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quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3411: O meu baptismo de fogo (22): A minha primeira vez... (Vitor Junqueira)

1. Mensagem do nosso camarada Vitor Junqueira (1), ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2753 - Os Barões - Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72, com data de 4 de Novembro de 2008, contando-nos como foi, nas suas palavras, a sua primeira vez e nas nossas o seu baptismo de fogo (2).

Amigo Carlos,
O texto que se segue, vem um pouco fora de tempo. Estive tentado a nem sequer te pedir a sua publicação depois de saber que na caixa do correio existem milhares de e-mails a aguardar escrutínio. No entanto, como eu acho que não devemos coibir-nos de dar a nossa versão dos acontecimentos quando tal nos é pedido, acabei por decidir deixar ao teu critério o destino a dar ao escrito.
Obrigado pela tua atenção,
VJ

A minha primeira vez …

Há algum tempo que venho tentando corresponder ao desafio que nos foi feito para que reportássemos para o blog, aquela experiência que deveria ser inolvidável: A nossa primeira vez! Pois, queridos camaradas, não sei se por culpa do Dr. Alzheimer ou, por o acontecimento não ter deixado marcas, não possuo qualquer recordação de como a coisa se passou. Sei que terá ocorrido algures na mata do Oio, mais precisamente no triângulo Mansabá, Olossato, Farim, por volta de Novembro ou Dezembro de 1970 – eu até podia ir pesquisar alguns dados aos meus papéis, mas acho que não vale a pena –, encontrando-se a minha guerra, empenhada numa segurança afastada aos trabalhos de reabertura da auto-via Mansabá – Farim. Estávamos na altura acampados nuns escafundós de Judas chamado Bironque, de onde partia diariamente uma expedição com o propósito de retribuir gentilezas com que éramos mimados, diariamente, pelo IN. Aqueles contactos decorriam quase sempre da mesma, pelo que, por mais que puxe pelo bestunto, não consigo recordar-me do primeiro.

Mas recordo como se tivesse acontecido ontem, um episódio em que pela primeira vez senti os ditos realmente entalados e, aquela sensação de arrepio gelado a trepar pelo espinhaço acima. Na mesma região, no mesmo contexto e na mesma época. Se me permitem, vou partilhá-lo convosco, estando certo de que alguns camaradas reviverão também situações idênticas, das quais saímos convencidos de que o Senhor Santo Cristo dos (meus camaradas) Açorianos, para outros o Altíssimo, se não fez fogo ao nosso lado, pelo menos orientou os trabalhos.

Província da Guiné, mostra a zona designada pelo Vitor Junqueira como triângulo Mansabá, Olossato, Farim na problemática região do Óio. O rectângulo encarnado assinala o Bironque onde se encontrava o Destacamento provisório de apoio à construção do troço de estrada Bironque-Farim.

Foto 2 > Destacamento do Bironque, inaugurado pela CART 2732, destinada à protecção das máquinas da Engenharia, utilizadas na construção da estrada.

Foto 3 > Troço novo da estrada Mansabá-Farim.

Fotos: © Carlos Vinhal (2008). Direitos reservados.


Sempre ouvi dizer que na tropa, voluntário, nem para cima da filha do comandante! E que a melhor atitude era não fazer ondas, porque quando o mar fica agitado, quem se lixa – com éfe – é o mexilhão. Pois, com este manancial de sabedoria, caí na esparrela e fiz-me notar através de uns bitates que mandei em frente a uma certa individualidade que os terá registado. A factura surgiu na volta do correio, a liquidar em suaves prestações, geralmente semanais, até ao final da comissão.

Eis a primeira tranche: Um belo dia, fui abordado pelo senhor CMDT do Cop 6, major Moura (?), que me propôs uma diligência no sentido desalojar uma guarnição do In que durante meses insistira em perturbar o bom andamento da obra, atacando a frente de trabalhos. Terminados estes, ou em vias de conclusão, a malta do PAIGC tinha agora o desplante de se passear na nossa estrada, novinha em folha, como se aquilo fosse o da Joana. Inaceitável!

Num mapa, mostrou-me a localização do objectivo, os itinerários possíveis – quanto a isso também não havia grande escolha –, transmitiu-me as informações que possuía acerca da composição daquela força (1 bigrupo + 1 secção de sapadores) e… desejou-me boa sorte! Certamente por lapso ou puro esquecimento, não mencionou o facto de àquela data haverem já sido feitas três tentativas para espatifar a barraca aos homens. Todas sem sucesso e, como vim a saber mais tarde, a nossa malta trouxe o que contar dessas incursões. Numa delas participou o CMDT Jorge Picado que a narra num delicioso relato, publicado há meses no blog.

No dia D, alta madrugada, uma vez apeados das viaturas, lá seguimos aos encontrões e apalpadelas, caminhando pela berma com a discrição possível ao longo de, talvez dois quilómetros, no sentido Farim – Mansabá. Em breve nos embrenhámos na faixa de terreno arroteado pelas caterpillars, que corria paralela à estrada, em cujo limite e sem grande dificuldade encontrámos a boca do carreiro que nos havia de conduzir ao objectivo, uma tabanca com o piedoso nome de Fátima, tal como o da filha do Profeta e da localidade mais milagreira de Portugal, situada aqui bem perto do sítio onde moro. Já no coração da mata, abandonámo-lo com receio de que estivesse minado ou armadilhado.

Progressão penosa, lenta, sem outro meio de orientação que não fosse uma bússola e o tino do pica titular, o Cunha de Santa Cruz da Graciosa que, com a vareta sob o sovaco, nos abria caminho tentando desembaraçar-se das lianas. Certo é que, ao clarear, sentimos o cheiro de presença humana pelo que concluímos estar muito próximo do objectivo e da bernarda. A cabeça da coluna estacou na orla da mata que bordejava uma zona quadrangular, limpa, onde tinham sido poupadas apenas as grandes árvores. Fez-se uma curta pausa para retirar as remelas mais persistentes e, com mil olhos, perscrutar cuidadosamente o extenso campo visual que se apresentava pela frente. Não vislumbrámos indícios de qualquer construção, não se via gente nem se ouvia o canto alegre do galo madrugador ou o tan-tan ritmado do pilão. Nada, apenas aquele silêncio sinistro, prenúncio de coisas más. Até os pássaros pareciam estar feitos com o IN, espiando-nos sem soltar um pio.

De repente, fazem-me sinal apontando na direcção de um combatente armado que, à distância, entra na clareira acompanhado por uma mulher. O par está bastante longe, oitenta metros aproximadamente. Naquela altura já não existiam quaisquer dúvidas de que a nossa presença era conhecida. Perdido por um, perdido por mil… o Francisco de Assis de Angra, vira para lá o canudo do LG de 6cm (eles juram que fui eu, mas não me lembro!) e com um único tiro, o combatente interrompe a caminhada. Com a perna esquerda amputada pelo joelho, o homem cai e a mulher segue o seu destino em passo acelerado. Aproximamo-nos avançando pelo lado direito da clareira, no sentido da progressão, ao longo da linha de separação com a mata, contando com a protecção da floresta, ou assim pensávamos. Uma secção da qual faz parte o maqueiro Leonel Melo, desloca-se rapidamente para o local onde se encontra o ferido. Porém, assim que entra em campo aberto é recebida por uma saraivada de tiros e bazucadas que parecem chover de todos os lados.

Vamos tentando dar alguma cobertura à equipe sanitária, fazendo tiro de morteiro para a orla oposta, poupando ao máximo as preciosas munições. Ao abrigo de enormes baga-baga e dos troncos de imponentes árvores, o cabo Melo lá consegue pôr um soro a correr e administrar alguma morfina, enquanto o transmita Osvaldo, por alcunha o Fafe, tentava contactar Bissalanca a fim de evacuar o soldado do PAIGC. Se até então, nunca tínhamos deixado um ferido abandonado não era altura para abrir excepções e por isso, a decisão rápida embora discutível foi, aguentar até à chegada do meio de salvamento.

Decisão errada! Em breve percebemos que a tropa com quem estamos metidos, se movimentara de forma a encurralar-nos. Ouvíamo-los nas nossas costas, na tal mancha de floresta que supostamente nos poderia proporcionar alguma protecção, estavam do outro lado da clareira, da rectaguarda chegava a informação de que a cauda da coluna tinha a retirada cortada enquanto da frente rebentava nos entrementes um fogachal que só visto. Sim senhor, lindo serviço, pensámos todos. Pois bem, como se costuma dizer, a gente dança conforme a música!

Dado que intuí que esta operação ia cheirar ao esturro, preparei na véspera com os elementos de que dispunha, um cuidadoso plano de fogo de apoio. Numa saltada a Farim, fui entregá-lo ao camarada Moreira, senhor de três magníficas peças de 14cm, pedindo-lhe que se mantivesse por perto para o caso de.

Agora era altura de colher alguns frutos da diligência efectuada. Foi dada ordem geral para abrigar, e ao Moreira foram solicitados os tiros, tal e tal e tal. Daí por uns segundos que pareceram minutos, ouvíamos as saídas e uma onda de conforto envolveu-nos a alma. Não tardou, primeiro o silvo das brutas por cima das nossas cabeças e logo a seguir, um estrondo tão grande capaz de acagaçar o mais afoito. Devido aos clarões, o céu ficou cor de laranja e pelo ar voaram chispas de aço incandescente, toneladas de pó, folhagem, ramos arrancados às árvores e o intenso odor característico da combustão de explosivos, criaram um cenário próprio do reino de Lucífer. Aquilo, sim, parecia a guerra. Mas os sacanas já deviam estar habituados à fruta, e não se deixaram intimidar. Ó Moreira, manda lá mais três ameixas para os pontos X, Y e Z. Despachadas as bojardas, vemo-las aterrar ainda mais próximo de nós, na margem oposta da clareira. O camarada artilheiro apanhou-lhe o gosto e continuámos naquilo até limpar esse lado da arena.

Para lá deslocámos metade da nossa força, assumindo o controle de uma zona anteriormente ocupada pelos malandros. A situação melhorou bastante em termos de segurança, o que vinha mesmo a calhar dado que, pelo transmita ficámos a saber que os Helis haviam descolado e deviam estar a chegar. Por precaução suspendeu-se a guerra, e de novo um silêncio pesado se abateu sobre nós acompanhando aquele falso sentimento de paz que se segue a cada escaramuça. Estava no papo! Santa ingenuidade, mais um engano!

Mal chega e helicanhão, faz duas passagens à nossa vertical e logo se ouve o matraquear lento de uma metralhadora pesada tentando derrubá-lo. Só então percebemos que ali mesmo na nossa frente, a escassas dezenas de metros e encoberto por um pequeno declive do terreno, estava o verdadeiro ninho da cobra. O In tinha estado a jogar apenas com reservas, a sua milícia. O heli-maca mal contacta o solo e já os enfermeiros pára-quedistas se despacham a recolher o sinistrado. Partem levando consigo o lobo mau que nos informa … estou a ser batido, tenho de retirar.

E adeus, boa tarde! Ficámos novamente no mato sem cão. Com as precauções habituais e muitas outras motivadas pelo aperto do buraco ao fundo das costas onde certamente não caberia um chícharo, retomámos a progressão, agora a duas colunas e com flancos limpos pela artilharia(*). Percorridos meia dúzia de passos, estaríamos a menos de cinquenta metros do objectivo ou seja, do grupo de moranças ocupadas pelos militares, pois as outras habitadas pela população civil ficavam um pouco mais afastadas, quando uma violenta tempestade de chumbo e aço nos fez amochar. Amochar, aguentar, levantar, mais uns passos e nova cambalhota forçada. Foram os cinquenta metros mais duros que tive de percorrer em África. A cena repetiu-se várias vezes até que, passo a passo, nos fomos aproximando, valendo-nos os seis morteiretes que nos acompanhavam sempre e a perícia dos apontadores dessa arma que não me canso de encomiar, o precioso dilagrama.

Confrontando-se mais com uma inesperada teimosia da nossa parte do que com arte guerreira que certamente não possuíamos, o tal bi-grupo e mais as suas milícias retiraram quando acharam que era oportuno, com prováveis perdas, bastantes, atrevo-me a dizer fazendo fé nos vestígios, deixando para trás algum material, sobretudo muitas munições que foram destruídas in loco, dado não possuirmos meios de evacuação. Foi abatido gado, fizeram-se estragos numa plantação de milho e as construções reduzidas a cinzas como recomendavam as NEPS. Espaldões de morteiro, ninhos de metralhadora e uma trincheira que circundava todo o perímetro da tabanca-quartel lá ficaram à espera de ser reocupados. A população civil não foi incomodada e também não nos causou qualquer problema.

E foi assim, até à semana seguinte …

(*) O êxito alcançado com esta operação só foi possível graças à excelente e nem sempre devidamente valorizada colaboração dos nossos camaradas artilheiros. Em outras que se seguiram e até onde o seu braço chegou, nunca a minha companhia deixou algo por fazer. A todos eles, um serôdio abraço de gratidão.

E para todos os Tertulianos, abraços também.
VJ
____________

Notas de CV

(1) Vd. último poste de Vitor Junqueira de 23 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2979: Exercício do meu direito à indignação (1): Simplesmente obnóxio, senhor anónimo (Vitor Junqueira)

(2) Vd. último poste da série de 30 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3381: O meu baptismo de fogo (21): 6 de Outubro de 1970, o primeiro contacto com a realidade das minas (Carlos Vinhal)

sábado, 30 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3156: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (13): Actividade da CCAÇ 2402 em Mansabá

1. Mensagem do nosso camarada Raul Albino, ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, (, Mansabá e Olossato, 1968/70) com data de 29 de Agosto de 2008.

Junto envio o último texto seleccionado sobre a estadia da CCAÇ 2402 em Mansabá.
Já dá para ver o ambiente que se vivia na época.

Um abraço e um bom fim de semana,
Raul Albino



2. A actividade da CCAÇ 2402 em Mansabá

Por Raúl Albino

A actividade principal da CCAÇ 2402 junto ao BCAÇ 2851 em Mansabá consistia na protecção à capinagem e desmatação, efectuada por trabalhadores nativos, para preparar o terreno para a construção de estradas alcatroadas. Essa actividade, que já vinha de Có, viria a prolongar-se durante a estadia da companhia no Olossato, última etapa da nossa comissão na Guiné.

Mas falemos agora neste período em Mansabá. Além do enorme ataque que sofremos logo no início da minha permanência nesta localidade, sede do Batalhão, a nossa principal senão única actividade na zona, foi precisamente a de protecção aos trabalhos de desmatação efectuados por trabalhadores nativos, como fase primeira antes do avanço das máquinas da Engenharia para romperem os caminhos e procederem ao alcatroar das vias, composto por várias fases, que em si também precisavam de protecção.

Máquina do Batalhão de Engenharia para romper estradas

Foto e legenda © Raúl Albino (2008). Direitos reservados.


A partir desta necessidade, todos os dias pela manhã, vários Grupos de Combate se deslocavam para o ponto em que no dia anterior tinham terminado os trabalhos, para dar seguimento à obra em curso. Ao anoitecer, maquinaria e tropas faziam o caminho inverso em direcção ao quartel para o merecido descanso. Esta descrição parece uma rotina de actividades sem nada de interessante a acontecer, não fosse a particularidade de o nosso inimigo também ter uma rotina conjugada com a nossa e que consistia em esperar que as nossas tropas regressassem ao quartel para, senhores do terreno, aí implantarem um autêntico jardim de minas e armadilhas, especialmente anti-pessoais, com a intenção de desmoralizar as tropas e trabalhadores nativos e assim atrasar a obra. No dia seguinte, perdia-se um tempo enorme a picar a estrada e as áreas periféricas, para levantar ou neutralizar as minas e tudo o que pusesse em risco a integridade dos trabalhadores, militares ou nativos. Todos os dias esta rotina se mantinha, de noite eles semeavam, de manhã nós colhíamos. Isto seria interessante se, volta não volta, não houvesse uma mina ou outra que rebentava, causando mortos ou feridos, tornando grande parte deles incapacitados por amputação de pernas.

O terceiro Grupo de Combate da CCAÇ 2402, que eu comandava, tinha a rara característica de reunir no seu conjunto três especialistas em Minas e Armadilhas, eu próprio, o Furriel Maia e o Furriel Godinho. Em toda a restante companhia só haviam mais dois elementos com esta especialidade, o Alferes Silva e outro furriel do qual não me recordo o nome, um em cada grupo ficando ainda um grupo sem qualquer especialista. Cada mina levantada ou arma apreendida ao inimigo tinha um prémio atribuído pelo Comando. Neste momento só me recordo que uma mina anti-pessoal valia quinhentos escudos e uma anti-carro, salvo erro, dois mil escudos. Devido a esta concentração de recursos e do grande número de contactos com o inimigo que o meu grupo teve, estimei no fim da comissão, que cerca de 80 a 90% dos prémios da Companhia por este tipo de materiais, foram atribuídos ao meu grupo e por todos distribuído. Há que esclarecer uma coisa, os prémios eram atribuídos a pessoas individualmente, mas desde o início que ficou estabelecido entre nós que estes prémios seriam para distribuir pelo pessoal do grupo. A razão que eu tive para estabelecer esta regra é muito simples: Alguém acha que há algum prémio, tenha ele o valor que tiver, que pague o risco de vida de quem tinha, por imposição da sua especialidade militar, de levantar minas para protecção da vida dos seus colegas de armas? Nem pensar! Se ficasse com algum dinheiro para mim, não ia ficar bem com a minha consciência, daí que esta foi a melhor solução que encontrei para o dinheiro não ficar no bolso de alguém que não tinha o mínimo direito a ele e esse seria decerto o seu destino, se eu pura e simplesmente o rejeitasse.

Quem me esteja a ler, pensará que o pecúlio monetário do meu grupo cresceu exponencialmente neste paraíso de minas onde nos encontrávamos nesta altura. Completamente errado, julgo mesmo que este local pouco ou nada contribuiu para esse mealheiro, por uma razão muito simples que se alguém se pusesse a adivinhar, dificilmente o conseguiria. É que todas as manhãs, acompanhando a picagem feita pelos militares, um grupo enorme dos trabalhadores nativos iam, na frente dos militares, imitando os seus gestos, e detectando a grande maioria das minas, levantando-as rapidamente sem qualquer tipo de cuidado e vindo a gritar com elas nas mãos:

- Meu alfero, apanhei uma! - para que ficasse registada em seu nome e poder mais tarde levantar o prémio. É que, infelizmente para eles, quinhentos escudos valia bem o risco de vida. Além destes especialistas de pé descalço, havia também pelotões de sapadores, estes sim, especializados na detecção e levantamento de minas.

Era óbvio que este ritmo tremendo de stress não podia continuar, as tropas existentes não podiam dar mais, estavam arrasadas, no entanto, a única solução era vigiar o local vinte e quatro horas por dia para tentar quebrar este ciclo diabólico. Como as tropas que possuíamos eram insuficientes, recebeu-se o reforço de uma Companhia de Pára-quedistas, tropas especialmente vocacionadas para operações especiais. As operações especiais na Guiné, tinham normalmente a característica de serem intensas, perigosas e curtas. Ora a actividade que se passou a pedir a estas tropas foi a de reforçar os nossos grupos de combate, de forma a permitir a presença permanente de vigilância no local dos trabalhos, de dia e de noite. No entanto as máquinas da engenharia e os nativos tinham de regressar ao anoitecer e voltar de madrugada, obrigando a executar muitos dos procedimentos de picagem que já se faziam anteriormente.

A história que lhes vou contar a seguir, narro-a na forma como eu a registei e analisei através dos relatos que consegui captar de várias fontes. No entanto verifiquei recentemente que alguns militares meus ex-colegas de armas, têm algumas versões ligeiramente diferentes da minha, não no essencial mas de pormenor, daí a minha ressalva prévia.

Houve ainda alguns ataques do inimigo às tropas de protecção da zona, pelo menos dois ou três enquanto lá estive, usando essencialmente tiro de morteiro, lança-granadas foguete e armas automáticas. Mas o que verdadeiramente perturbou estas tropas especiais foi a constante insegurança de todos os dias terem de percorrer trilhos que por regra se encontravam minados. É curioso como o desconhecimento do terreno que se pisa pode causar um estado de espírito de pânico. Foi isso precisamente o que aconteceu. Um belo dia, o Alferes Sapador do Batalhão regressou ao quartel, alarmado, dizendo que um determinado local estava completamente minado e não se podia lá andar. Este desabafo foi feito ao comando do batalhão e o major/2.º Comandante que o ouviu, teve, no meu ponto de vista, a única reacção aconselhada militarmente para esta situação. Depois de o ouvir atentamente, tentou acalmá-lo e ofereceu-se pessoalmente para se deslocar ao local para confirmar as afirmações que o seu sub-alterno alferes lhe estava a fazer. Pensando na lei das probabilidades, o major iria ao local normalmente, acalmaria o alferes e dir-lhe-ia algo como:

- Estás a ver, a coisa não é assim tão dramática como a viste, vamos tentar limpar a área de algumas minas que eventualmente estejam por aí e o local ficará seguro novamente!

Só que desta vez não foi assim, a sorte estava lançada e não era para o lado do major. Contou quem lá esteve que ele acabou mesmo por pisar uma mina anti-pessoal, ficando sem um pé, acabando por ser evacuado para o Hospital Militar. O acidente veio a dar razão ao sentimento de pânico que o alferes sentiu. O rebentamento desta mina fez também dois feridos ligeiros, um deles era Oficial. No relatório oficial do Batalhão indicava que tinham sido levantadas nesse dia 18 minas anti-pessoal. Este acontecimento ocorreu em 8 de Abril de 1969, tendo-se apresentado três dias antes em Mansabá o Pelotão de Sapadores do BCAÇ 1911 com o fim de reforçar as nossas tropas empenhadas na detecção e levantamento de minas, na zona de trabalhos da estrada Mansabá/Farim.

No dia seguinte, 9 de Abril de 1969, nova flagelação do IN à zona de obras causando 8 feridos ligeiros (2 civis). Consequência: chegada de reforço nesse dia do PEL SAP/BCAÇ 1912 e PEL SAP/BCAÇ 2861 que passaram a ter missão idêntica ao PEL SAP/BCAÇ1911, chegado poucos dias atrás.

A 10 de Abril de 1969, a Companhia de Caçadores 2402 a três Grupos de Combate parte para o Olossato, deixando o 3.º Grupo de Combate em Mansabá de reforço ao COP-6 (recém criado), cujo comando foi assumido em 13 de Abril de 69 pelo Ten Cor Pára-quedista Fausto Marques. Na véspera tinha chegado o reforço de uma Companhia de Caçadores Pára-quedista, a 122. Foi no meio disto tudo que eu fiquei, triste e abandonado, deitando contas à vida e sentindo-me cada vez mais insignificante, numa guerra que não tinha encomendado.

Raul Albino

Foto 1 > Troço da estrada Mansabá/K3/Farim que tanto suor e sangue custou a militares e civis que participaram na sua construção.

Foto 2 > Destacamento provisório do Bironque para parque das máquinas da Engenharia utilizadas na construção da estrada

Foto 3 > Instantâneo, real, de uma intervenção de um especialista em Minas e Armadilhas, manuseando uma mina AP AUPS.

Foto 4 > Estrada Mansabá/K3/Farim > Mina AC de origem soviética, levantada no Bironque em 3 de Dezembro de 1971

Fotos e legendas © Carlos Vinhal (2008). Direitos reservados.


3. Comentário de CV

Peço desculpa aos demais camaradas e leitores do nosso Blogue, mas não posso deixar de aproveitar o previlégio de ser co-editor para fazer este comentário visível.

É que ao transcrever este trabalho do nosso camarada, fiquei convencido que a estória era minha. Parece que o Raúl Albino não está a escrever o que se passou com ele e com a CCAÇ 2402, mas sim o que se passou comigo e com a CART 2732.

No tempo do Raúl a estrada alcatroada ficou no Bironque e nós continuámo-la até ao K3, sendo as situação descritas por ele as mesmas. Pessoalmente tive a sorte de nunca ter de intervir no levantamento das inúmeras minas que eram semeadas diariamente nos locais de trabalho, porque tínhamos permanente equipas de Sapadores para o efeito.

A mesma rotina diária da saída pelas 5 horas da madrugada com uma bucha de pão no bolso e regresso às 17 horas para almoçar (?), seguido do jantar às 19.

Emboscadas frequentes, tanto nas deslocações de e para a zona dos trabalhos, como nos próprios locais e, à noite para complemento, ataques não raros ao quartel de Mansabá.

Obrigado Raul por contares por mim a nossa estória comum.
________________

Nota de CV

Vd. último poste da série de 24 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3146: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (12): Ataque a Mansabá

terça-feira, 20 de maio de 2008

Guiné 63/74 - P2865: Tabanca Grande (68): Francisco Godinho, ex-Fur Mil da CCAÇ 2753 (Mansabá, Bironque, Madina Fula e K3/Farim, 1970/72)



Francisco Godinho
ex-Fur Mil
CCAÇ 2753
Madina Fula, Bironque, K3 e Mansabá




1. Em 14 de Maio de 2008, recebemos a mensagem do nosso camarada Francisco Godinho, que passamos a transcrever.

Nome: Francisco Godinho
Foto ontem: Envio junto;
Posto: Fur Mil.
Foto hoje: Envio junto;
Companhia: CCaç 2753 (Os Barões do K3);
Local / Zonas de Intervenção: Mansabá, Bironque, Madina Fula e K3 (Farim);
Tempo de comissão: 1970/1972;
Local Residência: Vale Milhaços, Seixal;
Meu endereço electrónico: baraok3@hotmail.com
Meu blog: http://www.deserdadosdaguerra.blogspot.com/

2. Resposta de Carlos Vinhal

Caro Camarada Godinho:

Bem-vindo à nossa Tabanca Grande. Como saberás, tens cá um camarada ilustre, o ex-Alf Mil Vitor Junqueira, hoje médico em Pombal e organizador no nosso II Encontro Nacional (2007).

Na tua mensagem pouco dizes além dos teus elementos identificativos, mas já visitei a tua página e verifiquei que és um elemento activo na reivindicação dos teus (nossos) direitos.

Na verdade há discrepância entre a Caixa Geral de Aposentações e a Caixa Nacional de Pensões, quanto à contagem do tempo cumprido em zona de 100%, como é vulgarmente conhecida entre nós.

Pessoalmente, como funcionário público, foi-me contado o tempo de Guiné a dobrar, tendo para o efeito eu pago, do meu bolso, os descontos equivalentes a esse período.

Vou fazer um link na nossa página para a tua, para que quem estiver nas mesmas circunstâncias que tu, possa conhecer as tuas acções reinvidicativas.

Quanto à tua colaboração no nosso blogue, fica a porta aberta para as estórias que nos queiras enviar acerca da tua Companhia açoriana que substituiu a minha Companhia, madeirense, em Mansabá.

Provavelmente nos cruzámos lá pela Messe de sargentos ou na parada, uma vez que eu fui dos últimos a saír de lá, mais exactamente no dia 23 de Fevereiro de 1972, já toda a vossa Companhia estaria connosco.
__________________

Nota do co-editor CV:

Vd. postagens de:

18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1083: Os Barões da açoreana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72) (Vitor Junqueira)

18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1084: O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753 (Vitor Junqueira)


23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1110: Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoreana CCAÇ 2753 pela região de Farim (Vitor Junqueira)

5 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1403: A açoriana CCAÇ 2753: uma família, uma unidade feita à medida (Vitor Junqueira)

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Guiné 63/74 - P2792: Dando a mão à palmatória (9): O Cap Jorge Picado foi CMDT da CART 2732 (Carlos Vinhal)




Jorge Picado,
ex-Cap Mil,
CCAÇ 2589 e CART 2732,
Guiné 1970/72



1. No dia 20 de Abril de 2008, o nosso novo camarada Jorge Picado cumpria a formalidade do envio das fotos da praxe para a fotogaleria do nosso Blogue.

De acordo com as normas, anexo envio 1 foto da Guiné, para que o Carlos Vinhal identifique alguns dos camaradas da CART2732.

Enviarei mais 2, uma de cada vez.

Estou procurando alguns esclarecimentos para responder ao solicitado sobre a Emboscada do Infandre.





Foto 1> Bissau> O ex-Cap Mil Jorge Picado em frente ao HM 241


2. No próprio dia 20 era enviada resposta

Caro camarada Jorge Picado

Bem-vindo ao nosso Blogue.

Li com atenção o que escreveu sobre o seu percurso na Guiné. Teve cá uma actividade e peras.

Com respeito à sua passagem por Mansabá, com muito pesar meu, não tenho ideia da sua presença na minha CART 2732.

Estive ausente de férias na Metrópole entre 15 de Fevereiro e mais ou menos 23 de Março de 1971.

Após a minha chegada tive uma actividade operacional muito intensa com uma série de Operações para os lados de Farim. Não sei se participou em alguma. Por outro lado, por motivos que mais tarde poderei aflorar, eu não aparecia na Secretaria da Companhia.

O CMDT da CART 2732 era na altura, e desde o dia 7 de Outubro de 1971, o Cap Alberto Pinto Catalão que deu baixa ao HM241 de Bissau sucessivamente em Fevereiro, Março e Junho de 1971.

Em Agosto de 1971 foi evacuado definitivamente para o HMP de Lisboa, em boa hora, porque aquela alminha não gostava de mim nem um bocadinho e acabaria por me dar uma porrada.

Já agora, para ter uma ideia de quantos comandantes tivemos, vou enumerá-los.

1.º - Cap Prego Gamado que deu baixa ao HMP antes do embarcarmos no Funchal com destino à Guiné.

2.º - Já em Mansabá (17ABR70), herdámos o Cap Carreto Maia que transitou da Companhia que ali substituímos, por lhe faltarem uns meses para acabar a Comissão.

3.º - Em JUL70 chegou o Cap José Maria Belo (de boa memória) que acabou por ser evacuado para o HMP com graves problemas de pele.

4.º - Em OUT70 chegou o famoso Cap Alberto Pinto Catalão (meu inimigo de estimação) que andou sempre a correr para o HM241 até conseguir ser definitivamente evacuado para Lisboa. Terá sido num destes intervalos que o senhor comandou a CART 2732?

5.º - Finalmente em OUT71 chegou o Cap Mil Santos Caeiro que aguentou até ao nosso regresso em MAR72.

Se bem se deve lembrar, quando esteve em Mansabá havia muita confusão pois estávamos a construir a estrada do Bironque até ao K3. Tinha sido activado em Novembro de 1970 o COP 6 que teve entre vários comandantes o então Major Correia de Campos, já o senhor andaria por sítios bem mais complicados.

Não estaria o Jorge afecto ao COP 6 e comandado esporadicamente a CART 2732?

A História da Unidade CART 2732 não faz menção ao seu comando.

Foto 2> Mansabá, 13 de Abril de 1971> Festa de batizado da filha do senhor José Leal e da dona Olinda (?).
OBS:-Fotografia enviada por Jorge Picado, onde entre outros se encontra este vosso co-editor


Com respeito à foto que mandou, tirada no dia 13 de Abril de 1971 num almoço oferecido pelo senhor José Leal, no dia do batizado da sua filhota, vou dizer quem está nela.

As pessoas estão numeradas.

1 - Eu mesmo, o Fur Mil Vinhal (à civil) (CART 2732)
2 - O Alf Mil Bento, meu comandante de pelotão (CART 2732)
3 - O Alf Mil Médico, Rolando (se não me engano no nome)
4 - Fur Mil Enf Marques (CART 2732)
5 - Chefe de Posto (Autoridade Civil de Mansabá)
6 - Senhor José Leal (nosso anfitrião)
7 - Alf Mil Op Esp Rodrigues (CART 2732)
8 - Alf Mil Casal (Que comandava a Companhia nos intervalos em que não tínhamos Capitão)
Finalmente o Jorge está entre o senhor José Leal e o Alferes Casal.

Outro assunto.

Uma vez que foi Cap Mil, há-de explicar-nos como foi apanhado a laço para fazer a comissão na Guiné. Temos um caso semelhante ao seu, o ex-Cap Mil Ferreira Neto da CART 2340, que já com família constituída foi lá parar, depois de ter feito o serviço normal obrigatório uns anos antes por cá.
(...)
Um abraço com votos de muita saúde do,
Carlos Vinhal


3. Na mesma data Jorge Picado respondia

Finalmente encontrámo-nos. Os Alferes Bento e Casal eram aqueles de quem sabia os nomes e recordava-os. Também fomos mandados a pé a Fátima (1) à procura dum célebre Morteiro 82 no dia 29 de Março de 1971, precisamente com os 2 Pelotões do Casal e do Bento reforçados com 2 secções de Mil.ª, juntamente com 1 Pelotão (?) de Páras que a certa altura se separou de nós, para contornara bolanha a partir de Berecodim, pelo Sul, seguindo nós pelo Norte.

Possivelmente o Carlos também foi.

Tenho cópia do relatório de acção "Urtiga Negra" do Agr. A, que seria aquele que eu comandava.

Nem calcula os tratatos de imaginação que fiz, sem conseguir chegar a uma decisão para decifrar a leitura das coordenadas de modo a localizá-las numa fotocópia da carta que consegui. Binta 8H8-74 e Binta 8I0-79!

Eu não fui colocado no COP 6. Fui colocado na CART, graças às artimanhas desse tal Catalão, de cujo nome não mais me esqueci. Posso acrescentar como se deu tal conhecimento.

Encontrando-me em Bissau desde a manhã do dia 15 de Fevereiro de 1971, depois de ter deixado a coluna do BCAÇ 2885 no desvio para o Cumuré, onde não entrei, fiquei aboletado, não sei se era este o termo usado, nas instalações do Clube de Oficiais, junto ao QG em Santa Luzia, a aguardar futura colocação.

No quarto onde pernoitava apareceu igualmente para pernoitar o Cap Catalão, que já conhecia, visto que, desde 27 de Novembro de 1970 fui colocado em Cutia, para efectuar a protecção das colunas para Mansabá, que se destinavam aos trabalhos de asfaltamento da estrada para Farim (ou melhor até ao rio Cacheu).

Efectuei 23 escoltas e tenho algumas recordações, como o Carlos se deve lembrar, pelo menos do dia 28 de Dezembro de 1970 (2), segunda-feira depois do Natal... mas voltemos ao Catalão que era do QP.

Tinha vindo para consultas ao HM, no intuito, como me confessou, de se livrar de Mansabá. Todos os dias por volta da hora do almoço, encontrávamo-nos no quarto, para uma banhoca antes do dito e depois dele regressar do HM e eu da minha visita ao QG para saber o meu futuro, perguntando-me ele:
- Então já tem colocação? - e a minha resposta era - Não.

Animava-me dizendo saber que havia vagas em Bissau, enquanto as suas diligências iam dando frutos... não sei se uma licença para tratamento...

O pior foi no dia 5 de Março, uma má sexta-feira, quando no QG me informaram que tinha sido colocado no DA, além do QO, indo em Diligência para a CART 2732 substituir, durante o seu impedimento o respectivo Comandante.

Iam-me caíndo os ditos cujos aos pés ao receber logo a respectiva ordem de marcha que me meteram nas mãos, para que não houvesse dúvidas. E eu que já tinha em perspectiva uma ida para o CAOP 1, que era bem melhor... nem calcula o que mentalmente lhe chamei...

Ao chegar ao quarto e perante a cena do costume, quase sem o encarar respondi-lhe: - Fui colocado na CART 2732. Sigo amanhã para Mansoa.
Desapareceu, nunca mais o vi, porque nessa noite não foi dormir ao quarto...
Como vê, também esse nome não me deixa saudades.

Quanto ao meu funcionalismo público, posso dizer-lhe que já era dos antigos Serviços Agrícolas, quando fui caçado para fazer de Capitão e já tinha os meus 4 filhos!

Um abraço e igualmente muita saúde.
Jorge Picado


4. Em 21 de Abril nova mensagem para o Jorge Picado

Caro Jorge
Afinal temos mais em comum do que eu sonhava. Na verdade também participei na operação em 29 de Março de 1971, chegado há poucos dias de férias da Metrópole.

Curioso que o Jorge e o Catalão se tenham cruzado antes da sua nomeação para a CART 2732.

Segundo o que consta na História da CART 2732, no dia 29MAR71 - 2 GCOMB reforçados com 2 SEC MIL/PEL MIL 253, em BINTA 8H8-74, contactaram com GR IN com cerca de 10 elementos. NT reagiram com fogo de armas automáticas, dilagramas e morteiro 60, pondo os elementos IN em fuga para SW, sofrendo 2 mortos confirmados. Capturada 1 Mauser, 3 granadas de Canhão S/R B-10 e destruído 1 celeiro com cerca de 300Kg de milho.
As NT foram flageladas com morteiro 82 sem consequências. (Acção Urtiga Negra).

Acontece que as granadas de canhão S/R capturadas, foram inspeccionadas por mim antes que alguém lhe mexesse, não fosse, estarem armadilhadas.

Já agora, lembre-me se foi sob o seu comando e se foi nesta operação que se passou este caso.

Era já tarde alta, estávamos completamente estourados, quem comandava incluído, até porque era um pouco mais velho que nós, e o Comandante da Operação que de avioneta dirigia a Acção, queria que nós fossemos ainda a determinado objectivo. Lembro-me que o nosso capitão, que eu não conhecia muito bem, ter desobedecido terminantemente às ordens de quem lá de cima não compreendia que naquela altura estávamos completamente esgotados, e ter-se dirigido para o K3 onde nos mataram a sede que nos atormentava há longas horas.

Lá recuperámos as forças, até voltarmos para Mansabá em meios auto.
Ficámos todos contentes e admiramos a coragem do nosso comandante por nos poupar a mais um esforço inútil.

Mais tarde, em 12 de Abril, integrado na Acção Urtiga XXVII, numa emboscada na Bolanha de Iribato, tivemos um contacto de que resultou a morte do milícia Sul Bissau. Quem comandava as forças era o Alf Bento.

Dias difíceis que já lá vão.

Mande a estória da sua convocatória para o curso de capitães e posterior mobilização para a Guiné.
São experiências de vida notáveis, tanto mais que já tinha família constituída.

Um abraço
Carlos

Notas de C.V.

(1) Fátima era uma tabanca ocupada pelo IN, onde cada operação era certeza de contacto e muito fogo de parte a parte. Não havia Fé que valesse nesta peregrinação.

(2) Julgo que o Jorge Picado se refere a um acontecimento insólito que foi o IN ter feito, na estrada alcatroada que ligava Mansabá a Mansoa, na zona de Mamboncó, 5 enormes buracos com cerca de 2 a 2,5 metros de diâmetro e 60 a 80 centímetros de profundidade, ao longo de 200 a 250 metros.
Estes buracos obrigavam as colunas auto a pararem naquela zona, a picar a berma por onde as viaturas tinham forçosamente de passar e a um reforço de segurança enquanto se transpunha estes obstáculos.
Verdade se diga que em pouco tempo a Engenharia Militar repôs a normalidade, procedendo à reparação da estrada.
_______________

Notas dos editores:

Vd. postes de 9 de Abril de 2008> Guiné 63/74 - P2736: Tabanca Grande (60): Apresenta-se o Jorge Picado, ilhavense, ex- Cap Mil, CCAÇ 2589, CART 2732 e CAOP 1 (1970/72)

de 10 de Abril de 2008> Guiné 63/74 - P2748: Para o estimado Jorge Picado (Afonso Sousa)

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Guiné 63/74 - P2750: Ói pessoal... ou o regresso do filho pródigo (Vitor Junqueira / Carlos Vinhal)

1. Confesso-me admirador de alguns dos nossos camaradas quanto ao seu modo de escrever. Seja pelo sentido de humor, pelo seu poder de memória que lhes permite, ao fim de tantos anos, ter presente as mais diversificadas situações, ao ponto de as contar com o mais ínfimo pormenor, pelo modo como viveram uma guerra, contornando o aspecto bélico, servindo-se dela para prestar serviço humanitário, quer pelo português correcto com que se exprimem, etc.

Claro que não vou falar em nomes, pois a alguns deles já expressei a minha maneira de pensar.

Hoje vou falar de um camarada, que eu considero neste grupo e que esteve ausente durante quase um ano, em parte incerta, em termos de blogue falando, entenda-se.

Telefonei-lhe no Natal para lhe desejar Boas Festas, já que por mail não obtive resposta, fazendo-lhe sentir o quanto era notada no Blogue a sua ausência.
Contou-me que estava com problemas técnicos na sua linha telefónica e que não tinha Net.
Fiz-lhe sentir que pessoas como ele não podem deixar de alimentar esta página com as suas estórias, ora de guerra, ora de humor e muito mais importante, com os seus conhecimentos técnicos na área da saúde.

Estou a falar do nosso Dr. Vitor Junqueira, que na Guiné foi Alf Mil At Inf da CCAÇ 2753, operacional dos quatro costados, e a quem foi atribuída uma medalha que ele teima em não dizer por que motivo.

Nunca é demais lembrar que a ele devemos a organização do último encontro nacional em Pombal, que eu quero que sirva de exemplo, em número de participantes, para este ano.

Foi com grande alegria que encontrei hoje na minha caixa de correio uma mensagem sua, que a seguir transcrevo.

C.V.



Vitor Junqueira,
ex-Alf Mil Inf
CCAÇ 2753 - Os Barões
Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá ,
1970/72


2. Mensagem de Vitor Junqueira

Data: 11 de Abril de 2008

Assunto: O gajo deu à costa

Ói, pessoal!

A toda a malta amiga que se inquietou com a minha sabática ausência, amigos do coração e do reviralho, quero dizer-vos que todos me fizeram falta; tive saudades de vós.

Devo-vos satisfações pelo ocorrido.

Há cerca de um ano, devido a uma encrenca com a instalação telefónica, tive uma zanga com a PT. Sob o impulso, pedi-lhes que retirassem os seus pertences da minha residência ...e lá se foi a linha e o meu acesso à rede!

Começou então um folhetim protagonizado por outra operadora que no seu sítio ia adiando de mês para mês a cobertura da minha zona. Até que foi comprada, ao que me dizem, pelo ti Belmiro.

E nunca mais se ouviu falar dela. Fiquei no mato sem cão! Pensei então na hipótese do serviço móvel, mas a velocidade de transmissão de dados era tão fraquinha que bastava um emílo trazer uma fotografia em anexo para me levar aos píncaros da irritação. Até que há cerca de duas semanas, constatei que um conhecido batráquio estava mais espertinho, espevitou, pelo que resolvi adoptá-lo.

Fui então a uma loja onde por setenta paus adquiri uma péne, apetrecho parecido com um isqueiro preto, cuja cabecinha introduzi num buraquito das traseiras do meu pêcê, e ... eis que vi a luz finalmente. Estou ligado à néte, feliz por estar de novo convosco.

De resto, está tudo bem, comigo. A família está OK e quanto à saúde ... vamos andando.

Iniciei o ano com um raide pela américa do sul (Uruguai, Argentina, Chile, Paraguai e Brasil) de onde regressei há pouco. Em Buenos Aires fui parar ao hospital por causa de um tréco que me deu no realejo. Vi jeitos de passar à caçarola, mas já está tudo bem.

Então meus caros, aqui vai um abração do Vitor Junqueira e até breve.
_______________

Nota de C.V.:

Vd. postes de:

7 de Novembro de 2006> Guiné 63/74 - P1255: Dicas para o viajante e o turista (1): A experiência e o saber do Vitor Junqueira

18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1084: O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753 (Vitor Junqueira)

23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1110: Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoreana CCAÇ 2753 pela região de Farim (Vitor Junqueira)

11 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): Cabrito pé de rocha, manga di sabe (Vitor Junqueira)

31 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1475: A chacun, sa putain... Ou Fanta Baldé, a minha puta de estimação (Vitor Junqueira)

10 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1581: O elogio dos pára-quedistas das 121ª e 122ª CCP (Nuno Mira Vaz / Vitor Junqueira)

sexta-feira, 27 de outubro de 2006

Guiné 63/74: P1215: Histórias de Vitor Junqueira (4): Irmãos de sangue, suor e lágrimas









Guiné > Região do Oio > CCAÇ 2753 (197o/72) > O Vitor Junqueira, enquanto alferes miliciano de uma companhia açoriana que fazia parte do COP 6, cujo comando era Mansabá. A sua missão principal era assegurar a protecção dos trabalhos da estrada Mansabá – Farim, em ordem a garantir um ritmo acelerado de construção e evitar as flagelações do IN sobre os meios técnicos empenhados (1). Acompanhando os trabalhos de construção da referida estrada, vivia em destacamentos temporários como o de Bironque (2)... A avaliar pelas fotos, a açoriana 2753 mais parecia uma tribo de nómadas, com a casa às costas... No meio de tudo isto, ainda conseguiam tempo para fazer roncos, como se deduz da foto com material de guerra (granadas de RPG 2 e RPG 7, além de canhão sem recreio)...

Trinta e cinco anos depois, é o mesmo homem que pergunta, com a frontalidade, o desassombro e o sentido de humor que o caracterizam, e a propósito do nosso encontro na Ameira, Montemor-o-Novo, em 14 de Outubro de 2006: "Como é que uma seita de maduros que não se conheciam, dez minutos depois de um primeiro contacto físico, se sentem como amigos de longa data? Para mim não restam dúvidas. Uma vivência comum tão forte quanto aquela que nos uniu por altura dos verdes vinte e tal anos, fez de nós irmãos de sangue... suor e lágrimas! "... Mas o melhor é ler a carta (e não o e-mail!) que ele fez questão de me mandar, e que vem selar ainda mais os laços que nos unem nesta tertúlia virtual que é uma rede social... Vitor: obrigado pela tua carta, e os meus parabéns... Ganhámos, todos, mais um irmão de sangue, suor e lágrimas, que foi também andarilho do mundo, que é hoje brigadeiro da vida e avô babado e que alimenta a esperança de chegar a general!... Por mim, dou-te já as quatros estrelas!... Quanto à tua segunda carta, em que abordas o problema dos desertores e refractários, evocas a tua experiência de vida em França e sugeres uma mudança de orientação editorial do nosso blogue (que seria hoje a do "politicamente correcto"), será publicada a seguir, num dos próximos posts (LG) .

Texto e fotos: © Vitor Junqueira (2006). Direitos reservados. Fotos alojadas no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.

O Vitor Junqueira foi alf mil da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72) (1). Vive hoje em Pombal, onde é médico.

Mensagem do Vitor Junqueira, enviado à 0h23, de 23 de Outubro de 2006, segunda-feira.

Meu caro camarada e amigo, Luís Graça.

Hoje como é domingo, vai uma carta! Não que eu tenha seja o que for contra os emílios, como diz um certo compadre da TV. Mas acho-os neutros, impessoais, devassos. São como recados escritos que passam de mão em mão. Tornaram-se conspícuos, mas falta-lhes a chama e o intimismo de uma carta. Na minha opinião, um e-mail está para a escrita como uma rapidinha para o amor. Mal comparado? Não importa.

Tenho um amigo que sendo um quadro importante numa empresa nacional de grande dimensão, tem, por dever de ofício, de ser muito cuidadoso quando abre a boca. Disse-me ele um dia:
- Ó Vitor, tu conheces-me tão bem que eu quando falo contigo nem preciso de as pensar!

E é verdade, os amigos também servem para isto. Permitem-nos que o espelho mostre a nossa verdadeira cara, sem a pesada máscara dos formalismos. Assim estou eu.

Aqui por Pombal, está de chuva. A água é tanta que até os cães a bebem de pé. Já começo a ter saudades daquele belo dia com que o S. Pedro nos brindou aquando do nosso encontro em Montemor (3). O clima esteve espectacular e não apenas por razões meteorológicas. Penso que este primeiro encontro se prolongará através das suas réplicas e tréplicas, durante muito tempo. Em todos deixou certamente uma marca, e os participantes hão-de vir a terreiro contar o que lhes vai na alma. A começar por isto: como é que uma seita de maduros que não se conheciam, dez minutos depois de um primeiro contacto físico, se sentem como amigos de longa data? Para mim não restam dúvidas. Uma vivência comum tão forte quanto aquela que nos uniu por altura dos verdes vinte e tal anos, fez de nós irmãos de sangue... suor e lágrimas!

Hoje já somos todos Brigadeiros da Vida. Por isso, creio que deste encontro e dos que aí vêm, surgirão naturalmente, planos, sonhos, projectos e utopias que nos hão-de guiar até ao Generalato. Ainda temos muito(as) para dar!

Os homens da nossa geração foram praticamente todos combatentes. Poucos escaparam à mobilização o que não deixa de ser insólito, já que o regime de então nunca admitiu o estado de guerra. Como afirmei em Montemor, é esta experiência que é ao mesmo tempo pessoal e colectiva, esta perspectiva da vida e do mundo em tempo de guerra ou na paz, do valor dos homens e da filha da putice de que são capazes, que os ex-combatentes têm o dever de transmitir, pelo menos àqueles que lhes são mais próximos. Que lhes sirva, para que de olhos e ouvidos bem abertos não se deixem embalar por canções de bandido, que alguns começam por aí a trautear. Porque como disse, a paz não é mais do que um interlúdio entre guerras.

Já agora, que falei de brigadeiros e generais, deixa-me dizer-te que a subida de patente mais gostosa que tive, foi a promoção a avô. De duas endiabradas garotas (Inês e Carolina), filhas da minha Maria Gracinda.

Mas ainda estou para as curvas! Sinto que de estetoscópio ou de G3 ainda lá ia. Se fosse preciso, quando e onde fosse necessário.

Luís, espero não te ter decepcionado com esta última tirada! Depois do que disse... parece que não disse. Ou que dei o dito por não dito. No entanto a coerência é uma das linhas de rumo que têm balizado a minha vida, reconhecendo embora e falando por mim, que a falta dela, faz parte do pacote de pecados originais com que desembarcamos no Mundo. Como agora se ouve dizer tantas vezes, tudo depende do contexto. E para ser franco, não sou, nunca fui um pacifista militante.

A propósito, penso que ainda teremos de falar sobre um assunto que já afloraste no Blogue. Trata-se da questão dos conscritos ou mobilizados que decidiram não comparecer à chamada. Nalguns casos na véspera de embarque, como é sabido. Nunca conheci nenhum, embora tenha ouvido dizer que alguns até cantavam nas estações do Metro de Paris, precisamente numa altura em que eu próprio andava para aqueles lados.

Também espero poder falar-te um dia da minha experiência como emigrante em terras de França e do chorrilho de mitos e, principalmente estereótipos, que surgiram a respeito daqueles que aí procuraram melhores condições de vida. O fado estafadito de la valise à carton, dos bidonvilles de Champinhy e outros sítios, assim como as propaladas fugas em massa à guerra colonial não traduzem a realidade da emigração portuguesa nos finais da década de sessenta. É que eu estive lá!

Também estive em Villiers sur Marne, Pléssis Trevisse, Lasigny, Sucie en Brie, Bonneil, St. Maur, Charenton Écolles, Creteil, Frennes, Villecresnes, Maisons Alfort, Rambouillet, Le Mesnil St. Denis, Trappes, S. German en Laye, Poissy, Argenteuil, Houilles sous Carriéres e alguns outros grandes centros de acolhimento de portugueses na região parisiense. Mas conheci também a nossa realidade em locais distantes da capital como Lyon, Strasbourg, Metz, Oyonax, Bourg en Bresse, Cherbourg, Le Havre e Rouen.

Não digo mais porque acho que já chega para desincentivar quem me queira vir contar histórias. O grande problema é este: se um boato se desmonta com relativa facilidade, já o mito que muitas vezes é filho de um boato assente sobre um fundo de verdade, ganha raízes e torna-se praticamente indestrutível. De resto, quanto mais vivo mais me convenço de que a Humanidade não consegue subsistir sem os mitos. E assim muitos dislates continuam a ser ainda hoje alimentados em Portugal por quem tem o poder de fazer opinião.

Já agora deixa-me fazer uma pequena correcção a uma referência que li no Blogue a meu respeito. De facto, eu nunca vivi em França com os meus pais. Quando eu tinha uns doze ou treze anos, tive a sorte de ler dois livros emprestados pela biblioteca itinerante da Fundação Gulbenkian que traçaram o meu detino. Foram eles a viagem da Kon Tiki (Pacífico) e o mistério dos Homens Vento (Tibete). O bichinho das viagens instalou-se de tal maneira que o meu grande sonho naquela idade, era pôr-me ao fresco. E assim aconteceu. Terminado o Liceu, já com 18 anos no pêlo, tratei do Passaporte que requisitei na Junta da Emigração à Rua da Junqueira e, ala que se faz tarde, aí vou direito a Paris no Sud-Express.

Por lá andei entre idas e vindas até pouco antes de ser hesitantemente incorporado no glorioso exército português, em 14 de julho de 1969. Porque a minha paixão era a Marinha, mas aí servia-se durante muito mais tempo. Mais tarde tornei-me também oficial da Marinha Mercante Portuguesa. E como podes verificar pelo documentos que seguem como anexos (4), mais voluntário não poderia ser. Já então tinha a minha vida montada com casa, emprego, carta de condução, pópó, e uns bons trocos no bolso para as despesas.


Talvez fiques surpreendido, como eu ficaria, depois de ouvir relatos de fugas a salto, medonhas e perigosas, mas a verdade é que este teu amigo, já depois de inspeccionado e apurado para todo o serviço militar, saía do país com autorização militar no bolso sempre que queria. E mais, sendo já aspirante miliciano, aproveitei uns escassos dias de férias após o COM [Curso de Oficiais Milicianos] e fui a Paris fazer a minha inscrição consular que até então não me tinha sido necessária, a fim de renovar o passaporte.

Estávamos em Dezembro de 1969 e eu já então sabia que o meu destino era a Guiné, pois essa havia sido a minha opção. Pelos carimbos poderás também constatar que ainda cheguei a tempo para a ceia de Natal! Logo nos primeiros dias de Janeiro embarquei para os Açores a fim de constituir a minha unidade (1).

Para os que acharem que tive algum tratamento especial, posso garantir que não. Do meu curriculum consta que fui trabalhador rural, vendedor ambulante, empregado de balcão, operário da construção civil, contrabandista, marinheiro e médico. Mas nunca fui Bufo, nem agente infiltrado ou pide à paisana. Considero-me um homem de palavra, a quem a Pátria sempre tratou como filho e nunca como enteado. Deu-me mais do que eu merecia.

Quanto aos dois anos que passei na Guiné, foram de facto os melhores da minha vida só comparáveis àqueles em que andei lá por fora.

Siga a marinha e viva Portugal.
Um abraço do Vitor Junqueira.
_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. postes de:

18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)
e
Guiné 63/74 - P1084: Histórias de Vitor Junqueira (2): O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753

23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1110: Histórias de Vitor Junqueira (3): Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoriana CCAÇ 2753 pela região de Farim

(2) Vd. post de 10 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1163: Destacamento temporário do Bironque, inaugurado pela madeirense CART 2732 (Carlos Vinhal)

(3) Vd. post de 15 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1177: Encontro da Ameira: foi bonita a festa, pá... A próxima será no Pombal (Luís Graça)

(4) A publicar posteriormente com uma segunda mensagem, que é a continuação desta.

terça-feira, 10 de outubro de 2006

Guiné 63/74 - P1163: Memórias de Mansabá (6): Destacamento temporário do Bironque, inaugurado pela madeirense CART 2732 (Carlos Vinhal)

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Guiné > Região do Oio > Estrada de Mansabá-Farim > Bironque > Novembro de 1970 > Destacamento temporário: aspecto parcial. Este destacamento foi inaugurado pela CART 2732 (a companhia madeirense a que pertencia o Fur Mil Carlos Vinhal) no dia 26 de Novembro de 1970.

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Guiné > Região do Oio > Estrada de Mansabá-Farim > Bironque > Novembro de 1970 > Destacamento temporário: dia da inauguração.
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Guiné > Região do Oio > Estrada de Mansabá-Farim, no troço Bironque-K3 > Fevereiro de 1971 > A nova estrada alcatroada, construída pela engenharia militar, ainda coberta de pó branco.

Texto e fotos: © Carlos Vinhal (2006) (1). Direitos reservados.
Fotos alojadas no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.

Caríssimo Vitor Junqueira (2):

Estive mesmo agora a imprimir o teu belíssimo trabalho "Um dia no mato, na região de Farim" (3) e lembrei-me de ir aos meus arquivos físicos, já que a memória me estava a atraiçoar, para, quiçá, fornecer elementos para aumentar os teus conhecimentos.

Aproveito para te enviar 3 fotografias, para o caso de não teres nada sobre o tema. Peço desculpa por estar a ser um pouco tardio, mas o que está em causa para ti é a tua valorosa CCAÇ 2753.

Assim sou a informar que o destacamento temporário do Bironque foi inaugurado, sem pompa nem circunstância, pela CART 2732 no dia 26 de Novembro de 1970. Em anexo seguem 2 fotos dos momentos antes da inauguração oficial e abertura ao público.

Quando a [CCAÇ] 2753 [ - a companhia açoriana, a que pertencia o Alf Mil Vitor Junqueira -] chegou, nós já tínhamos feito a limpeza e arrumado os stands. Ainda me lembro daquela tenebrosa primeira noite em que dormimos(?) em cavidades por nós mesmos escavadas, no cimo do muro circundante do acampamento. Para ajudar, já noite dentro, o gerador lembrou-se de avariar, pelo que com muita sorte e recorrendo aos conhecimentos de alguns militares que na vida civil eram electricistas, conseguiu-se resolver o problema.

Envio também uma foto da estrada nova, entre o Bironque e o K3, em que ainda se pode ver aquele pó branco que a BECE (4) punha por cima do alcatrão e que no princípio podia servir para esconder minas. Felizmente nunca aconteceu nada e o pó foi desaparecendo com a chuva.

Carlos Esteves Vinhal (1)
Ex-Fur Mil Art Minas e Armadilhas
Nº Mec 19551569
CART 2732/Mansabá
CTIGuiné 70/72
Leça da Palmeira

___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 25 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCLI: A madeirense CART 2732 (Mansabá, 1970/72) (Carlos Vinhal)

(2) Vitor Junqueira, ex-alf mil da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá, 1970/72)

(3) Vd. post de 23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1110: Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoreana CCAÇ 2753 pela região de Farim (Vitor Junqueira)
(4) BECE = Batalhão de Engenharia de Construção de Estradas ? Ou sigla de uma empresa ?

sábado, 23 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1110: Histórias de Vitor Junqueira (3): Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoriana CCAÇ 2753 pela região de Farim


Guiné > Região do Oio > Guiné > Região do Oio > Mansaba > CART 2732 (Mansabá, 1970/72) > 3.º Pelotão, Secção do Fur Mil Vinhal (primeira fila, à direita, ladeado pelo seu amigo Ornelas). Embora mais velhos, os madeirenses estavam afectos ao COP 6 (Mansabá), e cruzaram-se em operações com os açorianos da CCAÇ 2753, a que pertencia o Alf Mil Vitor Junqueira.

Foto: © Carlos Vinhal (2006)


Post do Vitor Junqueira, ex-alf mil da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72). Hoje é médico e vive no Pombal. Infelizmente ainda não temos nenhuma foto deste nosso estimado camarada (1).


Camarada e amigo Luís Graça,

Num simpático email teu que recebi há dias, falavas da possibilidade de a minha Companhia (a açoriana CCAÇ 2753) e a do Carlos Vinhal (a madeirense CART 2732) (2), se terem cruzado algures na região de Farim. É verdade, só que eles atingiram a veterania muito primeiro do que nós, mas ainda fizemos algumas operações em conjunto com outras forças.

Como aqui há uns tempos, alguém do nosso grupo de amigos disse que não havia muita informação sobre esta zona e as unidades que por lá passaram, e querendo enviar um sinal de grande apreço e respeito àqueles que em qualquer ponto da Guiné, com ou sem armas, voluntariamente ou por imposição, cumpriram com o que na altura... teve de ser (!), a todos dedico este pedaço de prosa. Sem pretensões, mas em todo o caso na expectativa de conseguir reavivar as emoções fortes, porventura traumáticas para alguns, de uma guerra que nos foi imposta quando tínhamos vinte e poucos anos. Podemos hoje, assim o espero, vivenciá-las com a tranquilidade que a idade, a paz e o tempo passado nos concedem.

Peguei num pequeno relato que anteriormente tinha feito circular pela tertúlia (1), editei-o e acrescentei umas coisas. Procurei fazer coincidir datas, factos e até nomes com a realidade. Ficou um bocado longo... se calhar maçador. Podes passá-lo ao news group?

Conto poder estar no encontro da Ameira [dia 14 de Outubro próximo].

Um abraço,
Vitor Junqueira


Um dia no mato, na região de Farim

Texto dedicado a todos os camaradas tertulianos
com um abraço do
Vitor Junqueira

Guiné, Fevereiro de 1971.

Estamos quase lá...

A nossa Companhia era uma das Unidades que compunham o COP 6, cujo comando estava sediado em Mansabá. Fazia parte do Agrupamento T tendo-lhe sido atribuída a missão a seguinte missão - passo a transcrever dos registos oficiais (História da Unidade e Feitos e Factos da CCAÇ 2753):

Assegurar a protecção dos trabalhos da estrada Mansabá – Farim, em ordem a garantir um ritmo acelerado de construção e evitar as flagelações do IN sobre os meios técnicos empenhados. Na segurança dos trabalhos, as forças adoptam o dispositivo com as seguintes missões:

- Montam a segurança próxima dos trabalhos em ordem a garantir a interdição de itinerários de aproximação, eliminando a possibilidade do IN exercer acções de flagelação sobre a zona dos trabalhos, para o que monta emboscadas nas possíveis bases de fogos e executam patrulhamentos na ZA atribuída;

- Garantem a segurança imediata dos trabalhadores e equipamentos, detectando ou aniquilando quaisquer elementos IN infiltrados através do dispositivo próximo, para o que realiza patrulhamentos frequentes nas imediações da zona de trabalhos e ocupa posições sobre os eixos da mais possível infiltração;

- Realizam acções ofensivas sobre as áreas fulcrais do Morés, Canjaja e Biribão em ordem a anular a pressão do IN sobre o eixo Mansabá – Farim
.

Havia anos que nenhuma força militar portuguesa tivera condições para se movimentar naquele itinerário a partir de, e para norte de Mansabá até ao K3 [antiga Saliquinhedim].

A região estava agora a ser (re)conquistada diariamente, palmo a palmo, metro a metro. Por sua vez, o IN tentava a todo o custo impedir ou retardar o avanço dos trabalhos, pois aquela era uma via que, uma vez interditada às NT, se tornara estratégica para o desenvolvimento das suas acções. Nela desaguavam os corredores do Sitató e Lamel, através dos quais as forças do PAIGC dispunham de uma ligação fácil e rápida entre as suas bases junto à fronteira sul do Senegal e o coração da Guiné (Oio, Morés e região dos Sares). Movimentação de tropas e operações de natureza logística por parte do IN decorreram com toda a facilidade e segurança ao longo deste eixo numa base praticamente diária, durante anos.


O impressionante dispositivo das NT afecto à segurança da construção da estrada Mansabá-Farim

Até que alguém decidiu que aquela via tinha de ser recuperada. Para esse efeito é então criado um importante dispositivo, notável pelo significativo conjunto de meios envolvidos e, a meu ver, pelo enorme sucesso alcançado face aos objectivos atrás enunciados. Penso que é uma fase pouco conhecida da guerra da Guiné à qual nunca foi dado o devido relevo político-militar.

Constituído pelos Agrupamentos F1 e T do COP 6 (Comando Operacional Nº 6 – Mansabá) envolvia no seu conjunto forças das seguintes unidades:

CART 2732 (bém conhecida como a Companhia dos Madeirenses do nosso amigo e camarada Carlos Vinhal)(2)
CCP 121
CCP 122
Esq Rec AML 2641
27.ª CComds
CCAV 1/ 286.º Pel Milícia
1 Pel Art 8,8
1 Pel Art 14
1 Pel Art 10,5
3 Sec Mort 81
1 Sec Sapadores
1 Dest Engenharia
Pelotão de Milícia 253
57.º Pel Caç Nat
CCAÇ 2549 / Pel Milícia 282

E bem cá no fundo, mas apenas por modéstia (!), a Companhia dos Açorianos, CCAÇ 2753 da qual esta praça fazia parte ...


Baptismo de fogo em Bironque

A primeira aproximação que tivemos com a guerra a sério e àquilo que iria ser o nosso estilo de vida nos meses vindouros, ocorreu a partir de um ponto localizado no mapa entre Mansabá e o K3, onde antes da guerra existira uma pequena povoação, chamada Bironque.

Para o Destacamento Temporário do Bironque segue em 1 de Dezembro de 1970 um GC da CCAÇ 2753, tendo os restantes chegado a intervalos de uma semana ficando a operação concluída em 21 de Dezembro de 1970. Com a chegada da CCAÇ 2753, a CCAÇ 17 retirou!

Algum tempo antes, tinha havido uma espécie de motim com cenas de tiros entre os oficiais e sargentos daquela Companhia e os seus elementos nativos, de etnia maioritariamente manjaca. Estes, fartos de bordoada, recusaram-se a sair para o mato, alegando que a terem de levar porrada forte e feia, preferiam apanhá-la defendendo o seu Chão. O general Spínola resolveu o contencioso através de umas despromoções e da transferência da Companhia para Bula.

De Bissau, avançam os Barões da CCAÇ 2753 até então afecta ao COMBIS como força de reserva. Passam assim da noite para o dia de uma espécie de tropa VIP, bem alojada, bem alimentada, bem montada (vários jipes!) e com tarefas aligeiradas, ao grau mais elementar de tropa arre-macho.

Cheirando ainda a periquito, sem qualquer treino operacional, não tendo beneficiado de rodagem por sobreposição com tropas mais experientes, vêem-se entregues à bicharada, obrigados a aprender à sua custa os rudimentos da arte de safar o próprio coiro. Certo é que vieram a provar ser dignos do lema que orgulhosamente ostentavam nos crachats Noblessse Oblige!

Na minha memória preservo ainda em imagens technicolor as principais cenas do meu primeiro dia de mato.

Tínhamos partido de Bissau muito cedo em coluna militar, com armas e bagagens. Arribámos ao Bironque seriam par aí umas dez da manhã. Enquanto alguns dos recém chegados descarregavam para o meio do nada os caixotes com as batatas e cebolas por entre os quais se escapuliam ratazanas que, ninguém sabe como, tinham apanhado boleia, já outros desfechavam os dentes preparando-se para alinhar nas diversas tarefas para que estavam escalados. O cacimbo pesado da madrugada dera lugar a uma manhã linda, luminosa. O silêncio e a paisagem, magnífica, eram avassaladores!

Com um pé apoiado sobre um cunhete de munições e um púcaro de aço inox na mão de onde ia sorvendo uma mistela (nunca gramei leite em pó nem café de cevada), contemplava aquele paraíso quando de repente...

Parecia o fim do mundo! Não vou poupar em adjectivos. Grandioso, empolgante e... aterrador, nem em imaginação conseguiria conjecturar um tal espectáculo. À distância de um quilómetro ou dois do acampamento, irrompe um fogachal tão intenso que até os passarinhos das redondezas levantaram voo procurando refúgio noutras paragens. O ruído das explosões acompanhado pelo matraquear das armas ligeiras e aqueles balões de fumo negro no ar, ofereceram-me o primeiro vislumbre, uma espécie de iniciação visual e auditiva, música e letra de um fado a que teria de me habituar! Naquela manhã a rifa premiada tinha calhado a um GComb dos madeirenses.

Por aqui, as escaramuças eram frequentes. Durante o dia, emboscadas às forças empenhadas na segurança próxima e imediata e flagelações sobre a frente de trabalhos, com baixas entre operários e danos nas máquinas, após o pôr-do-sol, invariavelmente pela hora do jantar, era preciso estar atento ao som inconfundível das saídas dos CSR, MORT 82 e RPG que, vindo do interior da mata adjacente, anunciava uma saraivada de balas e estilhaços a rasgar o céu por cima do improvisado aquartelamento.


Transferência para Madina Fula

Acompanhando a progressão dos trabalhos, a Companhia transfere-se com toda a traquitana em 13 de Janeiro de 1971 para um novo Destacamento mais a norte, na zona de Madina Fula, a uns 8 Km de Farim. Nestes Destacamentos Temporários não existia qualquer construção ou barraca, apenas algumas tendas de lona, insuportáveis durante o dia devido ao calor. À noite não ofereciam a quem estivesse no seu interior qualquer protecção contra a chuva de aço, pelo que toda a gente preferia cochilar nos abrigos. Tratava-se em rigor de locais de pernoita que as poderosas máquinas Caterpillar ao serviço da empresa construtora, edificavam do seguinte modo:

Sobre uma das faixas desmatadas com cerca de 200 metros de largura que se estendiam de cada lado da estrada em construção (para evitar o ataque próximo às nossas colunas), erguiam quatro barreiras de terra com dois metros de altura de maneira a formar um quadrado com mais ou menos 50 metros de lado. No topo destas barreiras, escavavam-se então os espaldões para as armas pesadas, trincheiras e simples covas que abrigavam um ou dois homens. Era a partir deste arremedo de fortim que se montava a vigilância e defesa, tanto do pessoal como das máquinas, que no final do dia de trabalho recolhiam ao seu interior. Como vizinhança, muita força de mosquitos e pulga matacanha!

Logo nos primeiros passeios pelas redondezas, tivemos a visão clara do inferno que teria sido a vida dos camaradas que nos precederam nos primeiros anos da guerra. Numa região enxameada por bases do PAIGC localizadas nas regiões de, e volto a citar dos registos: Cã Quebo, Santambato, Cambajú, Iracunda, Mansodé, Cubonje, Canjaja, Biribão, Ionfarim, Uália, Mansomine, Binta, Queré, Banjara e Manhau, qualquer movimento nosso era acompanhado por acção semelhante por parte do IN, tornando-se o contacto inevitável.

Em alguns pontos, nomeadamente ao longo do que em melhores dias tinham sido as bermas e valetas desta excelente rodovia que ligava Bissau ao Senegal, agora reduzida à condição de simples trilho, as cápsulas de munições de armas ligeiras apanhavam-se aos milhares, nalguns sítios literalmente à pazada. No entanto, o sortido dos vestígios abrangia um pouco de tudo, desde velhas minas anti-pessoal com a tampa de madeira carcomida pela formiga mas ainda capazes de nos pregar uns sustos, até granadas anti-tanque, algumas intactas, bojudas, matulonas que me disseram tratar-se de Panzerovkas (?). Havia armadilhas na estrada e nas zonas de mato contíguas.

Por ali confiscámos também em operações subsequentes, variadas peças do arsenal do IN que incluía itens tão antigos e obsoletos como canhangulos, até novíssimas granadas de RPG 2 e 7 e respectivos lançadores, Mort 82, munições de Browning 20mm com tripé (utilizadas então como anti-aéreas), muitas pistolas de várias proveniências, PPSH, Degtariev e kalashnikov, Esping. M 44 americanas (!). E ainda, Met Pesadas Breda e Dreyses , por certo gamadas ao glorioso Exército Português. Também fizeram parte deste catálogo um par de lindíssimas espingardas Mauser, com ferragens cromadas e, gravado sobre as câmaras, o selo da República Portuguesa. A quem teriam pertencido? Quem terá ficado com elas?


Um dia mais perto ...

O normal dia de trabalho começa bem cedo para o pessoal engajado nas operações de segurança próxima, e não só! Hoje, dia 2 de Fevereiro de 1971, ainda não eram quatro da matina e já uma das sentinelas tinha obrigado o russo (cozinheiro) e o básico, seu ajudante, a porem-se de pé a fim de preparar o pequeno almoço e a merenda para o 3.º Grupo de Combate que, por imperativo de escala, vão emboscar em Farim 2 C6 97. Os restantes, guarnição e pessoal da segurança imediata comem mais tarde, por volta das seis e meia ou sete horas. Junto à banca que serve de refeitório, “a parelha dos tachos” aguarda impaciente. Querem voltar para o choco!

Os homens vão assomando em pequenos grupos para o dejejum. Apresentam-se praticamente em estado de prontidão isto é, devidamente equipados. Emoldurando-lhes os cachaços, cachos de granadas de mort 60 e grinaldas de munições de bazuca 6cm, 10.7, Instalazzas, dilagramas e outro material de efeito pirotécnico variado. GMD penduradas em tudo o que era grampo ou presilha e, naturalmente, quilómetros de fitas para as HK. Todo o material se encontra limpo e bem cuidado. Com as canhotas então, têm autênticos desvelos amorosos tratando-as tão bem ou melhor do que se fossem namoradas! Suspensos do cinturão, um ou dois cantis de água e todos os carregadores de G3, próprios e alheios, a que puderam deitar mão. Sem contar com aquele sistema inventado pelo Zé soldado em momentos de aperto, que consiste em embutir um carregador na arma, ficando outro amarrado a este, preso em cruz com fita adesiva.

E não se disse ataviados, como impõe o aprumo e a gíria militar. Porque fardas são coisa que já não existe faz tempo. Mergulhos forçados no lodo das bolanhas, lavagens frequentes com pouco sabão e muita paulada aliadas às carícias de gravetos e espinhos do mato, decretaram o seu desgaste precoce. Foram à vida! Por esta altura, vão-se combinando os restos dos camuflados com peças n.º 1, 2 e 3. Botas de cabedal bambas com várias comissões no couro, umas já sem rasto, outras com buracos ventiladores nas biqueiras, alternam com as de lona, a dar as últimas. Há pessoal a sair para o mato levando nos pés uma espécie de chanatos adquiridos pelos próprios. É a crise a instalar-se!

Um quarto de casqueiro nas unhas, besuntado com margarina rançosa ou em dia de sorte com um cubo de marmelada em cima, um púcaro de água chilra tingida de café engolido de um trago e está a andar! Num bolso, arranja-se espaço para mais um quarto de pão com duas belicas* de cachorro nas entranhas. Um simples pacote de leite achocolatado ou um daqueles tubos de leite condensado Martins e Rebelo das rações de combate, fazem as delícias da maralha. Verdadeiros mimos para esta tropa arre-macho, generosa e humilde que sem reclamações ou reivindicações se prepara para enfrentar mais um dia, com porrada garantida.

Pequeno almoço no bucho e ala que se faz tarde. O dispositivo da segurança próxima tem que estar montado, com a força na respectiva posição, ainda antes dos trabalhadores da reconstrução da estrada voltarem o serviço.

Para aquele tipo de acção já todos conhecem e ocupam os respectivos lugares na bicha de pirilau. Uma piada em código, um riso abafado e as últimas recomendações dos furriéis em voz baixa, misturam-se com o tinir metálico do equipamento, criando aquela atmosfera pretensamente descontraída que precede todas as saídas. São rituais que só os que foram agraciados com uma comissão no ultramar podem entender!

A fila está formada quando aparece o alferes, qual ouriço caixeiro carregado de bugalhos: Uzi à tiracolo, rádio ao pescoço, bolsos atafulhados com bússola, mapas e cartas diversas, códigos e frequências de comunicações e, pelo sim pelo não, dois ou três carregadores suplementares para a sua metralheta. No canto de um bolso, coabitando pacificamente com ao lanche, um par de GMD, não vá o diabo tecê-las! Dedicou os últimos minutos a olhar para os papéis sob uma lâmpada que parecia sofrer de sezões palúdicas, tantas eram as tremuras, tentando adivinhar de que lado é que viria a bordoada:
- Olhos e ouvidos bem abertos, armas em posição e distâncias mantidas. E muito cuidado com o sítio onde põem as patas. A partir de agora, tudo caladinho! - São as suas últimas recomendações enquanto se dirige para a cabeça da coluna. E manda "seguir a marinha".

Deixámos Madina Fula ainda o nosso gerador ronronava placidamente naquele timbre surdo e tranquilizador que nos acompanharia durante as primeiras centenas de metros. É noite cerrada. O pessoal caminha em silêncio, paralelamente ao trilho. Comunicações, só por gestos ou em surdina e até o ruído de fundo dos ERET e AVP em AS é reduzido ao mínimo.

Este é um santo pelotão ! Dele fazem parte nada menos que dois meninos Jesus, por alcunha: O básico Aguiar, açoriano da Praia da Vitória, que é meio tótó. E o furriel Tavares, de Freixo de Espada-à-Cinta. Reina na segunda secção. É afinado da cabeça mas a sua pacholice granjeou-lhe igual cognome! Há ainda um Sto. António, virtuoso da HK.

Cunha, o pica, abre caminho percutindo o solo com a vareta de aço. Apesar de analfabeto, tem um dom extraordinário para a orientação no mato. Basta-lhe memorizar um certo trecho da carta cuja simbologia se habituou a reconhecer por comparação com aquilo que os seus olhos observam no terreno e, aí vai ele em piloto automático, com a macacada toda atrás. Direitinho ao objectivo, parece teleguiado! Auxiliado pelas diferentes tonalidades do som emitido pelo seu sofisticado aparelho, detecta com segurança todo o tipo de perigo superficial ou subterrâneo. Sabe por intuição quais são os caminhos com menos obstáculos e mais seguros. Caminho sondado pelo Cunha é caminho seguro, à confiança!

A seguir, vem o Santos, Stº António para os amigos com a sua HK, depois o alfero, o Assis da bazuca e outra HK, a do Cabecinha. Segue-se o Dutra grande do Morteirete, que dispara em andamento apoiando-o no bíceps. Moniz, Vicente, Melo e Reis são especialistas em Dilagramas. Na secção central, além do Raposo portador de mais uma HK, alinham os homens da G3: Azevedo, Amorim, Bettencourt, Martins, Aguiar e Dutra pequeno. Cartucho propulsor na câmara e, mesmo até estes, ao primeiro disparo expedem um ananás. O resto da cambada vem lá para trás sob orientação do outro Furriel, também ele Tavares de nome, mas açoriano de nascença. Manobram um Mort 60, duas HK, um LGF 10.7 e umas tantas G3.

Avançamos mastigando o cacimbo pesado e grosso da manhã que se agarra à pele, tornando-a viscosa e fria como a barriga de um sapo. Envolve-nos o cheiro a capim queimado e a fuligem negra, impregnando as roupas e as narinas. É natural, pois estamos em plena época das queimadas e as NT vão ateando fogos por onde passam, procurando limpar áreas tão vastas quanto possível por forma a evitar que o IN utilize a vegetação como máscara para possíveis emboscadas.

Lutando com arbustos e lianas que teimam em enrolar-se aos corpos e equipamento como se quisessem impedir-nos de progredir, anima-nos a alma saber que em breve estaremos de volta à civilização. O K3 está praticamente à vista! Falta apenas acrescentar uma meia dúzia de quilómetros àquela serpente de asfalto que protegemos e vemos crescer todos os dias. Trata-se de uma tabanca situada a cerca de três quilómetros da margem esquerda do Cacheu, muito próximo do ponto de origem de um troço de estrada que conduz ao Olossato, capital do Oio. O nome verdadeiro, aquele que consta dos mapas é Saliquinhédim. No entanto, a população local assumiu o novo topónimo aparentando desconhecer ou ter esquecido completamente o original.

Atingir o K3, representa o final de uma campanha até agora bem sucedida do ponto de vista militar, apesar de particularmente desgastante, não só pelas flagelações e contactos quase diários, mas sobretudo pela dureza das condições de vida a que todos temos estado sujeitos. Significa também que em breve, a 27.ª de Comandos vai ser despejada pela CCaç 2753, ficando esta na situação de força de quadrícula com direito a um verdadeiro quartel. Com dormitórios, instalações sanitárias, secretaria, messes, cozinha ... tudo!

E sobretudo, vamos avistar gajas! Sim, tem de haver por lá mulheres, esses seres intangíveis, de que perdemos o rasto há meses e de cuja existência já começamos a duvidar! Sejam elas brancas, pretas ou verdianinhas. De preferência bajudas, mas na sua falta que avancem as mulheres grandes. Mobilizemo-las se for necessário, porque a rapaziada não aguenta mais esta lei seca tão prolongada ...

Mortos de cansaço, com o ornamento do escalpe a desaparecer a olhos vistos devido ao stress e deficiente alimentação, exauridos pela punheta, este devaneio com putas ocupa-nos o pensamento por fugazes instantes, nesta madrugada particularmente enervante. Aqui e além, a silhueta fantasmagórica de um baga-baga chama-nos à realidade. Escondido pelo capim da altura de um homem, levanta algumas suspeitas... e muitos receios! Os restos de luar reflectido nos olhos de uma família de babuínos produzem um efeito chamado cagaço. Não se tratando um bando de almas penadas, (os açorianos são muito supersticiosos!), só poderá ser o IN a espiar-nos com flash-lights para mais certeiramente nos alvejar, comentam entre si!

Na floresta, o amanhecer é pleno de actividade. O pio de uma ave ou o restolhar de um bicharoco qualquer podem tornar-se inquietantes sinais de alarme. Por vezes, é o encontro fortuito com um carreiro de formigas de grande cabeça negra e tenazes monstruosas que obriga a passar a palavra e... a passar ao lado! Incomodadas, têm o péssimo hábito de trepar silenciosamente pelas pernas acima. Fazem-se anunciar quando já estão ferradas na pele dos tomates, de onde só saem arrancadas a bico de navalha depois de decapitadas. Há umas semanas, um pelotão da Companhia passou por essa excruciante experiência durante uma operação nocturna, que terminou antes de ter começado. Menos de meia hora após a largada, ei-los que regressam num tropel, aos pinotes e completamente nus quais isabelinhas (**), berrando que nem cabritos desmamados, agarrados às respectivas partes. Que espectáculo soberbo, hilariante e inesquecível!

Amanheceu. Ao longe, no silêncio desta floresta tão bela só comparável à mata do Cantanhês, já se ouve o roncar da maquinaria e o estrondo provocado pela queda das árvores abatidas. A tensão vai aumentando, os nervos estão numa lástima. Parafraseando autor desconhecido, cada passada cada cagada! Os olhos já doem de tanto perscrutarem o inimigo através da folhagem. Todo o cuidado é pouco. O silêncio torna-se esmagador, nada bole. É a bonança antes da tempestade e, todos sabem por experiência e por instinto que vem aí bernarda da grossa. Até já cheira a turra!

Da frente vem a ordem preparar para instalar. Mil olhos lançam-se então numa busca apressada e ansiosa de qualquer acidente do terreno que possa oferecer alguma protecção, por mínima que seja. A cratera deixada pela raiz de uma palmeira caída, o tronco de uma árvore corpulenta ou o castelo de uma colónia de térmitas, tudo serve para abrigar um pouco o canastro. Mas cuidado antes de mandar com ele para o chão! É preciso inspeccionar muito bem o local, não vá estar por ali alguma artimanha escondida. É um pequeno alívio, pois uma vez instalados o conforto é outro. Se o IN tiver o desplante de se aproximar da nossa posição, somos nós quem terá a iniciativa. No entanto, o mais provável é que sejamos alvejados com umas morteiradas de 82mm a partir de uma bolanha situada a cerca de trezentos metros à nossa esquerda. E a seguir emboscados, quando fizermos a perseguição.

Esta é a táctica habitual, mas ultimamente têm vindo ao trilho com frequência. E desfaçatez. Mandam-nos com umas roquetadas para cima e desaparecem como sombras, disparando furiosamente as Kalash apoiadas sobre o ombro, mas viradas para a rectaguarda sempre em passo de corrida.

Desta vez não houve tempo! Os bandidos ou seguiram os nossos movimentos, ou conseguiram adivinhar as nossas intenções quanto ao local onde iríamos abancar. O facto é que chegaram primeiro do que nós. Ainda não tínhamos amochado e já o apocalipse se abatia em cima das nossas cabeças. Nos primeiros instantes nem deu para perceber de onde é que chovia tanta metralha. Um número indeterminado de roquetes estoura à nossa volta e nas copas das árvores, semeando farpas de aço que cortam o ar assobiando em todas as direcções. No ar há uma poeirada enorme e uma confusão de galhos partidos. Pequenas bolas de fumo negro pairam sobre a nossa vertical. Cheira a enxofre e a pólvora queimada, o cheiro da guerra. As kalashnikov, costureirinhas, Degtaryev e outro instrumental a que chamam ligeiro entra em acção como uma orquestra, produzindo um matraquear muito rápido mas sem a alma das nossas G3. Estalidos secos junto aos ouvidos indicam-nos que uma chuva de balas nos procura atingir sem piedade. A malta reage automaticamente. Numa fracção de segundo as metralhadoras iniciam uma sequência de tan, tan tans. É uma canção em tom mais grave e ritmo lento comparado com os réc-téc-téc que vêm do outro lado. Mas reconfortante. A equipa da esterilização (dilagramas) não pode fazer nada, o In está demasiado perto. Poderíamos atingir-nos a nós próprios. Os morteiros e LGF idem. Só há uma saída: pessoal em linha, curvado para a frente, armas automáticas à anca com patilha de segurança em posição de rajada, avançamos em lanços sucessivos de cinco a dez metros galgando o mato. Passam dois, três minutos no máximo. Subitamente, o silêncio.

A guerra de hoje está semi decidida, mas a coisa não pode ficar assim! Os gajos têm que levar para tabaco. Continuamos a avançar até alcançar uma zona com tecto livre que batemos generosamente num ângulo de 180 graus, antes de iniciar a perseguição. Atingimos a orla da bolanha. Pelo caminho constatámos a existência de alguns espojeiros. Confirma-se a suspeita de que afinal já estavam à nossa espera. Terão passado lá a noite? Recolhemos também algum material que abandonaram na precipitação da retirada.

Do lado oposto, longe mas ainda à distância de tiro efectivo avistamos vários elementos do IN em fila. Terão sido estes os tipos que nos atacaram? Serão carregadores? Não vale a pena persegui-los. Não conseguiríamos alcançá-los e não é essa a nossa missão. Além disso, corremos o risco de ser atingidos pela nossa própria artilharia de 14cm ou pelo fogo aéreo, ad hoc ou a pedido dos nossos camaradas que estão a fazer a segurança afastada. Estes já levam o que contar, deixá-los ir! Mas não sem antes levarem mais umas morteiradas nos cornos para acelerar o passo.

No Destacamento é o alvoroço. Ouviram o estardalhaço e querem saber o que é que se passa, se temos feridos, se fizemos baixas... Sim temos um ferido que apanhou com um estilhaço na peida, coisa sem importância de que o maqueiro Melo se encarregará. Não é necessária a evacuação, há-de regressar pelo seu pé.

Ainda não são dez horas e já temos o dia ganho! Hoje, em princípio, não nos vão chatear mais. Agora há apenas que cumprir horário. Voltamos à posição que nos foi destinada e instalamos. Daqui a nada vamos almoçar porque o raio da sarrafusca abriu-nos o apetite. Já se fala em voz alta comentando toda a acção com uma espécie de nervoso miudinho residual. Alguns aproveitam o momento de descontracção e vão aliviar-se atrás de qualquer coisa. É que a vinda, nem houve tempo para fazer o habitual alto para cagar.

Quando forem umas quatro da tarde havemos de pôr-nos a caminho. Convém que o regresso se faça ainda com luz do dia. À chegada, teremos um relaxante banho debaixo de um bidão instalado sobre um palanque constituído por quatro cibos ao alto, com água aquecida pelo sol. A seguir, o jantar. Prato à escolha: batata cozida com cavala de conserva. Amanhã também poderemos escolher dobrada seca, demolhada, com arroz e feijão. No dia seguinte voltaremos à cavalinha! Se tudo correr bem, talvez a hora do jantar decorra sem sobressalto. O pessoal, sempre em pequenos grupos, recebe a comida nas marmitas e vai comer para os abrigos onde fica alerta até tarde. Depois, serão umas horas de sono entremeado de saudades e pesadelos, que apesar do cansaço nunca será profundo nem repousante. Amanhã tudo recomeçará de novo. Mas estaremos um dia mais perto!

Volto aos registos da Companhia:

Fascículo IV – Período de 01 FEV71 a 28 FEV71.

“Em 02FEV na região de Farim 2 C6 97, um grupo IN com efectivo de 15 a 20 elementos, emboscou à distância de 5 a 6 metros com armas ligeiras e LGF um grupo da CCaç que progredia para emboscar. As NT sofreram um ferido ligeiro. Feita a batida foi encontrada uma fita de munições de metralhadora ligeira”.
____________

(*) Equivalente em açorianês para piça, pixota, pila, etç.

(**) Idem, para mariazinha, mariconço...

Notas de L.G.

(1) Vd. postes da série de

18 de Setembro de 2006 Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)

Guiné 63/74 - P1084: Histórias de Vitor Junqueira (2): O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753

(2) Vd. post de 25 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCLI: A madeirense CART 2732 (Mansabá, 1970/72) (Carlos Vinhal)