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terça-feira, 28 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23391: A galeria dos meus heróis (46): uma história pícara de três “a(r)didos” - II (e última) Parte (Luís Graça)



Guiné > Região de Bissau > Brá > Depósito de Adidos > Junho de 1969 > O Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69), na sua função de Oficial de Dia. "Normalmente fazia as minhas rondas na minha própria motorizada, quando não tinha jipe disponível, uma vez que a área a percorrer era grande. Tinha uma extensão à volta de 1000 metros, de frente para a estrada, e uma quantidade indeterminada de instalações militares. A minha motorizada era uma Honda Azul, de 50 cc, que depois, quando regressei, deixei por lá abandonada. Pode observar-se a existência de valas abertas fundas, para escoamento das chuvadas diluvianas, quando apareciam. Em finais dos anos 40, havia aqui um campo de aviação."

Foto (e legenda): © Virgílio Teixeira (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné, região de Bafatá. Contuboel,
junho de 1969: o autor



A galeria dos meus
heróis: uma história
pícara de três
“a(r)didos” - II 
(e última) Parte 

por Luís Graça (*)


7. Tirando eventualmente um ou outro serviço, que eu não sei se chegaram a fazer (como “sargento de dia” ou “polícia de unidade”) e o facto de dormirem mal e comerem ainda pior, no Depósito Geral de Adidos (DGA), na Calçada da Ajuda  (só o termo “depósito” era um “achado”!), os nossos três “a(r)didos”, o Parente, o "Matosinhos" e o "Algarvio"  não se podiam queixar: afinal tiveram um prolongamento inesperado das férias (se bem que curtas, de duas ou três semanas), em Lisboa, enquanto aguardavam o embarque no “cruzeiro para a África de todos os sonhos” (de acordo com o prospeto da “agência de viagens” da tropa…).

Podiam ter ficado em casa de família ou numa pensão, mas por razão ou outra (e sobretudo "financeira"), optaram pela incomodidade dos Adidos, para mais tratando de um quartel que, naquele tempo,  ficava um bocado "fora de mão", na Ajuda.
 
Como compensação pelo sacrifício, "deu para beber uns copos” bem como para uma ou outra escapadela aos cinemas da Baixa e aos bares do Cais do Sodré, que estavam então na moda (e continuaram a estar até hoje, sobretudo com a criação da rua pedonal, a Rua Cor de Rosa, há cerca de anos atrás). Ficara  até prometida uma “visita secreta” ao Bairro Alto, que o “Matosinhos” e o “Algarvio” mostraram alguma curiosidade em conhecer… Por uma razão ou outra, o Parente ainda não os tinha levado lá, mas a surpresa ficaria guardada para a véspera do dia do embarque.

No regresso ao DGA, apanhavam o elétrico, o autocarro ou, às vezes, o comboio até Belém,  e subiam depois a Calçada da Ajuda, a pé… Tinham que entrar até à meia-noite, naquele tempo o “Matosinhos” e o “Algarvio” ainda eram 1ºs cabos milicianos mas já alinhavam nas escalas de serviço dos sargentos. Com a guerra, havia falta de sargentos e oficiais, o que era colmatado com o recurso aos milicianos. Mão de obra “escrava”, diga-se de passagen, paga a 90 escudos por mês (o valor do pré de então…), equivalente hoje a 28 euros…

− Mas também se ganha mal e porcamente na vida civil – contemporizava o Parente. – Agora, quando voltarem da Guiné, vivos e inteiros, vocês já poderão comprar carro, montar casa e casar!

− Não me f…! – interrompeu o “Matosinhos”. – Não haverá dinheiro que pague o sacrifício da nossa juventude… A madrasta da Pátria paga-nos para matar e para morrer…

− Não sejas tão panfletário, já pareces o Manuel Alegre aos microfones da rádio Argel… A maior parte da malta vai ter as férias que nunca sonhou ter!... Férias, ainda por cima, pagas!... – ironizou o sargento.

− Férias ?!...

− Olha, eu não quero outra vida. Já vou na 3ª comissão… É verdade que também não sei...  fazer mais nada!

− Grande malandro, tinhas dado um belo padre – ouviu-se a voz do “Algarvio”, do fundo do cadeirão.

− Pois era, mas o sacana do falangista f… o nosso Parente! − comentou o “Matosinhos”.

− Ele é que foi ingénuo. Nunca ouviste dizer: “Em Roma sê romano” ?!... Tinha obrigação de conhecer as regras da casa, foi pobre e mal agradecido − arrematou o "Algarvio", seco e contundente.


8. A cena mais pícara destes três “a(r)didos” foi quando o Parente convidou os outros dois para “irem às meninas” (sic) na véspera do embarque no “Niassa”. O “Matosinhos” e o “Algarvio” entreolharam-se, com um certo olhar de espanto, e terão respondido ao desafio, com uma pitada de humor negro:

− E porque não ?!...  Só Deus sabe se voltaremos a casa, vivos e inteiros!
 
− Sobretudo inteiros, com os ditos cujos “en su situ”! – atalhou, malicioso, o sargento.

Quase instintivamente, o "Matosinhos"  levou as mãos ao baixo ventre para se certificar que ainda lá estavam, inteiros, os “tintins”…

O Parente não conseguiu deixar de soltar uma sonora gargalhada:

− Façam de conta que é uma despedida de solteiro!... Mas primeiro vamos beber uns copos. E eu pago a primeira rodada!

Como estava previsto o navio largar amarras às 11h00 da manhã, do dia 24 de maio de 1969, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, o Parente não quis arriscar deixar a surpresa para o próprio dia do embarque, o que teria tido muito mais "pica"... 

No fim da tarde do dia anterior, sexta-feira meteram-se num táxi, e “ala, moço, que se faz tarde”, a caminho do Bairro Alto. (As malas já haviam seguido, entretanto numa viatura dos Adidos, e, mais importante, haviam conseguido  dispensa de pernoita, seguindo na manhã do  outro dia diretamente para o "Niassa", como eu, de resto, que vim, durante toda a noite, em comboio, do Campo Militar de Santa Margarida para o Cais da Rocha Conde de Óbidos.)

Tinham, pois,  a noite toda por conta deles,  suspirava, feliz, o safado do sargento. Mas antes haveria que celebrar o evento com uma mariscada, na cervejaria "Trindade". No dia seguinte era sábado e nessa altura ainda se trabalhava aos sábados, e o Bairro Alto deveria estar animado de gente laboriosa. (É bom lembrar que a chamada semana inglesa, as 45 horas de trabalho semanal, com um dia e meio de descanso em cada sete, é uma conquista dos trabalhadores do comércio portugueses, só conseguida justamemte nesse ano, em 1969.)

A “Sissi”, a “Rita Pavone” e a “Mudinha” foram as três mulheres com quem os nossos “a(r)didos” passaram essa noite  de 23 para 24 de maio de 1969. Na cama, como eles depois me contaram. Ou melhor, quem me 
contou essa cena, digna de figurar no melhor livro do nosso humor de caserna, foi o “Algarvio”, que era, dos três, o mais sensato, o mais discreto, o mais sóbrio, o melhor observador e quiçá o  melhor contador de histórias que eu conheci …

Os nomes de guerra das três mulheres podem não ser estes, mas para o caso também não  é  relevante. A “Sissi” era a patroa, tinha uma “casa de bonecas”,  perto da “Princesa da Atalaia” (uma tasca que eu virei a conhecer mais tarde, dez anos depois. em 1979)... Com a  extinção das casas de passe, em 1963, fora a maneira da "Sissi" de contornar a lei e manter o negócio: alugava quartos a raparigas ("que vinham da província").  Com ela trabalhavam a “Rita Pavone” e a “Mudinha” (assim conhecida por ser muda) e, ocasionalmente, mais algumas que ali faziam o seu "biscate".

Como era habitual terem clientes na sexta feira à noite, o Parente tratou de tudo, previamente e reservou três quartos... Imagine o leitor o que era o Bairro Alto de há mais de 50 anos atrás, ainda com prostituição de rua (tolerada, se bem que ilegal).

A “Sissi”, como velha conhecida do Parente, combinou com as outras duas raparigas e facilitou as apresentações. O prédio  compunha-se de rés-de-chão (ainda com os famosos “aventais de pau”, as "meias-portas" onde no passado as mulheres se mostravam, debruçadas para a rua), primeiro andar e águas furtadas. 

 Era uma construção ou reconstrução oitocentista, de pé direito alto. As divisões eram minúsculas, mal cabendo nos quartos uma cama, uma mesinha de cabeceira e um pechiché, com um espelho (onde as raparigas tinham a tralha para a maquilhagem, os cosméticos, os pós de arroz, os batons, os vernizes). O rés-de-chão, compunha-se de um pequeno vestíbulo, com um reprodução  do quadro a óleo do José Malhoa, " O Fado" (1910), na parede;  uma  pequeno  cozinha, a casa de banho (reduzida a um retrete, lavatório e pouco mais), um roupeiro e ainda um saleta de costura. (Oficialmente, a "Sissi" era costureira, e tinha os impostos em dia.)

Havia ainda umas águas furtadas, acrescentava o "Algarvio", meticuloso na reconstituição da cena e do cenário que fez para mim a bordo do "Niassa"... Ali a “Sissi” tinha a sua “suite” (sic)  e um pequeno salão onde recebia os “hóspedes” mais íntimos… (O Parente achava que ela beneficiava de alguma proteção da gente do poder.)

− O teu gajo hoje está por aí ?! – interrogou, cauteloso, o Parente.

− Já não preciso de “guarda-costas” e muito menos de “Júlios” – respondeu, seca mas orgulhosa, a “Sissi”. 

O sargento ficou a “matar saudades” com a sua antiga “chavala” de há uns atrás. O “Matosinhos” e o “Algarvio” tiraram à sorte quem ficava com as outras duas: é que uma era mesmo “muda”…

− Muda, mas felizmente, não é cega nem é surda – encolheu os ombros, o “Matosinhos”, resignado com a sua (má) sorte, ele que logo simpatizara com a “Rita Pavone”, que falava pelos cotovelos, e tinha umas lindas sardas, que lhe fazia lembrar a sua primeira namorada do tempo de escola.

Fiquei depois a saber, pelo relato do “Algarvio”, que a “Mudinha” fora adotada pela “Sissi” como “afilhada”… Tinha sido violado, ao que se dizia,  pelo padrasto, em Setúbal, onde vivia e estudava no liceu. O gajo era uma granjola da máfia da estiva. A rapariga acabou por cair na “má vida” e veio para Lisboa, "por portas e travessas". A ”Sissi” acolheu-a.

Mas, afinal, quem mais se divertiu, dos três “a(r)didos”, nesse sexta feira à noite  inesquecível, foi o “Matosinhos”. A “Mudinha” era uma verdadeira figura dos contos das Mil e Uma Noites, capaz de satisfazer as mais exigentes fantasias eróticas dos “clientes”. A sua “especialidade” era exemplificar, ao vivo, algumas das mais ousadas e acrobáticas  posições do Kama Sutra…

E tinha um inusitado sentido de humor negro. Quando convidou o “Matosinhos” a fazer o “69”, este recusou, com alguma brusquidão e irritação, típica do macho latino… Ela então “rogou-lhe a sua famigerada maldição” (sic), um delicioso aforismo que é uma obra-prima do linguajar do "bas-fond":

− Quem não faz sessenta e nove, não chega… aos cem!

 Mesmo assim o tempo foi curto para tantas “lições”... O "Matosinhos" fez questão de mandar vir "champagne de Sacavém" e 
o par trocou de galhardetes e de endereços postais. A rapariga, sabendo que ele, “tadinho", ia para o "ultramar”, fez-lhe até um desconto e não lhe levou nada pelas “aulas extras”. O “Matosinhos” prometeu-lhe que escreveria da Guiné, e que, nas férias, lhe traria um colar de missangas, conforme pedido expresso da rapariga… Ela comunicava através de notas, a lápis, num caderno escolar, a par da linguagem gestual.

Não sei se o “Matosinhos” chegou a vir de férias. E se, muito menos, cumpriu o prometido,    voltar à Rua da Atalaia com o colar de missangas  e acabar o resto das aulas... enquanto a sua namorada o esperava, ansiosa, a 300 km mais a norte... (Nem nunca mais poderei saber se ele chegou a casar com ela, a menos que me dê sinais de vida, o que me parece pouco provável.)


 9.  Ainda foram, para a despedida,  ao cacau da Ribeira, no Cais do Sodré,  antes de rumarem diretos ao Cais da Rocha Conde de Óbidos, a pé. Já estavam os três com um grãozinho na asa, ou pelo menos eufóricos, quando passaram pelas senhoras do Movimento Nacional Feminino, e receberam o maço de cigarros “Três Vintes” e a medalhinha de Nossa Senhora de Fátima a que tinham direito.

Mas, logo à entrada do “Niassa”, junto às escadas que levavam ao portaló, ia havendo uma “bronca de todo o tamanho" (sic), com o “Matosinhos” e uma das “meninas da Cilinha”. Ele depois explicou-se, já mais calmo, no bar do navio: o que mais o irritara, fora o sorriso piedoso, cínico, amarelo, de uma delas, por sinal a que parecia mais nova, mas já "trintona, balzaquiana, com ar de solteirona" (sic)...

− A fulana estava a pedi-las! − desculpou-se ele.

O “Matosinhos” vinha eufórico, mas ali, no cais, ao cair na realidade e ao ser confrontado com o seu imperioso dever como militar, que era embarcar,  rumar  à Guiné, pegar na G3, ir para o mato e  defender a Pátria…, teve de repente uma “tirada infeliz” (reconheceria mais tarde), quando a senhora do MNF lhe “desejou boa sorte e a bênção de Nossa Senhora de Fátima” (sic)…

Ele não sabe o que é que  lhe deu na veneta..., mas  "passou-se dos carretos” (sic) e respondeu-lhe ao ouvido, para que as outras, ali à volta,  não dessem conta e armassem um escarcéu:

− Em matéria de santas, gosto mais da minha mãe e da senhora de Matosinhos, a nossa padroeira… E a si, minha querida senhora, que não deve ser santa mas ainda tem um lindo palminho de cara, e um belo par de marmelos,  eu dava-lhe mas era uma valente trancada patriótica!… Mas venho do Bairro Alto, de papo cheio, e agora a Pátria chama-me, e outros valores mais altos se 'alevantam'…

Não sei se a senhora percebeu patavinha do palavreado, já meio empastelado,  do “Matosinhos”… Só deve ter reagido à referência ao mal afamado Bairro Alto… Corou, Ficou afogueada,  e mal teve tempo de balbuciar:

− Ai, senhor furriel!... Mas que pessoa tão inconveniente e mal educada!…

E terá feito um gesto de pedido de socorro ao piquete da Polícia Militar que estava à entrada do cais, controlando os civis, de costas para o navio, pelo que os PM não terão sequer assistido à cena…

O Parente, felino,  é que não teve com meias medidas… À cautela, dei logo um valente puxão ao colarinho do "Matosinhos", arrastando-o pelas escadas acima até ao portaló!... Entraram os três, de roldão,  no navio, e só pararam no bar...Pediram três uísques duplos,  e comentaram, aliviados e bem dispostos, as peripécias daquele "dia inesquecível"…

Crachá do Depósito de Adidos, Brá.
Cortesia de Augusto Silva Santos (2013)

10. No dia 30 de maio de 1969, logo pela manhã, cerca das 8h00, desembarcámos em Bissau. E fomos levados para o Depósito de Adidos, em Brá. E cada um foi para o seu lado, eu fiquei com a malta da minha companhia, num dos pré-fabricados.  Sei que ficámos numa camarata, em camas sem lençóis, com um cheiro insuportável, agravado pelo calor e humidade de Bissau.  Foi um horror, durante três dias, até acertar com a bebiba que matava a sede.

 No dia 2 de junho, eu segui em LGD pelo rio Geba acima até ao Xime, a caminho de Contuboel (via Bambadinca e Bafatá).  

Os três “a(r)didos” ainda lá ficaram, coitados, em Brá,  à espera de transporte, cada um para o seu destino. Ainda nos encontrámos no "Pelicano", se a memória não me atraiçoa. ... Mas mal tivemos tempo de nos despedirmo-nos. Nunca mais os vi, mas espero que tenham conseguido regressar a casa, sãos e salvos, "vivos e inteiros"… Eu, por mim,  regressei, vivo, em março de 1971,  mas com a morte na alma...


11. Tem piada, durante anos não me lembrei mais desta(s) história(s) picara(s) dos três “a(r)didos"... Como tantas outras que me fariam correr o risco de "voltar à Guiné", tentação essa a que fui resistindo durante os primeiros anos da "peluda",  fechando as memórias da guerra com um cadeado a sete chaves. 

Para mim a Guiné, "c'est fini", dizia eu... Até que, uma década depois, no 2º trimestre de 1979, dei de caras com a placa com o nome da rua, a Rua da Atalaia… Foi um choque. Aprendiz de etnógrafo, a acabar o curso de sociologia, andei dias e dias, semanas e semanas, ao fim da  tarde, a caminho daquela rua, com o meu grupo de trabalho,  para apanhar histórias de vida, e registar letras e músicas dos velhos e velhas frequentadores da “Princesa da Atalaia”, uma tasca, uma das poucas, onde ainda se cantava o “fado vadio”… 

Então estas recordações vieram à tona de água, em catadupa... Tive que as registar. Pensei, como etnógrafo, que um dia alguém se iria interessar pelas "memórias da guerra colonial" (ou do ultramar), um objeto de estudo  que se calhar deveria merecer a mesma atenção  que o fado, "canção popular urbana", lisboeta,  em risco de extinção no pós-25 de Abril... 

Peguei no meu caderno de notas  e escrevi um primeiro esboço desta história... que ficou entretanto em banho maria e depois esquecida até agora... Mas hoje pergunto-me: se calhar ainda me cruzei,  sem o saber, em 1979, com a “Sissi”, a “Rita Pavone” e a “Mudinha”,  as três "meninas" com quem os meus companheiros  do "cruzeiro do Niassa" passaram as primeiras horas do dia 24 de maio de 1969. Na cama,  no bem-bom, a acreditar na história, bem pícara e hilariante, que me foi contada por um deles, o "Algarvio"... (Claro que com dez anos a mais estariam precocemente envelhecidas, e quiçá irreconhecíveis.)

Se resgato, hoje, esta história, ao fim de mais de meio século no limbo da memória, é porque afinal ela pode ter algum interesse para se conhecer um pouco melhor... a "idiossincrasia" da geração dos últimos soldados do império,   os que fecharam um ciclo de 500 anos... Não eram santos nem heróis, muito menos gigantes, daqueles talhados no bronze e na pedra ou imortalizados nos versos épicos do Camões... Eram apenas  "arraia-miúda", gente vulgar,  de quem nunca reza a História...

O Parente, o "Matosinhos", o "Algarvio", os três "a(r)didos", tal como a "Cilinha" e as suas senhoras,  ou a "Sissi" e as suas meninas, também faziam parte, afinal, da pequena história da História (com H grande)... 

Luís Graça

Lourinhã, 24 de maio de 2022, 
53 anos depois do embarque no T/T Niassa com destino à Guiné.
_________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 27 de junho de 2022 > Guiné 61/74 - P23389: A galeria dos meus heróis (46): uma história pícara de três “a(r)didos” - Parte I (Luís Graça)

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3703: Cancioneiro de Aldeia Formosa (1): Que canseira passámos na coluna / entre Buba e Aldeia ... (José Teixeira / Silvério Lobo)

1. Mensagem enviada a toda a Tabanca Grande pelo nosso querido co-editor e administrador Carlos Vinhal, com data de 7 de Novembro, e que eu julguei dever publicitar através do blogue:

Caros camaradas e amigos tertulianos

O nosso camarada José Teixeira [, na foto, à esquerda, em Empada, em traje de guerra, ] enviou-me o endereço onde está alojado um pequeno vídeo feito na Guiné-Bissau durante o Simpósio Internacional de Guiledje quando eles visitaram uma série de localidades [no sul, no Cantanhez, região de Tombali, incluindo Aldeia Formosa, esta a 3 de Março de 2008, já no regresso a Bissau].

Este endereço foi colocado no poste Guiné 63/74 - P3413: Blogoterapia (71): O regresso voluntário à África da nossa juventude (José Teixeira) .

Aconselho-vos a ver estas imagens a partir do citado poste ou em: http://video.msn.com/video.aspx/?mkt=pt-br&cid=2997719327111784874&wa=wsignin1.0


Um abraço do
Carlos Vinhal

2. Comentário de L.G.:

Neste vídeo, da autoria do Zé Teixeira [, ou do Silvério Lobo, ou ainda de um terceiro camarada que foi com eles a Quebo,] com a duração de 2' 45'', vemos dois guineenses, um mais jovem e um mais velho (este último possivelmente um antigo soldado da CCAÇ 18), reconstituindo para o nosso camarada Silvério Lobo, que foi logo reconhecido por um deles como antigo mecânico nesta subunidade, algumas das canções dos tugas...Chamemos-lhes o Cancioneiro de Aldeia Formosa...

A primeira era a romantiquíssima canção do brasileiro Nilton César que fazia chorar as pedras da calçada... Era muito popular entre pessoal que vivia como as toupeiras nas casernas da Guiné, e que suspirava pelo dia de regresso a casa, para os braços da sua amada, como qualquer soldado de qualquer guerra, em qualquer época ou lugar do mundo... É espantoso como guineeneses como estes - que conviveram com os militares portugueses, mas que mal sabiam falar português, que eram fulas e islamizados - tenham decorado a letra e a música desta e doutras canções, ininteligíveis para eles... Pode-se admitir que a linguagem do amor é universal. No entanto, do ponto de vista semântico-conceptual, para estes homens, fortemente formatados pelo patriarcalismo e pelo sexismo da sua sociedade de origem, expressões em que se idealiza a mulher amada (como "namorada que sonhei", "rosas vermelhas", "dia dos namorados", "eternos namorados", "deusa na terra nascida, etc.), não deveriam ser de fácil descodificação.

A Namorada Que Eu Sonhei
por Nilton César

Receba as flores que lhe dou
E em cada flor um beijo meu,
São flores lindas que lhe dou,
Rosas vermelhas com amor,
Amor que por você nasceu.

E seja assim por toda a vida
E a Deus mais nada pedirei,
Querida, mil vezes querida,
Deusa na terra nascida,
A namorada que sonhei.

No dia consagrado aos namorados,
Sairemos abraçados por aí a passear,
Um dia no futuro então casados,
Mas eternos namorados,
Flores lindas, eu ainda vou lhe dar.

Que seja assim por toda a vida
E a Deus mais nada pedirei,
Querida, mil vezes querida,
Deusa na terra nascida,
A namorada que sonhei.


As outras duas eram paródias, feitas por algum tuga mais letrado ou com jeito para o verso de pé quebrado, de dois fados muito populares, muito conhecidos, com letras que relatavam invariavelmente a triste sorte dos mecânicos, dos condutores e das suas gloriosas máquina de guerra nas colunas logísticas de Buba para Aldeia Formosa e vice-versa. O tema são as canseiras, o pó, as minas, as emboscadas, os sustos, os perigos...

É preciso estar de ouvido muito apurado para perceber as letras (corrompidas)... Sobretudo é preciso tempo e pachorra. Mas era interessante alguém (o Zé Teixeira ou o Silvério Lobo) poder mandar-me as letras originais completas.

Mais uma vez pode perguntar-se que sentido podia fazer para um estrangeiro - como era o caso daqueles camponeses fulas que tinham pegado em armas, ao lado dos portugueses - a letra original destes fados... O mesmo se podia perguntar em relação a alguns militares portugueses, oriundos do Portugal profundo, pouco escolarizados e viajados, que não conheciam Lisboa, o Bairro Alto, a cultura e a vivências fadistas...

No entanto, eram canções que passavam na rádio, e que entravam facilmente no ouvido. O mais interessante é, no entanto, a recriação da letra: aí fala-se do quotidiano comum dos soldados, guineenses e portugueses, dos riscos comuns, da cumplicidade, da solidariedade, dos comportamentos de bravata, do heroísmo, da camaradagem...

Bairro Alto (Letra: Carlos Simões Neves e Oliveira Machado
Música: Nuno de Aguiar)

Bairro Alto, com seus amores tão delicados,
Certa noite, deu nas vistas,
E saiu com os trovadores mais o fado,
P'ra fazer suas conquistas.
Tangeu as liras singelas,
Lisboa abriu as janelas,
Acordou em sobressalto,
Gritaram Bairros à toa,
Silêncio velha Lisboa,
Vai cantar o Bairro Alto.


[Estribilho]

Trovas antigas,
Saudade louca,
Andam cantigas
A bailar de boca em boca...
Tristes, bizarras,
Em comunhão,
Andam guitarras
A gemer de mão em mão!


Por isso é que mereceu fama de boémio,
Por condão ou fatalista,
Atiraram-lhe com a lama, como prémio,
Por ser nobre e ser fadista.
Hoje saudoso e velhinho,
Recordando com carinho,
Seus amores, suas paixões,
P'ra cumprir a sina sua,
I'nda veio p'rá meio da rua,
Cantar as suas canções!


A outra canção parodiada era a da célebre criação da Amália, o fado Dar de beber à dor (letra e música de Alberto Janes). Como é sabido, a Casa da Mariquinhas - leia-se, casa de passe gerida por uma tal Mariquinhas, terno diminuitivo de Maria - é uma genial criação do Alfredo Marceneiro, um íncone da história do fado.

Foi no Domingo passado que passei
à casa onde vivia a Mariquinhas,
mas 'stá tudo tão mudado
que não vi em menhum lado
as tais janelas que tinham tabuinhas.
Do rés-do-chão ao telhado
não vi nada, nada, nada
que pudesse recordar-me a Mariquinhas,
e há um vidro pregado e azulado
onde havia as tabuinhas.

Entrei e onde era a sala agora está
à secretária um sujeito que é lingrinhas,
mas não vi colchas com barra
nem viola, nem guitarra,
nem espreitadelas furtivas das vizinhas.
O tempo cravou a garra
na alma daquela casa
onde as vezes petiscávamos sardinhas
quando em noites de guitarra e de farra
estava alegre a Mariquinhas.

As janelas tão garridas que ficavam
com cortinados de chita às pintinhas
perderam de todo a graça
porque é hoje uma vidraça
com cercadura de lata às voltinhas.
E lá p'ra dentro quem passa
hoje é p'ra ir aos penhores
entregar ao usurário umas coisinhas,
pois chega a esta desgraça toda a graça
da casa da Mariquinhas.

P'ra terem feito da casa o que fizeram
melhor fora que a mandassem p'rás alminhas,
pois ser casa de penhores
o que foi viveiro d'amores
é ideia que não cabe cá nas minhas
recordações do calor
e das saudades. O gosto
que eu vou procurar esquecer
numas ginginhas,
pois dar de beber à dor é o melhor,
já dizia a Mariquinhas.


O mínimo que posso dizer é que é uma ternura ver estes antigos soldados da CCAÇ 18 (?), em princípio fulas, nossos aliados de outrora, a dar o seu melhor e a tentar fazer uma surpresa aos velhos tugas - seus camaradas de armas de outrora e que agora voltam a Aldeia Formosa, em viagem de saudade -, esforçando-se por cantar as suas velhas canções que serviam, lá no cu do mudo, para espantar o medo, os fantasmas, o tédio, a revolta contra o absurdo, a angústia, a saudade. (Uma receita de humor que, de resto, continua válida para os não menos duros tempos de hoje...).

Amigos e camaradas da Guiné: este é um material precioso (mas muito perecível), que temos que recolher, preservar e divulgar. Ele é tão importante como as nossas histórias para a compreensão sócio-antropológica do nosso quotidiano de combatentes na Guiné (*)... LG

3. Nota posterior do Zé Teixeira:

O seu a seu dono. Eu estive em Aldeia Formosa. Encontrei-me com pessoas amigas, mas não sou o autor da gravação. O Lobo volta lá de mota depois de ter "subornado" o jovem motoqueiro algarvio que nos acompanhou na viagem [em Março de 2008] e passou lá um dia inteiro.

Sei que o primeiro cantor era um puto que andava pela oficina nos anos 73 e reconheceu o Lobo, identificando-se como o puto reguila como então o Lobo o identificava, pela sua esperteza. Em resumo quem fez a gravação foi o Lobo ou o Motoqueiro.

De facto, é impressionante a forma como aquele simpática gente nos recebe. Muito gostava que o Lobo escrevesse o que sentiu quando o Puto o chamou pelo nome, se identificou e perguntou por alguns camaradas do tempo da guerra, entre os quais o Carmelita, nosso companheiro na Tabanca de Matosinhos [, tal como o Silvério].
__________

Nota de L.G.:

(*) Até ao momento temos recolhas de letras (nalguns casos, também de músicas) de canções de caserna, cantadas em vários sítios da Guiné (mas também de poesia com a cor local...): Bafatá, Bambadinca, Bissau, Canjadude, Cufar, Cumbijã, Cuntima, Empada, Gandembel, Mampatá, Mansoa, Xime/Ponta do Inglês... Seguramente que haverá, por aí, cópias de muitos mais poemas e letras de canções... Talvez um dia o nosso blogue possa reunir todo esse material e fazer uma edição crítica do... Cancioneiro da Guiné!

Vd. o último poste dedicado a outro Cancioneiro, o de Bambadinca > 7 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3582: Cancioneiro de Bambadinca (2): Brito, que és militar... (Gabriel Gonçalves, ex-1º Cabo Cripto, CCAÇ 12, 1969/71)