto de Almeida Felgas escreve “Guerra na Guiné”, publicado pelo Serviço de Publicações do Estado-Maior do Exército. Nada de semelhante tinha aparecido no nosso panorama editorial, a ponto de o autor dizer na introdução: “Até agora a falta de informações, de filmes, de reportagens, de descrições, enfim, de elementos que explicam ao público o que é a guerra na Guiné, tem sido quase completa”. E como se estivesse a escrever um guia que irá culminar na sua autoglorificação, apresenta a Guiné Portuguesa, a sua história, a terra, o clima, a flora e a fauna, vilas e cidades, portos e vias de comunicação, a economia, as etnias, em primeiro lugar; em capítulo subsequente desvela os grupos políticos clandestinos, com especial destaque para o Movimento de Libertação da Guiné, a Frente de Luta pela Independência da Guiné e o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde; exposto o terreno e os atores, Hélio Felgas vai descrever a guerrilha até final de 1963, é justo e certeiro sobre as insuficiências do Movimento da Libertação da Guiné e da Frente de Luta pela Independência da Guiné; revela-se bem documentado a descrever a eclosão da subversão e luta armada no Sul, enumera os atos de guerrilha do primeiro semestre, referindo igualmente que uma linha dessa guerrilha se estava a estender à área do Xime, o primeiro ataque que aqui ocorreu foi a 29 e 30 de junho; segue-se o alastramento da guerrilha em toda a região do Oio, onde logo no mês de julho foram desencadeadas ações num território que compreendia o quadrilátero Mansoa–Bissorã–Olossato–Mansabá, com alvejamento de viaturas, destruição de pontes e pontões, emboscadas, saques a casas comerciais, etc.

Ten-Cor Hélio Felgas
Atenda-se ao que ele escreve:
“Em poucas semanas todas as estradas da região tinham as pontes e os pontões destruídos ou estavam cheias de abatises. Em especial a estrada Bissorã–Mansabá – que dá acesso mais fácil à zona do Morés – foi metodicamente cortada com o evidente objetivo de evitar que as nossas tropas a utilizassem. Além de criar um vácuo que lhe proporcionasse refúgio seguro em Morés, o PAIGC pretendeu também inutilizar os eixos rodoviários de interesse económico para a Província. O principal destes eixos era a estrada Mansoa–Mansabá–Bafatá, por onde se escoava boa parte da mancarra produzida pelo Leste da Província e alguma da madeira cortada na região do Oio. A povoação de Mansabá, em si, constitui um importante cruzamento de estradas, pois por ela passam, além do eixo Mansoa–Bafatá, ou os de Bissorã–Bafatá e Farim–Mansoa. Esta atuação fez diminuir o trânsito rodoviário para o Leste da Província com o que ficaram sobrecarregados os já congestionados transportes fluviais pelo rio Geba”.

Ao findar do ano de 1963, diz o autor que o PAIGC atuava com certo à-vontade em grande parte do Sul da Província, o movimento das nossas tropas era dificultado ou impedido por milhares de abatises e pela destruição de pontes e outros elementos rodoviários; no extremo leste do canal do Geba, os “bandoleiros” atuavam nas áreas de Porto Gole, Enxalé, Xime e Bambadinca e no Oio conseguiu afixar-se, e procurava alastrar a sua aceleração em todos os sentidos: na direção de Binar e Bula, procurava penetrar na região dos Fulas, e para Norte, através do rio Cacheu, a fim de conseguir fácil ligação com o Senegal.

Os comentários de Hélio Felgas à evolução da situação são por vezes paradoxais e antinómicos: um PAIGC enfraquecido sem obter resultados palpáveis, muito disperso. No entanto, quando o autor descreve 1964, vemos o PAIGC a cortar estradas que ligavam a vila de Farim às povoações de Bigene, Bissorã, Mansabá e Cuntima, surgiram novas infiltrações na direção de Farim. E então escreve que “esta situação agravou-se ainda mais durante os meses de Fevereiro e Março, tendo Farim e Binta sido flageladas pelos terroristas que destruíram novas pontes e pontões e começaram a fustigar as populações nativas da área Jumbembem–Canjambari–Cuntima. Esta actuação levou Fulas e Mandingas a fugirem para o Senegal e originou a paralisação quase completa das serrações locais e da actividade madeireira de que Farim é um dos principais centros da Guiné”.
Mais adiante dirá que esta atividade na área de Farim aumentou, houve mais ataques às serrações madeireiras e destruíram-se as tabancas Fulas da zona fronteiriça de Cuntima:  
“Além disso, o trânsito das estradas tornava-se dia a dia mais difícil e perigoso, pois o PAIGC não só continuava destruindo pontes e pontões, colocando abatises e montando emboscadas, como começava também a implantar minas. A primeira assinalada a norte do rio Cacheu rebentou em Maio, numa altura em que a actividade terrorista alastrava ao porto de Binta e se aproximava de Bigene. Os ataques às tabancas de Genicó e Sansancutoto, respectivamente a oeste e noroeste do porto de Binta, e a destruição da ponte de Sambuiá, indicavam que os terroristas pretendiam interromper as ligações rodoviárias entre Bigene e Farim e tornar ainda mais precária a situação em toda a área. Esta intenção foi confirmada pelas flagelações levadas a cabo contra as povoações de Guidage e de Fajonquito, ambas a oeste de Farim, e pelo ataque à tabanca de Nova Uensacó, organizada em autodefesa e situada apenas a três quilómetros daquela vila”.

Aqui se faz uma pausa, é de crer que já há algum pano de fundo para se perceber o que vai ser a atividade do BCAV 490, temos a história da unidade, temos o “Tarrafo” de Armor Pires Mota e ali perto, em Binta, está a Companhia do Capitão do Quadrado, Alípio Tomé Pinto, haverá um furriel enfermeiro que escreverá um outro livro ímpar, o “Diário da Companhia de Caçadores 675”, escrito por José Eduardo Rodrigues Oliveira da CCaç 675.

A sede do BCAV 490, como atrás se referiu, é Farim, estamos em maio de 1964, as companhias dispersam-se, vão para Cambaju e Canhamina e depois para Jumbembem–Cuntima. É um dispositivo que inclui vários setores e posições: Farim, Jumbembem, Cuntima, Binta e Bigene, com posições em Barro e Guidage.

Transcreve-se o que vem na história do batalhão:
José Eduardo Reis Oliveira
“Quando o BCAV 490 iniciou a sua actividade neste sector, este estava seriamente comprometido pela actividade do inimigo. Os itinerários mais importantes estavam cortados e sempre que qualquer coluna saía das posições era atrevida e fortemente emboscada”.
Dá-se ênfase ao esforço das subunidades para fazer recuar as posições do inimigo, para concluir que:   
“A partir de Fevereiro de 1965, isto é, cerca de oito meses depois do batalhão iniciar a sua acção no sector, a iniciativa do inimigo passou a ser bastante reduzida, limitando-se a reagir fracamente a acções das nossas tropas. No entanto, a área de Canjambari, onde julgava encontrar-se seguro, pois mantinha os itinerários de acesso cortados, tanto o do nosso sector como o do sector vizinho, quando as nossas tropas procuravam desimpedir o itinerário a sua reacção era sempre conduzida com determinação e violência”.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 4 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20205: Notas de leitura (1223): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (26) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 7 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20213: Notas de leitura (1224): História das Tropas Pára-Quedistas Volume IV, é dedicado à Guiné e tem como título História do Batalhão de Caçadores Paraquedistas n.º 12; responsável pela redação e pesquisa Tenente-Coronel Luís António Martinho Grão; edição do Corpo de Tropas Paraquedistas, 1987 (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20205: Notas de leitura (1223): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (26) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Maio de 2019:

Queridos amigos,
A BVAC 490 retirou da ilha do Como, vem bastante mal tratada, fica em Bissau até partir para Farim e redondezas, em maio.
Era incontornável a referência a Armor Pires Mota, um diarista do Como, a ele nos iremos socorrer nas etapas seguintes.
Mas ao sair do Sul havia uma referência, brejeira e burlesca, inescapável, saída da pena de um grande escritor, José Martins Garcia, aquele alferes miliciano que deixou um romance brilhante "Lugar de massacre", continuamente a ser estudado em instâncias universitárias.
Tudo se passa entre Catió e o Cachil, e por vezes as fraquezas dos homens até permitem ir à procura de um responsável inexistente...

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (26)

Beja Santos

“Todo o pessoal louvado,
pouco tempo descansámos.
Noutra saída, novamente
para Farim abalámos.

De novo metidos ao mar
no Vouga, Lanchas e Dragão,
todo o nosso Batalhão
irá ao cais atracar.
Vamos nós aquartelar
no quartel amuralhado.
Onde o Batalhão é formado, havendo grande reunião
e pelo Comandante da operação
todo o pessoal é louvado.

Em Bissau a passear,
para ver as matulonas
mas elas são tão mazonas
que à tropa não querem ligar.
Levando o tempo a andar,
as solas dos sapatos estragamos.
Muitas vezes chegámos
a faltar à comida.
Com esta tão boa vida,
pouco tempo descansámos.

Os médicos inspeccionaram
para ver os que estavam capazes.
Tivemos muitos rapazes
que para a guerra não abalaram.
Eu fui um dos que cá ficaram
junto a quem estava doente,
pois ficou cá muita gente,
que estava muito mal,
mas quase todo o pessoal
noutra saída, novamente.

Ao mês de Maio se chegou
e os batelões foram carregar.
Com os rebocadores a puxar,
pelo mar se navegou.
Muitos dias se demorou
porque grande carrada levámos.
Para muito tempo nos destinamos,
enfrentando sempre a morte,
e ansiosos por melhor sorte,
para Farim abalámos.”

********************

Vamos despedir-nos em grande dessa batalha do Como, temos um vate, um cronista, um diarista que por ali andou e deixou páginas de indelével impressão. Trata-se do “Tarrafo”, de Armor Pires Mota. Logo no Como, em 15 de janeiro:  
“Quando o sol, suavemente, se aconchegou vermelho no seio verde e agitado das ondas do mar, a distância que nos separava da ilha tão falada, era pouca, a indispensável para não quebrar a surpresa. E o barco ancorou, durante a noite estrelada, ao sul. Em cada rosto, em cada palavra, havia a incerteza do dia seguinte e o perigo do desembarque, pois há tempos que a tropa não punha ali os pés (…). E fez-se a noite do primeiro dia, escura e cheia de medos e fantasmas. Qualquer folha ou fruto caindo das árvores ou bulindo no chão, qualquer sapo saltitando, caindo no abrigo, lembrava um passo estranho que arrepiava. Em frente, na mata, separada de nós por uma pequena bolanha encharcada, duas ou três fogueiras crepitavam cinicamente.”

No mês seguinte, 8 de fevereiro, deixa estas considerações no seu diário: 
“A manhã correra bem. Os bandidos foram levados de rompão na tabanca grande de Cauane. E de lá trouxemos um crucifixo, cujo Cristo tinha um braço despregado. Uma explosão súbita de granada atroou os ares. Que seria, que não seria? Mas, logo, gritos de dor magoaram os ouvidos. Era o Quítalo que, alucinado, corria, a manquejar, gemendo, rosto mascarado de sangue e lama, peito ensanguentado e sem uma das mãos, enquanto a outra apresentava apenas dois dedos esfacelados. Correram a ampará-lo. Parecia uma visão terrível, um homem de calvário. A armadilha, que ele costumava montar todas as tardes para os terroristas, hoje, traiu-o, disparando-se-lhe nas mãos. Junto do buraco aberto pela explosão, pedaços de carne, terra avermelhada de sangue, uma alpercata desfeita, e, mais ao largo, o barrete e farrapos da farda”.

Armor Pires Mota
Estamos a 24 de fevereiro, regista o seguinte queixume:
“Há quarenta dias que o mundo para nós é incerteza da hora seguinte a devorar-nos a fronte atormentada. O mundo para nós é de luta, uma terra de sangue e fogo. Há refeições em branco, porque nada apetece senão a paz, o regresso. Há pesadelos e estonteamentos, cansaço. Uma grande parte da tropa está já inoperacional”.

O último texto do Como data de 15 de março:  
“A guerra esconde-nos as estrelas e faz-nos selvagens. Um tecto feito de troncos de palmeira, coberto de meio metro de terra, pesa, dói-me e sinto-me um condenado num exílio. Enfim, um abrigo à prova de morteiro, porque, de vez em quando, eles nos pregam uns sustos valentes. Tem 60 dias o meu abrigo. Da seteira larga olho, apreensivo, o dia seguinte, a mata densa e cheia de segredos”.
Nesse domingo houvera missa ao cair da noite, e ele despede-se dizendo: “Deus desceu à guerra para a paz”.
Só retomará o seu diário no mês de maio.

É importante voltar à história da unidade, sabemos que o BCAV 490 veio do Como em muito mau estado, estadeou em Bissau, cabe-lhe a partir de maio, com sede em Farim, proteger eixos como Cambajú – Sitató – Cuntima ou Canhamina – Canjabari – Junbembem. As atividades do PAIGC tinham-se alargado, excediam largamente o Oio. Ao BCAV 490 caberá a ocupação territorial da área da sua responsabilidade, irá mover-se entre Barro – Bigene – Farim – Cuntima, ocupando posições em Jumbembem e Cuntima, Binta, Bigene, Barro e Guidage. A seu tempo voltaremos a “Tarrafo”, de Armor Pires Mota. Iremos é despedir-nos da região Sul e nomeadamente de Cachil, o tal aquartelamento onde se posicionaram forças portuguesas depois da batalha do Como.

Temos à nossa disposição um importante escritor, José Martins Garcia, de um dos contos de “Morrer devagar”, de 1979, há para ali notáveis parágrafos brejeiros, onde o vitríolo mais mordaz é prática frequente:
“Na vila de Catió, lá para o Sul, onde a mosquitagem crescia delirante na estação das chuvas, o Batalhão de Caçadores tinha agora novo comandante, o Tenente-Coronel Galvão, um ser tratável, quase bondoso, um tanto sentimental, um tudo-nada neurasténico antes de se lançar nos uísques. O antigo comandante, o insuportável Tenente-Coronel Barradas, cuja paranoia crescera na proporção directa do entupimento dos tímpanos, havia sido afastado do activo, finalmente. E não deixara saudades aos militares nem aos civis respeitáveis do burgo.
Respeitáveis civis em escasso número, acrescente-se. Havia um comerciante transmontano, o único civil português totalmente branco da vila, o Barreiros, pequenino e rijo como um ouriço, que vendia arroz, aliás vianda, e amendoim, aliás mancarra, mais peixe seco e pano para blusas, saias e calções, e também vinho, aguardente e mistelas exóticas. (…) Os Fulas viviam quase todos em Priame, a um quilómetro de distância, sob autoridade feudal de João Bacar Jaló, Alferes de segunda linha do Exército Português. Os Nalus haviam desertado na totalidade. Só os Balantas adornavam as tardes rápidas de Catió, caindo bêbados de aguardente de cana e elevando ao crepúsculo uns risos lamentosos que os cães vadios, sarnosos, chagados, seguiam uivando horas a fio.

José Martins Garcia
No começo da guerra, em 1963, ordens e contraordens haviam produzido em Catió desusados movimentos de ida e volta. Um estratega iluminado decidira-se pela ocupação minuciosa das redondezas, fragmentando o batalhão, dispersando as companhias, fragmentando companhias, dispersando os pelotões, fragmentando pelotões, dispersando secções. O resultado foi desastroso, pois todas as ligações se mostravam extremamente complicadas, tanto por via rádio, como por via terrestre ou marítima, sucedendo-se às minas as emboscadas e às emboscadas as flagelações, com abundantes morteiradas alta noite. Confirmada a inoperância do iluminado estratega, logo lhe sucedeu um comandante de ideias diametralmente opostas, o qual, para demonstrar que a união faz a força, mandou recolher a Catió, com armas e bagagens, o batalhão que o antecessor havia disseminado. (…) Em Catió, onde os ataques nocturnos foram, por alguns anos, relativamente escassos, ouviam-se muito bem os rebentamentos das morteiradas vizinhas, desferidas contra Bedanda, Cachil, Ganjola e, mais raramente, Priame, ali mesmo ao fim da recta de um quilómetro, onde João Bacar Jaló, senhor de muita mancarra e de sete mulheres, valia, com a milícia Fula, por um exército inteiro. (…) O ataque à ilha de Como, onde posteriormente se instalaria a chamada Companhia do Cachil, nunca foi registado por cronistas. (…) O Cachil erguera-se, porém, nas imaginações. No passado recente, quando o surdo Tenente-Coronel Barreiros comandava o batalhão de Catió, a ameaça que mais insistentemente se lhe desprendia da boca era:
- Olha lá, ó militar! Queres ir prò Cachil?... 
Depois, quando o convivente Tenente-Coronel Galvão tomou conta daquela recalcada guarnição, logo um problema bicudo lhe veio pousar sobre a secretária: o Capitão Lourenço, comandante da companhia do Cachil, fora declarado incapaz para qualquer serviço militar, por conjugação de questões pulmonares com uma psicose verdadeiramente depressiva. (…)

Do Cachil não vinham nem bons ventos nem bons hóspedes, nem sequer boas notícias. A última irregularidade cometida por essas bandas rezava da alquimia operada no interior de um barril, cujo conteúdo vínico se revelara água, diante dos olhos crédulos e incrédulos. O comandante Galvão abominava as pequenas trapaças. E, por pensar em reabastecimentos, fez-lhe espécie, pela primeira vez, o facto de o Capitão Clemente, oficial de cavalaria, se ter enconchado na manutenção, superintendendo na batata, no vinho, no arroz, no bacalhau, como se fosse um desses da Administração, um ‘padeiro’. O Capitão Clemente empalideceu quando soube da decisão do Tenente-Coronel Galvão: mandá-lo para o Cachil, na qualidade de comandante interino da companhia, encarregando-o, ao mesmo tempo, mui honrosamente, de apurar a verdade acerca da transformação do vinho em água, alquimia tanto mais escandalosa quanto invertia a regra dos Evangelhos.

- Mas, meu comandante – gaguejou o Capitão Clemente – , logo agora, que a minha mulher veio para cá…
- Mas você fica lá só uns dias, homem! Há meses que não se ouve um tiro para aquelas bandas…
O Capitão Clemente partiu desmoralizado e começou a portar-se mal diante da escolta que o acompanhou ao cais, chegando ao ponto de gemer de voz embargada:
- Agora é que não torno a ver a minha mulher nem os meus filhos.

(…) O jantar foi servido ao ar livre, sob um poilão gigantesco. As escassas lâmpadas, tão débeis como o rumorejar irregular da geradora eléctrica, mais concentravam do que dispersavam os temores. (…) Mais tarde, quando deu as boas noites aos alferes e se fechou no quarto, voltaram-lhe à memória as fábulas incertas, tão incertas quanto divulgadas em terras da Guiné: dezenas de mortos e feridos, a cavalaria a atolar-se, a artilharia a esquivar-se, a infantaria a imolar-se. Tudo por uma questão de estratégia, ou por falta dela, na sinistra ilha do Como. (…) O Capitão Clemente começou a sentir dores de barriga. Tinha medo, é certo; mas a causa daquelas cólicas devia ser o mau estado do jantar: uns feijões embrulhados em farrapos de carne duvidosa… E era evidentemente um atentado à dignidade de um capitão não terem construído uma retrete, que diabo!, ali ao lado, uma retrete privativa, porque, se não há distinção entre o comandante e os subordinados, está em crise a hierarquia, a autoridade, a civilização…
O capitão Clemente dormiu pessimamente, revolvendo-se na cama dura, sentindo-se atolar na água negra do canal. Muito cedo, a passarada desatou a chilrear. O Sol, finalmente, viria trazer-lhe um pouco de alento, depois do horrível negrume daquela noite memorável.
O capitão Clemente espreitou por uma nesga da porta e avistou a sentinela. Com um berro indignado, onde perpassavam a aspereza e o peso do comando, mandou que o militar se aproximasse: - Entra, que temos de conversar!
O soldado mal abria os olhinhos atordoados, pois acabara de render um camarada:
- Estás a ver aquilo, pá!
Hirto, solene, o Capitão Clemente apontava um canto do quarto onde alguns cagalhões se cavalgavam.
- Põe-te em sentido! – uivou a indignação do bravo Capitão Clemente.
O soldado obedeceu, boquiaberto.
- E agora – rematou o bravo capitão, mais que fera – responde! Quem foi o filho da puta que fez uma coisa destas?”.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 27 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20183: Notas de leitura (1221): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (25) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 30 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20190: Notas de leitura (1222): História das Tropas Pára-Quedistas Volume IV, é dedicado à Guiné e tem como título História do Batalhão de Caçadores Paraquedistas n.º 12; responsável pela redação e pesquisa Tenente-Coronel Luís António Martinho Grão; edição do Corpo de Tropas Paraquedistas, 1987 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20161: Notas de leitura (1219): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (24) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Maio de 2019:

Queridos amigos,
Era compreensível que os acontecimentos da Ilha do Como merecessem amplo destaque na gesta do bardo. Espero que quem ali combateu naquele terrível penar aqui venha exprimir outros pontos de vista, narrar outros episódios, clarificar situações que ficaram no olvido. A história da Unidade do BCAV 490 é parcimoniosa, como se disse, faz-se referência a um anexo, que não encontrei e se algum dos confrades o possuir bom seria que aqui se referenciasse outros episódios que não couberam na poesia nem nos testemunhos. A imaginação de quem acompanha o bardo saltitou para as belezas da natureza, sempre irresistíveis, a despeito das aflições e sofrimento vivido. Repare-se na descrição que Alpoim Calvão faz de uma missa ao ar livre e o maravilhamento do céu e das águas, a par da comoção dos mortos e da emoção dos vivos.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (24)

Beja Santos

“Temos muita companhia
já com pouco pessoal:
coxos, doentes e feridos
vão indo para o hospital.

Há muito tempo passado
e sempre a mesma labuta.
Há quase dois meses que se luta
e ainda há muito malvado
que tem que ser acabado
o bando que cá existia
é uma patifaria,
que dá cabo da rapaziada,
mas isso não lhes vale nada,
temos muita companhia.

Em duas ocasiões
no meio dos terroristas
morreram dois paraquedistas
deram gritos de aflições.
Fizeram muitas operações
dentro daquele matagal,
mas quase sempre se deram mal
devido a tantos bandidos.
Por isso, os pelotões reduzidos
já com menos pessoal.

Um dia Cauane atacaram
foi atingido Joaquim Augusto,
apanhando um grande susto
quando as granadas rebentaram.
No sacristão também acertaram,
dando grandes gemidos.
Com as mãos e dedos perdidos
Quítalo e o sapador doutra vez,
e em pouco mais de um mês
coxos, doentes e feridos.

Dois paraquedistas se perdiam
longe de S. Nicolau,
o caso esteve bem mau
porque entre os bandidos se viam.
Indicados por um avião saíam
sem perderem o moral.
Será isso o principal
no soldado cheio de heroicidade.
E os feridos com gravidade
vão indo para o hospital”.

********************

O tom pungente que o bardo usa, vamos encontrá-lo em obras do tempo e posteriores. Contemporâneo, temos os relatos de Armor Pires Mota e Alpoim Calvão. Naquele Sul, de 1963 em diante, andaram Álvaro Guerra, José Martins Garcia, Luís Rosa, José Brás, António Loja, Idálio Reis, entre outros. O sul de Mejo, Guilege, Gadamael, Cacoca, Sangonhá, Gandembel, Cacine, Catió. Páginas de fraternidade, de lástima pelas perdas, de revolta pela construção de aquartelamentos feitos com tanto de sangue, suor e lágrimas e depois abandonados. E mesmo nessa apoteose de sofrimento ou mágoa há a extraordinário revelação do feitiço africano, a descoberta de uma natureza viva.

E aqui lembro Leonel Olhero e o seu livro “Ultrajes na Guerra Colonial – Reminiscências de furriel de cavalaria”.
Primeiro, uma trovoada tropical:
“Uma trovoada, com carácter primitivo e sagrado, apavorou-nos. Receoso, o Sol estremeceu de inquietação e correu a esconder-se. Numa embriaguez de luzes, relâmpagos cintilaram em ziguezagues de fogo, bateram nas trevas e apanharam relâmpagos em resposta. De alto a baixo, raios riscaram rasgando fundo os céus. Irrequietos, os trovões estalaram implacáveis vibrando de tronco em tronco e em cada folha, assustando aves e ribombando pelos caminhos do céu imenso num estampido ensurdecedor, enquanto que o vento, carregado dos cheiros da terra e do odor da selva, bradou com fúria e em rajadas hirtas e tudo impeliu numa maluca confusão”.

Agora o Furriel de Cavalaria embarca num Sintex, vai a Bula buscar salários, assombra-se com a travessia do rio:
“Para lá das desviadas margens, num sussurro, naquele rio largo como uma promessa via-se água que penetrava na brumosa mata de onde, desafiando nos céus altas fasquias, se erguiam crescidas e seculares árvores. Por causa das investidas da nossa artilharia, com olhos cansados de procurar, vi cepos definhados com galhos despidos e rasgados. Braços vegetais abertos que nos desejariam abraçar e onde poisavam centenas de colónias de coloridos periquitos (…) Na tona da água, bandos de periquitos de rabo de junco rasavam, chispavam à nossa passagem e rabiscavam hieróglifos (…) Inumeráveis abutres repugnantes e agoirentos que poisavam nos poleiros altos da sossegada e densa ramagem, alteavam-se impassíveis, estremecendo penosamente as enormes e aborrecidas asas. Alguns, mais tímidos, alavam para o escuro daquele tão intemporal bosque e ali ficavam à espera, de olhos tristes e adiados”.

Mas vamos descer até ao Como e ouvir o que escreveram os biógrafos de “Alpoim Calvão, Honra e Dever”:
“Uma operação tão longa como a Tridente, que decorria há já cerca de mês e meio, sempre com duros combates e em que os estacionamentos temporários eram desconfortáveis e penosos, tinha necessariamente um impacto negativo no estado físico e anímico do pessoal. Mas o esforço compensava. Era notório que a actividade inimiga esmorecia, a resistência era agora fugaz e em nada se comparava já à bravura dos combates travados no início da operação.
O dispositivo inimigo nas ilhas de Caiar, Como e Catunco estava praticamente desmantelado, o prestígio do PAIGC e dos seus chefes abalado, a sua confiança desaparecera, o respeito e temor pelas autoridades portuguesas era evidente.
Tinha entretanto o Tenente Calvão criado um núcleo de guias guinéus que com os seus camaradas metropolitanos partilhavam as mesmas canseiras e os mesmos perigos. Havia, no entanto, dois homens que o seguiam para todo o lado como sombras e aos quais Calvão ficou eternamente grato pela coragem, desinteresse de si próprios e dedicação que sempre revelaram: um do Bombarral, o José António; e outro um Manjaco do Pecixe, o ‘Touré’. Mais tarde, num jornal, Alpoim Calvão recordou um caso ocorrido durante aquela operação e que tão profundamente o marcou:
‘(…) Os sucessos da guerra tinham causado várias baixas na minha Unidade. Pedi ao Capelão Militar que acompanhava as forças em operação para rezar uma missa pela alma dos mortos. Numa manhã, na praia onde estava localizado o estacionamento, preparou-se a realização da cerimónia. Aliás, tudo o mais simplificado possível: o altar era um caixote que servira para transportar rações de combate e o templo, o ar livre, com o mais maravilhoso dos tectos: um céu azul, incomparável.
Mal barbeados, sujos, com as faces vincadas pelo cansaço e pela tensão da luta, os homens foram-se chegando e a missa começou. Juntaram-se-lhes, por serem católicos, alguns dos carregadores negros que acompanhavam as forças. O profundo silêncio era apenas alterado pela voz do celebrante e pelo barulho do mar, que, em pequeninas ondas, se enovelava na praia.
Uns de joelhos, outros em pé, os homens seguiam, ou melhor, viviam o santo sacrifício. Acabrunhados pela morte de alguns camaradas, sentiam a necessidade daquele diálogo com Deus e muitos deles, pela primeira vez, souberam o que era a Missa.
Eu estava de pé, um pouco apertado, duplamente comovido pela lembrança dos mortos e pela emoção dos vivos.
E num deslumbramento, numa autêntica revelação de ecumenismo, vi, sobre a minha direita, alguns guias muçulmanos que olhavam a cena com muita dignidade e compostura e procuravam participar nela, orando também ao mesmo Deus, pelo descanso das almas dos que tinham caído e pela vitória das armas portuguesas’.”

E os autores chegam ao termo do seu relato:
“Decorridos mais de dois meses sobre o início da Operação Tridente, concluiu-se que militarmente nada mais havia a fazer na zona, pelo que foi decidido o regresso de todas as forças em acção, ficando apenas montado um aquartelamento em Cachil, onde foi instalada uma Companhia do Exército com a missão de controlar as margens do rio Cobade, numa posição estratégica muito importante para o reabastecimento de Catió. Sendo de prever que dentro em breve aquele local voltaria a estar sujeito a uma intensificação dos ataques, tornou-se necessário manter ali uma LDP em permanência, de modo a garantir o regular abastecimento do aquartelamento de água, mantimentos e munições. Às 12h00 do dia 22 de março, o DFE8 embarca no ‘Bor’ rumo a Bissau, onde chega na manhã seguinte. Era o fim da Operação Tridente”.

(continua)

 O bardo a caminho da Ilha do Como

O bardo e camaradas a caminho da Ilha do Como

O bardo faz leituras na Amura, inspira-se junto da velha peça de artilharia.

Página do jornal do BCAV 490, gentilmente cedida pelo confrade Carlos Silva, um investigador infatigável a quem devo muitas atenções.
____________

Notas do editor

Poste anterior de 13 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20145: Notas de leitura (1217): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (23) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 16 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20150: Notas de leitura (1218): “O Massacre Português de Wiriamu, Moçambique, 1972", por Mustafah Dhada; Tinta-da-China, 2016 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20145: Notas de leitura (1217): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (23) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Maio de 2019:

Queridos amigos,
Fica-se com a convicção de que o bardo foi profundamente tocado pela sorte dos seus camaradas que experimentaram toda a casta de dificuldades naqueles 71 dias do Como. Reserva-nos ainda mais estrofes, deixará a contabilidade em dia antes de regressar ao continente. Aqui se destaca um linguajar propagandístico do PAIGC, uma torrente demencial de mentiras, propagou centenas de mortos, forças portuguesas a fugir, em debandada, nem uma só palavra sobre as enrascadas de Nino, as suas muitas baixas, foi um delírio propagandístico que ainda, mesmo episodicamente, vejo escrito. E aqui se volta a prestar homenagem a Armor Pires Mota, o BCAV 490 andara por Mansabá e vai sediar-se em Farim, há muito ainda para contar, ao homenageado, aqui se destacam alguns parágrafos da sua obra-prima "Estranha Noiva de Guerra".

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (23)

Beja Santos

“Para Curcô reforçar
Hermenegildo e Ribeira.
Granadas de morteiro rebentaram
ao pé de Jacinto Pereira.

Um grande ataque se dava
um dia já à noitinha.
O pelotão do amigo Farinha
muito fogo atirava,
e granadas de morteiro jogava
algumas de incendiar.
O 467, a falar,
homens em socorro pedia
para seguirem no outro dia
para Curcô reforçar.

O pelotão que calhou
foi o de Manuel Sobral,
a 1 de Março, às 5 e tal,
para o mato ele avançou.
O sr. Alf. Saraiva os acompanhou
com os seus homens em fileira
houve um ataque de uma maneira,
que o fogo não aguentaram
e juntos a todos recuaram
Hermenegildo e Ribeira.

Nestes arredores patrulhou
o pelotão do sr. Alf. Segura
que mostrando a sua bravura
um letreiro no mato deixou:
os bandidos desafiou
e eles pouco demoraram.
Logo nessa noite atacaram
e a coisa esteve bem torta,
a um metro de José Horta
granadas de morteiro rebentaram.

Quando o ataque principiou,
foi logo com as granadas.
Em seguida houve rajadas
que o pessoal desorientou.
O Fernando Paulino pensou
em salvar-se, de qualquer maneira,
e jogou-se ao rio mais o Teixeira
onde perigo não havia.
E no abrigo Joaquim Maria
ao pé de Jacinto Pereira.”

********************

Neste aceso de avanços e contactos brutais na batalha do Como, ocorre bater à porta do contraditório, ver o tratamento que Basil Davidson, com os préstimos de Amílcar Cabral, deu aos acontecimentos do Como. O jornalista britânico nunca escondeu que estava ali em missão propagandística, a dar vencimento às proezas independentistas a desbaratar colonialistas. Afirma perentoriamente que em 1 de junho de 1963 a ilha do Como estava libertada depois de ter sido bombardeada e atacada pelas forças coloniais.
Vejamos o que ele escreve:
“As tropas portuguesas foram desbaratadas no porto de Cachil pelas forças nacionalistas sob o comando de Agostinho de Sá. Este foi ferido, mas as tropas inimigas foram forçadas a retirar-se e refugiar-se em Bolama”.

Davidson recolheu do próprio Cabral um relato circunstanciado dos factos desta batalha do Como e diz que se limita aqui a fazer um simples esboço de uma batalha que para o PAIGC teve importância histórica:
“Como foi a primeira porção de território nacional a ser libertada pelas nossas forças, a reconquista de Como tornou-se para os portugueses, nesses primeiros dias de 1964, uma questão de necessidade básica, e mesmo vital, para a sua estratégia militar e política. Isto porque, se os portugueses queriam controlar eficazmente as zonas que libertámos no Sul, Como constituía uma plataforma estratégica indispensável; e ainda por causa das consequências políticas que para eles poderiam advir da reconquista da ilha, já que o povo de Como é bem conhecido em todo o país pela sua entrega feroz à nossa luta e pelo apoio leal que sempre deu ao nosso Partido.
Usando todos os meios militares à sua disposição, com um efectivo total de 3000 homens bem equipados, incluindo 2000 soldados e oficiais escolhidos transferidos de Angola, os portugueses lançaram a sua ofensiva sobre o Como em Janeiro de 1964 com a firme decisão de arrancar a ilha das nossas mãos. Oficiais do Estado-Maior foram transferidos de Lisboa para Bissau para daí seguirem mais de perto as operações.

Depois de uma batalha que durou 75 dias, as nossas forças empurraram o inimigo para a linha de costa, infligindo-lhe pesadas baixas – foi a pior derrota de sempre em toda a história do colonialismo português. Calculamos as baixas do inimigo em cerca de 650 homens. Desertores portugueses, incluindo alguns que tomaram parte nessa batalha, viriam a dizer-nos que pelo menos 900 colegas seus tinham sido mortos nessa batalha ou teriam morrido depois em consequência de ferimentos ali recebidos.
A batalha do Como foi um teste para os portugueses, mas foi-o ainda mais para nós. Na verdade, ajudou-nos a formar um juízo mais rigoroso acerca das nossas próprias forças. Aprendemos ali a verdadeira capacidade dos nossos combatentes e do nosso povo quando confrontado com as situações mais difíceis; apercebemo-nos do moral e por conseguinte da fraqueza do nosso inimigo; verificámos o alto grau de consciência política e a feroz determinação da população civil das zonas libertadas – agora definitivamente libertadas – não voltarem a cair sobre a dominação portuguesa”.

Ao que se sabe, jamais em tempo algum a mentira foi tão descarada, acrescendo que, conforme observa Carlos Matos Gomes e Aniceto Afonso, rapidamente a ocupação do Como passou para nível secundário, o PAIGC conquistou posições na região Sul estrategicamente mais influentes, Como tornava-se um símbolo, uma bandeira. E para as forças portuguesas aprendia-se que um objetivo de guerrilha carece de uma resposta de contraguerrilha, deu-se como desproporcionado o efetivo e o tempo que demorou a ocupação da ilha. Em breve, Salazar iria tomar uma medida radical, substituiu Vasco Rodrigues e Louro de Sousa, militares em permanente contencioso, por Arnaldo Schulz, foi logo em maio de 1964.

Aqui se inicia uma transição, o bardo ainda tem umas estrofes para contar o que se passou no Como, mas é bom não esquecer que vai haver mudança de itinerário, o batalhão irá sediar-se em Farim, ver-se-á envolvido em muita atividade operacional. É justo aqui trazermos à colação quem fez páginas de diário na ilha de Como e muitos anos mais tarde, em meados da década de 1990, dará à estampa uma obra-prima do romance com o título “Estranha Noiva de Guerra”, falamos obviamente de Armor Pires Mota.
Oiçamos o que ele nos diz sobre essa atividade que prossegue a que viveram no Como:
“Muito antes de Cai, ainda a companhia completa, o resmalhar do capim começou a acordar os bichos, as aves. Sobretudo, os macacos. Isso inquietava. Feria o cérebro. Quando, aqui e ali, as palmeiras novas entrechocavam os seus ramos, havia um estremecimento súbito, um medo geral. Os menos afoitos aguçavam o ouvido. Seria mentira até se não se dissesse que se pressentia um silencioso ranger de dentes e de pragas escorrendo do território inconquistável. Muitos dos nossos começavam a acariciar as patilhas da G3. Ou o coração áspero das granadas. Arrepiados de dúvidas e talvez tocados de maus presságios, seguíamos, atentos e pressurosos, na árdua tarefa que nos coubera. (…) Às 22 horas estoirou uma granada do lado sul, prova de que o IN se acercava da posição que era vulnerável. O silêncio era a única voz a gritar alto naquela escuridão aventesma. Só quem, um dia, andou de canhota no mato. Todos apalpavam as armas, as granadas, quase sempre o coração, às vezes a alma.

Esfregavam os olhos até doer. Dormir era um risco. Ninguém queria entrar na eternidade de olhos fechados, por um tiro no coração, esborrachado por uma granada. (…) As balas, assobiando, constituíam uma perigosa muralha de aço, difícil de transpor. A luta não deixava ninguém de fora. Depois, do outro lado, os gritos começavam a dizer que o sangue havia rebentado como um vulcão em chamas. Era uma onda quente inundando o capim, metendo medo ao anúncio da madrugada. O IN tentava, a todo o transe, evitar a aproximação da tropa do santuário de Malimorés. Ainda ouvi o alferes Costa a gritar: vamos a eles! A seguir devo ter perdido os sentidos, porque não me lembrava de mais nada”.

Vale a pena insistir que este romance é de uma enorme expressão metafórica, trata-se de uma via-sacra, o herói é José Joaquim Bravo Elias, ali bem perto de si morre um extremoso camarada (“Júlio Perdiz tinha na cabeça um arrepio intranquilo de sangue e nenhum relincho era capaz de acordá-lo”), vai começar uma viagem delirante, Bravo Elias arrasta o corpo do camarada Perdiz, experimentará todas as provações, assaltarão a sua memória as mais insólitas e aparentemente despropositadas recordações, haverá uma noiva de guerra, encontros insólitos, haverá uma flagelação cataclísmica sobre Mansabá, quem vinha da via-sacra presenceia um mundo de destroços.
Um belo romance, mas Armor Pires Mota vai-nos contar ainda mais coisas depois da batalha do Como.

(continua)

Página do jornal do BCAV 490, gentilmente cedida pelo confrade Carlos Silva, um investigador infatigável a quem devo muitas atenções.
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Notas do editor

Poste anterior de 6 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20127: Notas de leitura (1215): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (22) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 9 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20137: Notas de leitura (1216): “Por uma reinvenção da governabilidade e do equilíbrio do poder na Guiné-Bissau”, por Luís Barbosa Vicente; Edições Corubal, 2014 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20065: Notas de leitura (1209): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (19) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Abril de 2019:

Queridos amigos,
Prossegue a batalha do Como, é óbvio que o bardo dá prioridade à sua gente mas a operação teve farto envolvimento, foram de primordial importância tanto as forças navais como os meios aéreos. Neste episódio se releva a singularidade do diário de Armor Pires Mota, tem páginas comoventes, importa não esquecer que foram escritas em cima dos acontecimentos, é de questionar a fibra deste homem, as suas orações tocantes, o sofrimento compartilhado, o horror que viu, como aqui descreve.
E volta-se a falar de Alpoim Calvão e das forças navais, há que dar o seu a seu dono, no termo desta operação o Coronel Fernando Cavaleiro percorrerá a pé toda a ilha, era vitória de pouca dura, sina da guerra de guerrilhas, setenta dias de duros combates.
O bardo, como veremos, ainda tem muito a contar sobre a batalha do Como.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (19)

Beja Santos

“Quando a gente cá chegou
junto ao Batalhão lutavam
as tropas desembarcadas.
Bons serviços prestavam.

Muito fogo teve de atirar
a 2.ª Companhia
porque aquela patifaria
custava a recuar.
Depois de a Cauane chegar
a luta continuou.
Debaixo do fogo se trabalhou
para construir os abrigos.
Eram muitos os inimigos,
quando a gente cá chegou.

Algum tempo se passou
e em Catunco tudo normal:
com ordem do Sr. Cap. Cabral
a Ilha se patrulhou.
Um pretinho se apanhou
e para mascote o levavam.
Quando um dia caminhavam
apanhou-se um dos bandoleiros
e em todo o lado os fuzileiros
junto ao Batalhão lutavam.

Em Caiar se encontrava
o Alferes de Artilharia
que com boa pontaria
nos malvados acertava,
de noite ou de dia jogava
uma porção de granadas.
Media bem as coordenadas
não atingindo as Companhias.
E decorreram 70 dias
as tropas desembarcadas.

O pelotão dos paraquedistas
encontraram alguns bandos
junto aos homens dos comandos
que também deram nas vistas.
Mataram muitos terroristas
e alguns vivos apanhavam.
Um dia à praia chegavam
com prisioneiros na mão
e durante toda a operação
bons serviços prestavam.”

********************

É o momento propício para se dar voz a quem sobre esta batalha escreveu em forma de diário. “Tarrafo”, de Armor Pires Mota, é uma das obras incontornáveis da literatura da guerra da Guiné. O livro foi alvo da censura, retirado do mercado livreiro, reeditado mais tarde. É um legado de páginas densas, emocionantes, temos aqui a guerra em direto que o Alferes de Cavalaria enviava em forma de crónicas para o Jornal da Bairrada.
É um testemunho sem paralelo sobre a Batalha do Como:
“Atravessámos o riacho e o tarrafo, de saco às costas, muito a custo, curvados e encobertos pela vegetação, quase impotentes e amachucados porque a viagem fora penosa, difícil. E debaixo de fogo intenso, a rastejarmos, entrámos no objectivo… Sinto-me em baixo. A alma pesa-me como chumbo. E causa-me calafrios a morte daquele dois moços que ao entardecer, foram encontrados nus. Só lhes deixaram as meias enfiadas nos pés, por algum motivo religioso. De resto, levaram-lhes tudo. Tinham o sexo mutilado, o nariz arrancado e os olhos e pelos rasgões, espalhados pelo corpo, tudo leva a crer que lutaram corpo-a-corpo, quando se viram sós e sem munições. Não quero que ninguém fique com a impressão de que este diário é pura ficção nem, tão pouco, que me mascarem de valente. Escreverei para mim e não para a eternidade. E aqui estarei para chegar até ao fim”.

O autor reza o terço quando rebenta a fuzilaria, estão metidos num cerco em ferradura, o ataque é repelido, renasce a atmosfera de silêncio enquanto um vento húmido traz o cheiro horrível da carne a apodrecer algures, entrecortado pelos estrondos da artilharia. É uma batalha como não haverá igual, em tudo o que se passou na Guiné, tomam-se posições, por vezes recua-se, derrubam-se acampamentos, há rompantes desse combate que ganham uma dimensão apocalíptica, vive-se permanentemente à espera de um contra-ataque, como Armor Pires Mota escreve:
“Há quarenta dias que o mundo para nós é a incerteza da hora seguinte a devorar-nos a fronte atormentada. Há refeições em branco, porque não apetece senão a paz, o regresso. Uma grande parte da tropa está já inoperacional. As semanas são uma eternidade. Até parece que nascemos na tropa, na guerra”. 
 E é neste diário emocionante que no dia 1 de março de 1964, Armor Pires Mota faz uma oração como não vi escrita outra igual:
“Só Tu sabes, Senhor, a minha hora.
Mas tenho medo porque sou homem e tenho o destino de mãos vazias.
Que as minhas mãos não façam correr sangue inocente, mas que não sejam cobardes se for preciso castigar, matar ou morrer.
Mas tenho medo, Senhor!
Tu bem sabes que eu tenho uma mãe que chora e reza a minha ausência e que a saudade chora dentro de mim como uma criança longe dos braços maternos.
Tu sabes que eu tenho sonhos de ouro e espero de olhos azuis no futuro.
Tu sabes que eu tenho um amor na vida de mãos cheias de primavera e cabelo preto, da candidez dos lírios. E Tu bem sabes como dói cair uma rosa no chão só porque não choveu…
E só Tu sabes o segredo da noite: para a vida?, para a morte?
A hora é de luta para vencer ou morrer.
Mas tenho medo sem ser cobarde e tremo todo como cana agitada ao vento.
Espero em Ti.”

A batalha parece interminável, sangrenta, com casas de mato a arder, paraquedistas perdidos, um certo caos nas ordens e contraordens.
O autor escreve nova página do diário:
“Tivemos missa, como antigamente nas manhãs das grandes batalhas. O altar era feito com duas caixas de cerveja e montado por detrás da casa velha a ruir. De tronco nu ou descalços, mas alma cheia de esperança nos desígnios eternos, todos quanto ali estavam confiavam ao Senhor dos Exércitos as suas angústias, as horas más, as vitórias e as derrotas, as saudades da terra e da família, da noiva… Deus desceu à guerra para a paz”.

O diário de Armor Pires Mota não finda aqui, quando saem da Ilha do Como ruma para Jumbembem, de outras coisas falará.

Retornemos a “Alpoim Calvão, Honra e Dever”, e ao mês de fevereiro, as forças do PAIGC continuam a oferecer feroz oposição, o DFE8 não tem descanso e a 27 desse mês este DFE e o DFE7 embarcam com destino a Cachil, trabalhando em conjunto pela primeira vez na Tridente.
Vai prosseguir o relato dos acontecimentos:
“Chegaram à cambança do Brandão pelas duas da manhã, quedando-se aquartelados pouco depois no estacionamento de Cachil. Mas é curto o descanso, pois às 4h30 é dada a alvorada e uma hora mais tarde inicia-se o movimento simultâneo das duas unidades, seguindo o DFE7 pela orla este da mata grande de Cachil e o DFE8 pela orla oeste. Chegados ao limite sul, o DFE7 entra em contacto pelo fogo com o inimigo, enquanto o DFE8 permanece sem ser detectado. O DFE7 manobra então de modo a ocupar um esporão mais a sul, enquanto os F-86 da Força Aérea bombardeiam o tarrafo e a orla da mata de Cassaca onde o inimigo se continua a manifestar com alguma violência.
As secções avançadas entram em contacto com o inimigo que, tento retirado aquando o ataque aéreo, voltara às suas posições e esbarrara com o fogo dos dois destacamentos, responsável pelo abate de alguns guerrilheiros e pela apreensão de material de guerra. Em estreita colaboração, as restantes secções de fuzileiros ocupam a orla norte da mata de Cassaca, enquanto a retaguarda é protegida por um grupo de combate da CCAÇ 557 e uma secção do DFE2. O DFE8 assume depois a vanguarda e progride a oeste da picada, em direção a Cassaca, onde já estão instaladas a CCAV 487 e o grupo de Comandos. Juntas as forças, inicia-se o regresso a Cauane, progredindo na vanguarda o DFE8, seguido pelo DFE7, pelo grupo de Comandos e pela CCAV 487. O inimigo não se torna a manifestar.

Alpoim Calvão não mostra grandes preocupações quanto à sua defesa pessoal. Usualmente armava de G3, mas muitas vezes optava por levar apenas uma pistola-metralhadora UZI, ou até mesmo uma simples pistola, e não costumava carregar com muitas munições. Entendia que a missão de um comandante não era estar deitado a dar tiros, como um simples atirador, mas sim permanecer de pé enquanto o tiroteio chicoteava as copas das árvores ou ceifava o capim e lhe assobiava aos ouvidos. Procurava estar o mais protegido que fosse possível, qualquer tronco de árvore, por mais estreitinho que fosse, servia. Mas de pé, sempre de pé, a única maneira de ver a ação, intervir, poder dirigir a manobra, comandar.

Numa das fases da Operação Tridente seguia como observador o Capitão-Tenente Melo Cristino, Diretor de Instrução da Escola de Fuzileiros, que, nunca tendo participado em qualquer campanha, pretendia sentir ao vivo o comportamento das unidades em combate, razão por que entendera visitar o teatro de operações da Guiné e fizera questão em acompanhar pessoalmente uma acção. Nessa ocasião, quando algumas secções do DFE8 progrediam na retaguarda de um pelotão de paraquedistas, a Unidade caiu debaixo de fogo inimigo, responsável por duas baixas.
Durante o intenso tiroteio travado de seguida e enquanto o Tenente Calvão de pé procurava orientar a manobra dos seus homens, o Comandante Melo Cristino, surpreendido pela violência do fogo e pela chuva de metralha que caía em seu redor, gatinha desorientado pelo chão sem saber muito bem o que fazer. A admiração e o respeito que passou a sentir pela coragem de Alpoim Calvão e dos seus fuzileiros deixou de conhecer limites.

A partir de certa altura, após a passagem dos aviões da Força Aérea, os fuzileiros ouviam fortíssimos rebentamentos na mata e o solo estremecia com a violência de um tremor de terra. Era mais um bombardeamento, mas de invulgar potência. Na sua origem encontrava-se o Comandante da LFG “Dragão”, Primeiro-Tenente Lopes Carvalheira, que via com preocupação a operação arrastar-se durante muito tempo e pensou numa maneira de abreviar o esforço exercido na Ilha do Como. Tinha conhecimento que nos paióis de munições em Bissau estavam estivadas bombas de profundidade para a guerra antissubmarina. Eram cargas poderosíssimas de 350kg de trotil que se encontravam atribuídas às fragatas em serviço na província, mas que, não só por serem desnecessárias naquele teatro de operações como também por representarem um perigo acrescido, eram desembarcadas no início das comissões.
Lopes Carvalheira fez então um teste com as cargas utilizadas para repelir ataques de mergulhadores e confirmou que as espoletas tinham um retardo de 20 segundos. Foi pois fácil ao seu Imediato, Oficial da Reserva Naval, licenciado em Matemática, estabelecer os cálculos da altitude a que deveriam ser largadas de avião para rebentarem a escassos metros do solo. Lopes Carvalheira pede licença para se deslocar a Bissau, embarca num helicóptero Allouette II a bordo da ‘Nuno Tristão’ e expõe a sua ideia, que conta com o apoio inequívoco do Governador da Guiné, Comandante Vasco Rodrigues.”

Ver-se-á a seguir como este dispositivo beneficiou Alpoim Calvão e os seus homens na Batalha do Como.

(continua)
____________

Notas do editor

Poste anterior de 9 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20046: Notas de leitura (1207): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (18) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 12 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20054: Notas de leitura (1208): “Guiné-Bissau, das Contradições Políticas aos Desafios do Futuro”, por Luís Barbosa Vicente, Chiado Editora, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20028: Notas de leitura (1204): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (17) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Abril de 2019:

Queridos amigos,
Começo pela nota curiosa de que há páginas de "Estranha Noiva de Guerra" de Armor Pires Mota que coincidem com a história do BCAV 490, caso da descida de helicóptero de Arnaldo Schulz em território do Oio, um pouco antes do centro nevrálgico do Morés, é hasteada a bandeira portuguesa, o Comandante-Chefe manda transportar comida e algumas guloseimas para os homens que têm operação árdua pela frente e regressa a Bissau, os combates prosseguem. Tudo primorosamente descrito. Tinha chegado o momento de apresentar o talentoso escritor, alferes miliciano do BCAV 490, figura incontornável da literatura da guerra da Guiné. Agora está tudo a postos, houve um interlúdio quase sem bulha, festejou-se o Natal, o bardo tem a seguir muito que contar, vai começar a batalha do Como, sobre ela ficaram belos testemunhos, sobre ela se disseram grosseiras mentiras na propaganda que muito depois da guerra finda ainda eram propaladas como verdades inquestionáveis.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (17)

Beja Santos

“Quase todo o Batalhão
em Bissau a descansar
em Bissorã dois pelotões
ansiosos por voltar.

Do mato regressaram
as nossas companhias
e foi somente 20 dias
que estes homens descansaram.
Ano Novo e Natal passaram,
havendo grande reunião:
realizou-se um serão
para entregar alguns louvores,
e ouvindo alguns cantores
quase todo o Batalhão.

Em Bissorã se encontrava
o Hermenegildo Francisco,
comendo um bom petisco
junto a quem o rodeava.
O vague-mestre a todos dava
bom comer para almoçar,
uma galinha para jantar
e bebida à farta para quem queria.
E o amigo António Maria
em Bissau a descansar.

Grandes serviços desempenhou
o pelotão do senhor Alf. Segura:
a 7 de Dezembro com bravura
ao quartel dos bandidos chegou.
Muito dinheiro lá apanhou
e rádios roubados pelos ladrões.
Apanharam também munições
e minas anti-pessoal.
E em 63 pelo Natal
em Bissorã dois pelotões.

Em Mansabá sossegavam
os ataques desta vez,
e a 29 desse mês
para Bissau regressavam.
O ano de 64 principiavam
sem haver qualquer azar.
O amigo Baltazar
pouco tempo passeou
e para o Como tudo abalou
ansiosos por voltar.”

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O bardo dá-nos conta da atmosfera que preludia a partida para o Como, a distribuição dos dispositivos militares, dá-nos a atmosfera de uma aparente acalmia. O que nos proporciona introduzir aquela que considero a obra-prima da literatura da guerra da Guiné, “Estranha Noiva de Guerra”, é seu autor Armor Pires Mota, oficial do BCAV 490. Ainda hoje me surpreende como foi possível este romance publicado numa edição discreta, em 1995, ter escapado completamente seja à crítica seja aos antigos combatentes.
Em duas palavras, é um empolgante e raríssimo discurso carregado de metáforas em que a maior é a de uma via-sacra, o herói e narrador é Bravo Elias, que assim se apresenta:
“Eu, Bravo Elias, de nome completo José Joaquim Bravo Elias, nado e criado em Parada de Junco, que não invento, por verdade ser o sangue e o tormento da hora, o dizer dos desasados momentos por que tive de passar, a cobra verde, o mosquito adejando raivoso, o olho miúdo, mas generoso das duas velhas recitando o seu hamedu-lilai, a heróica rapariga, ah a rapariga, e como dizia, picado no ouvido fito por violento tiroteio, muito lá para a frente, assarapantado, agarrei da G3 e cavei de onde estava para a cratera aberta. Premi o gatilho, com raiva patenteada nas mãos humedecidas, varrendo da esquerda para a direita, todo o campo de tiro”.
Via-sacra em que o Bravo Elias arrasta o corpo de um camarada morto em combate por caminhos inóspitos, sujeito a toda a casta de provações ou estações escolhidas por Deus: o confronto com o inimigo, os jagudis devoradores do corpo à sua guarda; uma viagem que se vai tornando delirante e dilacerante, a memória do herói, recorrente, é perpassada por vários passados, dão-lhe recordações para embates totalmente imprevistos.

Nenhum romance está tão centrado pela reconciliação, é um enredo em que a guerra atrai os opostos e daí ser-lhe implícita uma metáfora de paz, Bravo Elias arrasta o que resta do soldado Perdiz, encontra-se com inimigos e chega a Mansabá onde uma flagelação brutal nos dá a certeza que na floresta mais escondida ou no mais amplo dos destacamentos o horror chega a qualquer momento, e daí a elegia àquela fugidia noiva de guerra.

Como se escreve é primoroso, vejam-se alguns extratos:
“A marcha continuava. Mais enervante. Passámos além de Cai. Uma calabaceira enorme pontificava na aldeia deserta. Mais além as figueiras bravas e, a seguir, um labirinto naturalmente assombrado de medos e de bichos, humidade e fungos.
Seis outros elementos do IN visaram-nos. Tiros de espingarda e, mais adiante, um tiro de pistola, referiu o comandante mais tarde.
Malimorés foi atingida só o sol anunciava violenta fornalha. Silêncio que doía e enervava. Passava revista às palhotas, foi detida uma mulher cujas peles escorriam medos e suores. Estava junto do seu homem. Ela chamava-se Mala Seidi. O homem, cujo nome era de somenos, estava doente e tremia. Deixámo-lo tocado por um sorrido frouxo. Mala Seidi confirmava o que o prisioneiro havia dito. Ficámos, então, com a certeza de que as casamatas se achavam junto ao caminho que de Malimorés conduzia a Talicó. Um disparo de bazuca fez internar na mata oito negros. Armados e fardando camuflados.

Ali foi armada a defesa em círculo. Em círculo e ao largo. Enquanto isto era feito, foi pedido pelo ANR/PRC a eventual evacuação do negro ferido. O helicóptero chegou depois do meio-dia, quando o sol comia os miolos de todos. Sua excelência o Comandante-Chefe havia de chegar também noutro. Para bater o tacão naquele chão vermelho. Com uma bandeira nacional que ali foi hasteada. Tirou algumas fotos. Convenceu-se, o general, que tinha ganho aquela batalha, sem que soubesse o que havia de vir depois. Podia dizer até que já fizera a sua guerra, que não era nenhum maçarico. Tão entusiasmado ficou que mandou vir água, pão e guloseimas de Bissau para distribuir pelos soldados.
Pelas 11 horas, começou a ouvir-se o rugido de dois T6 que iam bater as zonas das casamatas. Enquanto isto, os soldados puxaram dos isqueiros. Atearam o fogo a cerca de sessenta palhotas.
Aproveitaram ainda para um rápido trago de cigarro. Corriam de um lado para o outro com fachos de capim a arder. Mas a verdadeira Malimorés, a dos aquartelamentos dos guerrilheiros, ainda não era ali.

Feita a refeição do meio-dia, engolida com uns bagos de medo à mistura, como era natural nessas situações, utilizando Mala Seidi, a velha que tinha a falha de três dentes, era intenção do comandante chegar às casamatas. O caminho era estreito e a mata era vestida de espesso arvoredo. Via-se pouco mais do que um palmo à frente do nariz. Um labirinto de estarrecer. O silêncio era compacto como terra. Só se ouviam estalidos na floresta, provocados pelo calor intenso. Suávamos como cavalos. O silêncio anavalhava os nervos. Entrar, lá se ia entrando, com todo o cuidado e vigilância. Sair é que não se sabia se tal ia acontecer”.

É em dura refrega que se vai perder aquele homem a quem Bravo Elias preiteará homenagem, um camarada jamais é deixado em terra alheia, deverá ser chorado pelos seus, enterrado no seu solo: “Júlio Perdiz tinha na cabeça um arrepio intranquilo de sangue e nenhum relincho era capaz de acordá-lo”.
Bravo Elias está cônscio do que o espera na via-sacra:  
“Eu sabia que a jornada ia ser espinhosa. Avaliando as minhas forças, ergui os olhos ao céu e disse qualquer coisa como: ‘para Vós volto os meus olhos, em Vós confio, salvai-me, Senhor!’. Talvez breves versículos do Templo da Paixão, não sei”.
Iniciava-se o sagrado dever:  
“A verdade é que era necessário meter-me ao caminho e com força bastante para resgatar o meu camarada aos matos, aos bichos e aos guerrilheiros. Porém, não deixava de me aperceber, em estilhas de sofrimento, que era uma coisa triste tudo aquilo, mas, ao mesmo tempo, sentia uma vaga e confusa sensação que também era, possivelmente, a coisa mais bela que me cabia em toda a guerra até àquele momento. Era restituí-lo à família, devolvê-lo à aldeia, nossa comum raiz”.

Há um parágrafo que muito me comove e a ele retorno com frequência, pelo seu fulgor de amor rendido a África:
“Os insectos, àquela hora, estendiam pela mata a sua zanguizarra solene e impetuosa como um rio de vozes frescas, rebentadas do chão. Mais longe, alguns macacos pincharolavam de festa, numa grulharia irritante e sádica, pois parecia que estavam a troçar de mim e do Perdiz. Com gestos obscenos. Pelo alto sarabandeavam muitos pássaros. Tantos, que era difícil chamá-los pelo nome. Do que eu gostava mais era do cacho-caldeirão, cores negras e amarelas, muito bonito. Mesmo assim reconheci, com a ajuda da rapariga, as rolas, claro, o barbilhão-amarelo, o pássaro-martelo, o zombeteiro, o palrador, a pomba verde, o beija-flor, o peito-lilás, tudo mais ou menos aves das galerias florestais, mas sem prestar grande atenção à ronda do colorido, às palavras que cada espécie ia debitando, eufórica de liberdade, sacudindo as asas num exemplar concerto de audácia e contentamento. Só eu jazia amarrado a um morto-vivo e à mata”.

O surreal, o sobrenatural, o realismo mágico vão tomando conta de todo o discurso da alucinante viagem. Momento alto da reconciliação dos homens é o encontro de Bravo Elias com Mamadu Keta, fumam o cachimbo da paz, ficamos a saber que aquele velho Mandinga aprendera a ler e a escrever na escola da missão sem prejuízo de ler e aprender nas tábuas de marabú os preceitos do Alcorão. Tinha dentro de uma mala o jornal “A Bola”, porque estava ali a fotografia de um negro importante, era o Eusébio. Mas a partida impõe-se, por obra e graça da ficção chega-se a Mansabá e nisto estoira uma flagelação destruidora, que vai deixar o mundo em destroços que Bravo Elias percorre, ainda a manhã vem longe, sendo o nevoeiro cada vez mais denso, leva na mão aquele cachimbo da paz que fumara com Mamadu Keta, tudo se irá recompor e ficará para todo o sempre a recordação daquela estranha noiva de guerra, dentro deste aglomerado de metáforas.

Neste preciso instante, o bardo inicia a sua toada sobre a batalha do Como, onde Armor Pires Mota escreverá belíssimas páginas, editadas no seu livro “Tarrafo”.

(continua)
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Notas do editor

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