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segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13484: Notas de leitura (621): “Direitos Civil e Penal dos Mandingas e dos Felupes da Guiné-Bissau”, por Artu Augusto da Silva (2) Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Fevereiro de 2014:

Queridos amigos,
Deplorando sempre não lhe terem dado condições para um trabalho de equipa, Artur Augusto da Silva, além de jurista emérito, por sua conta e risco procedeu a inúmeras deslocações para conhecer in loco o seu objeto de estudo, parece que tudo o interessava: os Balantas, os Sôssos, os Fulas, os Mandingas, os Felupes. Sente-se o grande prazer que ele teve neste trabalho pioneiro sobre o Felupes, trabalho que ele abre com um provérbio deste povo: “O burro e a lebre têm ambos orelhas grandes mas não são irmãos um do outro”. Trata-se de uma revelação surpreendente de um povo de que se fala com tanto preconceito e de que se desconhece quase tudo.

Um abraço do
Mário


Direitos civil e penal dos Mandingas e dos Felupes da Guiné-Bissau (2)

Beja Santos

Artur Augusto da Silva [foto à direita], não é de mais insistir, foi um investigador por conta própria, sempre apelou ao trabalho de equipa, que não veio, e deixou trabalhos jurídicos e um apreciável número de obras de imenso valor no campo da etnologia, da etnografia e do direito costumeiro. Se se pedisse uma prova eloquente das suas preocupações rigorosas como cientista social e investigador solitário, probo e meticuloso, não hesitaria em pôr à frente este trabalho sobre o direito dos Felupes (“Direitos Civil e Penal dos Mandingas e dos Felupes da Guiné-Bissau”, 4.ª edição, DEDILD, Bissau 1983). Em jeito introdutório, o autor recrimina aqueles que vêm apressadamente até África para produzir algo sem se preocupar em conhecer a essência do africano, assim: “Quem queira compreender a África Negra na sua verdadeira realidade, não pode fazer fé na maioria dos trabalhos publicados porque eles são o resultado de uma interpretação, de uma projeção da psicologia europeia sobre aquele continente, e não uma radiografia da alma africana.
Mesmo discutindo ou conversando com reputados etnólogos de diversos países, chegámos à conclusão que eles afloraram a realidade mas não conseguiram penetrar no âmago da psicologia do afro-negro que permanece, para eles, um ser estranho.
Duas razões justificam o facto: por um lado, sendo profissionais, precisam de publicar trabalhos e é vê-los, mal chegados ao campo de operações, indagando, medindo, pesando e analisando, sem que primeiro tenham procurado, através de um prolongado estágio, fazer esquecer o que sabiam para que pudessem captar a psicologia daqueles com quem estavam em contacto.
Por outro lado, não conseguindo pôr de parte dois mil anos de cultura que, embora não tragam nas malas, trazem no espírito, reduzem tudo ao padrão europeu e procuram encontrar a sua lógica por toda a parte, impõem-na aos outros e não concebem que possam existir outros modos de pensar e agir.
Daqui resulta que a maioria dos estudos sobre os negros são mais uma projeção da mentalidade europeia deformada do que uma análise objetiva desses povos".

Cético em considerar que os Felupes pertencem ao ramo sudanês, refere os escritores portugueses que desde o século XV mencionam os Felupes, localizando-os onde ainda hoje habitam. Por exemplo, Lemos Coelho (Duas Descrições Seiscentistas da Guiné, escritas em 1669 e 1684) refere-se detidamente a estes povos, como escreveu: “Saindo do rio da Gâmbia pela costa abaixo… está logo o rio S. João… a gente são falupos”. Acrescenta: “… da banda no norte do rio de Casamansa tudo são falupos”. Esclarece: “Passando o rio de Jame o que se segue é o de Cacheu. Toda a costa são falupos”. Os Felupes posicionavam-se desde o rio Gâmbia até ao sul do rio Cacheu, pouco penetrando para o interior. Viviam na costa, junto aos inúmeros esteiros, rios e riachos que cortam a Senegâmbia e a região Susana-Varela. Tiveram grandes hostilidades com os Mandingas, estes, em maior número e grandes guerreiros, queriam cativar os Felupes e vendê-los como escravos. Não se deixaram islamizar, coisa que aconteceu com o ramo Banhum. Mesmo antes da luta armada iniciou-se um processo lento de muçulmanização.

Em termos históricos, a palavra Felupe foi usada desde o século XV pelos portugueses generalizou-se a outras tribos: Buramos, Cassamgas, Banhuns, Arriatas, Jabundos e Baiotes, hoje estas etnias estão bem demarcadas.

Felupes a pescar, imagem retirada, com a devida vénia, do site: http://actd.iict.pt/view/actd:AHUD26211

Para os Felupes a vida é um todo, a unidade dos preceitos reguladores da atividade dos homens é completa. Todos os fenómenos da vida são determinados pela vontade das forças sobrenaturais, os homens são simples agentes passivos dessa vontade. O mundo dos Felupes é governado pelas “forças deuses”, cada uma dessas forças possui uma virtude própria e o seu contrário: os deuses que podem produzir a morte podem, também, curar os homens. Este mundo religioso está intimamente articulado com o quotidiano e a sua plenitude de atividades. Como o autor escreve: “Há uma refeição sagrada que os Felupes celebram familiarmente quando colhem o primeiro arroz, este arroz simboliza a palingenesia de tudo o que existe – tudo nasce, cresce, desaparece e torna a nascer – e simboliza a comunhão do povo do espírito dos primeiros Felupes que cultivaram arroz”. É um mundo religioso determinado por forças incorpóreas, onde há intermediários divinatórios e onde há o tchina grande, a autoridade suprema. O sentido coletivo pesa e a opinião do Conselho dos Anciãos é determinante.

Para surpresa do autor, encontrou palavras Felupes derivadas do português: carafa (garrafa), papé (papai), biber (bebida), cagana (caganeira). A família Felupe, em sentido restrito, é um conjunto de indivíduos ligados por laços de sangue e que vivem debaixo da autoridade de um chefe. Quando um Felupe fala na sua família, tem em mente só aqueles que vivem debaixo da autoridade do seu pai, avô, tio ou irmão, que habitam na mesma tabanca e descendem de um antepassado comum. Os Felupes desconhecem a instituição servil: nunca tiveram escravos e não os têm. Quando, nalguma guerra, faziam prisioneiros, ou os negociavam ou os comiam. A antropofagia praticada pelos Felupes desde tempos muito recuados está em vias de desaparecimento. O trabalho debruça-se sobre o casamento, a filiação, as cerimónias fúnebres. Passando para os direitos reais, o autor recorda que o Felupe vive em regime comunitário, não se concebe que alguém se intitule dono daquilo que não produziu. E escreve: “O gado e as bolanhas são a expressão mais acabada do orgulho de uma família Felupe. O número das cabeças de gado e a extensão e produtividade das bolanhas são o padrão demonstrativo do zelo e amor pelo trabalho, não só do chefe de família como de todos os seus membros. Além disso, põem-nos ao abrigo dos maus anos que falta arroz. Não há uma família Felupe que não tenha, no fim das colheitas, nos seus celeiros dentro de casa, uma suficiente reserva de arroz, bastando no geral, para alimentá-la durante dois anos”.

O autor analisa também os diferentes contratos da sociedade Felupe e o direito de sucessões dizendo: “O princípio dominante em todo o capítulo das sucessões é o de que sendo a família quem possui as casas e os terrenos de lavor, não lugar à transmissão dos bens mas unicamente a transferência de administrador desses bens”.

Quanto ao direito penal, o autor recorda que o social e religioso estão interligados. O crime, para os Felupes, não implica, em princípio, atos volitivos porque se refere aos resultados e não à intensão, os Felupes distinguem perfeitamente o homicídio voluntário do involuntário. Elenca as interdições e atos desaconselhados e um vasto leque de sansões na ordem familiar e na ordem coletiva. E no termo do seu ensaio, Artur Augusto da Silva deixa-nos uma curiosidade que seguramente surpreenderá o leitor: “Os Felupes usam a mesma palavra para designar paz, felicidade e liberdade, facto de uma importância transcendente para a compreensão da filosofia prática desta etnia. Os três conceitos são, na vida de um povo, inteiramente insolúveis e bom seria para a humanidade que, em todas as línguas, estas três palavras fossem rigorosamente sinónimas…”

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Nota do editor

Último poste da série de 8 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13474: Notas de leitura (620): “Direitos Civil e Penal dos Mandingas e dos Felupes da Guiné-Bissau”, por Artur Augusto da Silva (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13474: Notas de leitura (620): “Direitos Civil e Penal dos Mandingas e dos Felupes da Guiné-Bissau”, por Artur Augusto da Silva (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Fevereiro de 2014:

Queridos amigos,
Era timbre de todos os trabalhos de Artur Augusto da Silva explicar o homem no meio, a sua identidade, a sua consciência cultural. Sempre pedindo aos curiosos e estudiosos que procurassem ver o africano sem o olhar redutor do europeu, a modos do “civilizado” que busca interpretar o pobre aborígene, de tanga e descalço, um troglodita que precisa de ser trazido para o asfalto.
Desta feita, o objeto de estudo são os Mandingas e os Felupes.
O autor possuía uma curiosidade insaciável, a Guiné foi a suprema doação do seu trabalho.
Homem sensível, escreve na dedicatória deste livro: “À Clara, a melhor das companheiras, lembrando-lhe que tudo quanto faço a ela o devo”.
Trata-se de Clara Schwarz, aqui tão saudada no blogue.

Um abraço do
Mário


Direitos civil e penal dos Mandingas e dos Felupes da Guiné-Bissau (1)

Beja Santos

Artur Augusto da Silva foi um conceituado jurista que deixou vasta bibliografia nos campos jurídico, literário, artístico, etnológico e etnográfico, nomeadamente os seus trabalhos sobre etnias da Guiné-Bissau continuam a ser um ponto de partida para curiosos e estudiosos. É o caso de “Direitos Civil e Penal dos Mandingas e dos Felupes da Guiné-Bissau”, 4.ª edição, DEDILD, Bissau, 1983.

Comecemos pelos Mandingas, um povo sempre viveu em regiões de savana, abertas ao ataque dos inimigos, cujos reis possuíram riqueza porque exploravam minas de ouro, chegando a possuir na corte um numeroso exército. O autor dá-nos um esquisso sobre a história dos Mandingas e a sua interceção com os diferentes grandes impérios africanos. Por exemplo, o reino dos Mandingas era tributário do Império Ganês, e no tempo de Sundiata Queita, aproveitando-se da fraqueza do suserano, atacou Gana, destruindo-a em 1240. Observa também o autor: “A capital do reino do Mali, dos Mandingas ou dos Malinqués, porque por estes três nomes é designado, parece ter sido a atual povoação de Cangaba, junto à nascente Baoulé, afluente do Senegal. Não longe desta povoação, existe a de Niani, na margem do Sankarani, afluente do Níger, e que também é apontada como a primeira capital do Império Mandinga”. Enfim, os Mandingas aparecem como portadores de uma civilização brilhante, dominaram os Estados vizinhos até ao Atlântico, o seu declínio começa em 1473 e no século XVI as invasões árabes dos Beni-Hassan, de Marrocos, levaram ao desmembramento do império. Praticamente os grandes escritores dos Descobrimentos falam dos Mandingas, caso de Duarte Pacheco, Valentim Fernandes, João de Barros e Álvares de Almada.

A progressão dos Fulas levou ao declínio dos Mandingas. No século XIX os Mandingas ocupavam as regiões de Farim e Gabu, em 19 de maio de 1867 os Fulas atacaram os Mandingas em Gan-Salá (também conhecida por Kansala), vencendo-os na batalha conhecida por Tura-bã. Passou o Gabu a ser uma dependência do reino Fula de Labé e os Mandingas aceitaram os novos senhores.

A expansão islâmica teve consequências de grande peso: a conquista de regiões que se muçulmanizaram e a fuga, para as costas oceânicas, das populações que não se queriam submeter. No Futa-Djalon, os Fulas desalojaram os Sossos, empurrando-os para a costa; estes, por sua vez, entraram em luta com os Nalus, obrigando-os a procurar refúgio na região costeira. Em confronto com o cristianismo, percebe-se porque é que os africanos aceitaram com maior facilidade o islamismo: permitia-lhes o casamento com mais de uma mulher e não hostilizava frontalmente as crenças ancestrais.

O Mandinga nos bilhetes-postais da Guiné portuguesa

Escreve o autor: “O comportamento islâmico não conhece qualquer separação entre aquilo que para um cristão é moral civil, direito e religião. Na estrutura teocrática desta religião, todos os elementos estão incindivelmente ligados enquanto nas sociedades ocidentais os princípios do bem e do mal foram definidos pelos teólogos, a responsabilidade e as sanções das obrigações laicas são objeto reservado aos juristas. Entre os muçulmanos, todo o comportamento humano é julgado, punido ou premiado unicamente pela religião (…) os povos animistas baseiam todo o comportamento humano no exemplo legado pelos antepassados. O direito nasce na comunidade e tem como fundamento a vontade daqueles que já morreram (…) Para os Mandingas islamizados, porque vivem numa simbiose das duas crenças, a lei é a vontade de Alá e aquilo que os nossos pais sempre fizeram, enquanto para os animistas a lei é somente aquilo que os nossos pais sempre fizeram".

Tece o autor considerações sobre classes sociais e castas e lança-se na organização familiar Mandinga. A família elementar é composta pelo marido, sua mulher e os filhos que desta tivera; a família composta compreende o marido, as suas diversas mulheres e os filhos destas e finalmente a família extensa que comporta todos os que estão ligados por laços de sangue e os que estão sujeitos ao mesmo chefe. Uma família Mandinga reconhece-se pelo uso de apelidos: Mané, Camará, Tchamo, Cassamá, Turé, Fati, entre outros. Quando o Mandinga fala na família tem em mente todas as pessoas que portadoras do mesmo sangue vivem sob a autoridade do chefe da morança (…) Os graus de parentesco não coincidem com os do direito Ocidental pois que todos os familiares da mesma geração se consideram irmãos, embora existam gradações diferentes entre os do mesmo pai, os dos mesmos pais e os de pais diferentes. Analisa sucessivamente o casamento e a sua dissolução, as interdições, obrigações, questões relacionadas com a compra e venda, o assalariamento, prova das obrigações, direitos reais, as diferentes formas de aquisição da propriedade, sucessões e Direito Criminal. Neste campo do Direito, passa em revista o homicídio, a resistência e revolta, a desobediência, elenca os crimes contra as pessoas (parricídio, infanticídio, homicídio, envenenamentos, assalto, violação e rapto…) e crimes contra a propriedade. Ao longo do estudo, Artur Augusto da Silva examina sucessivamente no campo das obrigações o que é permitido e interdito, a natureza dos contratos, os mecanismos da sucessão, os direitos reais.

Na apreciação que faz à propriedade, o autor recorda que quando uma família Mandinga abandona uma região para se ir fixar noutra e se apropria de um solo livre, procede-se a uma invocação dos espíritos do antepassados e só depois é que se iniciam as construções. A tal respeito, Artur Augusto da Silva deixa uma curiosa nota de rodapé: “Quando uma família Mandinga pretende fixar-se num local, procede à cerimónia denominada baco-mutó, que significa agarrar a terra, há que consultar a vontade dos donos do chão, o chefe da família ou da povoação pede licença ao dono do chão para se ficar ali, semeia a vagem de uma planta semelhante ao feijão que é regada todos os dias, durante sete dias. Se o feijão germinar, é sinal que o dono do chão não se opõe à ocupação". A propriedade foi sempre coletiva entre os Mandingas, mas observa o autor que hoje não há nenhum agregado Mandinga que respeite na sua pureza o conceito tradicional de propriedade.

Como sempre nos habituou nos seus trabalhos, Artur Augusto da Silva começa por tecer o pano de fundo, mostrar os homens no espaço e no lugar, confronta-o com a religião, as hierarquias, as estruturas sociais e as atividades produtivas e só depois desta contextualização socioeconómica e cultural é que se trava de razões com o direito, sempre numa perspetiva de que o europeu muitas vezes ilude as características primaciais do africano, daí o pano de fundo e daí a leitura se tornar tão atrativa e luminosa. Não terá sido por acaso que o livro abre com um provérbio Mandinga: “Quanto mais souberes, melhor compreenderás que nada é inútil”.

(Continua)

Um dos primeiros grandes trabalhos de António Carreira, historiador maior da Guiné
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13461: Notas de leitura (619): Revista África - Literatura e Cultura - “Três provérbios em crioulo, uma aproximação à universalidade dos ditos” da autoria de Teresa Montenegro e Carlos Morais (Mário Beja Santos)

terça-feira, 18 de março de 2014

Guiné 63/74 P12850: (In)citações (62): Agradecimento da família Schwarz da Silva ao nosso blogue por, metaforicamente falando, ter emprestado os seus cavaleiros e tambores para glorificar o Homem, que foi o Pepito, na vida e na morte (João Schwarz da Silva / Luís Graça)




Poema datilografado, sem data, com emendas manuscritas pelo autor, Artur Augustio Silva, cortesia do seu filho João Schwarz da Silva

Morreu o homem
Artur Augusto Silva
(Nova Sintra, Ilha da Brava,
1912- Bissau, 1983)

Ao meu amigo Mamadú Baldé

por Artur Augusto Silva [, foto à direita,]



Mamadú Baldé,
filho de Salifo,
filho de Indjai,
filho de Tchamo,
filho de Monjur,
filho de Mutari,
cuja linhagem se perde há mais de dois mil anos
nas terras do Egito,
e de quem os antepassados remotos viram Moisés e Maomé
e com eles conversaram sobre o tempo e as colheitas.
Mamadú Baldé morreu.
Mamadú Baldé, 

o sábio que falava com Alá
e era bom
e era justo,
morreu.
Cavaleiros e tambores levaram a notícia a toda a parte:
subiram as encostas do Futa-Djalon
e desceram para o mar.
Percorreram o Sudão até Cao e Tombucutú
e desceram o lago Tchade.
E toda a terra dos fulas repetiu:
morreu Mamadú Baldé.
O sol parou o seu caminho,
espreitou para Labé,
viu Mamadú morto,
e continuou.
A lua parou também o seu caminho,
espreitou e continuou.
Os rios que nascem no teto do mundo,
pararam na sua corrida para o mar
e prosseguiram.
E o poeta pegou num pedaço de papel
e escreveu:

Morreu o Homem.

In: Artur Augusto da Silva - E o poeta pegou num pedaço de papel e escreveu: Poemas.
Bissau, Instituto Camões - Centro Cultural Português. 1997. p.21 (*) (**)

[Fixação de texto / Revisão em conformidade com o Novo Acordo Ortográfico: L.G.]




Lisboa > São Sebastião da Pedreira (ou S. Martinho do Porto?) > Em primeiro plano, o Carlos, ainda bebé, mais os irmãos Henrique (Iko) e João. 

Foto: © António Lopes (2009) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.Todos os direitos reservados.


1. Mensagem de João Schwarz da Silva, irmão do Pepito, e que vive em Paris [, foto à esquerda, cortesia do sítio European Alliance for Innovation]

[Engenheiro de formação e profissão, é doutorado em "Performance Analysis of Mobile Packet Radio Systems" pela Universidade de Carleton, Ottawa, Canadá, 1981; foi alto quadro da Comissão Europeia (1991-2010), diretior de seviços na Direcção-Geral da CE para a Sociedade da Informação; é atualmente investigador da Universidade do Luxemburgo; autor de uma centena de artigos e livros técnicos e científicos nas suas áreas de especialização; entre outras atividades sociais, é presidente da direcção da Associação dos Amigos da Sinagoga de Tomar]

Data: 14 de Março de 2014 às 14:38

Assunto: Agradecimento

Caro Luís Graça,

Graças a si e ao seu formidável blogue, que eu já conhecia, foram muitos aqueles que viram a noticia da morte do meu irmão Carlos. Durante a conversa telefónica que tivemos há poucos dias, agradeci a sua contribuição para o conhecimento da Guiné e para o conhecimento das actividades do Carlos. Penso no entanto ser preferível deixar-lhe uma mensagem escrita a agradecer tudo o que tem feito para celebrar a memória do Carlos.

O nosso pai Artur escreveu um dia um poema intitulado "Morreu o Homem" no qual fala dos cavaleiros e tambores que levaram para toda a parte a noticia da morte de Mamadu Balde. De certo modo o seu blogue corresponde aos cavaleiros e tambores, no caso do Carlos.

Em breve vou tentar acrescentar ao site que comecei a fazer há já uns tempos, uma parte onde irei tentar retraçar a vida do Pepito (mais exactamente Agapito que era um herói do "Cavaleiro Andante" mas que o Carlos não conseguia restituir devidamente quando era miúdo).

Convido-o desde já a dar uma vista de olhos ao site www.desgensinteressants.org onde encontrara nomeadamente um capitulo sobre o nosso pai Artur. Convido-o também a comunicar-me alguns elementos que possam fazer parte do capítulo que será dedicado ao Carlos.

Mais uma vez um grande obrigado e um grande abraço. (***)

João Schwarz da Silva

Anexo: Original de "Morreu o Homem"


Lisboa, campus da ENSP/UNL, 6 de set 2007; da esquerda para
a direita,  Nuno Rubim, Pepito e Luís Graça. Foto: LG 
 2. Resposta de Luís Graça, 
com data de 14 do corrente



Meu caro João:

A amizade não se agradece. A perda do Pepito toca-nos a todos, A si e aos seus, seguramente, de uma maneira única, e para mais numa família como a vossa que tem, do lado materno (os Schwarz), um historial de perdas trágicas,

Já dei uma "vista de olhos" ao seu sítio na Net ("Des Gens Intéressants", Gente Interessante, em português). E incentivo-o a prosseguir. Por si, pelo Carlos, pela família, pelos amigos, por todos nós.

Dou-lhe os parabéns pela filial devoção, rigor documental e riqueza iconográfica do extenso capítulo dedicado ao seu pai, Artur Augusto Silva (e, e donde constam preciosos documentos, como, por eemplo, a foto do funeral, em 1935, do Fernando Pessoa). É a história de uma vida, de um homem, cidadão, advogado, escritor,  intelectual, português, pai e esposo; é a história de uma família mas também de uma época, e de três países lusófonos, que nos são caros, a todos nós:  Cabo Verde, Portugal e Guiné-Bissau.

Tenho mais fotos (e vídeos) do seu mano Pepito que llhe enviarei com todo o gosto: 

(i) da viagem que fiz à Guiné, em fev/mar 2008, por ocasião do Simpósio Internacional de Guileje;

 (ii) da viagem que o meu filho João Graça (médico e músico dos Melech Mechaya, a única banda klezmer portuguesa) fez, um ano depois, à Guiné-Bissau, em dezembro de 2009, tendo privado com o Pepito e a famíla, em Bissau, no Quelelé, mas também em São Domingos, num festival intercultural;


(iv) dos nossos encontros anuais, na Tabanca de São Martinho do Porto, em agosto, nas férias da família, na mítica Casa do Cruzeiro... 

 Há, além disso, fotos diversos dos nossos camaradas que privaram com o Pepito, em Bissau, por ocasião de entregas de ajuda humanitária em Bissau... Enfim, tenho que consultar os meus arquivos fotográficos, que já são vastíssimos...e estão em diversos suportes (CD-Rom e discos externos), para alénm das inúmeras referências que há, no nosso blogue, (na I e II Série) ao Pepito e à sua querida ONGD AD - Acção para o Desenvolvimento, "o seu 5º filho", depois do DEPA - Departamento de Experimentação e Produção de Arroz, da Cristina, da Catarina e do Ivan...

Sinto uma dor imensa por não ter podido conviver mais e conhecê-lo melhor... E de ter "falhado", por razões profissionais, o seu convite para ir à inauguração do Núcleo Museológico Memória de Guiledje, em 20 de janeiro de 2010. Mas mesmo assim tenho guardadas largas dezenas de emails que trocámos nestes últimos anos...e de que poderei mandar-lhe uma seleção... 

O Pepito e a Isabel tornaram-se rapidamente amigos da nossa família e chegaram a vir jantar a nossa casa algumas vezes, em Alfragide e na Lourinhã... Quando vinha a Lisboa, o Pepito andava sempre num pandemónio, alimentando as suas redes de contactos e resolvendo assuntos da sua ONGD. E, infelizmente, nos últimos tempos, nos hospitais... A Alice e os meus filhos Joana e João tinham uma grande admiração e afeto por ele. O mesmo se passa com muitos dos meus camaradas e amigos da Guiné que tiveram o privilégio de o conhecer.

Se mo permitir, vou publicar a sua mensagem para conhecimento dos muitos amigos que o Carlos tinha no nosso blogue, que é, como sabe, uma criação coletiva. Aliás, é espantosa a nossa aproximação, a partir de finais de 2005, tendo nós sido homens que combateram o PAIGC de Amílcar Cabral... O Pepito percebeu, primeiro que ninguém, que Guileje podia e devia ser um traço de união entre todos nós, portugueses, guineenses, caboverdianos, lusófonos...

E estou-lhe muito grato, a si, João, pelo poema datilografado, lindíssimo, em que o seu pai faz o luto pela morte de um amigo e "homem grande", a que chamou simplesmente "o homem".  Também o Carlos não precisava de adjetivos: ele era o homem, o que honrou (e continuará a honrar) a nossa comum humanidade, a nossa condição humana... Hei-lhe um dia destes fazer-lhe um poema, para o seu sitio Des Gens Intéressants..

Dê um beijinho á sua querida mãe, Clara Schwarz, que faz o favor de ser nossa amiga. Ainda não arranjei um bom pretexto (!) para lhe falar,  coisa que fazia com alguma regularidade. E tenciono continuar a fazê-lo. Como sabe, ela é a nossa "decana" e queremos fazer-lhe uma grande festa daqui a um ano, poor ocasiaão do seu 100º aniversário!...

João, vamos comunicando. Julgo que já regressou ou vai regressar a França. Boa viagem. Saúde e longa vida para si e os seus. Um abraço. Luis.

PS - Já em tempos tinha publicado o texto original do poema "Morreu o Homem", (que é em prosa). Tomei, no entanto a liberdade de o converter para o fornmato de verso, procurando reconstituir a magnífica oralidade do texto. (*)

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Notas do editor:

(*) Vd-. poste de 18 de setembro de 2011 >  Guiné 63/74 - P8789: Blogpoesia (160): Na morte de Mamadú Baldé, descendente do régulo Monjur: E o poeta pegou num pedaço de papel e escreveu (Artur Augusto da Silva)

(**) Vd. recensão feita ao livro pelo nosso camarada Beja Santos, no  poste de 

13 de abril de  2011 > Guiné 63/74 - P8093: Notas de leitura (228): Poemas, de Artur Augusto da Silva (Mário Beja Santos)


(***) 8 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12695: (In)citações (61): Pepito, Clara, Isabel, estamos convosco! ...E fazemos votos para que o bom irã, acocorado no alto do poilão da nossa Tabanca Grande, ajude a dar força, ânimo e esperança à família Schwarz, nesta hora difícil (Luís Graça)

sexta-feira, 7 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12804: Manuscrito(s) (Luís Graça) (25): O Pepito que eu conheci... em 16/2/2006 e que, no fim da conversa de 1 hora, me fez um pedido algo insólito: um obus 14 para o Núcleo Museológico Memória de Guiledje...


Joana Graça (2014): Africa > Homenagem ao Pepito 1 > Acrílico com digital,  40 x 30 cm.



Joana Graça (2014): Tabanca Grande: caixa de histórias > Homenagem ao Pepito 2 > Técnica mista, colagens e digital,  30 x 20 x 15.

Fotos: © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados.



1. Conheci, pessoalmente, o Carlos Schwarz da Silva, Pepito (1949-20014),  em 16/2/2006...

Ele costumava, por essa altura do ano, vir a Lisboa, para passar os anos da sua mãe, Clara Schwarz, hoje uma veneranda senhora, de 99 anos, de origem judia, de pai polaco e mãe russa, mas portuguesa de gema, nascida em Lisboa, a 14 de fevereiro de 1915, casada com o caboverdiano Artur Augusto Silva (1912-1983).

Já nos conhecíamos do blogue, por intermédio do saudoso Zé Neto (1929-2007). Foi ele que me falou do Pepito e do seu projeto museológico de Guileje.

Como prometido, o Pepito esteve  connosco, nesse dia já longínquo de 16/2/2006:  com o Zé Neto (de manhã, na Fundação Marquês de Valle For) e comigo (à tarde, no meu local de trabalho, na Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de  Lisboa).

Foi muita gentileza, da parte dele, ter-se deslocado só para me conhecer pessoalmente, dar-me notícias da sua terra (que ele amava com um coração muito grande), e falar-me, com entusiasmo contagiante, da menina dos seus olhos - que era então o Projecto Guiledje (com dj, como ele gostava de grafar Guileje).

Capa do livro de contos de Artur
Augusto Silva (1912-1983)
 (Bissau, edção de autor, 2006)
Na altura fez questão de presentear-me com o livro de contos do seu pai, Artur Augusto Silva (Ilha Brava, Cabo Verde, 1912- Bissau, 1983), um homem de leis e de cultura, amante da justiça e da liberdade: O Cativeiro dos Bichos era o título de uma colectânea de 25 contos, selecionados pelos seus filhos, Henrique, João e Carlos Schwarz, alguns dos quais tinha sido escritos na prisão de Caxias, em 1966. O  livro tinha acabado de ser editado em Bissau (Fevereiro de 2006, edição de autor).

A conversa, de cerca de 1 hora, que tive com o Pepito (ninguém o conhecia, em Lisboa ou em Bissau, por Carlos Schwarz da Silva, nem quando fora ministro dos transportes num governo de transição antes do golpe de Estado de 1998) só pecou por ser curta... Mas deu para, de imediato, eu fazer mais um amigo guineense...

Bem razão tinha o capitão Zé Neto quando um mês antes tinha escrito sobre o Pepito o seguinte:

" (...) Eu conheço pessoalmente o engº Carlos Schwarz da Silva, o nosso Pepito. Passei uma tarde a conversar com ele em casa do nosso amigo comum, engº António Estácio. Eles foram colegas de infância e condiscípulos, pois o Estácio também é guineense.

"Tenho a pretensão de conhecer o carácter dos homens ao fim de dois dedos de conversa. Não tão cientificamente como tu, profissional do ramo, mas, como dizia o outro, raramente me engano.

"E asseguro-te que o Pepito é do melhor que há. Talvez um pouco sonhador, porque abdica duma vida confortável que poderia gozar cá em Portugal, em troca das mil e uma tarefas que desenvolve na sua querida Guiné em prol do seu povo. É fácil entender que o seu espírito superior choca com certo primitivismo que grassa naquela região, mas não desiste e essa é a qualidade que faz dele um amigo que muito admiro e a quem dispenso a minha modestíssima colaboração sem reticências.

"Quando ele vier, para o mês que vem, vais confirmar o quer te digo" (...).

De imediato comfirmei a opinião do Zé Neto, que era de facto um grande conhecedor da natureza humana. Para mim,foi um privilégio conhecer, ao vivo, uma pessoa com a qualidade humana do Pepito.




Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > 2005 > Núcleo Museológico Memória de Guiledje > 

Antigos combatentes do Exército Português em Guileje, e que viviam no quartel.  O seu conhecimento do terreno permitiu mais facilmente a localização de cada um dos edifícios do quartel.

Foto: © AD - Acção para o Desenvolvimento  (2005) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


2. No seguimento da nossa conversa, no meu gabinete, na Escola Nacional de Saúde Pública, o Pepito, jà quase à despedida, veio-me fazer um pedido algo insólito: ele precisava de um obus 14...

Para quê ? Para pôr no seu Núcleo Museológico Memória de Guileje, a criar a partir da reconstrução do nosso antigo aquartelamento, abandonado em 22/5/1973... E eu repliquei, no blogue, esse pedido:
- Camaradas, algum de vocês sabe de um velho obus 14, para aí abandonado num qualquer ferro-velho da tropa ? Se souberem, digam-nos... Levá-lo até Guileje será outra carga de trabalhos, mas até lá folgam as costas...



Guiné > Região de Tombali > Bedanda > CCAÇ 6 > Agosto de 1972 > O temível obus 14 [140 mm] em ação... à noite.

(...) "O Obus 14 cm (...), de origem inglesa, foi  recebido em Portugal, em 1943, para equipar as Unidades de Artilharia pesada, substituindo os  Obuses 15 cm T.R. m/918 e 15 cm / 30 m/41. O Obus foi concebido para tracção auto exercida  pelo camião tractor de 8 ton A.E.C. (Matador)  4x4 MA/46 e pelo camião tractor de 8 ton Magirus  – Deutz 4x4 MA78. Serviu operacionalmente nos teatros de guerra da Guiné, Angola e Moçambique,  entre 1961 e 1974, tendo sido substituído, em 1987, pelo Obus M114 155mm/23"... O obus 14 pesava mais de 6 toneladas... Cada granada pesava c. 45 kg...  Tunha um alcance de c. 15 km... e uma cadência de tiro de 2 granadas por minuto... Tinha uma guarnição de 10 militares... (Fonte: sítio do  Exercito Português).

Foto: © Vasco Santos (2011) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.



Ele falou-me com entusiasmo do progresso das escavações efetuadas pelo pessoal da AD e população local no antigo aquarteklamento de Guileje. Nas limpezas e escavações até então feitas feitas,tinham já sido encontros e recuoperados objectos do quotidiano dos militares portugueses,  alguns curiosos como garrafas de cerveja com o rótulo de papel intacto ou garrafas de sumo de laranja - de um conhecido fabricante de refrigerantes de então, com sede em Venda do Pinheiro, Mafra...

Divertidas, para o Pepito, eram as manifestações de humor (e de carinho) dos fulas para com os seus antigos camaradas de guerra, metropolitanos: ele  referiu-se às gravações audio que estavam a fazer e em que os antigas combatentes fulas, que estiveram do lado das NT, imitavam descaradamente os tugas, quando estes estavam debaixo de pressão (na época ainda não se usava o termo stresse...):
- Seus c...lhos...! Seus ca...ões! Seus s... nas! Seus filhos... da p...!

O Pepito prometeu-me depois mandar alguns excertos dessas gravações áudio, reveladoras do superior sentido de humor fula... E comentei-lhe:
- Ora quem diria! ... Eu, pessoalmente, sempre os achei inteligentes e com grande capacidade para negociar e estabelecer alianças estratégicas.

O Pepito também corroborou este ponto de vista: os fulas eram um povo  orientado para o poder, aliaram-se ao Spínola contra o Amílcar Cabral; e depois ao Luís Cabral, a seguir à independência, contra os balantas...

Lisboa, ENSP/UNL, 13 de julho de 2007 >
 Pepito no meu gabinete. Foto  de L.G.
Como diria o Príncipe de Salinas, protagonista do filme O Leopardo (Visconti, 1963), eles eram os leopardos, os leões, enquanto os novos vencedores - que se aliaram ao PAIGC - não passavam de chacais e de hienas... Mesmo assim, eles tinham a consciência de que, presas e predadoras, têm de coexistir (mais ou menos pacificamente) naquela terra, que é a sua terra...

O Pepito mostrou-se, por outro lado, deveras impressionado com o que estava a acontecer com o nosso blogue e o ritmo de produção das nossas memórias... E eu, na altura, avancei com uma explicação de vulgata sociológica:

 (i) a nossa geração, os machos, tinham  mais ou menos à sua frente quinze anos a vinte de 
esperança média de vida;

(ii) para muitos de nós, a experiência da guerra colonial terá sido porventura o acontecimento maior, talvez o mais  emociante, das nossas vidas cinzentas;

(iii) tivemos a sorte de sobreviver e, ao fim de cinco anos, retomar a marcha do comboio, não contando com os que ficaram precocemente pelo caminho: os mortos, os traumatizados, os inadaptados, os desadaptados, os cacimbados;

(iv) muitos de nós já tinham deixado (ou estavam em vias de deixar) a vida activa e sentiam o vazio do presente: os filhos que partiram, os netos que só se veem nos dias festivos, as companheiras que sempre se recusaram a partilhar essa experiência, a guerra, que é uma actividade de machos;

(v) enfim, a memória seletiva do passado, a disponibilidade de tempo, a redescoberta da camaradagem, o apelo dos verdes anos..



Lisboa > Universidade Nova de Lisboa > Escola Nacional de Saúde Pública > 13 de Julho de 2006 > Três homens de Guileje!... Visita de cortesia e reunião de trabalho do Pepito (AD - Acção para o Desenvolvimento) - na foto, ao centro - e dois dos amigos que o apoiam no seu Projecto Guiledje: O capitão Zé Neto (à esquerda) e o coronel Nuno Rubim, especialista em história da artilharia (à direita). Os membros eram então membros, da primeira hora, da  nossa Tabanca Grande. O anfitrião fui eu.

Almoçámos juntos (tivémos a agradável surpresa da visita, embora rápida, do José Martins, que trabalhava, na épcoa, no MARN e que passou pela Av Padre Cruz a caminho do médico para uma consulta de rotina). Fizemos o ponto da situação do Projecto Guiledje, contámos histórias, conhecemo-nos pessoalmente (do grupo, eu só conhecia o Pepito, embora já tivesse falado ao telefone com o Zé Neto e o Nuno Rubim).

Tal como Pepito, o Zé Neto, infelizmente, já não está entre nós. O nosso querido Zé Neto (ex-2º sargento da CART 1613, Guileje, 1967/68, e na altura capitão reformado, com 10 anos de Macau), era o veterano da nossa tertúlia, na altura. Era um pessoa dotada  de uma invejável energia e de uma memória fabulosa.  Foi o primeiro "tertuliano" a falecer, em 2007.

 Quanto ao Nuno Rubim, ex-capitão da CCAÇ 726, Guileje, 1964/74, é bom que se recorde que foi um dos oficiais mais condecorados da Guiné (onde fez duas comissões). É hoje coronel na reforma e historiador militar. Teve a gentileza de me oferecer um das suas publicações, além de um CD-ROm com os seus trabalhos.... Por razões de saúde, também está retirado doas nossas lides bloguísticas. Falei-lhe, ainda há relativamente pouco tempo, pelo telefone.

Foto: © Luís Graça (2006). Todo os direitos reservados.


3. Sabendo das suas suas obrigações como diretor executuivo da AD e das dificuldades de comunicações da Guiné-Bissau com o mundo exterior, o Pepito surpreendeu-me, na altura,  ao dizer-me que não dispensava a visualização diária do nosso blogue. Achava que este fenómeno (a vontade de abrir o livro, o baú da memória...) também estava a acontecer na Guiné: os antigos combatentes, de um lado e do outro,  sentiam necessidade de falar do passado e passar a escrito (ou ao videogravador) as suas memórias... A necessidade de falar da luta, na cidade ou nas matas, com alguém...

Grande parte da memória (escrita) de guerra de libertação, na posse do PAIGC, dos seus militantes e ex-militantes, desapareceu, foi destruída, extraviou-se ou ficou reduzida ao Arquivo Amílcar Cabral, em boa hora tratado e preservado pela Fundação Mário Soares.

Há um sério risco da geração pós-independência ver amputada uma grande parte da memória do seu povo, a luta pela independência, a difícil construção da Guiné-Bissau, a revolução que devorou os seus filhos, a fabricação dos novos mitos, os ajustes de contas, o cinismo pós-revolucionário, a subversão de valores...

Daí que o Pepito e os seus colaboradores da AD - Acção para o Desenvolvimento estivessem  afanosamente a gravar depoimentos dos antigos combatentes e habitantes de Guileje... Começaram pelas bases, mais acessíveis e espontâneas... Numa segunda fase, esperavam poder entrevistar os dirigentes, os comandantes operacionais, os comissários políticos, quando as defesas psicológicas e as pressões dos pares se começassem a quebrar ou a esbater...

Respondi-lhe que nós também cá tínhamos esse problema: como dissera uma vez  o Jorge Cabral, ainda havia, na época, muito boa gente (militar) com culpa e vergonha de ter feito a guerra da Guiné, a começar pelos nossos oficiais superiores... A hierarquia militar não nos  parecia ainda disposta a dar a senha e a contra-senha de acesso aos arquivos militares da guerra colonial...

O que o Pepito e a sua ONG estavam então  a fazer era, na  minha opinião,  um trabalho meritório e sobretudo patriótico, com dividendos para o futuro... Foi o que transmiti ao Pepito; não há futuro para um povo que tenha perdido a memória, a historicidade e a identidade.  E o tempo urgia, porquanto a geração que fez a guerra colonial (ou a guerra de libertação, conforme os lados da barricada), estava a desaparecer... Mais rapidamente na Guiné, devido à menor esperança média de vida à nascença dos homens guineenses da geração da guerra...

Também falámos da  situação económica, social e política da Guiné-Bissau, nessa épcoca (2006).  Dos medos e das esperanças que os guineenses sentiam em relação ao futuro. Do retorno à pertença e à identidade étnicas, na ausência de um Estado de direito que garantisse a proteção e o respeito do indivíduo e da sua família... Dos terríveis acontecimentos de 1998, que levaram o Pepito e a família a refugiar-se em Cabo Verde, terra de seu pai... E do doloroso regresso a Bissau, um ano e tal depois, o retorno à casa, no bairro do Quelelé,  completamente pilhada, violada, destruída... Os livros, as fotografias, as memórias de uma vida...

O que foi espantoso, para mim,  foi  ouvir este homem, que era um profissional do optimismo, contar isto sem ódio, sem ressentimento, sem rancor, qause sem mágoa... Tinha vindo a recuperar algumas coisas, com emoção: uns negativos, umas cartas, uns livros... E isso era suficiente para lhe dar alento e força para retormar a picada de uma vida, fértil de acontecimentos, sonhos, emoções, projetos, realizações...



Seta de sinalização de um dos antigos espaldões da artilharia.
Foto: © Carlos Afeitos (2013).  Todo os direitos reservados.

Para além das suas obrigações como deputado (por Contuboel, e independente, se bem recordo), o que mais lhe dava gozo era viajar de jipe - apesar dos problemas de coluna de que já sofria, em consequência dos milhares de quilómetros feitos através das picadas da Guiné... E estar no sul, em Iemberém ou em Guileje, com os seus amigos e vizinhos... A Mata do Cantanhez, o futuro Parque Transfronteiriço do Cantanhez, era um espanto, com riquíssima fora e fauna - onde se incluíam elefantes e chimpanzés ! - e, felizmente, ainda então ao abrigo, devido ao seu isolamento, dos apetites vorazes da clique político-militar no poder em Bissau e em Conacri...

Last but not the least, o Pepito também gostaria de ter contactos com todas as companhias que passaram por Guileje e, se possível, ter acesso a uma resumo da sua actividade operacional na região. Disse-lhe que esse pedido não seria  difícil de conseguir... Mais difícil seria desencantar, adquirir, encaixotar e transportar o raio do obus 14!... E a verdade é que o tempo passou e a gente esqueceu-se mesmo do obus!... Mas seguramente não vamos esquecer-nos do nosso querido amigo Pepito!...Dele e do Zé Neto, o primeiro a falar-me do Pepito.

Até sempre, amigos Pepito e Zé Neto! Um alfabravo para o Nuno Rubim a quem desejo saúde e longa vida.
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sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Guiné 63/74 - P12714: Notas de leitura (562): "Usos e Costumes Jurídicos dos Fulas da Guiné-Bissau", por Artur Augusto da Silva (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Fevereiro de 2014:

Queridos amigos,
Artur Augusto da Silva foi um estudioso das coisas guineenses, deixou uma bela obra que merece ser visitada e até atualizada, tanto dos trabalhos jurídicos como etnográficos, antropológicos e até literários.
Esta publicação surgiu em 1958, a introdução recorda que havia o imperativo de estudar com rigor o homem africano, haviam tensões de regressar à autenticidade sem cuidar de que o europeu forjara uma imagem de África e que o assimilado pairava entre as duas culturas, impunha-se, escreve Artur Augusto da Silva, apurar e deslindar as transformações operadas e não suscitar uma imagem de desenvolvimento ao arrepio da longa trajetória do homem africano.
Mensagem premonitória, como se sabe.

Um abraço do
Mário


Usos e costumes jurídicos dos Fulas na Guiné-Bissau

Beja Santos

Artur Augusto da Silva é um nome sonante da investigação na Guiné-Bissau, ao longo de décadas o seu nome impôs-se como referência em trabalhos jurídicos e estudos associados à etnologia e etnografia guineenses. “Usos e costumes jurídicos dos Fulas na Guiné-Bissau” teve a sua primeira edição em 1958 e recebeu o prémio Frei João dos Santos; a edição a que nos reportamos é a terceira, edição DEDILD.

As surpresas começam na introdução, quando o autor, um assumido profissional de Direito, esclarece que o seu trabalho não é estritamente jurídico, visa sobretudo chamar a atenção para a necessidade de se conhecer o homem africano. Parte de um esclarecimento, os contactos culturais entre colonizadores e colonizados e aflora a criação do Estado independente do Gana. E diz algo que tem uma carga premonitória: “A independência de regiões africanas não soluciona o problema fundamental em que a África Negra moderna se debate e que consiste em encontrar uma fórmula de organização socioeconómica capaz de substituir a tradicional organização patriarcal (…) Os Estados que na África Negra se criarem, permanecerão durante muitos anos numa espécie de caos político, financeiro e cultural que os conduzirá diretamente à dependência política ou económica de outro Estado, obrigando-se os povos a passar por uma fase de anarquia, com todo o cortejo de inconvenientes”. Para obviar tais dramas, Artur Augusto da Silva entende que se deve ter um conhecimento, o mais exato possível, da realidade do homem africano, da sua organização tradicional, da sua evolução, deve atentar-se que o homem africano subordina inteiramente todos os atos da vida à sua religião, que esta comanda, com cega impiedade, as suas ações, há um abismo psíquico que separa o europeu do africano. Tece considerações pertinentes sobre os assimilados, fazendo notar que no Congresso dos Escritores e Artistas Negros, realizado em Paris em 1956, dominava a reivindicação de encontrar o verdadeiro caminho tradicional, uma recusa na assimilação, havendo mesmo quem dissesse que o assimilado é um desenraizado. O remédio, comenta sobre quem estuda a história de África, é a aprofundar a realidade africana para que se prova prever e construir o futuro de África.

Centrando-se nas questões guineenses, o autor expende considerações sobre os povos onde se movem os Fulas, enfatiza o papel da dependência familiar, as cerimónias de iniciação, o poder conferido à classe dos velhos e estabelece uma destrinça entre as atividades culturais e lúdicas dos islamizados face aos animistas. E assim se chega ao Direito Fula, que é de raiz corânica e enuncia os dados fundamentais da lei canónica islâmica.

Convém não esquecer que este estudo foi publicado em 1958, para se entender o contexto dos dados expendidos. Diz o autor que os Fulas habitam várias regiões dos territórios franceses e ingleses, receberam o islamismo através de outros povos africanos, adulterado por interpretações primárias, só recentemente é que se vieram impor normas reguladoras. A diferença fundamental entre o Direito Fula e o Direito europeu reside que, “no primeiro, a regra de conduta não é feita, pois representa uma parte da vida da coletividade enquanto, no segundo, as regras derivam de uma vontade deliberada e consciente da pessoa ou pessoas investidas de autoridade legislativa. Para o Fula o direito é anterior à pessoa enquanto para os europeus o direito é um produto dos homens”.

Os Fulas não dispõem de organização judiciária, é no topo da hierarquia que existe um conselho que dirime conflitos e profere sentenças. Ao tempo as decisões dos régulos tinham perdido força coerciva, a potência colonial, através do administrador, retirara poderes de vida e de morte aos régulos.

A autoridade do marido é absoluta; entre os Fulas, como, aliás, entre a totalidade dos negros muçulmanos, as práticas pré-islâmicas impuseram-se de tal forma que a condição da mulher e dos filhos está imensamente favorecida. O autor estuda o papel do pater famílias, a natureza dos parentescos familiares, a filiação legítima, os graus de parentesco, o pedido de casamento, o divórcio, a aceitação do concubinato.

Passando para o Direito das Obrigações, o autor fala das obrigações no sentido técnico e nas obrigações como dever moral. Apresenta os contratos de aluguer e arrendamento, de prestação de serviço, de venda e troca e de empréstimo. Com a acrescida presença colonial, muitos destes contratos ganharam efetividade. Nos centros urbanos, os Fulas arrendam casas mediante retribuição de dinheiro, o contrato de aluguer pode versar sobre diversos objetos, no passado era feito em géneros e só ultimamente o é em dinheiro. O autor fala das provas do Direito Fula, mencionando que a demonstração da verdade dos factos podia ser feita por: documentos e exames; testemunhas; juramento; ordálios.

Do maior interesse é o que o autor refere quanto aos direitos reais, assim observado: “Ainda há quarenta anos, o regime de propriedade imobiliária assemelhava-se ao do feudalismo europeu e a organização social mantinha muitos pontos de contacto com a feudal. A administração das terras pertencia ao régulo que as dava, em recompensa de serviços, aos chefes das povoações mas só em usufruto, com a obrigação de pagarem anualmente um certo tributo. As terras eram consideradas como propriedades da coletividade, essa propriedade era administrada pelo chefe que fazia suas as rendas ou tributos. O Direito Fula não chegou a criar uma teoria dos direitos reais, e o autor expende considerações sobre o conceito Fula de Direitos aplicado à propriedade, aos terrenos destinados a pascigo de gado, meios de transporte (como canoas) e distingue a propriedade pública da propriedade privada".

Os direitos de sucessão obviamente que se subordinam à lei corânica. Assim quando um individuo não deixa descendentes, a herança cabe aos ascendentes; o pai ou o avô herda a totalidade, caso não haja filhos, quando há um só filho, mas o pai ou avô está vivo, a herança defere-se ao ascendente num terço e ao descendente no restante.

E temos finalmente o Direito Penal, já ao tempo posto de parte pelo direito ocidental, só nos casos de pequena gravidade se aplicava o direito costumeiro Fula. E o autor observa: “Os Fulas, em todas as regiões onde habitam, desde cedo se aproximaram dos colonizadores europeus a quem ajudaram grandemente nas lutas de pacificação dos territórios. Os Fulas apresentaram-se perante os outros povos de África como conquistadores – colonizadores, tal como os europeus. Hostilizados pelos outros povos da raça negra por motivos políticos e religiosos, só a aliança com os novos conquistadores lhes permitiram subsistir (…) Os Fulas, dada a sua aproximação voluntária e colaboração com os colonizadores, modificaram as suas instituições e, daí, o seu abandono do sistema penal em que viveram”. E o autor passa em revista o antigo Direito Penal dos Fulas, penas que iam desde as vergastadas, torturas diversas, multas e até a morte.

Documento precioso, atendendo à data em que foi redigido e as observações políticas, lança um subtil aviso à necessidade de perceber os fundamentos socioculturais do homem africano, num tempo em que se anunciava a preparação das independências.

Para ler na integra este artigo, sugere-se a consulta do site:

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Nota do editor

Último poste da série de 10 DE FEVEREIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12705: Notas de leitura (561): A descolonização da Guiné: Depoimentos de protagonistas - Parte 2 de 4 (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11094: Memória dos lugares (212): Ilha da Brava, Sotavento, Cabo Verde... Em homenagem a Clara Schwarz (n. 1915, Lisboa) e ao seu saudoso cretcheu Artur Augusto Silva (1912, Brava -1983, Bissau) (João Graça / Luís Graça)









Cabo Verde > Ilha da Brava > 6 de novembro de 2012 > Algumas fotos da ilha onde nasceu o grande poeta Eugénio Tavares (1867-1930)... mas também Artur Augusto Silva (1912-1983), advogado, jurista, estudioso dos usos e costumes dos fulas, mandingas e nalus da Guiné, poeta, contista, pai do nosso amigo Pepito e o grande amor da vida de Clara Schwarz da Silva, que hoje faz 98 anos, sendo a decana da nossa Tabanca Grande... ["Brava é uma ilha e concelho do Sotavento de Cabo Verde. A sua maior povoação é a vila de Nova Sintra. O único concelho da ilha tem cerca de sete mil habitantes. Com 67 km², Brava é a menor das ilhas habitadas de Cabo Verde, e tem uma densidade populacional de 101,49/km². A ilha tem uma escola, um liceu, uma igreja e uma praça, a Praça Eugénio Tavares". Fonte: Wikipédia]

É em homenagem desta grande senhora (, ela própra um monumento à vida,  ao amor, à inteligência e à coragem,) que hoje publicamos fotos recentes da Ilha da Brava, tiradas pelo nosso grã-tabanqueiro João Graça, aquando do Festival Sete Sóis Sete Luas, 20ª edição. Elas estavam aqui prometidas, para este dia, aos nossos amigos Pepito e Clara [, foto à esquerda, em 1947, subindo o Chiado, com o marido, Artur Augusto Silva: foto gentilmente cedida pelo Pepito].

Para além dos laços que nos unem a todos, aqui na Tabanca Grande, a Clara Schwarz dá-nos o privilégio de ser nossa amiga, minha, do  João Graça, da Alice e da Joana. Queremos homenageá-la, neste dia tão especial em que celebra as suas 98 primaveras (!), não só com essas fotos recentes da terra do seu "cretcheu", mas também com  um poema de Eugénio Tavares, "Força de Cretcheu",  talvez "o mais belo poema e a mais bela canção de amor de Eugénio Tavares", na opinião dos especialistas da sua obra, Carlota de Barros e Viriato de Barros)...

[Ouvir aqui uma interpretação deste poema na "voz de ouro" da cantora Gardénia Benrós, artista cabo verdiana que vive nos Estados Unidos...É também a nossa homemagem a todos os "(e)ternos namorados" da Nossa Tabanca Grande, justamente no Dia dos Namorados, e muito em especial a todos as nossas queridas mulheres...][LG].


Força de Cretcheu
por Eugénio Tavares

Ca tem nada nes' vida
mas grande qui amor,
se Deus ca tem medida,
amor inda é maior,
amor inda ê maior
maior que mar, que céu
ma de entre otos cretcheu
di meu inda ê maior

Crecheu más sabe,
É quel que é de meu.
El é que é chabe
Que abrim nha ceu...
Crecheu mas sabe
É quel
Que q'rem...
Se já'n perdel
Morte já bem...

Ó força de cretcheu,
Abri nha asa em flor
Pam pode subi ceu,
Pam bá pidi simenti
De amor coma es di meu,
Pam bem da tudo gente,
Pa tudo conchê céu! 


[Fonte: EugenioTavares.org. Reproduzido com a devida vénia...]

Fotos: © João Graça (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: LG]
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Nota do editor:

domingo, 3 de junho de 2012

Guiné 63/74 - P9987: Ser solidário (129): Carlos Schwarz da Silva, Pepito, nosso amigo, grande guineense e ainda melhor ser humano, precisa do nosso apoio, nesta hora difícil: mandem-lhe um mail para o endereço adbissau.ad@gmail.com (Luís Graça)




Vídeo: 10' 01'' > Cortesia de RTP2 / Maria João Guardão (2011)... Disponível na conta You Tube > NEAUNL - Núcleo de Estudantes Africanos da Universidade Nova de Lisboa


1. Carlos Schwarz da Silva, mais conhecido por (i) Schwarz, entre os amigos portugueses quando era estudante do ISA - Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa, antes do 25 de abril de 1974, e (ii) Pepito, para os guineenses, seus compatriotas...  


Foi uma das vinte personalidades escolhidas pela realizadora do programa "Eu Sou África", Maria João Guardão, para ilustrar a ideia de que a África, a África dorida e sofrida de ontem e de hoje, é um continente de esperança e de futuro. O programa, em dez episódios, passou na RTP2, e na RTP África, o ano passado (*).  Na altura, a 9/4/2011, a realizadora do programa, Maria João Guardão, mandou-nos uma sinopse do vídeo, com a seguinte mensagem:


_________________

Caro Luis Graça, sou realizadora de uma serie documental - EU SOU AFRICA - , cujo último episódio se mostra hoje na RTP2, 19h. Sucede que este último episódio se fez com e à volta de Carlos Schwarz da Silva, Pepito, e dos seus. E sucede ainda que a primeira vez que li a história da vida dele foi no auto-retrato publicado na sua Tabanca. Portanto, este email - info + agradecimentos - segue com um enorme atraso (ainda pior porque me encontro fora de Portugal e com acesso limitado à Net) mas, espero, ainda a tempo - metade da serie passará ainda na RTP África, tem acesso à lista de exibição nos links que seguem com o att.  Obrigada e até sempre, Maria João. 
Maria João Guardão
DESMEDIDA Filmes
Rua Bernardim Ribeiro 63, 5D
1150-069 Lisboa.

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Pepito (10º episódio) e A
ugusta Henriques (2º episódio) representam, de alma e coração, a Guiné-Bissau, o melhor da Guiné-Bissau. São dois guineenses que honram a sua pátria, e orgulham o seu povo. São de origem portuguesa, ou têm ADN português. E foram escolhidos justamente porque "trazem esperança ao seu país". 


No caso concreto do Pepito, que nos honra com a sua amizade, e que é nosso grã-tabanqueiro de longa data (desde finais de 2005), é além disso um  ser humano de grande verticalidade e um cidadão de grande coragem, física e moral, por cuja vida, liberdade  e segurança, temos mais do que uma vez temido, nós os  seus amigos, muitos dos quais aqui representados na Tabanca Grande.

Estamos mais tranquilos depois do mail que nos mandou às 23h de ontem. Ele pelo menos tranquilizou-nos. Mas queremos assegurar-nos que a sua liberdade de circulação (dentro e fora do país), a sua integridade física e a continuidade do seu trabalho na AD não estão em causa:

"(...) Enquanto conselheiro da área produtiva do PM Carlos Gomes Junior, foi-me atribuido, como a todos os outros na mesma circunstância, um passaporte diplomático. Eles apenas me vão tirar esse passaporte. Já há uma semana que estava a tratar de renovar o meu ordinário, que é bom e chega para o que eu quero fazer".

De qualquer modo, mais uma vez, ele está a precisar do nosso apoio, da nossa solidariedade, ele que nunca regateou o apoio e a solidariedade aos que precisam, nomeadamente ao povo humilde da sua terra, às crianças, às mulheres e aos homens guineenses que beneficiam do trabalho da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento. É bom que ele saiba, ele, a sua família, os seus colaboradores,  mas também os seus compatriotas, na Guiné e na diáspora guineense, que os amigos são sempre para as ocasiões, sobretudo para as ocasiões mais difíceis. Felizmente que ele tem muitos amigos, aqui e em todo o mundo... Mesmo assim, e para comprovar isso mesmo, escrevan-lhe oara a nossa caixa de comentários e/ou mandem-lhe um mail, com uma pequena mensagem de amizade e/ou solidariedade... O endereço
é: adbissau.ad@gmail.com .


O vídeo que reproduzimos hoje (cortesia da RTP 2 e da  realizadora Maria João Guardão) foi visto por alguns de nós, na devida altura (*)... Ao tempo, a realizadora contactou-nos pedindo a sua divulgação através do nosso blogue. Mas muitos dos membros da nossa Tabanca Grande, e dos leitores que seguem o nosso blogue, de há um ano a esta parte, nunca viram  o vídeo, que passou no programa Eu Sou África , na RTP2, RTP África, RTP Internacional... Justifica-se, pois, a sua   incorporação neste poste (**), com a devida vénia ao produtor e ao realizadora, bem, como à RTP 2.


Como ele próprio o diz, logo no íncio do vídeo, o Pepito nasceu em 1949 na "maternidade Simão Mendes", em Bissau, onde 30 anos depois nasceria a sua  filha mais nova. Ele é casado com a portuguesa Isabel Levy Ribeiro, sendo ambos engenheiros agrónomos.


Em 1949 o hospital principal de Bissau teria seguramente outro nome. (Como é sabido, Simão Mendes é nome de um enfermeiro que morreu ao serviço do PAIGC, durante a guerra colonial). Mas esse pormenor é agora de somenos importância.


Na altura os pais do Pepito, Artur Augusto da Silva, já falecido (em 1983)  e Clara Schwarz (a decana do nosso blogue), estavam na Guiné há 2 anos... Os seus avós paternos eram de Farim. Os maternos eram, o avô, polaco, e a avó, russa, ambos de origem judia...O resto da história deste homem, de grande generosidade e humanidade, é contada em 10 minutos neste vídeo... Leia-se, em complemento, a informação a seguir recolhida, há um ano atrás, no sítio da RTP sobre este programa (Eu Sou África, RTP2, 2011).

Para ele vai, daqui de Lisboa, para ele, família e colaboradores mais próximos, um abraço solidário do tamanho do Rio Geba e do Rio Tejo juntos!... Temos orgulho em ti, Pepito!... E parafraseando Italo Calvino, lembraremos aqui aos ditadores e aprendizes de ditadores no mundo que "não é a voz que a dirige a história, mas sim o ouvido"... Não é a voz dos que gritam mais alto, porque têm momentaneamente o poder de comando, mas sim o ouvido daqueles que tendem a ser tratados como a maioria silenciosa... E já lá vai o tempo em que os ditadores morriam tranquilamente na cama e iam para o céu... LG

2. RTP / RTP2 > A história de 10 pessoas contada em episódios


Género: Documentário
Ficha Técnica: Produção: Vitrimedia: Realização: Maria João Guardão

Eu Sou África é uma série documental de 10 episódios, dois por cada um dos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa) Angola, Moçambique, Cabo-Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. 

Cada um dos filmes desta série retrata a vida e a obra de um(a) africano(a) implicado(a) na história e no desenvolvimento social, político e cultural do país onde nasceu. Eu Sou África revela dez heróis desconhecidos do grande público e desfaz os lugares comuns depreciativos da realidade dos PALOP.

Na diversidade das suas experiências e reflexões, o que estes dez africanos dão a ver é a emergência de uma nova África de língua portuguesa – um lugar em que a esperança tem toda a razão de ser. O último episódio é dedicado à Guiné-Bissau e a um dos seus filhos, co-fundador e director executivo da ONG AD- Acção para o Desenvolvimento.

Carlos Schwarz da Silva [Pepito]

Carlos Schwarz da Silva, guineense nascido em [Bissau], em 1949, só exerceu o nome enquanto se fazia engenheiro agrónomo em Lisboa, ao mesmo tempo que se diplomava na luta estudantil contra a ditadura. Na Guiné Bissau, todos o conhecem como Pepito, lutador incansável contra as más práticas de Estado, mas sobretudo contra a fome, pela cidadania e pelo desenvolvimento.

Fundador do pioneiro DEPA (Departamento de Experimentação e Pesquisa Agrícola) e da ONG Ação para o Desenvolvimento (AD), deputado, neto de polacos que sobreviveram ao Gueto de Varsóvia, filho de um jurista nacionalista preso pela PIDE, pai de 3 filhos, avô de 2 netos, Pepito é, nas palavras dos anciãos balantas, um homem grande.

Testemunha o 25 de Abril frente ao quartel do Carmo, com a mulher, Isabel Lévy Ribeiro, e juntos regressam a Bissau, determinados a viver intensamente o tempo histórico que lhes coube. Com 25 anos e um diploma na mão, Pepito sabe principalmente que quer mobilizar as pessoas para a acção, mesmo que isso signifique recomeçar inúmeras vezes do zero. Ele e os seus recomeçaram sempre.

A viagem que fazemos, de Bissau à Floresta de Cantanhez – dois dos pólos de acção da AD – , é uma travessia pela sabedoria de um país repleto de singularidades. “A Guiné Bissau tem trinta e duas etnias: são trinta e duas maneiras de pensar diferente, de dançar diferente, de fazer cultura diferente, de filosofias de vida diferentes. É uma riqueza extraordinária se todas forem consideradas elementos que potenciam a união”.

São estes saberes que Pepito privilegia – contrariando leis ou métodos impostos pelo exterior –nas reuniões com os mais velhos, na festa com os mais novos, nas conversas com mulheres e homens de experiências variadas, muitos dos quais ousaram seguir as práticas informais e eficazes que a equipa do engenheiro agrónomo foi pesquisando e testando, um projecto que se declina na agricultura e no eco-turismo, mas também nas Escolas de Verificação Ambiental, nas televisões e rádios comunitárias. Nas tabancas do sul, no antigo quartel de Guiledge – marco crucial da luta pela independência, memória viva -, em Quelélé, o que está em marcha é a luta contínua pela cidadania e por condições de vida dignas para os guineenses. 



(Com a devida vénia à RTP / RTP 2)


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Notas do editor:


(*) Vd. poste de 4 de abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8049: Agenda Cultural (114): Eu sou África, um documentário dedicado ao Cantanhez, à AD - Acção para o Desenvolvimento e a um homem especial, o nosso amigo Pepito, na RTP2, 9 de Abril, sábado, 19h00

(**) Último poste da série > 2 de junho de 2012 > Guiné 63/74 - P9982: Ser solidário (128): O contentor da ONG Ajuda Amiga finalmente desalfandegado, aberto e distribuido o seu conteúdo (Carlos Silva / Carlos Fortunato)

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Guiné 63/74 - P9691: Notas de leitura (347): Arte Nalú, por Artur Augusto da Siva (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 23 de Fevereiro de 2012:

Queridos amigos,
O pretexto foi uma brochura sobre a arte Nalú, a autoria é de Artur Augusto da Silva. A escultura dos Nalús e dos Bijagós é disputada pelos grande colecionadores de arte africana, consideram-na como uma das mais criativas e originais formulações da encarnação dos deuses nos homens, animais e coisas. É uma escultura que pode ombrear com o sonho dos artistas plásticos inspirados pelo cubismo e abstracionismo, a partir dos anos 10 do século XX, simultaneamente austera e rude, luxuriante e barroca, talhada para se ver a madeira sem enfeites ou fácil de policromar, ao gosto do artesão.
Falando por mim, tenho lá à entrada de casa um Ninte-camalchole, peço-lhe sempre que me afaste dos maus espíritos.

Um abraço do
Mário


Arte Nalú, uma lembrança de Artur Augusto da Silva

Beja Santos Artur

Augusto da Silva dispensa apresentações, é um luso-guineense dos quatro costados e com uma larguíssima intervenção cultural. Aquando da 6.ª Conferência Internacional dos Africanistas Ocidentais, que se realizou em Bissau, o estudioso Artur Augusto da Silva apresentou um trabalho sobre a arte Nalú cujo preâmbulo é de irresistível transcrição:

“Costumam aqueles que se dedicam ao estudo e interpretação dos fenómenos artísticos e mais designadamente aqueles que estudam as chamadas artes plásticas prender-se unicamente ao aspeto estático da Arte, isto é: aos conteúdos estético e técnico das obras, negligenciando ou esquecendo totalmente que qualquer obra de arte é, sempre, fruto daquilo que preenche a vida espiritual do seu criador e que essa vida espiritual é condicionada, em primeiro lugar, pelas condições económicas do artista e da sua época. 

Assim, à análise estática da Arte, preferimos sempre o estudo dinâmico dela, isto é: a apreciação do seu conteúdo ou, como modernamente se diz, da sua mensagem. No estudo da arte Nalú procuramos surpreender as suas determinantes, as relações da sua arte com a necessidade de exprimir as preocupações dominantes do agregado social e ainda demonstrar que o meio ambiente condicionou o modo de vida, a sua organização económica e, como resultado desta organização, todas as superestruturas daí derivadas”.

Como é por todos sabido, a escultura é a manifestação artística em que se distinguem os Bijagós e os Nalús, são indiscutivelmente os artistas mais originais, pegam na figura humana ou animal ou em diferentes objetos e reproduzem-nos com uma criatividade sem rival. São igualmente dotados para o fabrico de instrumentos musicais e panos bordados, por exemplo, mas aqui já são domínios que encontram forte concorrência, pois os Mandingas e os Fulas intervêm com muito esmero no fabrico dos instrumentos musicais e a panaria Manjaca, na simplicidade geométrica do bordado, continua a fascinar pelo talento imaginativo.

Ao tempo desta comunicação, os Nalús mantinham-se praticamente insensíveis à catequese islâmica, viviam tranquilamente o animismo, eram as florestas do Sul que enquadravam a sua visão do mundo e o seu fascínio religioso, o seu panteão espelhava o que ele via na floresta, daí a imagem sagrada de certas árvores, o seu gosto apurado em reproduzi-las e o prazer estético que encontram no papel das máscaras e das aves, por exemplo.

Voltemos aos argumentos de Artur Augusto da Silva na referida comunicação. Apresenta os Nalús referindo que eram pouco mais de 3 mil de acordo com o senso populacional de 1950. São tipicamente continentais, terão sido empurrados para a orla conjuntamente com os Bagas, pelos Sossos vindos do Futa Djalon, sob a pressão dos Fulas. Habitam regiões da circunscrição de Catió, em Cacine, Bedanda e Cubisseco, na região de Fulacunda. Os Nalús não possuíam escrita mas dominavam a literatura oral (contos, poesias éticas, provérbios, canções que se transmitiam de geração em geração). O verosímil e o inverosímil andam de mãos dadas nessa literatura, que é também dado assente para a sua escultura, são prolongamentos da mesma realidade. Posicionados como um dos povos mais atrasados de África, dentro da sua conceção animista, é possível ver as suas esculturas com um significado misto de religioso e de entretenimento, o melhor exemplo poderá ser o da máscara que representa um chefe que será recordado e homenageado pelo artista, é a máscara que conserva essa energia, essas máscaras representam seres humanos que também podem ter sido mortos por cobras e é importante saber que a serpente é em toda a zoolatria Nalú o animal de maior prestígio, detém todos os poderes sobrenaturais.

A seguir Artur Augusto da Silva discreteia sobre a importância da figura totémica e o cruzamento que se pode encontrar com as diversas espécies zoológicas tão caras ao Nalú: o homem, a ave, a serpente, o crocodilo e o peixe. Estas são as máscaras que também servem para danças e folguedos. Um elevado número de objetos da escultura Nalú aparece associado ao rito da circuncisão, caso dos tambores que podem ser tocados nas festas do fanado e nos choros, o Ninte-camalchole, um pássaro apaziguador e que afasta os nossos espíritos e que é também um protetor daqueles que foram circuncisados. Todas estas esculturas são moradas para as forças que animam o mundo sobrenatural do Nalú.

Artur Augusto Silva conclui dizendo que esta escultura nasceu da necessidade de representar as forças a que nós chamamos religiosas e que esta arte muito provavelmente entrará em extinção caso os Nalús entrem na órbita do islamismo.

Como é também sabido, os Nalús, mais de 50 anos depois da comunicação de Artur Augusto Silva, continuam a ter pouca expressão populacional mas mantêm um domínio artístico que merece a reprodução dos artesãos das outras etnias. É admirável como 50 anos depois estes artesãos, sem quaisquer complexos, mesmo aqueles que praticam convictamente o islamismo, reproduzem as esculturas funerárias, as máscaras polícromas, as deusas da fecundidade e o Ninte-camalchote continua a ser a figura escultórica mais procurada e mais disputada pelos colecionadores. Eu próprio não resisti, quando estive na Guiné em Novembro de 2010 a encomendar uma ave que pudesse ser transportada num saco de mão. Gostei tanto dela que a propus ao Círculo de Leitores como o elemento gráfico da capa do meu livro Mulher Grande, sugestão que foi aceite, para minha satisfação.

Este trabalho de Artur Augusto da Silva é acompanhado de ilustrações dentro as quais reproduzimos um espantoso Ninte-camalchote de que conheci uma réplica de grande beleza no então Museu da Guiné Portuguesa e que desapareceu nos saques do conflito político-militar 1998-1999.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9679: Notas de leitura (346): A CCAÇ 2317 na Guerra da Guiné, Gandembel/Ponte Balana, de Idálio Reis (Mário Beja Santos)