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quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24874: Agenda cultural (845): A minha festa, em Leça do Balio, no passado dia 18: o lançamento do meu livro "O Universo que habita em nós" (José Teixeira, Matosinhos)


Foto nº 1 > Matosinhos > Leça do Balio > Centro Cultural > 18 de novembro de 2023 > Apresentação do livro "O universo que habita em nós" > "Na Mesa da Presidência, além do autor e do meu filho Tiago estavam o Eduardo Moutinho Santos, camarada e amigo dos tempos da Guiné, e sua esposa, a Maria José"... A sessão foi iniciada com um momento musical.


Foto nº 2 > Matosinhos > Leça do Balio > Centro Cultural > 18 de novembro de 2023 > Apresentação do livro "O universo que habita em nós" > O Eduardo Moutinho, além de ter feito a sua intervenção própria, falando sobre o autor, seu velho amigo e camarada dos tempos da Guiné, também aceitou de bom grado e com grande nobreza ler o texto da apresentação do livro à comunidade, da autoria do nosso editor Luís Graça, que por razões pessoais, não pôde estar presente no evento.


Foto nº 3 > Matosinhos > Leça do Balio > Centro Cultural > 18 de novembro de 2023 > Apresentação do livro "O universo que habita em nós" > Aspeto da assistência: perto de oitenta participantes


Foto nº 4 > Matosinhos > Leça do Balio > Centro Cultural > 18 de novembro de 2023 > Apresentação do livro "O universo que habita em nós" > Outro aspeto da assistência, onde se encontravam muitos amigos e alguns camaradas da Guiné


Foto nº 5 > Matosinhos > Leça do Balio > Centro Cultural > 18 de novembro de 2023 > Apresentação do livro "O universo que habita em nós" > Sessão de autógrafos. Um combatente, vendo-se à sua esquerda o Capitão Leite Rodrigues, da Tabanca de Matosinhos.


Foto nº 6 > Matosinhos > Leça do Balio > Centro Cultural > 18 de novembro de 2023 > Apresentação do livro "O universo que habita em nós" > Sessão de autógrafos. Um jovem amigo que veio de Mira para dar um abraço.


Foto nº 7 > Matosinhos > Leça do Balio > Centro Cultural > 18 de novembro de 2023 > Apresentação do livro "O universo que habita em nós" > Sessão de autógrafos. Familiares. O Prof. Marques dos Santos e esposa.


Foto nº 8 > Matosinhos > Leça do Balio > Centro Cultural > 18 de novembro de 2023 > Apresentação do livro "O universo que habita em nós" > Encontro de amigos. O Dr. Carlos Gonçalves, meu médico assistente e a esposa.


Foto nº 9 > Matosinhos > Leça do Balio > Centro Cultural > 18 de novembro de 2023 > Apresentação do livro "O universo que habita em nós" > O Prof. Nuno Carvalho que colaborou nas campanhas de angariação de fundos poços de água, na Guiné.


Foto nº 9 > Matosinhos > Leça do Balio > Centro Cultural > 18 de novembro de 2023 > Apresentação do livro "O universo que habita em nós" > A Armanda em amena cavaqueira com o Eduardo e a esposa, Maria José


Foto nº 10 > Matosinhos > Leça do Balio > Centro Cultural > 18 de novembro de 2023 > Apresentação do livro "O universo que habita em nós" > O escritor e combatente José Ferreira, à esquerda, e um amigo de infância.

Fotos (e legendas): © José Teixeira (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Capa do livro
José Teixeira


1. Mensagem do nosso amigo, camarada e escritor José Teixeira (Matosinhos):

Data - segunda, 20/11/2023, 21:34
Assunto - Apresentação do livro

Passou o dia, passou a romaria,

...mas ficou um coração deslumbrado pela amizade que me rodeou, e carregado de belas e esfuziantes emoções.

Assim foi a linda tarde de sábado passado no Centro Cultural de Leça do Balio, no lançamento do meu livro – !O Universo que habita em nós".

O Salão Nobre de Leça do Balio estava praticamente cheio. Cerca de oitenta pessoas, amigas e amantes da leitura de bons livros, quiseram honrar-me com a sua presença.

Na Mesa da Presidência, além do autor e do meu filho Tiago, estavam o Eduardo Moutinho Santos, camarada e amigo dos tempos da Guiné e sua esposa, a Maria José, que eu tive o gosto de conhecer e admirar pela coragem de ir passar o Natal de 1969 com o marido e com a comunidade militar estacionada no Sul da Guiné. Uma presença feminina, apenas com 19 anos que deu uma vida nova ao último Natal que passei na Guiné.

Ausente da mesa, mas com lugar reservado no meu coração e de alguns dos convidados, estava o Luís Graça, que por razões pessoais, não pode estar presente para fazer a apresentação do livro à comunidade, tendo delegado no Eduardo Moutinho essa tarefa.

Com a sala cheia e o meu coração a transbordar de emoções, iniciou-se a Sessão de apresentação do livro, com dois trechos de música clássica, que os jovens alunos da Escola de Música, Teatro e Artes da Paróquia de Custóias nos presentearam.

De seguida, o Eduardo Moutinho, falando em seu nome, contou um pouca das suas vivências com o autor desde os tempos em que foi seu comandante em Empada na Guiné, já lá vão cinquenta e quatro anos.

A apresentação do livro remeteu-a para o texto que iria ler a seguir, por mandato, do amigo comum, Luís Graça, que segundo ele, diz tudo sobre as quinze histórias contidas no livro.

Obrigado, Eduardo, pelas tuas palavras e pela profunda amizade que nos une desde há longo tempo e tem vindo a ser enriquecida pelos anos fora.

Sobre o Luís Graça e antes de transcrever, com a devida vénia, as palavras que escreveu, quero afirmar e ao mesmo tempo agradecer a sua amizade, e por ter sido um dos principais responsáveis pela minha caminhada pela escrita dentro.

Mal nos conhecemos em 2005 e logo comecei a escrever por sua “pressão” para o Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné. Foi num pós-jantar em casa da sua cunhada, de saudosa memória na Madalena – Gaia, juntamente com um grupo de combatentes: O Marques Lopes, o saudoso Xico Allen, o Albano Costa presente na sala, e seu filho. Nunca mais me largaste Luís, e por isso, te estou mais uma vez muito grato.

Um chi-coração muito apertadinho para ti, meu “ermon”, e para a Alice, tua querida companheira das longas aventuras da vida.

Para entender a sua mensagem, nada melhor que transcrever o texto que o Luís teve a amabilidade de escrever. 
[Será apresentado aqui em próximo poste, como nota de leitura (LG).]

A Maria José, esposa do Eduardo, dissertou sobre o papel da mulher na sociedade, e a forma como eu enquadro as mulheres, pela positiva, no livro que escrevi.

Seguiu-se um momento musical.

De seguida o autor encerrou a Sessão, agradecendo aos intervenientes, aos presentes e ausentes, alguns por doença, outros por afazeres ou compromissos assumidos.

Seguiu-um Porto de honra e convívio entre os presentes.

A todas as pessoas que me honraram com a sua presença, e sobretudo os camaradas da Guiné, a minha profunda gratidão

José Teixeira
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Nota do editor: 

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24847: Notas de leitura (1633): “A Guerra Que a História Quer Esquecer”, por Elidérico Viegas; Arandis Editora, Outubro de 2023 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Novembro de 2023:

Queridos amigos,
Colaborador desde o n.º 0 do jornal tavirense de nome Postal, li em número recente a publicação de um livro de um camarada nosso que fez comissão entre 1971 e 1973 em Empada e Bissau. Pedi-lhe o livro, foi célere a responder, fiz a recensão para Tavira e considero que esta tem todos os condimentos para chegar aos meus confrades. Elidérico Viegas é uma personalidade algarvia com o nome ligado à vida turística. Entendeu agora passar a escrito as suas memórias, elas seguem o curso que qualquer um de nós seguiu: assentou praça nas Caldas da Rainha, especialidade em Tavira, cabo miliciano colocado no RI3, em Beja, ingressa na Amadora na formação da CCAÇ 3373; viagem no Niassa, instrução de aperfeiçoamento operacional em Bolama, ida para Empada, quartel isolado só com saída para Bolama entre os rios Buba e Tombali. Registou 36 flagelações em Empada, sem consequências maiores. Certamente focado num público de não ex-combatentes, tece considerações sobre a população, descreve o quartel, as dependências administrativas, um quotidiano com lavadeiras, viaturas e mecânicos, a horta, ação psicológica, enfim, todos os serviços próprios de qualquer unidade, dá-nos conta dos patrulhamentos e da vida operacional em geral. Referencia os diferentes oficiais e sargentos, continua a guardar um ódio de estimação ao capitão. E depois a vida mais serena no Comando de Defesa de Bissau. Deplora a indiferença com que o sistema político trata os ex-combatentes. É este, em suma, o testemunho que nos entrega.

Um abraço do
Mário



Os equívocos e os paradoxos em torno da guerra colonial, uma História adventícia

Mário Beja Santos

Colaborador desde o n.º 0 do Postal, um jornal tavirense que tem décadas, fundado pelo meu amigo Henrique Dias Freire, tomei nota da publicação por um antigo combatente da Guiné de um seu livro relativo à sua comissão na Guiné, isto na edição de 3 de novembro passado. Teço agora comentários ao livro que ele amavelmente me enviou. Elidérico Viegas foi furriel-miliciano da CCAÇ 3373, Os Catedráticos, companhia independente, desembarcaram em Bissau em 7 de abril de 1971, foram diretos a Empada, no sul da colónia, entre os rios de Tombali e Buba.

Procede à apresentação do seu livro um artigo publicado no Postal com as suas reflexões. Confesso que não partilho uma boa parte das suas opiniões e explico porquê. Escreve que “O facto de não haver muita coisa escrita sobre esse período difícil da nossa história recente, e das obras conhecidas serem geralmente ficcionadas, incentivou-me a escrever este livro”

O que não corresponde à verdade, há centenas e centenas de livros sobre a guerra colonial, abarcando investigação histórica, ensaio, romance, novela, poesia, diários e memórias; os antigos combatentes movimentam-se ainda hoje à volta de reuniões anuais, são encontros por todo o país, aparecem antigos combatentes, filhos e netos; há blogues, entre os dedicado à Guiné, porventura o mais influente de todos os blogues de antigos combatentes, chama-se Luís Graça & Camaradas da Guiné, onde irei informar os leitores desta narrativa do Elidérico Viegas; além disso, a imprensa periódica e não periódica é atraída por depoimentos dos antigos combatentes, há mesmo publicações de delegações da Liga dos Combatentes onde eles conversam entre si, eu colaboro numa delas, O Combatente da Estrela, obviamente gente da Serra e arredores. E lembro que a guerra colonial é objeto de estudos universitários, e não só em Portugal.

Diz mais adiante no seu artigo que “É preciso que aqueles que combateram na guerra colonial escrevam as verdades sobre uma guerra que o poder político teima em ignorar, sobretudo os milicianos, aqueles que verdadeiramente estiveram na linha da frente dos combates na Guiné, Angola e Moçambique. Portugal não pode esquecer nem ver apagados 13 anos da nossa história.”

Nfão estão apagados estes 13 anos, estão profusamente documentados, obviamente que a questão ideológica da colonização/descolonização ainda separa muita gente quanto à profundidade das motivações do fim da guerra, o êxodo que se seguiu e o quadro horrível de execuções praticadas em novos países independentes.

Concordo com Elidérico Viegas que é nossa obrigação contribuir com o dever de memória, e ainda bem que ele se acometeu a escrever numa literatura memorial singela, tocante e afetiva, o que viveu na Guiné entre 1971 e 1973. Oxalá o seu relato “A Guerra Que a História Quer Esquecer”, Arandis Editora (arandiseditora@gmail.com), outubro de 2023, passe por muitas mãos, seja alvo de muitos encontros com antigos combatentes e até conversas em estabelecimentos de ensino. Porque a sua narrativa possui um chamamento universal, é um registo que qualquer um de nós, antigo combatente, pode gizar e adaptar à experiência vivida. No seu caso: recruta nas Caldas da Rainha, no curso de sargentos-milicianos, a descoberta de novos relacionamentos, a aspereza de tais aprendizagens, o juramento de bandeira, segue-se a instrução em Tavira, intercalam-se muitas lembranças da juventude, a promoção a cabo-miliciano, a colocação no quartel de Beja, a formação da CCAÇ 3373 no Regimento de Infantaria 1 na Amadora, o batismo da Companhia como “Os Catedráticos”, mais tardes Os Catedráticos de Empada, a viagem para a Guiné; ele conta que precedia a viagem a compra dos uniformes (“Comprei, em segunda mão, por pouco mais de 500 escudos, os uniformes que me haviam sido fornecidos aquando da minha incorporação nas Caldas da Rainha”), ala que se faz tarde, já está a bordo do Niassa, seguem-se as surpresas que reservam Bissau, os bafos quentes e tropicais; no dia seguinte, aparece o general Spínola e depois a viagem da Companhia para ir substituir os Leões de Empada. 

Sente-se tudo quanto vai escrever se destina fundamentalmente a um público não combatente, já que a generalidade das observações que faz sobre a Guiné são, de um modo geral, conhecidas pelos antigos combatentes.

Dentro deste contexto que tem um discurso universalizante, vê-se que o autor tem o afã em nos transmitir usos e costumes, um pouco da história da colónia, pretende que o leitor se sinta inserido naquele ambiente e conheça a gente do local onde ele penou, e por isso vai falar das bolanhas que rodeiam Empada, do Rio Grande de Buba, da fauna, das duas estações do ano, a caracterização do quartel de Empada, do posto administrativo e da escola primária, da companhia de Milícia ali existente, ficamos a saber que Empada se encontrava isolada e sem acesso a outros aquartelamentos, podia-se ir até Bolama de barco. 

Entramos na esfera do quotidiano, a importância da lavadeira (“As lavadeiras eram verdadeiros entrepostos comerciais, comercializavam de tudo um pouco – galinhas e ovos, entre outros produtos, que trocavam por conservas e Coca-Cola”), o abastecimento de água, a fonte Frondosa que tinha sido renovada em 1946, exercia esse papel vital; e havia o hastear e o arrear da bandeira, os cães, a horta, a enfermaria, o departamento de ação psicológica, o papel da Força Aérea, quem era quem dentro do quartel de Empada, desde o vague-metre, as transmissões, a secretaria, o capelão.

E para que o leitor não se esqueça que havia guerra, Empada conhecia muitas flagelações, o autor comenta: 

“Parece impossível não ter havido baixas nas mais de três dúzias de ataques que o inimigo levou a cabo durante o ano em que permanecemos em Empada. Pura sorte, digo eu.” 

Descreve a vida operacional e a organização dos pelotões, ficamos a saber dos seus ódios de estimação, sobretudo com o comandante da Companhia, hoje é comportamento raro, no início da literatura da guerra havia uso e costume de proceder a assassinatos de caráter, o tempo ensina-nos a desvalorizar estas nódoas negras do passado, e até se dá a circunstância de que estes homens não estimados têm família.

O grande cometimento militar em que estiveram envolvidos foi a Grande Emboscada, a força de centenas de guerrilheiros foi dizimada, entre os mortos encontrava-se o comissário político Quintino Gomes. Volta-se ao quotidiano, a vida da messe de sargentos, aos petiscos, as madrinhas de guerra. E de Empada vem-se para Bissau para o COMBIS (Comando de Defesa de Bissau), uma vida muito mais amena, com patrulhamentos guarda ao palácio, descreve-se a vida de Bissau e o regresso no Uíge. 

No final da sua narrativa observa que Portugal precisa de reconciliar-se com o passado mais recente da sua História, fala na sorte dos antigos combatentes e no imperativo de os dignificar.

Questiono-me muitas vezes se existe algum propósito deliberado em esquecer a guerra colonial e acabo sempre por concluir que o facto de ela estar associada ao fim do império e à criação de novos Estados independentes, todas as decisões políticas deliberadas em torno do seu reconhecimento, os conflitos violentíssimos que ocorreram em Angola e Moçambique e que levaram ao êxodo das populações, por exemplo, precisam da cura da História, a serenidade da interpretação dos factos. 

Em meio universitário, consegue-se chegar à proeza de se aprovar uma tese de doutoramento, num fenómeno que dá pelo nome de pós-colonialismo, de uma senhora expender apreciações grosseiras sobre o que se passou com a perseguição e execução de Comandos guineenses sem ter tido o mínimo de cuidado em basear-se nos documentos sobre o comportamento dos políticos e dos militares na sequência dos Acordos de Argel. Isto só para sublinhar que ainda há muita manipulação no tratamento dos factos históricos, inevitavelmente envenena as consciências. Procuro assim também responder às preocupações de Elidérico Viegas.
Fonte Frondosa, Empada, a dar água desde 1946
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Nota do editor

Último poste da série de 10 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24839: Notas de leitura (1632): "No Limiar da Guerra", por José Manuel Barroca da Cunha; RARO, Tomar, 2021 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24839: Notas de leitura (1632): "No Limiar da Guerra", por José Manuel Barroca da Cunha; RARO, Tomar, 2021 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Maio de 2022:

Queridos amigos,
Já sabemos que aquele ano de 1961 foi caracterizado por muita ação subversiva, por um lado Rafael Barbosa ia encaminhando centenas de jovens para Conacri e daí para a formação militar, eram distribuídos panfletos, agiam vários grupos políticos, rivais ferozes do PAIGC. Um deles, constituído por Manjacos residentes no Senegal, orientados por François Mendy, provocará alguma turbulência em São Domingos, Suzana e Varela, e mais tarde juntos dos madeireiros da região Norte, foi tempestade de pouca dura. Mas é verdade temos inventariados documentos que abonam as hostilidades a partir do 2º semestre de 1962, na região Sul, que entra numa verdadeira efervescência, não havia de facto um romance como este, descrito por alguém que desembarcou do navio Alfredo da Silva no cais do Pidjiquiti em 19 de fevereiro de 1961. O autor assegura que esta história é muito real, é um ribatejano que se radicou na região tomarense, figura muito estimada pela sua dedicação às atividades desportivas, a um verdadeiro benevolato. Bom seria que Barroca da Cunha, que parece estar cheio de genica, entrasse na nossa tabanca grande e nos contasse tudo quanto viveu entre 1961 e 1963.

Um abraço do
Mário



Um tomarense de coração que chegou à Guiné no limiar da guerra

Mário Beja Santos

Barroca da Cunha é natural da Praia do Ribatejo mas vive há décadas em Santa Cita. Segundo o autor, o livro baseia-se em factos reais, chegou a bordo do navio Alfredo da Silva a Bissau em 19 de fevereiro de 1961, ano já de grande efervescência subversiva, o núcleo do PAIGC coordenado por Rafael Barbosa já está a recrutar muitos jovens que vão para Conacri ou já partiram para a formação revolucionária armada, nesse mesmo ano grupos de etnia Manjaca procurarão atacar a povoação de São Domingos, com pouco sucesso, e vandalizarão em Suzana e Varela, manter-se-ão ativos a aterrorizar na fronteira norte, nada tinham a ver com o PAIGC. Barroca da Cunha encontra no cais do Porto de Bissau um amigo de longa data, ele é natural da Guiné, é o grande homenageado neste livro.

Tudo começa no Colégio Nun’Álvares de Tomar, fazem amizade Simão Galhardo, alentejano do Crato, ligado a uma família de grandes proprietários, com António Jorge Barbosa Gonçalves, o Tojó, natural da Guiné. Temos aqui a narrativa de dois jovens nascidos à volta de 1940 a viver em internamento, iremos saber as razões por que a família de Simão lhe impôs tal castigo, houve para ali uma série de aventuras amorosas com a empregada Rosinda que vivia com o Joaquim Pinoia enquanto este fazia a tropa num quartel do norte, o Simão tem tal castigo que nem aos fins-de-semana pode ir a casa, ora a sua amizade com o Tojó agradou à família, este agora é visita regular ao Crato, temos a descrição dos bailes e festas como era prática do tempo, aqueles dois amigos quase inseparáveis andam sempre na folia. O pai de Tojó é um colono um tanto diferentes dos outros, trata os seus trabalhadores indígenas com muita dignidade, os outros colonos não gostam de tais liberalidades.

Estes jovens de 20 anos vão parar à Guiné, Simão não quer cunhas dos pais junto dos governantes, Tojó tem saudades dos pais e da irmã, vamos ver o seu enquadramento na vida militar de Bissau, há muito marasmo, desconhecimento da dura guerra que se avizinha, o armamento é mais do que antiquado, ambos fazem amizades, Simão vive na mesma casa com Trigo Vargas, um franzino que enjoou durante toda a viagem, dá gosto ler estes frescos de alguém que reteve conversas possíveis entre jovens, sempre prontos para o bailarico, é nisto que entram em cena dois agentes da PIDE que têm como missão aperceber-se se junto daquela tropa branca há comunistas a trabalhar junto do descontentamento ou a aliciar outros jovens. Aparece também uma médica de família goesa, a delegada de saúde, uma trintona amadurecida, que se atira a Simão Galhardo, a relação não faiscou. A trama do romance traz para o tempo presente gente do passado, Rosinda casou com um dos PIDES, o agente Saraiva, Rosinda tenta reatar a relação com Simão, este nega-se a infidelidades, Rosinda promete vingança, Joaquim Pinoia tem o seu negócio, sente-se feliz com a mulher e filhos. O chefe dos PIDES alerta os seus agentes para a importância dos cabo-verdianos, é gente com maiores conhecimentos académicos, estão nos lugares do topo, cuidado com eles, é preciso muita vigilância.

Simão dá-se bem com o major Frutuoso, o seu chefe, natural de Alpalhão, é o seu ajudante, têm que preparar informações sobre o que se está a passar na Guiné. Os amigos encontram-se com muita regularidade, há inclusivamente um comissário daquele navio que trouxe Simão que quando vem até Bissau é uma gostosa companhia, as reuniões entre PIDES prosseguem, há festas para aqui e para ali, os agentes confessam ao chefe local da polícia política que aqueles militares é tudo gente inocente, falam unicamente de garotas, bailes e de fugazes encontros, o chefe exige persistência, há perigos que se avizinham. E abruptamente tudo se altera, lá no grupo há quem fale que houve baladas, está presente um agente da PIDE, Trigo Vargas será detido e bem maltratado, surpreendentemente irá fugir para o Senegal e acompanhado. No norte da Província alguém foi degolado, há deserções, desapareceram armas. Simão veio de férias, o seu amigo Tojó informa-o do que se está a passar com Trigo Vargas, Simão será interrogado pela PIDE, é uma dimensão interessantíssima deste livro os interrogatórios a que ele vai ser sujeito, fala-se em livros e revistas proibidos, música do Zeca Afonso, Simão completamente siderado com os aspetos disparatados das perguntas, iremos a saber que Rosinda também mete o seu veneno e iremos ser surpreendidos quando aparecer o nome do chefe.

A agitação no Norte, aquelas deserções e o cabo degolado levam a que se mande um pelotão para a fronteira com o Senegal, o major, Simão e Tojó viajam para ter conhecimento do que ali se passa, vão no jipe, haverá para ali uma perseguição, um militar impreparado pega numa pistola-metralhadora FBP e acidentalmente atinge Tojó, Simão esforça-se por o manter vivo e vêm à procura de ajuda no hospital de Bissau, nesse tempo o hospital militar ainda está em construção. Se a viagem para cima não fora fácil, o regresso foi pior, só havia alcatroado até Mansoa, a picada sofria as consequências da época das chuvas, foi o cabo dos trabalhos, Tojó morrerá no hospital, Simão revela-se inconsolável.

Caminhamos para o termo do romance, temos as exéquias de Tojó na Sé Catedral, um mar de gente acompanha-o até ao cemitério, negros simples prestam-lhe a sua homenagem, nas melhores vestimentas de cores aguerridas, compareceu o Governador, o Chefe de Estado-Maior, o Presidente da Câmara de Bissau, o Gerente do BNU. No regresso o major Frutuoso conversa com Simão: “De uma vez por todas, é necessário que se alerte de forma firme quem toma decisões. O aviso está feito, já houve mortes, os indicadores de todas as guerras. Esta última ainda não se apresentou muito a sério, mas não tarda a guerra, ela chegará. É preciso organização, preparação. Que todos se consensualizem que é preciso ação, é preciso atuar.” E deixa no ar que a única maneira de honrar Tojó seria a de evitar que muitas mais se deem. Que a morte do Tojó não tenha sido em vão. É este o surpreendente teor do romance de Barroca da Cunha, um tomarense de coração que assistiu ao limiar da guerra da Guiné.
Barroca da Cunha a assinar o seu livro No Limiar da Guerra, em 31 de março passado, na Secção Regional de Tomar do Sindicato dos Bancários
A Associação Cultural e Recreativa de Santa Cita atribuiu o nome de Barroca da Cunha ao Pavilhão Polivalente
Lançamento do livro No Limiar da Guerra, na Informação da Associação dos Pupilos do Exército
O arquiteto Schiappa Campos a mostrar a Felupes o catálogo de fotografias A Família do Homem. O registo data do seu trabalho na Guiné entre 1956 e 1960. Imagem doada pelo autor ao Instituto de Investigação Científica Tropical em 2014 e apresentada na exposição “Moranças - habitações tradicionais da Guiné Bissau”, que decorreu no Museu Nacional de História Natural e da Ciência
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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24826: Notas de leitura (1631): Uma nova leitura da incontornável entrevista de Carlos de Matos Gomes sobre a descolonização da Guiné (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24807: Notas de leitura (1629): "Memórias de um Combatente na Guiné de 69/71", por Diogo Aloendro; 5livros.pt, 2021 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Março de 2022:

Queridos amigos,
Um relato memorial de quem passou a sua comissão militar na região de Nova Lamego, conta os antecedentes, como se formou antes de ir para a guerra, desvela como aqueles pontos da região Leste passaram da acalmia à turbulência. É uma narrativa serena, não há para ali prosápias nem arroubos heroicos, o que o António Henriques de Matos desejava era preparar os seus soldados para terem a quarta classe, foi um sucesso completo. Manifesta um pleno orgulho em ter concluído em regime noturno o curso liceal e a licenciatura em economia, depois da vinda da Guiné, trabalhou num banco prestigiado mais de 40 anos, chegara a hora de pôr por escrito a sua vida militar e as suas recordações do Gabu.

Um abraço do
Mário



Memórias de um combatente na Guiné (1969-71), por Diogo Aloendro

Mário Beja Santos

Diogo Aloendro é pseudónimo de António Henriques de Matos, fez parte do BCAÇ 2893, pertenceu à CCAÇ  2618, e escreveu agora as suas memórias, 5livros.pt, 2021. Dá-nos conta da sua vida de furriel atirador desde a recruta nas Caldas da Rainha, a especialidade em Tavira, a passagem pela Amadora, a ida para Chaves formar batalhão, e depois toda a sua comissão na região de Nova Lamego. Deixa-nos belos parágrafos de profundo afeto por quem o tratou bem em Lisboa, para onde emigrou aos quinze anos, não esqueceu as vicissitudes da sua formação militar, as novas formas de camaradagem, largados na Serra do Caldeirão com alguns instrumentos de orientação e rações de combate, chuvas inclementes, e guardou memória de um episódio de terem andado por sítios inóspitos, ali estava todo encharcado e apareceu alguém a convidá-lo a entrar para secar a roupa e descansar um pouco, uma senhora convidou-o a ir ao quarto do filho e vestir um pijama. Observou que o quarto estava impecavelmente arrumado e com a cama feita, tinha numa das paredes uma moldura de um soldado, vestiu o pijama, entregou à dona de casa a farda encharcada, comeu um caldo à mesa com o casal. O filho tinha falecido havia dois anos, morto em combate na Guiné.

São parágrafos tocantes:
“O quarto mantinha-se tal qual ele o deixou na última noite que ele lá dormiu. Não estávamos preparados para tamanha desgraça. Levaram-nos o nosso filhinho que era tudo o que tínhamos Como poderemos suportar esta dor, sabe explicar-nos?
– Ninguém sabe explicar – desabafava a mulher – numa voz sofrida. Ninguém sabe, acrescentava, como que a pensar alto. Soletrava estas frases com os olhos tristes já sem lágrimas para verter, enquanto o seu homem a aconchegava no ombro pedindo-lhe, carinhosamente, força e ânimo para o ajudar também a ele, a suportar o desgosto.”


Ele não podia aceitar dormir na cama do filho, acabou por ir descansar num barracão onde havia palha no chão. E na manhã seguinte juntou-se aos seus camaradas para continuar a subir e descer na Serra do Caldeirão. Concluída a especialidade, foi enviado para Beja, depois para o Regimento da Infantaria 1, na Amadora, mobilizado para a Guiné foi formar batalhão em Chaves. Continuava a estudar, queria concluir o sétimo ano.

Em novembro de 1969 chega à Guiné. Descreve Nova Lamego, é ali que está a sede do batalhão:
“Era uma pequena cidade implantada ao longo de uma rua principal, que se confundia com uma estrada, à imagem do que aconteceu na formação das nossas aldeias e vilas. Aqui se encontravam algumas casas de betão, a sede da Administração, composta pelo Comando Administrativo. Para além deste edifício, havia uma casa comercial, um cineteatro e o quartel militar, um edifício colonial de dois pisos, que servia de instalação ao Comando do batalhão. Contíguo a este edifício na parte de trás, existia uma vasta área onde se localizavam as casernas e alguns espaços, como sendo um campo para jogar futebol de salão. Nestas casernas se instalaram duas companhias. Vivia-se então um estado de acalmia.
Não fossem as preocupantes notícias, trazidas pela tropa que aportava a Nova Lamego, onde se vinham abastecer, ou de passagem para os respetivos aquartelamentos, nada se passava naquele paraíso”.

Lê, escreve e estuda. Tendo ficado órfão de pai aos oito anos de idade, dedica-lhe uma elegia, uma conversa em voz alta no fulgor das recordações de quando era petiz, gostaria muito de um dia ir à Angola visitar-lhe a campa.

Cabe-lhe fazer patrulhamentos à volta de Nova Lamego, há um pelotão que está destacado em Canssissé, este a cerca de 40 km da sede do batalhão. Fazem-se patrulhamentos diários, o objetivo era impedir as movimentações dos guerrilheiros, recorda que Madina do Boé fora abandonada em fevereiro de 1969, ficara uma grande área a descoberto para infiltrações. Surgem situações inesperadas, por vezes caricatas, barulhos dentro da mata, pensa-se inicialmente que vai haver confronto com grupo guerrilheiro, afinal é um grupo de javalis que passa a tropel. Descreve minuciosamente esses patrulhamentos, perto e longe de Nova Lamego, os contactos com o inimigo são esporádicos. O comandante do pelotão entra em depressão, foi hospitalizado depois de uma emboscada, é ele que assume interinamente as funções de comandante.

Decide dar aulas aos soldados que ainda não possuem a quarta classe, constituíam a maioria, é por essa altura que o pelotão do Matos é destacado para Cansissé, descreve a povoação e o sistema defensivo, as casernas dos soldados eram feitas de lona, a situação era um pouco melhor para furriéis e alferes. Não perde oportunidade de descrever as alegrias no recebimento do correio. E dá a compreensível importância às aulas para se chegar ao exame da quarta classe. “Achei mais apropriado ter apenas uma sessão diária de duas horas em simultâneo para ambos os alunos, logo após o pequeno-almoço, o rancho da manhã. Tinha inscrito catorze alunos para a quarta classe e dois cabos e um soldado propunham estudar para fazerem o primeiro ciclo, ou seja, o primeiro e o segundo ano, a fazer num só ano. Do nosso pelotão de trinta soldados, vinte e sete e três cabos, pelo menos, catorze, não tinham a quarta classe”. E dá-nos conta de como implantou o método mais adequado e obteve apoio do batalhão para adquirir livros. A vida em Canssissé podia não ser o paraíso, mas não havia flagelações, não se esquece de nos contar as desinteligências e até homicídios entre civis. Fizeram-se obras, apareceu o heliporto. E de Canssissé regressam a Nova Lamego. Continua a estudar e irá fazer exames no Liceu Honório Barreto.

A vida calma naquela região do Leste da Guiné vai conhecendo sobressaltos. Chegou a hora do pelotão do Matos provar uma mina anticarro, felizmente sem danos mortais. As coisas parecem complicadas em Pirada e Buruntuma. Foi o que aconteceu quando o pelotão do Matos foi até Cabuca, tudo parecia estar a correr bem, não picaram no regresso, uma mina anticarro rebentou no rodado da GMC.

Já se passou um pouco mais de um ano da sua comissão, como muitos outros autores ele vai acelerar a prosa, descreve sumariamente a ação psicológica nas tabancas à volta de Nova Lamego, os patrulhamentos, há depois o ataque a Nova Lamego, aparecem os mísseis, e o Matos vai dar instrução a pelotões de milícias em Contuboel, experiência que lhe agradou imenso. Ainda voltou a Cansissé, a comissão está praticamente no fim, já estão no Cumeré a aguardar embarque.

Concluída a viagem, frente ao Cais da Rocha do Conde de Óbidos, sente a diferença do que vivera dois anos antes:
“Não voltaram ao cais os familiares dos camaradas que lá perderam a vida. O desespero, os gritos e desânimo de quantos, há dois anos se vieram despedir, contrastava com a alegria incontida, em cada abraço que se multiplicavam no cais da nossa esperança”.

Igreja de Nova Lamego, Foto Serra, Bissau
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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24799: Notas de leitura (1628): "Dos Sonhos e das Imagens, A Guerra de Libertação na Guiné-Bissau", por Catarina Laranjeiro; Outro Modo Cooperativa Cultural, 2021 (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24762: Notas de leitura (1625): "Militar(es) Forçado(s), por Maximino R. Costa; edição de autor, 2017 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
Memórias por vezes de grande e intensa intimidade que nos são oferecidas por este furriel da Administração Militar, que entendeu fazer uma narrativa desde o dia em que partiu para a recruta, em Santarém, até ao momento do regresso, procurou participar em diferentes atividades em Bissau, esteve na constituição de um orfeão, jogou hóquei em patins, fez amizades, a sua amada Constança aqui viveu, a casa sempre aberta às amizades. Gosta-se da simplicidade desta escrita, não há farronca, nunca se arma em combatente, nunca lhe sai da pena descrições da guerra dos outros, nem finge que é cronista. A vida em Bissau decorreu amenamente, guardou as melhores recordações a despeito dos amigos que perdeu.

Um abraço do
Mário



Mais de 50 anos depois, as confissões de uma comissão doce na Guiné

Mário Beja Santos

Em edição de autor datada de 2017, Maximino R. Costa, que foi furriel no Batalhão do Serviço de Material, Bissau, nos anos de 1964 e 1965 tomou a decisão de passar a escrito toda a sua situação militar, de tudo quanto conheço jamais encontrei tanta minúcia na narrativa de uma recruta, desta feita na Escola Prática de Cavalaria, mas antes o ambiente familiar, o desvelo da mãe a preparar a mala, a vida de bairro ali perto da Praça do Chile, a entrada no quartel, a caserna, a recruta, o linguajar a soltar-se para o palavrão e calão, a ordem unida, as refeições e o seu conteúdo, os glutões da sopa, os fins de semana, os namoros do Mino com a Constança, as marchas cadenciadas, tudo com o equipamento da época a que não faltava o capacete, a instrução em Santa Margarida, a apreciação dos comandantes de pelotão, a semana de sobrevivência, bem dura, tudo sem bússola nem carta, só com indicações da gente do campo, segue-se o juramento de bandeira, toda ela com pormenores; e transitamos imediatamente para o Lumiar, a especialidade do Maximino será feita na Escola Prática de Administração Militar, uma vida muito mais calma, com um certo inesperado de patrulhas até à região de Loures, os “desenfianços”, já estamos em janeiro de 1962 o Maximino é primeiro cabo miliciano, o namoro com a Constança é uma mecha de felicidade, ele dá recrutas, tem gente de todo o continente português, inclusivamente o ciclista do Benfica Peixoto Alves; no entretanto, um bom número de cabos milicianos vão sendo promovidos a furriéis e bate-lhes à porta a ida à África, a vida no Lumiar era bem agradável, muita gente desatou a casar-se a pensar que isto da tropa eram favas contadas, nisto o Maximino (na obra de ficção o autor usa o nome Belarmino) é mobilizado, parte para a Guiné dias depois da Constança dar à luz, casaram um tanto apressadamente, mãe e sogra deram por aquele ventre a crescer, toca de ir à conservatória.

Dotado de boa memória, o autor lembra que em 4 de dezembro de 1962 levou a Constança ao cinema Tivoli a ver o filme Lawrence da Arábia, logo no dia seguinte vieram os dois de parto. Viagem para a Guiné com muito enjoo, o Maximino fica em Bissau, percorre a cidade, inteira-se do trabalho que lhe está destinado no Batalhão do Serviço de Material, logo próximo da porta de armas impunha-se a oficina de reparação de viaturas, ele foi colocado no conselho administrativo do batalhão, renova-se a minúcia das descrições e a apreciação dos colegas. A especialidade do Maximino era de Reabastecimento e Serviços Técnicos, consistia em participar no reabastecimento das unidades destacadas nas sedes dos diversos batalhões, mas entenderam que devia ir para o conselho administrativo, começam a chegar os aerogramas da Constança, o menino tem problemas de saúde, procura contextualizar o ambiente em que vive para que o leitor que ignore estas paragens tropicais fique a saber que há para ali um mosaico ético, que se fala crioulo, ele irá contribuir ativamente para a vida de um orfeão, jogará hóquei em patins, tudo corre numa extrema amenidade, ouvem-se uns tiros, há umas zaragatas, não faltam as patuscadas, chega entretanto o Zé Manuel Concha, já consagrado da rádio e televisão, com o seu duo Os Conchas, com notoriedade na rádio e televisão, dará o seus espetáculos, terá os seus arrufos, o Maximino consegue levá-lo às boas; morre um oficial no paiol, grande choque para o Maximino.

É altura dos jagudis, dos répteis, das aranhas, há muita pouca alusão à mosquitada. Apanha paludismo, vêm as férias, a família sempre em sobressalto, para todos os efeitos o Maximino está na guerra. Sempre profundamente enamorado, é com amargor que regressa a Bissau. Convida a Constança a vir com o menino, mas o Rui sofre de asma, encontra-se uma solução de compromisso, os pais da Constança aceitam a incumbência de tratar da criança, desfiam-se os pormenores do arranjo de casa, um albergue para várias famílias, a Constança adapta-se, o idílio prossegue, chegou a vez de sair de Bissau, vai até Mansoa, não faltam notícias de camaradas da recruta que morreram em combate, o tempo passava depressa, apareciam inesperadamente amigos, os amanuenses às vezes excediam-se nas festas e a Constança não gostava de ver o rescaldo de tanto álcool; há passeios a Quinhamel, há mudança de casa, descobertas na ilha de Bissau, às vezes perdem-se, o Batalhão do Serviço de Material é incumbido de organizar uma festa de despedida para batalhões que acabavam a comissão, Maximino não se fez rogado, dedicou-se à organização; Constança, na situação de grávida com algum risco, vai regressar a Lisboa.

Aproximava-se a passos largos o término da comissão de serviço da companhia que antecedera à chegada do furriel Costa, mais uma festa de despedida, sempre contando com fadistas. É neste ínterim que se dá um acidente na piscina em Nhacra, morre um grande amigo de Maximino, deixou profunda consternação, haverá um momento muito sentido no dia da missa dedicada àquele falecido, esteve presente o orfeão. O batalhão regressa à metrópole em 10 de dezembro de 1965, temos o texto do louvor que o furriel Costa recebe, segue-se a viagem de regresso, desembarca com a máquina de costura que Constança deixara em Bissau. Aquela terra ficara-lhe guardada no coração. O furriel Costa entendeu que a sua experiência devia fazer parte da literatura memorial da guerra da Guiné.

Aqui se deixa a essência do que se passou, desde a hora de partida para a recruta ao momento do regresso. E se a descrição da recruta impressiona pelo pormenor, há também o lastro da sinceridade, não há prosápia, nunca diz que está na guerra, nunca ilude que teve sempre a sorte do seu lado, apesar do registo que faz de se saber que a guerra se vai agigantando, há cada vez mais helicópteros em direção ao hospital militar, por vezes surgem problemas de consciência, ele pensa mesmo que devia ir para o mato, mas cede aos comentários de tudo a que ele faz é fundamental para quem vive naqueles pontos recônditos onde há flagelações, minas antipessoal e minas anticarro, um sobressalto permanente que a boa camaradagem alivia.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24753: Notas de leitura (1624): "Os Desastres da Guerra, Portugal e as Revoltas em Angola (1961: Janeiro a Abril)", por Valentim Alexandre; Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2021 (3) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24554: Notas de leitura (1606): "Um cripto na terra vermelha da Guiné", por Humberto Costa; 2.ª edição, 2020, Eudito (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
Mais uma edição de autor, tive a dita de a encontrar na Biblioteca da Liga dos Combatentes, um fornecedor sempre generoso. Temos o percurso do cabo Humberto Costa, operador cripto em Mansoa e Bissau, foi coligindo notas do seu itinerário desde a recruta à disponibilidade. Homem manifestamente sociável, atento à miséria das populações, realça aspetos divertidos e bizarros que a tropa sempre oferece. Não há nenhuma farronca, não se disfarça de herói o combatente, diz o que sente debaixo de fogo, provou diversas flagelações, e por ser cripto vai tomando nota da atividade operacional do setor de Mansoa. Edição profusamente ilustrada, faltava-nos o depoimento constituído por notas de um cabo cripto quase no final da guerra da Guiné.

Um abraço do
Mário



Um cripto na terra vermelha da Guiné

Mário Beja Santos

É o primeiro livro de Humberto Costa, 2.ª edição, 2020, Eudito (geral@eudito.com), natural de Cedofeita, infância vivida no Monte Aventino, com currículo de grande participação como autarca e desportista; é atualmente presidente do Grupo Dramático do Monte Aventino. Ajunta as suas notas diárias entre 1971 e 1974: recruta em Viseu (8 horas de viagem entre o Porto e Viseu, o comboio era dos antigos com máquina de carvão), conta episódios divertidos de desenfianços e calacices; curso de escriturário em Leiria, nota-se sempre a preocupação em registar o nome de amigos e conterrâneos; curso de operador cripto na Trafaria. Explica-nos o que é ser operador cripto, a natureza das mensagens (romeo – rotina; uniforme – urgente; óscar – imediato; zulo – relâmpago); vai estagiar na Figueira da Foz, nunca se escusa a contar uma boa pilhéria. Chega a Bissalanca em 13 de março de 1972 e segue diretamente para Mansoa, regista as elevadas temperaturas, anota por onde passa:

“Vimos um povoamento, era Infandre, que fica separado de Mansoa pelo rio Mansoa, atravessámos a ponte e entrámos em Mansoa. O quartel estava do lado direito, em frente ficava a vila com uma igreja grande, um cinema ao ar livre, um posto de gasolina, o campo de futebol dos Balantas e o mercado municipal, bem como a igreja. O comércio era exercido maioritariamente por libaneses. Foi colocado na Companhia de Caçadores n.º 15”.

Dá-nos a composição das unidades militares sediadas em Mansoa. Tem batismo de fogo em 31 de março, ataque a Mansoa e Cussaná. Regista o seu espanto de ter visto crianças com latas na porta do refeitório, esperando que os soldados acabassem de comer para irem limpar as mesas e empurrar os restos para dentro das latas. Em 5 de abril há flagelação a Infandre bem como a Mansoa, que sofreu mortos e feridos na população. Dias depois anota que três elementos civis foram vítimas de mina antipessoal.

A obra está repleta de imagens de Humberto Costa, imagens de obuses, rescaldo de flagelações, crianças, patuscadas, a família da lavadeira, jogos de futebol, infraestruturas, e muito mais. Em 27 de abril, regista que numa coluna entre Bissorã e Mansoa rebentou uma mina; em maio fugiu um soldado operador cripto. Vê-se perfeitamente que registou um elevado acervo de sinistros desde emboscadas a flagelações, Mansoa em 26 de junho é flagelada com intensidade. 

“Um foguetão atingiu a torre da igreja junto ao meu local, outro a bomba de gasolina na mesma rua, mas mais ao longe. Estilhaços de granada de canhão sem recuo caíram perto de mim, atirando terra para as minhas costas, então pus a mão e senti húmidas as costas, pensando logo que era sangue. Quando me levantei senti que estava bem”.

Inventaria acidentes, as atividades operacionais da CCAÇ 15, as festas dos seus aniversários passados na Guiné. Está sempre pronto para contar peripécias. Nos seus apontamentos não escusa a deixar notas pessoais como o que se sente debaixo de fogo:

“A tremedeira do nosso corpo, o bater forte do nosso coração que parece mesmo que não vai resistir, a cabeça que pensa rápido, mas fraqueja. Só pensamos em esconder e proteger pelo menos a nossa cabeça. Mas quando se ouve um camarada aos berros, porque foi atingido por um estilhaço ou bala e diz alto ‘vou morrer!’, isto é terrível, sentimos também a dor dos nossos camaradas. A pressão é enorme naquela altura. E então vem o silêncio e nós dizemos que já acabou por hoje. Assim, mais calmos, corremos para os nossos camaradas feridos e para aqueles que estão em estado de choque. No dia seguinte e pela mesma hora estamos todos a olhar para o céu para ver se vem mais guerra”

Dá nota de um acontecimento, durante meio ano aproximadamente foi tempo de pausa na guerra de Mansoa.

Em setembro de 1973 deixou Mansoa para ser integrado no Centro Cripto da CCS do Quartel-General em Bissau. Deixa anotados os encontros com a malta amiga e vizinha, mais um rol de fotografias e escreve nos seus apontamentos em 4 de novembro:

“Ao quartel-general chegou um operador cripto que estava num quartel junto à fronteira com o Senegal. Disse que tiveram de abandonar o quartel depois de um ataque do inimigo. Andaram perdidos durante vários dias. Alguns seguiram o caminho certo e encontraram população ligada às nossas tropas. Outros andaram sem norte, passavam fome e sede, beberam a própria urina para resistir à seca dos lábios. Até que um dia foram avistados. Este operador cripto ao contar isto tremia por todos os lados. O medo era muito forte, não sabiam para onde ir, então corriam para o mato que era mais escondido. Muitos, depois da calma, lá vinham ter com os companheiros, outros perdiam-se”.

Volta a Mansoa em 12 de dezembro, acompanha o seu substituto na CCAÇ 15. Nessa noite foram atacados, teve mais medo porque estava no final da sua estadia em Mansoa. Descreve assim o seu Natal de 1973: 

“Estando eu nos Adidos na véspera de Natal, comi uma posta de bacalhau pequena e duas batatas cozidas para ter algo que me lembrasse o Natal. Comprei dois bolos e uma lata de Fanta”.

 Em 6 de janeiro saiu de Bissau para Lisboa. Os últimos elementos da sua obra são considerações sobre as guerras que travámos em África, mostra curiosas ilustrações da ação psicossocial do Exército Português para atrair as populações do mato e termina o seu trabalho saudando o 25 de Abril.

Posto de gasolina de Mansoa danificado depois de uma flagelação
Igreja Católica de Mansoa
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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24549: Notas de leitura (1605): "O Elogio da Dureza", por Rui de Azevedo Teixeira; Gradiva Publicações, 2021 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 10 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24468: Notas de leitura (1596): "O Capitão Nemo e Eu, Crónica das Horas Aparentes", por Álvaro Guerra; Editorial Estampa, 1973 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Maio de 2021:

Queridos amigos,
O comentário é óbvio, talvez uma banalidade: não há nada como revisitar um bom livro e descobrir nele outra dimensão de luminosidade e inspiração; ou no caso vertente, apreciar com outros olhos aquele, na ótica de quem aqui está a escrever, é o mais belo parágrafo da literatura da guerra da Guiné. O Capitão Nemo e Eu, publicado em 1973, encerra um ciclo em que é indisfarçável a atração de álvaro Guerra pela técnica do Noveau Roman, um movimento literário que fez furor a partir do final da década de 1950 e que teve cultores que ainda hoje são classificados como gigantes da Literatura, caso de Claude Simon ou Nathalie Sarraute ou Alain Robbe-Grillet. A partir de agora, o estilo de guerra altera-se e para meu pesar os temários guineenses desaparecem. Este livro é profundamente autobiográfico, Guerra foi ferido em combate, recomposto partiu para Paris, dessas andanças aqui faz registo. Lastimável é que esta obra permaneça no limbo, terrível imerecimento. E fico feliz de a ela voltar e de vos dar a reler o tal parágrafo cimeiro da literatura que a nós diz respeito.

Um abraço do
Mário



O mais belo parágrafo da Literatura da Guerra da Guiné

Mário Beja Santos

"O Capitão Nemo e Eu, Crónica das Horas Aparentes", por Álvaro Guerra, Editorial Estampa, 1973, representa a despedida do escritor das temáticas da guerra da Guiné, território onde combateu e foi ferido.

É uma obra injustamente esquecida, muito provavelmente porque ainda está marcada pela corrente do Noveau Roman, que tanto seduziu o escritor na primeira fase da sua carreira, hoje atrai mais os estudiosos, continua a desorientar profundamente o leigo que nela mergulha.
Álvaro Guerra despede-se e sai pela porta grande, vamos encontrar neste seu romance páginas admiráveis, logo a abertura:
“Que perdi a memória – dizem. E logo dão o nome a esta imunidade que pretendem retirar-me. Dizem isso com precaução e manha como se quisessem disfarçar o despeito. Defendo-me. Só agora, na metade do tempo em que a droga do sono se esgota e sei que é meu o que me circula nas veias, só agora me visito: primeiro, o estojo duro e branco que esconde o grande golpe na coxa direita, as ligaduras que encontro ao passar a mão pela testa. Também procuro os resíduos invisíveis das anestesias e só me revelo um estranho gosto na boca. É uma visita tosca e breve, que se cansa de mim ou me recusa para repousar nas quatro paredes brancas e no teto branco e nos brancos panos da cama, simetria nem ao de leve desfeita pelos retângulos da porta e da janela velada por cortinas de cassa tão leves que, constantemente ondulantes, me repetem existência do ar em movimento, ar sossegado, filtrado, prisioneiro e puro, e não com partículas de sal lançadas em bátegas por um vento furioso varrendo as duríssimas arestas das rochas...”.

É o ferido que retoma consciência em ambiente hospitalar, e logo acrescenta: “Devo sujeitar-me aos horários dos remédios, às injeções, a ser colocado sob as placas de vidro dos aparelhos de radiografia e ao emaranhado de fios presos à cabeça, através dos quais é possível ler o meu cérebro…”. E vemo-lo na Guiné, fala na língua Fula, há por ali crianças acocoradas à nossa frente, ventres inchados entre pernas cruzadas, isto passava-se sobre o cheiro adocicado da terra da Guiné, e tudo se articula com outras histórias, num cosmopolitismo parisiense, que Álvaro Guerra conheceu, pois ali estudou e trabalhou antes de vir professar o jornalismo em Lisboa, no jornal República. Há reminiscências da infância, um pouco à semelhança do que o escritor praticou em obras anteriores, um carrossel de imagens que podem meter cenas taurinas, vida agrícola, a imensidão da lezíria.

A memória anda à solta naquele hospital onde o ferido se trata, e o autor lembra um capelão militar que lhes procura incutir denodo e lançar para o bom combate: “Irmãos, longe dos vossos lares, das vossas famílias, das vossas noivas, de todos os entes-queridos, tendes por consolo e por razão o amor da Pátria e a fé em Cristo que aqui vos trouxeram para defender a terra dos vossos antepassados que vieram oferecer ao gentio selvagem, com suor e sangue, a verdade, a justiça e a fé em Deus Nosso Senhor. Vós sois os soldados de Cristo que combatem os infiéis, os ímpios. Vencereis, tal como São Jorge venceu o dragão. Que Deus seja convosco, meus bem-amados irmãos”. Depois, suportando mal os 47ºC à sombra, inundado num suor incrivelmente espesso, o capelão almoçava carne de vaca com molho picante, na messe. “Aplicado, ruidoso, tasquinhando o bife, sem se distrair do apetite, lutava com a mão sapuda contra o permanente ataque dos mosquitos”.

O doente já se passeia de muleta, no jardim, à sombra de castanheiros e chorões, volta ao Forreá, a Contabane, de novo conversa na língua Fula, o espírito anda num vaivém, as feridas se hão de curar, há talvez feridas que nunca passem, e de novo o passado entremeado com tudo o que se passou naquele Sul da Guiné que levou Álvaro Guerra ao hospital, por ali ciranda também um anjo branco que serve de ponte entre o passado e aquele encaracolado presente.

Estamos a caminho do parágrafo mais admirável de toda a literatura da guerra da Guiné. O alferes recorda a viagem de avião para a Guiné, tudo começou com uma manhã fustigada por vento gelado. “De tudo o que espreitei lá de cima, nas longas horas desse voo, se devem referir três pontos cruciais: a linha de espuma branca que separava o deserto do mar, uma ilha cor de ferrugem, sem vegetação nem água, onde o avião pousou e levantou; e o pântano onde o verde escuro do mato alternava com o quadriculado dos arrozais e os minúsculos círculos das moranças. Foi no meio desse pântano que o avião desceu e me deixou. Durante dois anos, por mais de uma vez, amaldiçoei os fidelíssimos enviados do Infante que se aventuraram até à foz do Geba.
Por lá chafurdei na lama das lalas, debati-me no turbilhão dos tornados, derreti-me na fornalha de um sol quase invisível, dissolvi-me na chuva vertical, e amei como um danado aquela terra que me injetou a febre, me secou, me expulsou a tiro. Mas nunca o preço do amor é excessivo, nem a presença da morte o pode aniquilar”
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Naquele hospital ele sabe que a tudo o que se passou e foi arrancado, entre a vida e a morte, e desabafa a alguém: “Ao princípio, tinha medo de adormecer, porque chegavam os fantasmas, as explosões, os tiros, o sangue, o sorriso de Safi, uma aldeia a arder e os gritos das pessoas. Por fim, consegui olhar para a cicatriz, sem me lembrar de muitos pormenores. Pois é. Tudo passa. Por fim, pensei que tinha perdido definitivamente qualquer coisa que só agora julgo saber o que é”.

E segue-se a viagem a bordo do Nautilus, com o Capitão Nemo. Nem tudo ficou para trás esquecido, como o autor adiantará:
“Desmontar uma pistola metralhadora foi a tarefa mais complexa e inquietante que até hoje executei, talvez apenas superada pelo trabalho de a montar com correção. Experimentava depois uma falsa sensação de consciência em paz, ao verificar que a culatra oleada deslizava impecavelmente. Até ao último momento nunca me convenci que teria de puxar o gatilho, visando um homem, porque nunca o instinto foi tão feroz como quando tudo isso aconteceu, ao cair sobre mim uma chuva de balas. Se nenhuma delas me matou, alguma coisa ficou liquidada para sempre, e nunca mais um dever cumprido trouxe paz à minha consciência”.

E o Nautilus prossegue viagem, mas o poder da memória é mais forte, e de novo se regressa à Guiné por uma outra viagem que até pode ser de caravela, e onde se guardam aspetos que maravilharam os primeiros descobridores ou aventureiros, como o voo fulvo do faisão, os grous emigrantes sobre as bolanhas, a gesticulação do macaco cão, e cruza-se com Mariama, à cabeça a roupa de lavar – Tanaala? No pindá? E como se estivesse profundamente angustiado, como criatura de Shakespeare, Álvaro Guerra interroga-se: “Se não é esta a minha terra, para que me fizeram aqui vir?”.

Aqui se fecha o livro da memória guineense, ou quase, porque somos forçados a interpelar o que ali se passou, como ele o faz e descaradamente naquele ano de 1973 em que pontificava a censura:
“Perguntando nós que guerra era aquela, sempre ouvimos como resposta grandes palavras ocas e, muitos anos depois de termos escapado do pântano, quando tínhamos começado, há muito, a comer refeições quentes a horas certas, a fazer filhos legítimos, a pagar prestações, a passear de automóvel aos domingos, a ir ao Jardim Zoológico, ao cinema, a casa uns dos outros, muitos anos depois, dizia, a guerra ainda lá estava, feroz e persistente, perante o nosso absurdo esquecimento”.

E tanto quanto me é dado saber, para meu pesar, este escritor vila-franquense a quem a sua terra natal lhe dedicou uma bela escultura perto da nova biblioteca à beira-rio, como se contrariasse as recordações dessa guerra feroz e persistente, não voltou à Guiné, pelo menos em literatura, ficou aquele parágrafo que é ímpar e tudo leva a crer que jamais será ultrapassado.

Álvaro Guerra na Guiné, em 1962, imagem do Museu do Neorrealismo, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 7 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24458: Notas de leitura (1595): "Mariazinha em África, o bestseller de Fernanda de Castro com ilustrações de Ofélia Marques (2) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 29 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24439: Agenda cultural (835): Rescaldo da apresentação do livro "Memórias de um Combatente", da autoria de José Ferreira, antigo Combatente em Angola, levada a efeito no passado dia 25 de Junho de 2023, em Resende (Fátima Silva e Fátima Soledade)

Foto 1 - Livro “Memórias de um combatente”, do autor José Ferreira


1. Mensagem das nossas amigas Fátima Soledade e Fátima Silva, filhas de antigos combatentes do ultramar, enviada ao nosso Blogue no dia 28 de Junho de 2023, com o resumo do lançamento do livro "Memórias de um Combatente", levado a efeito no passado dia 25 de Junho de 2023:

Lançamento do Livro do Autor José Ferreira, “Memórias de um Combatente”

No dia 25 de junho de 2023, pelas 16 horas, no Salão Nobre do Quartel dos Bombeiros Voluntários de Resende, realizou-se o lançamento do livro “Memórias de um Combatente” do autor José Ferreira, que foi bombeiro antes de assentar praça e cumpriu uma Comissão de Serviço em 1965/1967, como 1.º Cabo Sapador, na Província Ultramarina de Angola.

O Senhor José Ferreira compareceu acompanhado dos seus familiares e amigos. O seu filho, Renato Ferreira e o músico Diamantino Nogueira proporcionaram belos momentos musicais e o neto, Tomás Ferreira, declamou um poema do avô.

O painel participou pela seguinte ordem:

- A moderação dos diferentes momentos e intervenções foi da responsabilidade da representante da “Editorial Novembro”, Dra. Avelina Ferraz;
- Alocução do Presidente da Direção dos Bombeiros Voluntários de Resende, Sr. Joaquim Alves;
- Alocução do Presidente da Assembleia Municipal de Resende, Dr. Jorge Machado;
- Alocução da Dra. Fátima Silva – Apresentação do Projeto “Heróis da Guerra do Ultramar – Resende”;
- Alocução da Dra. Fátima Soledade – Testemunho sobre a origem do livro “Memórias de um Combatente”;
- Encerramento do evento a cargo do Coronel de Infantaria na Reserva, Joaquim Monteiro, Vice-presidente do Núcleo de Lamego da Liga dos Combatentes.

No final foi servido um “Porto de Honra”, proporcionando um convívio muito salutar.


Foto 2 - Dra. Avelina Ferraz, moderadora e representante da editora
Foto 3 - Vista geral do Salão Nobre dos Bombeiros Voluntários
Foto 4 - Presidente da Assembleia Municipal de Resende, Jorge Machado, e o autor José Ferreira
5 - Filho do autor, Renato Ferreira, e Diamantino Nogueira
Foto 7 - Painel (da esq. Para a dir.) Dra. Avelina Ferraz, Fátima Soledade, Jorge Machado, José Ferreira, Joaquim Monteiro, Joaquim Alves e Fátima Silva
Foto 8 - Elementos da Liga dos Combatentes do Núcleo de Lamego, José Ferreira e o Major Osório.
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE JUNHO DE 2023> Guiné 61/74 - P24406: Agenda cultural (834): Apresentação do livro "Memórias de um Combatente", da autoria de José Ferreira, antigo Combatente em Angola, a ter lugar no Salão Nobre do Quartel dos Bombeiros Voluntários de Resende, dia 25 de Junho de 2023, pelas 16 horas (Fátima Silva e Fátima Soledade)