A nossa feira de setembro
1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.
Camaradas,
Em primeiro lugar, aplaudo a excelente iniciativa que nos faz recuar ao nosso tempo de meninos e moços; em segundo lugar, aplaudo, também, tudo o que tenho lido sobre esse tempo no nosso blogue; em terceiro lugar, mas com a devida vénia, vou colocar um texto que fez parte de um dos meus livros sobre a terra que viu nascer: Aldeia Nova de São Bento – Memórias, Estórias e Gentes, uma obra que vai na segundo edição.
O texto diz-nos como era a feira de setembro, 1, 2 e 3, na minha aldeia e os seus diversos contextos para uma miudagem que não perdia a oportunidade de acompanhar passo a passo o desenvolvimento de uma novidade, anual, que traziam normalmente novidades. Aliás, era assim esse já recuado tempo, pois, atualmente tudo mudou de forma radical.
A nossa feira de setembro
por José Saúde
A curiosidade da rapaziada ao longo da semana que antecedia a nossa feira que se realizava nos dias 1, 2 e 3 de setembro, apresentavam-se divinalmente ao rubro. A bisbilhotice da miudagem era interessante. Tudo começava quando se dava início ao colocar os postes de iluminação, o estender dos fios nos postes e o subsequente colocar das lâmpadas, assim como a definição das ruas.
Ciganos, “negociantes” de gado
A muito custo o vendedor lá ia cedendo ao preço lançado pelo comprador. Exemplificando: partindo do princípio que o vendedor pretendia dez notas, isto significava que uma nota, nesses tempos, era de 100 mil réis, sendo o preço lançado de mil réis, mas o comprador propunha o valor de 500 mil réis. Entretanto, aparecia o “cortador” a intrometer-se no negócio oferecendo, também, dinheiro para a compra do animal. Conversa puxa conversa, o vendedor fraquejava e o comprador avançava com mais uma nota. Chegava-se, finalmente, a um acordo e a passagem do dinheiro para a venda do animal ficar concluída.
Ao lado dos negócios do gado, situavam-se pequenas barrancas que continham os apetrechos para os animais. Cabrestos, chocalhos, albardas, golpelhas para transportar a palha, molins, arreatas, de entre outros utensílio
A corredora
Nesses tempos dizia-se que o primeiro dia era dos campaniços. Esta pressuposta dicotomia é-nos plenamente admissível. As pessoas viviam em montes dispersos na serra aldeã, logo, o dia era propício para se fazerem negócios. Havia que reforçar a frota com animais novos. A idade sabia-se pelos dentes das bestas. Mas, na feira compravam-se utensílios que não existiam normalmente na aldeia.
O povo enchia-se de gentes que, vestindo-se de grave, passeavam pela feira que assumia o estatuto de evento de grande porte. Comprava-se torrão, algodão doce, bugigangas, pratos, panelas de alumínio, tachos, cadeirões em buinho, jarras, molduras, jogava-se um tiro nas barracas onde as meninas, sempre solícitas, chamavam os clientes que no fim recebiam um miminho, andava-se no carrossel, conduziam-se os carros na pista, e, à noite, ia-se ao circo.
Havia, ainda, quem se dedicasse aos jogos de lazer, onde o objetivo passava por trazer algo para casa ou umas moedinhas para os bolsos, ou desembolsar os tostões que lhe fugiam inadvertidamente da algibeira. Existiam também as barracas de comes e bebes e um frango assado na brasa, naquele tempo, apresentava-se como repasto de se lhe tirar o chapéu.
A rua que dava acesso à feira, aquela que se situa entre o Largo do Rossio pequeno e o Rossio grande, estava apetrechada com barracas de fruto, particularmente de peros amarelos, sendo o seu cheiro deveras divinal, sobretudo ao longo da noite. Ou de barrancas onde se vendiam as mantas trazidas pelos vendedores vindos das Beiras, onde se comercializavam os safões, as pelicas, com a famosa lã de ovelha, as mantas, de entre outros agasalhos de inverno.
Lembro, também, a visita dos forasteiros que se instalavam nas tabernas onde mastigavam os seus farnéis. Puxavam de um “talego” e lá vinham os bons nacos de presunto, ou de paios, ou de toucinho com “vieirinho” magro, que acompanhavam com o vinho, ou cerveja, arrefecidos no fundo do poço localizado no quintal, pois nesses tempos não havia frigoríficos, sendo que nessas vendas aconchegavam os seus estômagos. Existia, ainda, a possibilidade de refrescar a bebida, comprando-se barras de gelo na fábrica que os taberneiros colocavam em alguidares de barro.
O terceiro dia de feira era o mais forte. Pelo menos foi essa a impressão com que o povo ficou e que ainda hoje preservo. O circo, por exemplo, cedo anunciava “grátis às damas, damas grátis” e a plebe enchia as bancadas à volta da pista do espetáculo.
Nós, então crianças, delirávamos com a magia do espetáculo. Os contorcionistas, os palhaços (o rico e o pobre), os trapezistas, os ilusionistas, os malabaristas, o trabalho com animais ferozes feito pelos domadores, enfim, uma amalgama circense que nos levava a inimagináveis sonhos.
À entrada da feira, à esquerda, situava-se, habitualmente, a barraca do Favinhas, um retratista que fora, sem dúvida, um homem que fotografou milhares pessoas cujas imagens são agora restos de saudade. Não fora ele não existia hoje reproduções dos nossos antepassados.
Assim era, em resumo, a nossa feira de setembro!
Um abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série de 1 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24716: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (4): A minha primeira viagem, de camioneta, a Lisboa, com 9 anos (Eduardo Estrela, Faro)