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sábado, 20 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21094: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (15): Os Carolos



1. Em mensagem do dia 8 de Junho de 2020, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta Boa memória da sua paz, desta vez a história dos Carolos, primorosamente narrada.


BOAS MEMÓRIAS DA MINHA PAZ - 14

OS CAROLOS

- Ó primo, senta aí. Hoje vais ficar na Mesa Principal.
- Não. Como assim? Sabes que não sou nada neste mundo da cortiça. - protestei um pouco confuso.

Era o industrial Adérito Carolo, que estava duplamente feliz: com a presença a seu lado do seu filho Aldino, que representava ali o sogro, o grande industrial António Almada e, ainda, com a de outro grande, Álvaro Gato, (que obrigou a mais uma cadeira, por ter chegado mais tarde e porque tínhamos ocupado o seu lugar). Do grupo dos maiores, só faltavam ali o Amorim (que não se fizera notar nessa Gala Anual da Associação) e o Grupo Suber, que presidia à Associação e que, com as entidades oficiais, fazia as honras da casa.

A minha filha Ana havia assumido a maioria das quotas na nossa sociedade, com o objectivo de conseguirmos a aprovação de um projecto apoiado, destinado jovens empresários. (Claro que nunca o conseguimos). Apesar da nossa pequena dimensão, ela veio entusiasmada com o ambiente e a simpatia que lhe dispensaram.
- Ó pai, não percebi bem porque aquele senhor Adérito, te chamou primo.
- Ó rapariga, a história dos Carolos é uma coisa interessante. Vou tentar contar-te.
O Adérito é filho do António Carolo, mais conhecido por Tono Caçador. Gostava muito de cavalos, mas, ultimamente, andava mais de motorizada, na sua actividade de capador.
O Tono Caçador tinha vários filhos (seis), mas eram mais conhecidas as suas três formosas filhas.

Nos anos cinquenta, o negócio da cortiça estava em grande ascensão. Um filho de industrial rico, de Lamas, apaixonou-se por uma delas. Foi um amor bastante badalado. O rapaz ficou conhecido como o “Penico de ouro”, por ter presenteado a namorada com essa peça valiosa.
Casou pomposamente e logo criou uma empresa com o sogro, onde incluiu todos os demais familiares da mulher, como sócios. Com a experiência e o apoio do “Penico de ouro” e o orgulhoso e entusiasmado trabalho de cada sócio, a empresa cresceu exponencialmente. Lembro que o Adérito, mais velho uns dois anos que eu, trabalhou comigo na primeira empresa em que fui trabalhar, aos 10 anos e meio.Os dois irmãos mais novos foram estudar, para o Colégio dos Carvalhos; o Antoninho e o Carlos Alfredo. Não eram muito inteligentes e, como viviam à fartazana, nada ligavam ao estudo.
O Antoninho era muito vaidoso e andava sempre de nariz levantado e cara de importante. O outro, o mais novo, só queria brincadeira. Gozava com tudo e mais ainda com a escola. O Antoninho, logo que pôde, meteu-se no escritório, enquanto o Carlos Alfredo ainda penava, a fazer que estudava e nada aprendia. Andava quase sempre arranhado pelos constantes acidentes de motorizada.

Com 18 anos e comportamento de menino rico, apetrechado com carro e roupas do melhor, o Antoninho procurava namoradas compatíveis com as suas exigências e ambições.
O Antoninho, que era da minha idade, “comprou” a tropa, alegando, em tons de gozo, sofrer do “calcanhar de Aquiles”, justificação que, aliás, apontava para o seu fraco rendimento de jogador de futebol na equipa de Lourosa, que era patrocinada fortemente pela empresa. Casou com a moça mais linda da freguesia vizinha, por sinal, boa rapariga e de gente de bem e… de bens.
O Carlos Alfredo, desistiu de estudar. Tinha vergonha da chacota que os colegas lhe dispensavam. Dentro da fábrica, entusiasmou-se com as várias operações que a confecção das rolhas obrigava, vindo a ser um expert na matéria. O Carlos vivia intensamente. Dentro ou fora da fábrica arrastava energia atrás de si. Aloirado, de olhos claros e sempre sorridente, encantava as miúdas. E, quando aparecia de descapotável junto às praias, elas pareciam moscas à volta dele.

Em 1967, a Guerra do Ultramar estava numa fase difícil e o Carlos não conseguiu livrar-se, à primeira, de ser apurado para o serviço militar. Mexeram os cordelinhos bem untados, mas só ao fim de uns 10 meses de tropa, conseguiu baixar de vez ao Hospital Militar, vindo a livrar-se. Foram 10 meses em beleza, vividos à grande na cidade de Lisboa. Levou um bom carro e, com o “forte carinho” dos familiares, embrenhou-se em ambientes de aparente Jet Set. Nas divagações da noite, conheceu uma lustrosa moça da zona de Cascais, que o fez sentir-se galã e responsável por uma relação …séria. Após mais umas tantas viagens forçadas e umas promessas de amor eterno, casaram. Viviam muito bem numa bela mansão que ele mandara construir, perto de Espinho e do Porto, por forma a usufruir um bom nível de vida familiar.
Foram anos faustosos para toda a família. Com os casamentos consagrados por maior ou menor interesse, mais forte ou menos fraco “amor eterno”, nunca se assistiu à exuberância de tanta felicidade. Ainda hoje se podem ver, reluzentes, algumas das suas moradias similares, alinhadas, à face da rua principal da vila.

O Adérito que fora, dos três mais novos, o primeiro a casar, andou lá por Fiães, junto à igreja e à JOC, até conquistar a mulher dos seus sonhos. Sempre moderado e simpático, transmitia optimismo e confiança. Todos gostavam dele. Por sinal, não foi só ele que vi fazer-se, pontualmente, um religioso fervoroso. Uns 15 anos mais tarde, o Adérito, apercebendo-se da “enorme nau” em que a empresa se transformara, numa de humildade, chegou a acordo com os irmãos, que lhe compraram a quota. Depois montou uma pequena fábrica, onde eu tive a oportunidade de o contactar. Vivia feliz com o “pouco” que dizia ter. O filho fora estudar gestão e vivia ansioso por se desenvolver no ramo da cortiça. E assim aconteceu. Só que o rapaz veio a casar com a filha de um dos maiores industriais da cortiça, o António Almada. E era na qualidade de representante do sogro que estava ali, orgulhosamente, na mesa, ao lado do pai. Eles, que me acompanhavam naquela “coisa” da canoagem, por isso se fartaram de te fazer perguntas sobre esse tema, em que tu, uma Campeã, também tinhas muito que contar.

Entretanto, a Anabela, uma filha do Antoninho, que era uma fotocópia melhorada da imagem da mãe, incitada pelos pais, começou a namorar com o filho do “Rei do Ferro”, um homem que se enchera com os seus negócios escuros conseguidos sub-repticiamente na altura do “controlo operário” da Siderurgia Nacional. Dada a empatia criada entre estas duas famílias, o casamento dos jovens seria a chamada “cereja no topo do bolo”.
Marcaram o casamento e foram efectuados os numerosos convites a tudo que era socialmente destacável naquela região de Santa Maria da Feira, Espinho e arredores. E, nesses “honrosos” convites, pedia-se vestimenta a rigor, incluindo o “charmoso” chapéu de coco.

Os modelos em voga

Só que, enquanto se encenava o mais formal dos desfechos de uma relação pró conjugal, aconteciam outros relacionamentos de proximidade pouco oportunos. É que a bela rapariga nunca eliminara de todo a sua paixoneta por um rapaz, o Luís, meio perdido pela droga, que conhecera, ainda adolescente, na Escola de Fiães.

As modelos em voga

Nunca se vira casamento igual. Carros topo de gama, farpela à maneira e vestidos do último grito. Não sei se Hollywood poderia competir com coisa assim.

Os carros em moda na alta roda

A cerimónia estava marcada para as 11H00 e era já quase meio dia sem a noiva aparecer. Não era normal tanto atraso, mas como se tratava de um casamento de outra dimensão, parecia que o atraso fazia parte dessa excepcional grandeza. Telefonemas para um lado e murmúrios para o outro, mas, quanto à verdade, nada se sabia. Até que o Senhor Antonino avisa que não há casamento, porque a noiva… desaparecera. Foi uma bomba!

E agora, que fazer aos chapéus?

O seu parceiro, preocupado, pergunta-lhe:
- E agora, está aqui a malta toda emproada, feitos pavões e de chapéu à maneira, que vamos fazer?
- Que se fodam lá os chapéus! Olha, vamos mas é todos comer e beber à puta d’alma, porque a despesa já está feita e este mundo são dois dias.

Não havia nada a fazer, o rapaz de “mau porte”, passara lá de madrugada e levou a noiva numa motorizada, não se sabia para onde.
Grande nau, grande tormenta. A Empresa Corticeira fartou-se de dar dinheiro. Mas quando se verificou que as despesas (e os desvios) aumentavam e as receitas nem por isso e que os encargos se avolumaram em toda a linha, teve início a uma crise, também agravada pelo menor fulgor neste sector industrial. Em pouco tempo tudo se comprometeu e todos tentaram safar-se. Porém, os que mais se assumiram (os quatro que compraram as quotas) ficaram hipotecados à banca, que lhes foi comendo os valores.
Foi tudo à falência. Valeu ao Antoninho, os valores da mulher que não estavam sob hipoteca. O “Penico de ouro” também estava salvaguardado parcialmente, pela empresa do pai. O Senhor António Caçador até perdeu a casa, porque tinha apostado tudo naquele projecto. O Carlos Alfredo ficou também sem casa e sem nada. A mulher, que tanto gastara e tanto gozara, fugiu para Lisboa, deixando os dois filhos já moços, às custas do pai. Os filhos mimados e o pai meio aburguesado, não viam maneira de se defenderem. Foram anos de desespero para eles. Valeu ao Carlos Alfredo a sua capacidade técnica nos mais variados serviços. Sem instalações e sem máquinas minimamente adequadas, ele inventava esquemas incríveis para se desenrascar nesses chamados “serviços especiais”.

Apareci por essa altura e até fiquei prejudicado, devido às habilidades de um dos filhos. Dormia no Pavilhão de trabalho e mandou os filhos para a casa do avô, enquanto não entregou a casa. Mais tarde, ele, já sem os filhos, e com outras capacidades, pediu-me que voltasse a dar-lhe serviços. Efectivamente, não lhe faltavam máquinas nem espaço para trabalhar. Tinha mais serviço. Conseguira entrar como fornecedor no Grupo Amorim, mas receava ficar preso ao alegado comportamento monopolista desse grupo.
Tivemos um bom relacionamento nestes últimos anos. Ele recuperou a estabilidade e voltou a exibir o seu largo sorriso. Estava escaldado de todo o tipo de relacionamento e muito cru em desenvolver novas amizades. Nesta fase, já ele andava com um moderno Mercedes, comia e bebia do melhor, tal como já o fizera noutros tempos. Bebia já de manhã. Por vezes tomávamos o primeiro cafezinho juntos e ele nunca dispensava um bom whisky. E lá recordava ele, bem-disposto, em jeito de intimidade:
- As nossas avós deviam ser umas putas de primeira. Coitadas, vieram lá de “casa do caralho mais velho”, nos tempos de fome e guerra e andaram por aí à balda.
E eu, acrescentava:
- E ninguém diz que teriam sido casadas. O que eu sei é que a minha avó teve três filhos de pais diferentes.
Voltava ele:
- A minha teve dois e também não teve marido.

Lembro que quando a minha Mãe Bia faleceu eu era, ainda, criança. Sei que ela trabalhava para o Azeiteiro da Feira dos Dez, onde nasceu o meu pai. Era magra, morena e muito reservada. O que mais me chamava a atenção era vê-la sentada em pose, muito calma, a beber café/cevada (que me oferecia sempre) e a… fumar. Coisa raríssima naquele tempo: mulher pobre a fumar.
Um dia, vejo o Carlos Alfredo menos receptivo e a dar sinal à “empregada” para me atender. Era a Lina, uma senhora bem vistosa, de uns 50 anos, que me segredou:
- A cabra da mulher, voltou e ele anda desanimado.

Quase a chorar, a Lina queria desabafar e lamentar mais uma vez a sua triste sina. Disse-lhe para ter calma e deixei-lhe a orientação do serviço que desejava e afastei-me.
A Lina era uma linda loira de sorriso reservado, de olhar calmo e comportamento introvertido. Aos 16 anos sentia uma certa atracção por um rapaz da JOC que era mais velho uns 4 anos. O Arlindo, o tal rapaz, também de Sanguedo, foi mobilizado para a Guiné. A Lina sentiu que teria que se aproximar mais dele e, num Domingo, à saída da missa das 11H00, abeirou-se dele, a desejar-lhe boa sorte e deixou-lhe o recado:
- Olha, se precisares de Madrinha de Guerra…

Não levou um mês para que a Lina recebesse uma carta agradável do Arlindo. Ela entendeu esse contacto como uma importante decisão nas suas relações. Esse relacionamento aproximou-os mais. Quando, um ano depois, ele veio gozar férias e teve alguns encontros com ela, eles culminaram com alguns abraços e beijos mais avançados. Ela sentiu-se “comprometida” e interiorizou a condição de fiel namorada. Escreveram mais vezes e em modos mais apaixonados.
O Arlindo regressou da Guiné logo em Maio, após o 25 de Abril. Vinha eufórico. Feliz por ter terminado a comissão de serviço na guerra, feliz por a guerra ter terminado e muito feliz pela sua situação amorosa.
A oferta feminina era grande e a Lina, afinal, não era a única madrinha nem a única namorada. O Arlindo, perante a situação de engatatão, teve que tomar opções sérias. E como a Lina, parecia a mais apagada das suas conquistas, ele deixou-se embalar por outros sonhos. Se a Lina era reservada e introvertida, a partir dali, ainda mais ficou. Sofreu muito com essa desilusão e “escondeu-se” na igreja, chegando a parecer mais devota que a Stª. Teresinha do Menino Jesus. …

Tinha ido trabalhar para a Empresa Corticeira, onde acompanhou de perto a sua maior ascensão e a sua queda. E quando o Carlos Alfredo lutava para sobreviver e tinha sido abandonado pela mulher, sentiu-se na obrigação moral de o ajudar. Chegou a sacrificar o seu salário, para o auxiliar em situações aflitivas.
Um dia, ela disse que tinha que ir a Fátima a pé, para cumprir uma secreta promessa, tal como nos outros anos. Só que ele estava apertado com o serviço e precisava dela. A Lina, ciente da situação, lembrou-se de ir falar ao Padre Abílio e expor-lhe o assunto.
Ele, condescendente, disse-lhe:
- Ó rapariga, andaste a cumprir a promessa pela salvação do Arlindo na guerra, mas ele casou com outra. Já há uns anitos. Isso demonstra bem que és uma fiel criatura de Deus e que mereces ser mais feliz. Olha, não deixes de ir a Fátima, mas não precisas de ir a pé. Vai à minha responsabilidade.

No dia seguinte, a Lina confessou ao Alfredo que o padre lhe dissera que poderia cumprir a sua promessa indo de viatura.
- Ó Lina, se eu te levasse a Fátima e te trouxesse de seguida, tu aceitavas?
Ela pensou e respondeu-lhe:
- Vamos, mas eu vou ver se arranjo alguém para ir comigo, percebes? Podemos ir a tempo da Procissão das Velas e virmos embora.

Partiram já da parte de tarde daquele dia 12 de Maio. Como ela não levou companhia, ele perguntou-lhe porquê.
Ela respondeu-lhe:
- Afinal, já não tenho nada a perder, uma vez que nunca cheguei a ganhar nada. Já perdi o melhor tempo da minha vida. Resta-me continuar a viver de bem com Deus.

Seguiram o programa dela. Por ele, viria embora logo após a Procissão das Velas. Porém, ela sugeriu:
- Podíamos ficar para amanhã e assistir ao “Adeus à Virgem”, até porque a esta hora, iríamos perder quase a noite toda na viagem. Que achas?
Arranjaram uma pensão nos arredores de Fátima, no único quarto que havia de vago. Mesmo assim, ele pensou em dormir no chão, para dar a cama à Lina.

A Lina cumpria promessas em benefício alheio.

Foi uma noite de muita conversa e muita aproximação. Finalmente, ela falou abertamente. E confessou que já há muito tempo que sentia essa aproximação por ele. E que sentira sempre revolta por ver a sua mulher a tratá-lo tão mal. Não se aproximara mais dele porque, com a desilusão que sentira com o Combatente Arlindo, a levara a prometer nunca mais querer saber de homem algum. Além disso, o Carlos continuava casado. Desde então, viveram de forma diferente. Ele mantinha as aparências de um viver discreto, mas que acabou por aumentar a sua assiduidade nas pernoitas em casa da Lina.”

************

Quando voltei à fábrica do Carlos, para receber a mercadoria, apercebi-me de uma senhora, de cabelos engalanados, presos por um lenço, para se proteger da finíssima camada do pó das rolhas.
- Que se passa, Carlos, quem é essa senhora?
Ele respondeu prontamente:
- É a filha da puta da mãe dos meus filhos, que veio cá acima ver se colhia mais alguma coisa. Olha que ela deu-se ao desplante de querer trabalhar, para mostrar a sua “humildade”, agora tantos anos depois. Nem se lembra que ainda estou fodidinho, controlado por Finanças, Bancos e Tribunais, devido à falência da Empresa Corticeira.
E continuou:
- O que vale é que ela já disse para lhe arranjar algum dinheiro, para voltar para Lisboa. Vou ver se a despacho ainda amanhã, porque no Sábado quero ir para a beira-mar, para Paramos e almoçar uma “parrilhada de peixe” no amigo Orlando com a minha Lina. Essa sim, é uma mulher de cinco estrelas! Coitada, tem sofrido tanto que nunca será recompensada como merece!

A Parrilhada do “Camarada” Orlando é um espectáculo!

Passei a vê-los habitualmente felizes, especialmente da parte de tarde, depois de ele ter complementado bem o almoço com o indispensável digestivo. No ano passado, ele teve uma recaída da sua doença pulmonar e deixou de trabalhar. Lá me desenrasquei com uma alternativa. Porém, umas semanas mais tarde, telefonei, a saber se já havia recuperado. Atendeu a Lina, a chorar:
- Ó Senhor José, o meu Carlos já morreu. Nem lhe disse nada, para não o entristecer. Estou para aqui desolada, a sofrer este desgosto. Éramos tão felizes!


Uns 15 dias depois, telefonámos-lhe a convidá-la e passámos por sua casa. Fomos almoçar ao Casarão de Paramos. O patrão esmerou-se em elogios ao casal que costumava ocupar aquela mesa do lado do mar.
A Lina chorou mais uma vez. Porém, senti que lhe havíamos dado uma alegria que, por certo, iria suavizar a sua dor. No final, ela pegou na rosa vermelha que ornamentava a mesa e disse:
- Ó Senhor Orlando, vou levar a rosa que o meu Carlos costumava oferecer-me.

E mais à saída, virando-se para mim, murmurou em tom saudoso:
- Sabe, Senhor José? Ele ficava tão amoroso depois de beber um copito.

Notas:
1 – A Anabela e o Luís, que fugiram na motorizada no dia da grande boda, fizeram uma família muito feliz. Possuem uma cadeia de lojas de Moda.
2 – O Antonino continua a aparentar muita importância. Anda sempre de Mercedes, pasta preta e óculos escuros. Interpelado, em casa, pelos agentes de execução, respondia jocosamente: - Estou para aqui desterrado nesta quinta, onde vivo da caridade da minha filha. Não tenho nada em meu nome. Roubaram-me tudo.
3 – Há dias vi a Lina a sorrir, numa foto do facebook, com uma criança ao colo e os dois filhos do Carlos ao seu lado, com as respectivas mulheres. Afinal, esta é que é a verdadeira mãe que sempre tiveram.
# - Esta história é fictícia. Porém, como assenta em factos reais, pode descrever algumas coincidências.

José Ferreira
(Silva da Cart 1689)
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21072: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (14): Pequenos caprichos - II: Concurso Provincial de Angola

sábado, 6 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21049: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (13): Pequenos caprichos - I : Concurso de pesca na Foz do Rio Zaire

Ponta do Padrão S. Jorge na Foz do Rio Zaire


1. Em mensagem do dia 18 de Maio de 2020, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta Boa memória da sua paz, a segunda relembrando os seus bons tempos vividos em Angola


BOAS MEMÓRIAS DA MINHA PAZ - 12

PEQUENOS CAPRICHOS - I

Todos os caprichos são pagos. Uns mais que outros.
Uns valem bem o que custam e outros nem por isso.
No entanto, é através deles que nos ultrapassamos, nos satisfazemos ou nos vangloriamos. Por outro lado, os caprichos são valorados conforme as suas circunstâncias e as suas possibilidades.
Adiante, que também não tenho a pretensão de filosofar.

Concurso de pesca na Foz do Rio Zaire

Desde que cheguei a Cabinda, foquei logo a pesca como tempo de lazer. Sozinho ou acompanhado pela minha Mulher, acabei por me relacionar com outros que comungavam do mesmo prazer. O grupo foi-se alargando com a mobilização para convívios. Não levou muito tempo para organizarmos concursos.
O entusiasmo dos concursos de pesca acentuou-se e tornou-se notório, chegando a merecer transmissões em directo pela rádio. (Não havia televisão…)
De sucesso em sucesso e com a colaboração da Delegação da Direcção Geral dos Desportos, fomos experimentando as praias ao longo da costa Cabindense e, até, as lagoas no interior.

Um dia, querendo ir mais além:
- Porque não irmos a Santo António do Zaire, atravessar o rio e participar lá num concurso?

Partimos de madrugada, num rebocador da firma Montez & Newman, para fazermos aqueles 60 quilómetros de costa congolesa.

Os pescadores de Cabinda foram de rebocador a Santo António do Zaire, participar/colaborar num concurso

Tudo normal, até que nos apareceu aquela corrente monstruosa vinda da foz do Rio Zaire, com o maior caudal do Mundo. Indescritível, sentirmo-nos tão pequeninos naquela diminuta “casca de noz” de 35 metros, a subir e a descer aquelas montanhas de água em movimento. Quase toda a gente vomitava, mas eu não me distraía a olhar as águas. Sentadinho na borda e bem agarrado, olhava bem para longe, seguindo a experiência de anteriores navegações. Porém, o meu amigo Carlos Guerra veio ao meu encontro, cambaleando, mas bem agarrado, sentou-se na minha frente e, já esgotado de tanto sofrimento e a afagar a barriga, diz-me:
- Estou “fodidinho” de todo. Nunca me senti tão enjoado em toda a minha vida.
Aí “explodi e sulfatei” tudo o que havia à volta. Foi uma pena, porque já não faltava muito para chegarmos.

Havia uma equipa de repórteres da Rádio Clube de Cabinda que, perante a dúvida de conseguirem entrar em directo a partir de bordo, mas com a certeza do que iria acontecer, deixaram na sede uma gravação simulando o tal “directo”. E “em cima do acontecimento”, transmitiu: “ …neste momento, a viagem está a ser difícil para as mulheres, que estão todas enjoadas e em sofrimento. Por acaso nós, os homens, estamos a saborear bem este doce embalar…”.

Padrão de S. Jorge na Ponta Padrão da Foz do Rio Zaire, assinalando a chegada de Diogo Cão, no ano de 1482. A largura do Rio Zaire, na sua foz é tão grande que não se vislumbra a outra margem. Diogo Cão flectiu para o interior, convencido de ter atingido o ponto mais a sul de África (Cabo da Boa Esperança).

Os pescadores de Cabinda não faziam ideia do tamanho dos peixes que passam pela foz do Rio Zaire.
Colocadas as canas na praia, aguardámos a subida da maré e a consequente entrada dos peixes. E, quando isso aconteceu, foram vários os pescadores que ficaram sem fio e outros sem a cana. Nem dava para lutar com os peixes. Eles levavam tudo.
Valeu-me o facto de ter um fio grosso (especial 90), com tenso de aço. Eu estava bem seguro e com o alicate cortante à mão para não ficar sem cana. Sobravam poucos metros para além das ondas e da praia. E, por isso, não podia atirar para muito longe.
Os pescadores locais, foram tirando alguns peixes: corvinas, sapudos e raias. Tudo isso dava pouca pontuação. Todos se queixaram que fora um dia de pesca para esquecer.
Diziam: - Hoje não deu nada.
Fisguei um pargo e não o larguei mais. Era relativamente pequeno (14,2Kgs) mas tinha uma pontuação elevada. E foi por isso que venci o concurso.

No final, quando vínhamos pesar o peixe, já se sabia quem ia ganhar.
Oiço o repórter, no seu directo:
- Ganhou o do costume (eu já tinha ganho 2 concursos, na altura como atleta da Rádio Clube de Cabinda). Foi aquele atleta que nos trocou pelo Clube da Câmara Municipal. Mas isto não vai ficar assim, porque a RCC ainda não recebeu o dinheiro da transferência.

Primeiro triunfo na Pesca


Quando Campeão de Cabinda, fui felicitado pelo Governador Brigadeiro Themudo Barata.

Equipa da Câmara Municipal de Cabinda com o pargo de 14,2Kg que nos deu o 1.º lugar em Santo António do Zaire

No banquete organizado/oferecido pelo Governo Civil de Santo António do Zaire, recebemos os prémios e lindos discursos assinalando o evento inédito.
Já no regresso, noto algumas ausências. Entre elas, a dos repórteres da RCC.
Perguntei por eles e informaram-me: - Ficaram tão acagaçados que preferiram ficar cá até que haja avião para Cabinda.

(Continua)

José Ferreira
(Silva da Cart 1689)
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P21024: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (12): Feliz em África - II (e sem filmes)

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P21020: Memória dos lugares (409): Fazenda Experimental de Fá (Fernando Cepa, ex-Fur Mil Art)

Mensagem do nosso camarada Fernando Cepa, (ex-Fur Mil Art da CART 1689/BART 1913, Catió, Cabedú, Gandembel e Canquelifá, 1967/69) com data de hoje, 29 de Maio de 2020:


FAZENDA EXPERIMENTAL DE FÁ

Respondendo ao repto lançado recentemente pelo Mário Beja Santos[1] sobre a Fazenda Experimental de Fá, fui repescar um pequeno texto, rascunhado há uma dezena de anos que estava meio perdido na enorme confusão que é o meu baú de recordações da guerra na Guiné.

A CART 1689 (BART 1913) chegou a Bissau no dia 1 de Maio de 1967, seguindo diretamente por via marítima até Bambadinca e depois em viaturas para o aquartelamento de Fá.

A CART 1689 permaneceu em Fá de 1 de Maio de 1967 até 18 de Julho de 1967, portanto, em números redondos, dois meses e meio, rumando depois para a base do seu batalhão, sediado em Catió.
Mais ou menos à entrada do aquartelamento de Fá, ao nosso tempo, existia um misterioso edifício, fechado e de boa construção, ao qual não tínhamos acesso o que nos provocava grande curiosidade pelo mistério que envolvia a sua finalidade ou utilidade.

O Furriel Miliciano Enfermeiro Faria (já falecido) era um dos entusiastas em desvendar o que albergava tão enigmático edifício e foi ele a organizar o “golpe de mão” que nos levou ao interior da, para nós, sinistra construção.

No dia combinado, ao despertar dos primeiros raios de sol, o grupo de assalto, comandado pelo Furriel Miliciano Enfermeiro Faria, dirige-se para o objetivo, fazendo várias manobras de reconhecimento e despiste para não ser detetado e logo forçamos a entrada por uma janela lateral, previamente selecionada, de pouca visibilidade do lado do caminho.

Logo fizemos uma rápida e sorrateira visita geral ao edifício . Encontrámos muitos expositores e vitrinas bem tratadas com muitas amostras de sementes, plantas, árvores e afins, no fundo, muito material que inequivocamente estava direcionado para uma estação agrária, porventura experimental. Surpreendeu-nos o elevado grau de organização do interior, com bom mobiliário, excelentes expositores onde as sementes estavam devidamente classificadas e catalogadas.

Especulava-se na altura que o mentor direto e responsável técnico deste projeto teria sido o secretário geral do PAIGC, Eng.º Agrónomo, Amílcar Cabral, natural da vizinha cidade de Bafatá e a viver em Conacri, de onde dirigia a guerrilha.

Nota: - Não tenho a certeza se o Amílcar Cabral alguma vez esteve ligado à Fazenda Experimental de Fá. Esperemos que alguém faça este esclarecimento.

Fernando Cepa
Ex-Furriel Miliciano
CART 1689/BART 1913




Fá, de 1 de Maio a 18 de Julho de 1968 - Fur Mil Art Fernando Cepa
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Notas do editor

[1] - Vd. poste de 27 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P21014: Historiografia da presença portuguesa em África (211): Planos de desenvolvimento no rio Geba e em Fá, um pouco antes da guerra (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 21 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20996: Memória dos lugares (408): Ponte Alferes Nunes, sobre o Rio Costa Pelundo na Região de Cacheu (Carlos Silva, ex-Fur Mil Inf)

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20865: Efemérides (324): 17 de Abril de 1968, dia negro para a CART 1689, a morte do Furriel Miliciano Belmiro João (Fernando Cepa, ex-Fur Mil Art)

Em mensagem de 16 de Abril de 2020, o nosso camarada Fernando Cepa, (ex-Fur Mil Art da CART 1689/BART 1913, Catió, Cabedú, Gandembel e Canquelifá, 1967/69) lembra o trágico dia da morte do seu camarada Fur Mil Belmiro João, passados que são exactamente 52 anos.


O INFERNO DE GANDEMBEL
17 DE ABRIL DE 1968

DIA NEGRO PARA A CART 1689 (BART 1913)
A MORTE DO FURRIEL MILICIANO BELMIRO JOÃO


Na foto, da esquerda para a direita: Furriéis Milicianos, Belmiro João, Sousa, Faria e Cepa


Fernando Cepa
Foi precisamente há 52 anos, a 17 de Abril de 1968, que a CArt 1689 (BArt 1913) viveu um dos momentos mais dramáticos da brilhante passagem pela guerra colonial na província da Guiné Bissau.

Após um ano de intensa atividade operacional pelas traiçoeiras matas da Guiné Bissau, a CArt 1689, incompreensivelmente, foi escalada para participar na célebre Operação "Bola de Fogo" que levou à construção do famigerado aquartelamento de Gandembel/Ponte Balana de má memória para todos aqueles que tiveram a desdita de embarcar para o Inferno de Gandembel.

Como veremos mais adiante, registe-se que o “padre” que batizou a operação com o nome de "Bola de Fogo" sabia perfeitamente do que estava a falar, tamanha foi a brutalidade do potencial de fogo utilizado pelos beligerantes durante toda a operação que decorreu entre os dias 8 de Abril e 15 de Maio de 1968.

Passamos mal a noite da véspera, 16 de Abril, pelo simples facto de não ter havido o habitual fogo de artificio a que o inimigo nos habituara. Aquilo era sagrado. Por volta da meia noite, mais hora menos hora, recebíamos fortíssimas flagelações, desenvolvidas com o apoio de armamento de elevado poder destrutivo, obrigando as nossas tropas a quedarem-se por uma postura meramente defensiva dentro dos buracos escavados no chão a pá e pica. Foi muito doloroso.

Como os “cumprimentos” nessa noite tardavam, o pessoal começou a ficar irrequieto e ansioso, com os nervos à flor da pele, temendo o pior. Ninguém pregou olho. Para mal dos nossos pecados, os companheiros do hotel/buraco, onde pernoitamos 38 dias, já apresentavam sintomas de ficarem apanhados pelo clima, começando a perder o controlo emocional, e, pior ainda, o controlo dos intestinos que por força da última refeição com feijão, infestaram o reduzido espaço com gases fétidos, que se coligaram à abundante produção de suor destilado por corpos jovens sem higiene e sem mudanças de roupa. Dormiam sempre fardados, prontos para o que desse e viesse.
Estes componentes misturados, formavam uma matéria altamente explosiva, quiçá, irrespirável e impossível de aguentar. Mesmo correndo o risco de apanhar, fora do buraco, o ataque que ainda não acontecera, e que não aconteceu felizmente, por volta das três e meia da manhã a maior parte dos comensais saiu, tentando respirar e descansar com as estrelas servindo de teto.

Fur Mil Art Fernando Cepa junto a um Buraco/abrigo em Gandembel

Já estamos a 17 de Abril de 1968. Logo de manhã cedo, recebo instruções do Capitão Maia (hoje General) para preparar o pelotão do Alferes Freitas que eu comandei interinamente durante toda a operação por ausência de todos os graduados do mesmo pelotão. Era para arrancar quanto antes. Saíram dois pelotões. O meu que seguiu na retaguarda e o outro, tanto quanto julgo saber, era o do Alferes Perestrelo que seguiu na frente, com o Capitão Maia à cabeça da coluna, acompanhado pelo Furriel Miliciano Belmiro João com a especialidade de Armas Pesadas, mas que, julgo com formação em minas e armadilhas. Estranhamos a presença do Furriel Belmiro porque habitualmente estes especialistas não acompanhavam a tropa que montava emboscadas.

A montagem da emboscada estava prevista para um local nas redondezas do acampamento, 100 a 200 metros, onde se supunha que o inimigo instalava o armamento para flagelar sem dó nem piedade as nossas tropas durante a noite.

Chegados ao presumível local da montagem da emboscada, analisou-se e avaliou-se o melhor dispositivo para instalar as nossas forças quando o Capitão Maia sugere que se avançasse mais um pouco para colher o benefício da proteção dum enorme monte de terra (vaga-vaga) muito abundantes na Guiné e locais de habitação de enormes colónias de terríveis formigas.

Chegados aí, o Capitão Maia senta-se junto ao monte de terra, vaga-vaga, para apertar os atacadores das botas, enquanto o Furriel Belmiro executa uma pequena prospeção da zona por conhecer rigorosamente os locais onde teria colocado as armadilhas.
De repente, ouve-se uma violenta explosão projetando o Furriel Belmiro à altura de um metro, caindo inanimado de barriga para baixo. O Capitão estupefacto e ferido na perna esquerda, grita-lhe para rodar sobre o lado direito e ficar de barriga para cima, manobra que ainda conseguiu executar com alguma dificuldade. Tinha sido gravemente atingido com estilhaços na cabeça.

Seguiram-se os habituais momentos de tensão, procurando-se a todo o custo assistir os feridos, diligenciando-se o mais rápido possível a vinda de meios aéreos para uma rápida evacuação.
Transferidos os feridos para o interior do aquartelamento, aguardou-se a chegada do helicóptero que não se fez esperar. A Enfermeira Paraquedista imediatamente tomou conta dos sinistrados, prontamente colocados no interior da aeronave.
A Enfermeira apercebendo-se da gravidade do estado de saúde do Furriel Belmiro, combina com o piloto um voo rasante à copa das árvores para evitar as pressões provocadas pelas altitudes.

O heli faz-se rapidamente ao caminho e voa rapidamente, numa primeira escala, até Buba, onde o médico do Batalhão presta os primeiros socorros, medicando os feridos e instruindo a enfermeira sobre os cuidados médicos a observar até à chegada ao Hospital Militar de Bissau.

A 18 de Abril de 1968, o Furriel Miliciano Belmiro João, faleceu, em consequência dos gravíssimos ferimentos sofridos na cabeça, dizem alguns, vítima da armadilha que ele próprio montou. Outros, mais céticos, argumentam que não, contrapondo ser o Belmiro um militar extremamente metódico e cauteloso, sabendo exatamente os locais onde implantou as armadilhas.

Sobre este nefasto acontecimento, regista-se a curiosidade do processo do falecimento do Furriel Miliciano Belmiro João ser encerrado como morto em combate e o processo do Capitão Maia, encerrado como acidente em serviço.

Acabo de ter uma longa conversa com o General Manuel Maia (na altura Capitão) que me ajudou a consolidar a veracidade dos factos.

Sobre o falecido Furriel Miliciano Belmiro João, direi que era um militar acertivo, leal e bom companheiro. Apesar de poucas palavras, gostava duma boa conversa. De fortes convicções, católico assumido, nunca renegou as suas origens humildes e transmontanas. Era um amigo estimado no seio da família dos furriéis milicianos.

O Capitão Maia fez a convalescença no Hospital Militar de Bissau tendo regressado à CArt 1689 já aquartelada em Cabedú no sul da Guiné e, no dia 12 de Julho de 1968, abandona definitivamente a Companhia viajando para a Metrópole para frequentar o Curso do Estado-Maior. No dia seguinte, 13 de Julho, o Alferes Ferreira de Almeida do QP que ficara a comandar a Companhia morre mortalmente atingido durante um violento ataque ao aquartelamento de Cabedú.

Fernando Cepa
Ex-Furriel Miliciano
Cart 1968 Bart 1913
Guiné 67/69
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20854: Efemérides (323): No dia 13 de Abril de 1970, a CART 2732 embarcou no Cais do Funchal, no navio Ana Mafalda, com destino à Guiné (Carlos Vinhal, ex-Fur Mil Art MA)

terça-feira, 14 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19786: XIV Encontro Nacional da Tabanca Grande (20): só no dia 25, sábado, identificámos 10 (dez) encontros, em diferentes pontos do país, de pessoal que esteve no CTIG, e que concorrem, saudavelmente, com o nosso, em Monte Real... Eis algumas das unidades: BART 1913, CCAÇ 1792, BCAV 490, 1ª C/BCAÇ 4616/73, BCAÇ 2928. Pel Art 27, Pel Mort 2297, ERec 2641, CCS/BCAV 2922, 1ª C/BCAÇ 4610/72, CCAÇ 3547, CCAÇ 3548, CCAÇ 1585, e pessoal de Bambadinca, 1968/72: CCS/BCAÇ 2852, CCAÇ 12 ,CCS/BART 2917, Pel Caç Nat 52, Pel Caç Nat 53, Pel Caç Nat 63, etc.... Prazo de inscrições para Monte Real: até amanhã, 15, às 24h00.


A foto de família dos participante do X Encontro Nacional da Tabanca Grande, Monte Real, 18 de abril de 2015. Este ano, em 25 de maio de 2019, há camaradas e amigos que vão estar no encontro das suas unidades ou subunidades, e que gostariam também de estar connosco em Monte Real. Mas ninguém tem o dom da ubiquidade. Foto de Miguel Pessoa (2015).



1. Eis a seguir uma lista com alguns dos encontros do pessoal do CTI Guiné que se vão realizar, sábado, 25 de Maio de 2019, pelo país fora, e de cuja notícia tivemos conhecimento... 

Decididamente,  não há calendário que chegue para todos nós (e os de Angola e Moçambique ainda são muitos mais, às dezenas): por exemplo, o nosso editor, Luís Graça, para estar em Monte Real nesse dia, vai falhar, com muita pena sua, o encontro, no Porto, do pessoal de Bambadinca, 1968/72: a sua companhia, a CCAÇ 2590 /CCAÇ 12  comemora os 50 anos, da partida para o TO  da Guiné, no "Niassa", em 24 de maio de 1969]

— Almoço comemorativo do 50º aniversário do regresso da Guiné dos Combatentes do BART 1913 (CCS, CART 1687, CART 1688 e CART 1689)>  



Quartel RAP2, rua Rodrigues de Freitas, Serra do Pilar, em Vila Nova de Gaia. Contacto: Avelino de Sousa, telem 914514489 
ou telef 229680720.

— Almoço-convívio comemorativo dos 50 anos do regresso dos combatentes  da CCAÇ 1792, Guiné 1967/1969 > 


Restaurante “Barriga Cheia”, em Barrô, Águeda. Contacto: ex-fur mil Pereira, 
telem 962313013.

— Almoço-convívio anual dos combatentes do BCAV 490, “Sempre em Frente”, Guiné 1963/1965 > 




Hotel Dona Inês, Rua Abel Dias Urbano, 12, Coimbra.

— Almoço-convívio dos Combatentes da 1ª Companhia, BCAÇ 4616/73, Guiné 1973/1974 >


  Antigo RI 16, em Évora. Programa: Às 10h30 descerramento de uma placa alusiva à companhia na porta de entrada 
do regimento, com cerimónia 
de homenagem aos mortos 
em combate. Contacto: 
Isabelinho,telem 917848483 
ou 919315617.

— Convívio anual dos Combatentes do BCAÇ 2928 (CCS, CCAÇ 2789, CCAÇ 2790, CCAÇ 2791 e CCAÇ 3328), e PEl Art 26, Pel Mort 2297, ERec 2641, Guiné (sector de Bula) 1970/1972 >  



Quinta do Mateus (Rua da República nº 255),
em Cacia, Aveiro. Concentração 
às 10 horas. Contactos: 
Manuel  Vinagre, telem 966912714; 
Bento Mendes, telem 929143080.

— Almoço-convívio dos Combatentes da CCSBCAV 2922, “À Carga!”, Guiné Jul 1970/Jun 1972 > 



Concentração no Cristo Rei, em Almada. 
Almoço em Sesimbra.

— Almoço-convívio dos Combatentes da 1ª Companhia do BCAÇ  4610/72, “Ratos de Encheia”, Guiné 1972/1974 > 



Restaurante panorâmico “Lago Verde” (junto à barragem do Cabril), em Pedrógão Grande. Contactos: Fernando Lima, telem 918434389; 
Manuel António Lopes, telef 229014974 
ou telem 912884641; 
Manuel Fernandes Monteiro, 
telef 223792348 
ou telem 968125677.

— Encontro-convívio comemorativo do 45º aniversário do regresso do pessoal das CCAÇ 3547, “Os Répteis de Contuboel”, e  CCAÇ 3548, “Os Panteras do Geba”, do BCAÇ 3884, Guiné (Bafatá) 1972/1974 >  



Local: Chaves.

— Almoço-convívio dos Combatentes da CCAÇ 1585, Guiné (Farim, Quinhamel) 1966/1968 > 



Buarcos, Figueira da Foz 
Contacto: Carlos Soares, 
telem 918245449.

- Almoço convívio do pessoal de Bambadinca, 1968/72: CCS/BCAÇ 2852 (1968/70), CCAÇ 12 (1969/71), CCS/BART 2917 (1970/72), Pel Caç Nat 52, Pel Caç Nat 53, Pel Caç Nat 63, e outras subunidades adidas > 



Porto, Scala Palace, Praça Velasques, c/ missa na Igreja das Antas, 10h; e concentração na esplanada 
do café Velasques, 11 h. 
Contacto: Manuel Monteiro Valente,  
R Joaquim Lopes Pintor, nº 118, 1º Dto.,
 4405-868 Vila Nova de Gaia, 
telem 968849886.


2. Quanto ao nosso XIV Encontro Nacional da Tabanca Grande, em Monte Real, dia 25 de maio, sábado, vamos continuar a receber inscrições até quarta-feira, dia 15, às 24h00... 


Recorde-se que a inscrição são 35 "aéreos", com direito a:

Entradas + Almoço + Lanche ajantarado : Para as criancinhas, até aos 12 anos, são só 18 "aéreos"...

Para quiser ficar alojado no Palace Hotel Monte Real (4 estrelas ) com pequeno-almoço incluído: Single: 50,00€ | Duplo: 60,00€

Inscrições a cargo de:

Carlos Vinhal (Leça da Palmeira / Matosinhos): email:carlos.vinhal@gmail.com | telemóvel: 916 032 220


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quinta-feira, 2 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18890: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (31): Junto às dunas

Um pôr- do- sol em Espinho


1. O nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), em mensagem do dia 14 de Julho de 2018 enviou-nos mais uma memória da sua guerra.


Outras memórias da minha guerra

31 - Junto às dunas

Pintura do mar de Paramos

Sempre que sinto necessidade de espairecer as ideias ou de relaxar o físico, vem-me à cabeça a proximidade do mar, da sua brisa iodada, do ruído musical das ondas, das areias e das suas dunas. E quase instintivamente me encaminho para lá, para as proximidades de Espinho. É pena que agora, por questões de saúde, não possa resistir ao vento e à baixa temperatura e tenha que regressar, grande parte das vezes.

Ali chegado, instintivamente, faço o meu zapping panorâmico sobre o mar azul, verde ou prateado e deleito-me a olhar as ondas, ora lentas, sussurrantes e preguiçosas, ora apressadas, resmungonas e revoltadas. Sempre as compreendi e sempre as aceitei como são. É que são milhões e milhões de anos de experiência que não podemos nem devemos sequer contestar. De seguida, olho a praia, nua ou quase, seca ou molhada, ao longo do horizonte, seja na direcção de Espinho, Aguda, Silvalde ou de Esmoriz. Quase sempre vislumbro algum casal de humanos, aparentemente em relação amorosa. Digo “aparentemente”, porque no meu tempo o amor parecia-me uma coisa mais forte.

Passadiço a ser engolido pelas areias das dunas

Desta vez, apesar de já estarmos em fins de Junho, ainda é raro apanhar um dia de sol aberto. Havia optado por Paramos. Respiro fundo várias vezes, absorvendo aquele ar salgado da brisa do norte, inigualável, com que me identifico a “snifar” desde criança. Dali, junto à Capela de S. João, aproveito o passadiço de madeira e sigo na direcção de Esmoriz. Todavia, já se me torna difícil chegar à Barrinha, àquela zona beneficiada pelo programa Polis Litoral Ria de Aveiro. Os melhoramentos são bem evidentes, mas nunca capazes de nos fazer reviver aqueles belos tempos dos anos 60.

A Barrinha de outrora está assoreada e cheia de arbustos

Por vezes, quando me sinto mais forte, sigo pela margem direita (norte) da Barrinha, passo pela zona outrora mais isolada (apesar de descoberta e bem visível, os “espreitas” rastejavam até junto dos carros) e sigo, aproximando-me do ao antigo Bar Motel e do actual Restaurante Hélice, nas instalações do Aero Clube de Espinho, onde se come um excelente Bacalhau Assado com Broa.

Por falar em comer, tenho que referir também o Restaurante Casarão, propriedade do Camarada da Guerra na Guiné, Orlando Santos, especializado aqui, em Polvo à Lagareiro e grelhados de peixe.

Restaurante do camarada Orlando, com o GACA 3 ao fundo

Pois, desta vez, limitei-me ao trivial: caminhar calmamente numa distância de aproximadamente uns 500 metros e deixar-me envolver pelas dunas onde, outrora saboreava horas de enlevo e de enredo, de mais ou menos intensidade. Por mais que me esforce, nunca vejo as mesmas dunas desse tempo. Estas, que aparentam ser iguais, não me conseguem mostrar os sítios mais ou menos côncavos onde muitas vezes me abriguei. Também são belas e acolhedoras. Porém, mesmo familiares das outras, já serão de outra geração e possivelmente também bem acolhedoras como as suas antepassadas.

Plantas rastejantes nas dunas

Enquanto os tufos de estorno continuam a abanar-se na sua luta permanente pela detenção das finas e esvoaçantes areias, cardos, cactos e chorões, sobressaem bem posicionados e bem protegidos pelos ventos agrestes.

Noutro tempo, quando embebidos nos enredos amorosos,“ouvíamos” e mostrávamos apreço às habituais dissertações poéticas das nossas companheiras. Elas, num nítido ritual de inocente sedução, mostravam-nos plantas, conchas, búzios e flores de vários tamanhos e matizes. Recitavam poemas e frases profundas, todavia, qual o instinto matador do macho latino, a nossa sensibilidade de momento exponenciava-se obcecada e exageradamente, através do “tesão” e do acumular de esperma nos “reservatórios”, já doridos de tanto encherem.

Dunas na direcção de Esmoriz

É claro que as dunas sempre nos deram uma ideia de extensão não arável, de areias mortas e de deserto.
Mais tarde, em pleno deserto do Kalahari, testemunhei a imensidão de vida e beleza que nelas podemos verificar.
E é isso que agora muito valorizo. Agora há tempo de sobra, a sensibilidade alterou-se e o “tesão” foi-se (afastando), deixando-nos ocupados na conquista de algumas boas… fotos.

Chorões das dunas de Paramos

Feita a caminhada/passeio, dirijo-me ao pequeno Bar improvisadamente instalado na parte mais alta da praia. Devido à brisa fresca, sentei-me de costas para o mar, encostado à divisão protectora e virado para o “nosso” GACA 3.

Agora, recordo as histórias ali vividas onde, algumas delas se relacionavam fortemente com as redondezas do Quartel. E delas, hoje, devo destacar esta, que segue.

Foi naquele Sábado, 23 de Junho do ano de 1966. Era a véspera do S. João, início de fim-de-semana propício aos maiores “desenfianços”. Eu estava de Sargento-Dia ao Batalhão, mas não faltei aos famosos festejos da noitada "imbiqueta". Junto ao Apeadeiro de Paramos, haviam instalado um altifalante voltado para o Quartel que, desde o início da tarde, botava música popular em elevados decibéis, aparentemente arranhados pela areia entranhada nas ranhuras dos discos vinil.
Cerca das 15H00 entrou o Comandante Calejo que deixou indicações para que o Piquete reunisse às 16H00.

A notícia bem correu, mas o pessoal, maioritariamente, não apareceu. Para não fazer estragos, o CMDT deu uma hora ao jovem Oficial de Piquete, para ter a “chance” de mandar regressar ao Quartel os dançarinos que estavam em gostosa actuação.
Mesmo assim, informados da situação, os dançarinos, garbosamente vestidos à sua moda (sapatos e camisa civil e calças e boinas da tropa), agarrados às moças, gozam o Estafeta com divertidas respostas em voz alta:
- Diz ao Aspirante que somos velhinhos. Temos 31 meses e estamos à espera da peluda;
- Explica a esse morcon que a velhice é um posto;
- Que faça queixa ao Comandante;
- Que traga a namorada p’rá gente.

Tocou a Piquete, mas às 17H15, continuavam em falta 3 militares – o trio que continuava inebriado no bailarico de S. João.
Sei que foram castigados e que, perante tal desobediência, seguiram para uma Unidade de Mobilização.

Praia sul, junto à capela

Ao regressar à actualidade/realidade, verifico que, na minha frente, uma jovem trintona, bastante nutrida e de biquíni pouco “suficiente”, se fora sentar em atitude aparentemente provocadora.

De pernas abertas, com as avantajadas mamas quase saídas do biquíni e pousadas sobre a pequena mesa, com os cotovelos a protegê-las, ela, agarrava afincadamente, com as duas mãos, um enorme corneto-gelado castanho, que lambia gulosamente, em posições diversas. Ao mesmo tempo que lhe escorriam pingos do gelado derretido pelo rego das mamas, ela sacudia a madeixa de cabelo que lhe ia entrando pelo canto da boca.
Eu não queria ser influenciado pela “actuação” da rapariga. Porém, pensei:
- Será que o meu Don Quixote, apesar de capado, resistiria a tal espectáculo?

JFSilva da Cart 1689

Praia sul de Paramos

Capela de S. João de Paramos e um pôr-do-sol

Passadiço sobre as dunas de Silvalde, na direcção de Espinho
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18807: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (30): O anjo excomungado

terça-feira, 3 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18807: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (30): O anjo excomungado

1. O nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), em mensagem do dia 21 de Junho de 2018 enviou-nos mais uma memória da sua guerra.


Outras memórias da minha guerra

30 - O anjo excomungado


Um equilibrista em perigosa actuação entre arranha-céus de Nova-Iorque 

- Silva, ó Silva, olha aqui o João Albino. Lembras-te dele? – perguntou o meu vizinho Fiães, ao ver-me passar junto do refeitório da CCS de Catió.

Olhei com alguma curiosidade, ao mesmo tempo que tentava ligar-me ao nome apontado. Então, ele insistiu:
- Aquele equilibrista que subia e descia um arame lá no largo da Feira dos Dez, em Lourosa?

Aí, reagi logo afirmativamente. Quem é que não se lembrava daquele espectáculo presenciado pela multidão, próximo da Capela de S. Miguel?

O João Albino sorriu, ao mesmo tempo que parecia querer manter o anonimato. Manifestei a minha surpresa em vê-lo ali no nosso BART 1913, felicitei-o pelos seus sucessos e aproveitei para saber mais alguma coisa dele. E, afinal, não foi difícil.

- Lembro-me bem de ter ido a Lourosa. Quem me pediu para lá ir, foi o meu tio Jorge Miguel que vive ali por perto. Tem um salão de barbearia e cabeleireiro.

Confirmei logo que o conhecia bem. Casou com uma vizinha minha.

- Pois foi ele é quem me inspirou. É o meu ídolo. Aos 16 anos, o meu avô teve que o mandar para a França, para junto de um irmão, porque ele não queria trabalhar na barbearia, lá na aldeia, perto de Portalegre.

E continuou:
- Em França, veio a integrar-se num grupo de equilibristas de circo. E como era um gajo de muita coragem, tornou-se famoso. Foi ele o artista que substituiu a vara do equilíbrio por duas asas, dando a sensação de que voava. Era conhecido por “Michelangelo”. Fazia um número espectacular, mas muito perigoso. Bastava um pouquito de vento e a segurança estava logo em causa.

Dizem que não lhe faltavam miúdas. Ele era mesmo uma vedeta. Mas o que ele mais desejava era aproveitar esses momentos e gozar a vida.

- Mas, ele era manco!
- Sim. Num dia com mais vento, ele teimou em actuar com as asas de anjo, mas desequilibrou-se e quase se matou ao cair do arame. Ficou afectado de uma perna e teve que largar a actividade. Regressou a Portugal e influenciou-me para o substituir naquela loucura.

Já habituado ao ambiente afrancesado, o regressado Albino passou a sentir ainda mais o sacrifício de viver no isolamento alentejano.
E, um dia, quando falava sobre a sua vida atribulada e se lamentava da sua sorte na presença de um industrial de cortiça, que ali se deslocava com alguma frequência, foi encorajado a mudar-se para norte, para o concelho da Feira.
Conheci-o por altura dos meus catorze anos (1957). Frequentei a sua pequena barbearia, onde apareciam outros tipos de clientes.
Chegava sempre tarde à barbearia. Parecia fazer questão em ter clientes à espera, junto à porta. Devido à deficiência na perna direita (não a podia dobrar), caminhava bastante esticado, por forma a poder rodar essa perna, para a colocar na sua frente. O Senhor Michel parecia explorar bem a sua deficiência, assumindo uma pose erecta e altiva, bastante beneficiada pelos seus bastos cabelos ondulados, pelo seu bigode e sorriso tipo Clark Gable e pelos óculos escuros Ray Ban.

Capela de S. Miguel 

A aldeia era pequena e não podia dar-lhe muitos clientes. Além disso, a sua pose altiva, a sua permanente argumentação sobre tudo e todos e a sua frontal posição crítica face à religião, afastavam parte da possível clientela.
Todavia, a sua experiência francesa, aliada a uma certa dose de rebeldia alentejana, davam-lhe um à-vontade, pouco comum naquele ambiente rural nortenho. Pela frente, quase toda a gente o respeitava, mas, por trás, havia uma onda de contestação, bastante crítica, especialmente orquestrada pela família Ramirinho, pelo Tono Coninhas e por algumas beatas de sacristia.

Ora, o Senhor Michel, teve que aproveitar tudo para ganhar algum dinheiro que o pudesse ajudar a viver. Cortava o cabelo curto, como era hábito naqueles tempos difíceis mas, salientava-se noutros tipos de corte, onde realçava seus conhecimentos mais modernos. Além disso, veio a ter algum sucesso com o corte “à la garçonette” nas crianças e adolescentes do sexo feminino.
Eu simpatizava com o Senhor Michel. Ele já me influenciava a cortar pouco o cabelo, dando-me uma imagem “mais de acordo” com a minha postura de “revoltado”. Também me falava muito dos seus conhecimentos afrancesados. Mas, o que mais admirava nele era o seu optimismo de alentejano e o seu sentido crítico de homem livre.

Foi nessa altura que presenciei o Senhor Michel a arrastar a asa pela sua Luisinha. Ela tinha ido à barbearia para acompanhar a filha da Tininha, enquanto ele lhe cortava o cabelo.
A miúda já estudava francês e cismou adquirir um corte “à la mode”. Aliás, tive a oportunidade de apreciar a sua exuberante actuação de conquistador. A miúda sentada na cadeira limitava-se a olhar fixamente o espelho na sua frente. Porém, o Senhor Michel mexia-se constantemente. Após vários movimentos em falso, batendo, repetidamente, o clik da tesoura, aproximava-se da miúda e mal tocava no cabelo. Afastava-se, olhava-a de novo, elevava os lábios fechados e abanava ligeiramente a cabeça no sentido vertical. Por vezes, esboçava um “très belle, très belle” ou uma exclamação tipo: “oh la, la, jolie, petite demoiselle”!

De cabeça esticada, braços abertos, com o pente numa mão e a tesoura na outra, o artista arrastava a perna deficiente, enquanto rodopiava paralelamente à cadeira, que até me parecia um garnisé a arrastar a asa, preparando a (futura) galadela.

Desde que começou a constar que o marido da Luisinha d’Azenha, Jorge Miguel, fora apanhado a molestar a sua mulher, não havia dia de lavadouro ou noite de taberna, em que o assunto não viesse à baila.

- Para mim, ele é um excomungado. – Acusava a Felismina do Canto, que continuava:
- Um homem que desonra a namorada, leva-a de casa sem casar pela Santa Madre Igreja e que, ainda por cima, a trata mal, devia ser castigado.
- Realmente, e logo aquela rapariga, tão bonita, filha de tão boa gente e tão temente a Deus. – Lembrou a Ti Matilde.

Logo a Maria Bolachona interveio em jeito de aparente despeito:
- Chamas bonita àquela magricela, um pau de virar tripas que não pesa 70 quilos, que tem os olhos grandes de ougada e cabelos ripados, sem ondas nem caracóis?
- Nós dizemos que gordura é formosura, mas não te esqueças do que diz o outro ditado: O que é demais, é moléstia.- Observou a Ti Matilde.

Um pouco mais ao lado, num tom mais suave, murmurava a Tina Beata:
- Pois é, mas eu continuo a pensar que a culpa é das mulheres porque se deixam levar e não se sabem portar bem. Por acaso, se fosse comigo, iam ver do que eu era capaz. Até o capava, se me faltasse ao respeito.
- Ei, mulheres do solheiro, estais a serrar de alguém? – Interrompeu a Irmã Julinha, que surgiu por ali, vinda do fundo da quinta da família Ramirinho, onde se encontrava de férias pascais.
- Ó Julinha, não queira saber que aquele excomungado, que desonrou a Luisinha e que a obriga a viver com ele em pecado, foi apanhado a molestar a rapariga.
- A molestar, como? A bater-lhe? A magoá-la? Digam-me, por favor, o que essa alma do diabo lhe anda a fazer.

A Felismina, agarrou nalgumas peças de roupa, para as pôr a corar e aproximou-se da Irmã Julinha e, em voz mais baixa, confessou:
- Na sexta-feira passada, quando ia para a primeira missa, ao passar junto à casa da Luísa, ouvi-a gritar baixinho e, por curiosidade, aproximei-me e olhei por uma frincha da portada da janela. Ó Julinha, sabe bem que eu não sou mulher de levar e trazer. Nem sou nada dessa gente que levanta boatos, maledicências ou falsos testemunhos. Apenas me lembrei de espreitar, antes de a acudir.
- Não me digas que estava a bater-lhe? – Interrompeu a Irmã Julinha
- Não sei. Só sei que eles estavam nuínhos, conforme Deus os botou ao mundo. Tal como Adão e Eva no Paraíso.
- Credo em Cruz, Santo nome de Jesus! Nem me digas? Que pecado!
- E o pior é que ele estava em cima dela como se ela fosse uma cadela, coitadinha!
- Deve-a ter magoado?
- Sim, sim, até porque vi o excomungado a querer sarar-lhe “as partes” com a saliva da língua.

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Quando regressei da Guiné, andei uns meses a trabalhar como Comercial numa empresa de produtos químicos. Corria quase o País todo e logo que passei por Portalegre, encontrei o Sr. Jorge Miguel. Levou-me à sua aldeia, almocei com toda a família (mulher e três filhos – um rapaz e duas meninas). Pareceram-me bastante felizes. Falámos agradavelmente de muita coisa, inclusive do seu sobrinho João da CCS de Catió, agora a viver na Bélgica.

Antes da despedida, teve um desabafo:
- Amigo Zeca, gosto muito do norte e da maior parte das pessoas de lá. Gostava de ter continuado naquela terra, mas tivemos que vir para cá antes que aquelas ratas de sacristia matassem a Luísa à pedrada, como se fazia na Grécia Antiga. Aquelas putas, faziam-lhe a vida negra!

Ficou sentado num extremo da mesa, com uma lindíssima criança sentada sobre a sua perna esquerda. Fitou-me, saudando-me com alguma comoção, elevando a mão direita com o copo do vinho que restava do nosso último brinde:
- Obrigado Zeca. Que sejas sempre tão feliz como eu! Tu mereces.

A mulher veio abrir-me o cancelo de acesso à rua. Ao abraçar-me na despedida, confessou-me:
- Zeca, às vezes sinto muitas saudades da família e dos bons vizinhos, como vós. Mas, diz àquela gente que sou muito feliz. Tenho quatro anjos; três filhos e um marido, a quem devo a maior sorte do mundo.

Afastei-me, comovido com o que tinha visto e ouvido. Ainda acenei um adeus, já de longe. E pensei:
- Não deve ser só por ele ter sarado as feridas com a saliva da língua…
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18036: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (29): “Amor à Pátria”

quinta-feira, 15 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18418: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (49): O "Senhor Badalhoco" foi à Escola

Guiné 63/74 - P6696: Tabanca Grande (227): José Ferreira da Silva, ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913 (Guiné, 1967/69)


1. Em mensagem do dia 1 de Março de 2018, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos mais uma memória boa da sua guerra, desta vez uma incursão na Escola Básica da Bandeira para recriar o seu "Bife à Dunane".


MEMÓRIAS BOAS DA MINHA GUERRA

49 - O “Senhor Badalhoco” foi à Escola

- “Avô” Zé, tem de ir à Escola. – dizia-me o meu genro Abel, há uns dias.
- Fazer o quê? Sou “burro velho” e já não aprendo mais nada.
- Não. É para ir contar uma das suas histórias boas da guerra lá, na “Escola da Bandeira”, está a decorrer um programa de “Leitura em Família” e já descobriram que o “Bô-Zé” é escritor. Escolha a história mais adequada para a nossa família não ficar mal.

A verdade é que me esforcei, esforcei… a rever, de entre as 86 histórias já publicadas, qual seria adequada. Certo é que, atendendo ao público a que se destinava, eu me sentia muitíssimo… limitado.

- Só se for o “Bife à Dunane”, porque não estou a ver-me a contar as outras histórias. E mesmo essa… tem que levar uma volta.
- Não se preocupe, “Bô Zé”. Vai correr tudo bem.

E foi desta maneira que o dia 27 de Fevereiro de 2018, também vai ficar ligado às “Memórias boas da minha guerra”. E estou ciente de que este singelo acontecimento é merecedor de ficar registado na memória colectiva da Guerra do Ultramar…

FOI ASSIM:

No dia anterior gastei a tarde no Porto a tentar “apanhar” o Magalhães Ribeiro, para que me emprestasse alguns “adereços guerreiros” para eu criar na Escola um ambiente adequado à minha intervenção. Mas, mal experimentei o “dólmen” XL, verifiquei que seria difícil apertar os botões. Pensei que tirando mais duas camisolas poderia “emagrecer” o suficiente para o vestir. Todavia, à cautela, ainda em viagem, informei a minha mulher telefonicamente de que eu ia aproveitar para fazer uma caminhada e que ela deveria preparar um jantar frugal, bem como o almoço do dia seguinte, uma vez que eu teria que perder um bocadinho de barriga, para caber dentro da roupa militar emprestada.

Coberto pelo meu tradicional chapéu de abas largas (que, já em cena, trocaria por uma boina militar) e encoberto por uma avantajada casaca (que cobria o tal dólmen), apresentei-me na “Escola da Bandeira”, acompanhado pela minha mulher. Ali, tive a prestimosa colaboração profissional do Pai-Bel e da Professora Lara Lima.


Quando me apresentei fardado (de camuflado e boina) dentro da sala de aula, dei dois passos em frente e me apresentei à Professora (incluindo continência e “batedura” de tacões), foi o delírio dos seus alunos. Pedi-lhe então licença, para ler uma das histórias das “Memórias boas da minha guerra”, o que ela aceitou com satisfação.

Tive cuidado na aproximação ao assunto da guerra, que não foi referido na descrição e caracterização do ambiente militar em que a história decorre.
Por isso, avancei para a questão do “Bife à Dunane” sob o ponto de vista da “logística” que implicava a sua confecção, bem como da exigência profissional que seria compatível. E quando descrevi a figura do cozinheiro Madeirense, também conhecido como Senhor Badalhoco, foi um fartote de gargalhadas. A partir daqui, tivemos que dar algum tempo para ”recuperar o auditório”, no sentido de tentar controlar a risota, que era contínua.

O maior problema foi a sensibilidade de alguns alunos que insistiam em saber o que acontecera aos pintainhos que caíam na improvisada frigideira. Outros manifestavam-se muito mais interessados em ouvir as frases que eu pronunciava com sotaque madeirense, tentando imitar o cozinheiro.
Se não estivéssemos limitados pelo tempo, ainda agora lá estaríamos a responder aos mais entusiasmados.


Foi uma tarde inesquecível! Certamente que todas as crianças presentes falarão durante muitos anos desta sua experiência. E eu, que pouco tempo mais vou andar por aqui, não esquecerei jamais os momentos invulgares e belos que vivi.


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Nota:
Não poderia deixar de referir que, em determinado momento, me senti bastante comovido quando:
- A Mafalda se lamentou que o seu avô morrera na guerra e
- A Leonor contou que a sua avó, durante dois anos, só recebeu uma carta do avô, que não voltou da guerra.

JFSilva da Cart 1689
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18313: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (48): Clube de Cabuca